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Conversa Constitucional

Fatos do cotidiano à luz da CF e a rotina do STF.

Saul Tourinho Leal
Dia 13/03/2024, a 1ª Seção do STJ retomará o julgamento dos Recursos Especiais n° 1.898.532/CE e 1.905.870/PR, de relatoria da ministra Regina Helena, veiculadores do Tema Repetitivo nº 1079, cuja redação é a seguinte: "Se o limite de 20 salários-mínimos é aplicável à apuração da base de cálculo de contribuições parafiscais arrecadadas por conta de terceiros, nos termos do art. 4º da lei 6.950/81, com as alterações promovidas pelos arts. 1º e 3º do decreto-lei 2.318/86". A Ministra Relatora negou provimento aos especiais e modulou os efeitos dessa virada jurisprudencial, incorporando, em sua proposta, sugestões do ministro Gurgel de Faria. A proposta ficou assim redigida: "1 - A norma contida no parágrafo único do art. 4° da Lei n° 6.950/81 limitava o recolhimento das contribuições parafiscais cuja base de cálculo fosse o salário de contribuição; 2 - Os arts. 1° e 3° do Decreto-Lei n° 2.318/86, ao revogarem o caput e o parágrafo único do art. 4° da lei 6.950/81, extinguiram, independentemente da base de cálculo eleita, o limite máximo para o recolhimento das contribuições previdenciárias e parafiscais devidas ao SENAI, SESI, SESC e SENAC." A Ministra invocou o art. 927, §3° do CPC, segundo o qual "na hipótese de alteração de jurisprudência dominante do STF e dos tribunais superiores ou daquela oriunda de julgamento de casos repetitivos, pode haver modulação dos efeitos da alteração no interesse social e no da segurança jurídica".  A modulação, tal como proposta, alcança apenas os contribuintes que ingressaram com ação judicial e/ou pedidos administrativos até o início do julgamento (25/10/2023) e que tenham granjeado decisão favorável, possibilitando-lhes recolher as contribuições parafiscais, ou recuperar os valores já recolhidos, com o limite dos 20 salários-mínimos para as suas respectivas bases de cálculo até a data da publicação do acórdão. Mas esse marco "início do presente julgamento (25/10/2023)", bem como a condicionante "obtendo pronunciamento judicial ou administrativo favorável", não são razoáveis de serem acolhidos pela 1ª Seção do STJ. É que o Judiciário, ao tomar decisões, orienta o comportamento dos particulares. Essa dinâmica alimenta a própria legitimidade da prestação jurisdicional. Por essa razão, quaisquer que sejam as hipóteses, contanto que tenha, o contribuinte, ingressado com ação judicial e/ou pedido administrativo, independente de decisão favorável, devem elas ser alcançadas pela modulação, pois foram pautadas na legítima expectativa de manutenção do entendimento até então vigente do STJ. Não se pode considerar como marco para fins de modulação a data de início do julgamento (25/10/2023), na medida em que, diante da sua interrupção pela vista do ministro Mauro Campbell, na referida data ainda prevalecia o entendimento favorável aos contribuintes e, portanto, deve ser levada a efeito a data de conclusão do julgamento e fixação da tese jurídica. No caso, considerando a existência de precedentes favoráveis ao contribuinte há mais de uma década, em decisões monocráticas e acórdãos proferidos por ambas as Turmas de Direito Público, e a inexistência de uma decisão qualquer contrária no âmbito do STJ, alimentou-se expectativa no sentido da existência da limitação de 20 salários-mínimos em debate, a qual não pode agora ser simplesmente ignorada. Assim, mesmo aquele que não obteve decisão judicial ou administrativa favorável, mas que não ficou inerte na busca do seu direito, ingressando com ação judicial ou protocolando requerimento administrativo até a conclusão do julgamento e fixação da tese jurídica (exercendo o seu de petição), deve ser alcançado pela modulação, pois a jurisprudência consolidada do STJ gerou, da mesma forma como gerou naquele que obteve decisão judicial favorável, confiança de que tais decisões orientavam o comportamento dos particulares. Com base nelas, as empresas, tenham ou não obtido pronunciamento favorável, moldaram o seu comportamento, num movimento compatível com a ideia de legitimidade do Judiciário. O art. 927, §3° do