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Revisões

sexta-feira, 25 de novembro de 2011

Atualizado em 24 de novembro de 2011 14:14

 

Tenho inúmeras qualidades e pouquíssimos defeitos. Não é o que a maioria das pessoas pensa, mas o que importa é que estou convencido disso. Uma de minhas qualidades é imaginar que eu teria contribuído para que o trabalho de outrem fosse melhor. Bastaria que me tivessem consultado antes de concluir o que estavam fazendo. Como geralmente eles não sabem o que é a modéstia, está aí o mundo que eles vão deixar aos nossos herdeiros.

Cito um exemplo: o criador do mundo, quando resolveu fazer o tal bonequinho de barro, não tinha experiência nenhuma, basta ver que nascemos com dedos nos pés e jamais, ao longo da vida, os utilizamos para pegar algo. Sei que há controvérsias (clique aqui), mas a regra é essa. Fosse mais modesto e faria como o escultor grego que se pôs a consultar o sapateiro para saber exatamente como deveria fazer a sandália do Alexandre. Verdade que o tal sapateiro resolveu dar palpites no que diz com o saiote e o penteado do Alex e tomou um chega prá lá: "ne sutor ultra crepidam!". E tamos conversados.

O criador do mundo, no entanto, não me consultou e fez o Adão com um par de tetas, que, como sabemos, no homem não serve para absolutamente nada. Ou serve e eu ainda não descobri. Já quando cogitou de construir a Eva ele, de fato, deu ao tal ornamento não uma, mas várias finalidades, uma das quais a estética. E olhe que ainda não haviam, ao que se diz na Bíblia, inventado o silicone. "Senhor, para que esses dois pontinhos no peito do animal homem se ele não vai aleitar?" eis o que eu teria perguntado. Onisciente, ele teria inventado uma desculpa qualquer, como se diz num dos Evangelhos, certamente apócrifo, tal como teria ocorrido em Minas Gerais. Lá, Jesus teria chamado Pedro para uma viagem pelos grandes sertões do Guimarães Rosa. Que ele fizesse um matulão, onde poria um frango assado, para comerem quando sentassem para descansar. Isso feito, lá vão os dois vencendo aqueles caminhos tortuosos. Pedro vai ficando para trás e, guloso como um bom pescador, enfia a mão no embornal e retira uma coxa da ave, que come sofregamente. Chegando ao local da pousada, o mestre determina ao discípulo que lhes sirva da ave, quando toma conhecimento da molecagem do Pedro. "Esse é um tipo de ave que tem uma só perna" diz o malandro. O companheiro limita-se a olhar as nuvens, como quem diz "onde me meteste, pai!". Seguem a viagem e, em vista do calor sufocante, lá estão alguns jaburus descansando sobre um pé só, como soem fazer amiúde. Pedro, como bom advogado, não perde a ensancha: "Veja, mestre, foi uma dessas aves que eu assei para nossa merenda". O mestre agita os braços e as aves põem-se a correr, lá com as suas duas pernas de cada. Pedro não se dá por derrotado: "Eita hómi pra fazê milagre, sô!".

O fato é que o Criador já havia cometido o mesmo erro quando fizera, sei lá como, os demais primatas. Gorilas enormes com aquele par de tetas que os gorilinhas sabem que não servem para absolutamente nada. Já as tetas da mãe, diz a eles o manual de uso, é só procurar no meio daquele pelame todo que ele lhe matará a fome.

Contos, romances e filmes são meu alvo predileto para a revisão que fatalmente melhoraria a obra de meu colega, mesmo sabendo que ele certamente não a acatará.

Um dos trabalhos que eu poderia ter aprimorado é o quase irretocável filme do Martin Scorsese "Os Infiltrados" (em inglês, The Departed). Sabemos todos que o Martin, oriundo, da vero?, sentia-se vocacionado para o sacerdócio. Por um desses caprichos do destino, tornou-se famoso com filmes que mostram a típica famiglia italiana. Isto é, a Máfia, cujos componentes, como sabemos, não dispensam a missa dominical, com direito até mesmo à santa comunhão. Diz-se que, diante de um desses capo di tutti capi, o Cristo da cruz teria dito "És um homem de sorte, D. Valério". O mafioso teve um frisson. "Por que dizes isso, Senhor?". E o crucificado: "Se os meus pés não estivessem pregados te dava um pontapé na bunda e te punha pra correr, suo mascalzone". Duvida? Pergunte ao Coppola, que, por sinal, fabrica um vinho tinto que custa o triplo de um vinho chileno.

Consta que, diante de brigas entre as casas reais, pois os nobres de Nápoles não aceitavam a intromissão ali da Casa de Bourbon, veio o grito de M.orte A. la F.rancia I.tália A.nela. "A Itália deseja a morte da França". Nenhum filme do Scorsese nem do Coppola cuidou disso, mas lá estão os "bons companheiros", abrindo caminho a tiros e cacetadas. Sin non è vero è bene trovato.

Por falar em revisão (na linguagem cinematográfica se diz edição), a fantástica cena da morte de Don Corleone no primeiro filme da trilogia célebre, antecedida da brincadeira dele com o neto, não estava prevista no roteiro. O cinegrafista, fã de carteirinha, como nós todos, do Marlon Brando, impressionou-se com o modo descontraído com que o grande astro brincava com a criança, fazendo uma dentadura com casca de laranja, durante uma pausa das filmagens, e continuou filmando. Quando o diretor viu a cena, não deixou por menos. Incluiu no filme. Si non è vero et cætera e tal.

Pois num filme mais recente sobre a cosa nostra, dirigido pelo Scorcese, não é o Robert de Niro que chefia a famiglia, até porque ela não é italiana, mas irlandesa, tanto quanto aquela que o Paul Newman chefiava no também excelente "Estrada para Perdição" (clique aqui), no qual o nome da cidade aparece como um personagem do filme, com uma interpretação soberba do Tom Hanks. Aqui (clique aqui) o chefão é o Jack Nicholson e tudo se passa num jogo de aparências: este finge que é policial mas é bandido, enquanto aquele finge que é bandido mas é policial. Ou talvez não haja diferença nenhuma, sei lá. O fato é que tudo se encaminha para o grand finale. Claro que não vou contar o final, para não tirar a surpresa de quem ainda não viu o filme, mesmo porque não sou tão cretino como meus críticos supõem. Imagino o que eu ouviria de meu amigo Alfredo Sternheim, crítico de cinema da velha guarda, se violasse esse código de honra.

Mas se você viu o filme, recorde a cena derradeira, apresentada como se fosse o final de uma ópera italiana. O morador abre a porta de seu apartamento e dá de cara com alguém, que lhe causa espanto. A câmera mostra os sapatos da desagradável visita, que estão cobertos para não deixar marcas no assoalho. Mau presságio. A câmera vai subindo lentamente e mostra as mãos da visita, enluvadas, sendo que a mão direita empunha um revólver. Dois tiros e pronto. Fim do filme.

Responda: Precisava mostrar mais do que isso? Que diferença nos faria se o rosto da visita não aparecesse?

Cartas para a redação.