CPC apenas estabelece que a modificação de jurisprudência pacificada deve levar em consideração o princípio da proteção da confiança em relação ao entendimento anteriormente vigente. Não há, na lei, determinação de que se distinga contribuintes com decisão favorável daqueles que não a possuíram, para fins de prestígio à segurança jurídica, porquanto ambos os tipos de contribuinte agiram com boa-fé objetiva e confiaram na jurisprudência da Corte. Ainda, o outro motivo para se afastar como marco para fins de modulação o início do julgamento, bem como a condicionante da "obtenção de decisão favorável", decorre da própria segurança jurídica pressuposta da modulação. Todos os contribuintes que ingressaram com ação judicial ou protocolaram pedido administrativo discutindo as contribuições em questão (com ou sem decisão favorável) tiveram a mesma confiança e calculabilidade nos precedentes deste do STJ, isto é, confiaram que seu pedido iria ser, mais cedo ou mais tarde, acolhido pela Corte e, em função disso, ajustaram suas condutas. A jurisprudência consolidada do STJ sobre o tema remontava, no mínimo, aos idos de 20081, tendo a Corte proferido, desde então, diversas decisões monocráticas e acórdãos no mesmo sentido ao longo dos últimos 15 anos: REsp 953.742/SC, Rel. José Delgado, 1ª T, acórdão de 12/2/2008; REsp 1.439.511/SC, Rel. Herman Benjamin, monocrática de 9/6/2014; AgInt no REsp 1.241.362/SC, Rel. Assusete Magalhães, 2ª T, acórdão de 1/3/2018; AgInt no REsp 1.570.980/SP, Rel. Napoleão Nunes Maia Filho, 1ª T, acórdão de 17/2/2020 ; AgInt no REsp 1.825.326/SC, Rel. Regina Helena Costa, 1ª T, acórdão de 3/8/2020; REsp 1.907.308/SC, Rel. Og Fernandes, monocrática de 11/12/2020; REsp 1.908.527/RS, Rel. Sérgio Kukina, monocrática de 3/2/2021; REsp 1.910.665/RS, Rel. Benedito Gonçalves, monocrática de 24/2/2021. Ora, o comportamento das empresas foi pautado na orientação consolidada do STJ, não na orientação controvertida das instâncias inferiores ou administrativas, não se conseguindo extrair das decisões dessas últimas prestígio suficiente a condicionar a modulação apenas para quem obteve pronunciamento favorável. Entre a indisciplina judicial de instâncias inferiores que negam legitimidade às decisões do STJ e o papel pacificador que constitui a própria razão de existir de uma Corte Superior, deve, esse caso, honrar este último, mormente se se trata de segurança jurídica. Cenário ainda mais grave se colocou na sessão do dia 13/12/2023, quando o ministro Mauro Campbell votou para negar qualquer tipo de modulação. Para o Ministro, o que havia no tema, em verdade, eram decisões monocráticas num dado sentido, não havendo que se falar em "jurisprudência consolidada". Acontece que, como se demonstrou, há acórdãos lavrados pelas duas Turmas da 1ª Seção se pronunciando sobre a matéria, conforme reconhecido no voto da Ministra Relatora. Ademais, a mera existência de decisões monocráticas num mesmo sentido reaviva a lógica de que havia, antes, uma posição colegiada capaz de autorizar ministros e ministras a tomarem essas decisões individualmente. Se antes, sob a égide do CPC de 1973, consolidou-se no STJ a compreensão de que "o relator está autorizado a decidir monocraticamente recurso fundado em jurisprudência dominante" (art. 557, caput e § 1º- A), atualmente, pelo CPC de 2015, o fortalecimento de decisões emanadas das Cortes Superiores, notadamente o STJ, é ainda mais intenso, a ponto do inciso II do art. 988 autorizar o ajuizamento de reclamação da parte interessada ou do Ministério Público para "garantir a autoridade das decisões do tribunal". Mudar de posição e fazê-lo sem a responsabilidade institucional de projetar no futuro os efeitos dessa mudança equivale a, materialmente, afastar a incidência de todo esse plexo legislativo dedicado à segurança jurídica e à proteção da confiança. Por essa razão, o mais justo no Tema 1079 do STJ é promover a modulação de efeitos nos moldes tradicionais da Corte e da processualística, sem restrições indevidas, tampouco sem a negativa de que houve, no caso, mudança de jurisprudência.       __________ 1 REsp 953.742/SC, Rel. Ministro José Delgado, Primeira Turma, julgado em 12/2/2008.
segunda-feira, 22 de janeiro de 2024

Problemas na deliberação assíncrona do STF

Deliberações relevantes no Plenário Virtual ("PV") do Supremo Tribunal Federal têm despertado o desejo de uma melhor compreensão quanto ao desenho institucional aplicado a esse tipo de julgamento, que é qualificado como "assíncrono", por haver, no seu curso (em regra, do início da sexta-feira até o final da sexta-feira seguinte), o lançamento de votos sem a obediência de qualquer ordem de votação e também sem que exista uma discussão coletiva e instantânea sobre cada voto. Antes de aprofundar o ponto exposto no parágrafo acima, vale saber que o elemento de assincronicidade do PV não tem causado qualquer espécie ao STF. Para o ministro Edson Fachin, "o julgamento em sessão assíncrona em nada afeta a discussão que os Ministros poderão tecer sobre o caso" (HC 230.015 AgR). O ministro Gilmar Mendes, por sua vez, anotou ser "dotada de suficiente publicidade e motivação os julgamentos realizados por meio eletrônico e votação assíncrona" (MS 37.695). O ministro Ricardo Lewandowski chegou a lembrar o "avanço recente de novas modalidades síncronas e assíncronas de prestação do serviço jurisdicional, que apresentaram incremento de eficiência, celeridade e digitalização do Poder Judiciário" (HC 220.357 AgR), enquanto para o ministro Cristiano Zanin "o destaque do julgamento de feito - da sessão assíncrona virtual para sessão presencial ou por videoconferência - constitui excepcionalidade aferível pelo Relator, especialmente à vista da controvérsia vertida nos autos, por não trazer prejuízo às partes, preservados os debates que os Ministros poderão fazer sobre o caso" (RHC 230.931). Para quem, contudo, advoga no STF, há, sim, questões em aberto. É que o PV não se submete a alguns dispositivos regimentais e essa excepcionalidade, se abusiva, pode se converter em insegurança para a advocacia, as partes e a prestação jurisdicional. O primeiro dispositivo regimental sublimado pelo PV é o art. 135, cujo caput diz que concluído o debate oral, o Presidente tomará os votos do Relator, do Revisor, se houver, e dos outros Ministros, "na ordem inversa de antiguidade". Essa fórmula pressupõe uma deliberação ordenada e síncrona, com todos os ministros e ministras presentes e atentos ao seu momento de votar. O § 1º do mesmo art. 135 determina que apenas com a autorização do Presidente "os Ministros poderão antecipar o voto". Esse comando também é inaplicável ao PV. Por fim, há o § 2º, pelo qual, encerrada a votação, o Presidente proclamará a decisão. No PV, isso é artificializado, pois a proclamação é automática, feita pelo sistema. Também o art. 136 do Regimento Interno é colocado de lado. Ele diz que "as questões preliminares serão julgadas antes do mérito, deste não se conhecendo se incompatível com a decisão daquelas". Já o § 1º dispõe que, sempre que, no curso do relatório, ou antes dele, algum dos Ministros suscitar preliminar, será ela, antes de julgada, discutida pelas partes, que poderão usar da palavra pelo prazo regimental. Se não acolhida a preliminar, prosseguir-se-á no julgamento. Por fim, o art. 137 diz que, rejeitada a preliminar, ou se com ela for compatível a apreciação do mérito, seguir-se-ão a discussão e julgamento da matéria principal, pronunciando-se sobre esta os juízes vencidos na preliminar. Acontece que muitas vezes os votos lançados no PV são diferentes não apenas quanto aos fundamentos, mas quanto ao próprio método de elaboração. Enquanto um ministro abre uma preliminar, outro aborda apenas o mérito, e lá ficam os dois votos sem qualquer sintonia, lançados no PV, e o pior, sem que haja, entre os ministros que em seguida inserirão seus votos, discussão primeiramente acerca da preliminar e, apenas depois, quanto ao mérito, como determina o Regimento Interno do STF. Também há votos que mesmo no mérito já contemplam, de ofício, modulação de efeitos, enquanto outros nada dizem a respeito. E lá vamos nós explicar essa disfuncionalidade em audiências, pedindo que cada ministro perceba que há um voto - às vezes, já dentre vários - se antecipando a um pedido de modulação. Ou, ainda, votos que, em sede de embargos, apontam marcos temporais diversos quanto ao ponto de partida da modulação (se da data da publicação da ata, se da data do julgamento, se da data da publicação do acórdão...), sem que seja possível, em razão da assincronicidade da deliberação no PV, haver uma primeira (ou última) deliberação quanto a esse ponto para que, ao final, sejam contados os votos de cada corrente e, então, um resultado seja proclamado.   Há ainda as hipóteses nas quais há correntes hermenêuticas com fundamentos tão distintos, e em tão grande quantidade, que é impossível haver a proclamação do resultado (por faltar seis votos para qualquer que seja a corrente), uma vez que não estão, os ministros e ministras, ao mesmo tempo, no mesmo local, dedicados a, juntos, equacionarem, sincronamente, aquele problema, às vezes migrando para um ou outro lado na decisão. A ordem, rito e solenidade de manifestações durante uma deliberação jurisdicional da Suprema Corte não é mera perfumaria. Há uma lógica embutida em toda essa cerimônia. Ela ajuda na construção dos precedentes, imprimindo lógica, sequência e sentido aos debates e raciocínios empregados naquele ato solene e de profundas consequências nas vidas ou interesses das partes. Basta lembrar que a proclamação do resultado é um dos elementos constitutivos do próprio julgamento. Segundo o art. 941 do Código de Processo Civil, "proferidos os votos, o presidente anunciará o resultado do julgamento, designando para redigir o acórdão o relator ou, se vencido este, o autor do primeiro voto vencedor". O § 2º do art. 135 do RISTF diz que, "encerrada a votação, o Presidente proclamará a decisão". Atualmente, passada a resistência, e a euforia, quanto ao PV, o bom senso e a prática começam a apontar problemas. Deliberando acerca da modulação de efeitos pleiteada em embargos de declaração na ADI 4411 ("taxa estadual de segurança pública"), verificou-se a impossibilidade de se alcançar um resultado, o que fez com que o caso fosse movido, pelo sistema (não por iniciativa dos ministros) para a deliberação presencial. O mesmo na ADC 49 (Rel. Min. Edson Fachin), que, em sede de embargos, também discutia modulação ("ICMS sobre as transferências de mercadorias entre estabelecimentos de mesmo titular"). A situação se repetiu nas ADIs 6654 (Rel. Min. Alexandre de Moraes), 6688 (Rel. Min. Gilmar Mendes) e 6683 (Rel. Min. Nunes Marques) que discutiam as regras para reeleições nas Assembleias de Roraima, Paraná e Amapá, respectivamente; e, ainda, na ADI 6609 (redação para acórdão do ministro Gilmar Mendes), que fixou que "a remoção sempre precederá à promoção por antiguidade ou merecimento". Nessas hipóteses, o sistema, não tendo conseguido identificar qual o resultado do julgamento, remete automaticamente o caso para o plenário presencial. Também tem acontecido de o presidente do STF, um ministro, ou ministra, ou até mesmo o próprio relator, fazer um "destaque" tentando salvar o esforço judicial empreendido até ali no PV. Pelo destaque, a deliberação no PV é interrompida e tudo retorna, do início (incluindo leitura de relatório e sustentação oral), presencialmente. O § 3º do art. 21-b do RISTF diz: "No caso de pedido de destaque feito por qualquer ministro, o relator encaminhará o processo ao órgão colegiado competente para julgamento presencial, com publicação de nova pauta". Essa iniciativa costuma ser tomada quando cada julgador seguiu, no plano hermenêutico, por si, sendo impossível proclamar um resultado. No RE 1.276.977, os embargos de declaração contra o juízo meritório no Tema 1102 ("Revisão da Vida Toda"1), em razão de múltiplas correntes formadas, reclamaram, do relator, ministro Alexandre de Moraes, um destaque. Não foi diferente no Tema 1205 (RE 1266.095)2, no qual, após múltiplas correntes interpretativas terem se verificado, o ministro Dias Toffoli, relator, destacou o feito. Às vezes, o próprio autor do destaque (sendo relator ou não) desiste da iniciativa e permite que o julgamento prossiga no PV. Assim o faz quando, após estudo da disputa, percebe que não há complexidade bastante a justificar o deslocamento de um plenário (virtual) para o outro (presencial).3 O caso segue no PV. Ou seja, o julgamento presencial, cuja votação se dá sincronamente, existe (e existia) sem o PV, mas o inverso não é verdadeiro. Não há PV sem que tenha, o STF, a oportunidade de, presencialmente, e ao mesmo tempo, prestar a jurisdição, muitas vezes conseguindo um tipo de deliberação impossível ao PV. Em resumo, jamais teremos (torço eu) uma Suprema Corte absolutamente sustentada no Plenário Virtual.   Essa simbiose entre a deliberação assíncrona e síncrona, no PV e presencialmente, termina criando, pela prática, um modelo decisório híbrido, formado pela deliberação assíncrona e virtual, mas que se dá apenas até o ponto em que não haja, pela própria natureza do modelo, complexidade bastante a impedir a proclamação automática do resultado, providência essa que reclama discussões presenciais (e síncronas) na Corte. Acontece que, quando se é feito um destaque, o rito se reinicia, agora presencialmente, com leitura do relatório e sustentações orais, mas, quando o sistema simplesmente não consegue proclamar o resultado no PV e, por essa razão, remete essa proclamação (e apenas ela), para o presencial, não há oportunidade da advocacia se fazer sentir, ficando, esse ato, circunscrito aos ministros e ministras. É mais uma disfuncionalidade. Para que o PV exista - e é fundamental que ele exista -, é necessário fazer de conta que não sabemos das múltiplas violações regimentais que esse tipo de votação enseja. Ocorre que essa prática de deslocamento de casos para o PV, ainda que apenas para a proclamação de resultados, mostra ter, o PV, natureza acessória, complementar à deliberação síncrona e presencial. Prova, ainda, ser, ele, falho. Também mostra que há, em sua essência, problemas estruturais que reduzem a qualidade do processo deliberativo (e não necessariamente dos fundamentos dos votos), pela falta de sincronicidade do debate do qual se forja a prestação jurisdicional colegiada. Por fim, demonstra ser da natureza das Supremas Cortes a oportunidade de, atentas às regras regimentais, se dedicarem à construção, pelo debate (com seus contrapontos, evoluções, retificações e ratificações), ordenadamente, à luz de um rito e atenta a solenidades, de uma solução jurídica para a questão levada ao seu alto encargo. Em conclusão, a deliberação no PV, embora essencial à prestação jurisdicional eficiente (e célere), não é imune a críticas, tampouco a aperfeiçoamentos, sendo necessário que a tecnologia cumpra o seu papel, motivada, também, pela ambição de permanente aprimoramento por parte dos ministros e ministras do STF, a quem assiste o grave dever de entregar ao país a melhor prestação jurisdicional que suas competências são capazes de propiciar. A deliberação no PV pode mais e nós queremos esse "mais".     __________  1 Tese: "O segurado que implementou as condições para o benefício previdenciário após a vigência da Lei 9.876/99, e antes da vigência das novas regras constitucionais, introduzidas pela EC 103/2019, tem o direito de optar pela regra definitiva, caso esta lhe seja mais favorável." 2 Tema 1205: "Exclusividade da propriedade industrial em razão da demora na concessão do registro de marca pelo INPI concomitante ao surgimento de uso mundialmente consagrado da mesma marca por concorrente." 3 Exemplo foi o destaque feito pelo ministro Alexandre de Moraes no ARE 1.222.655, mas que, em seguida, ensejou a desistência do destaque pelo próprio ministro, retomando, o caso, seu curso normal.
quarta-feira, 3 de janeiro de 2024

A Suprema Corte de Israel resiste

Se o grande desafio do constitucionalismo no século XX foi fundar Supremas Cortes - e elas foram fundadas em todo o mundo como nunca antes -, o século XXI entrega a essas instituições outra tarefa: a de resistir. Percorrendo esse caminho, a Suprema Corte de Israel acaba de vencer uma batalha, não estando vencida, ainda, a guerra contra ela patrocinada pelo primeiro-ministro Benjamin Netanyahu e seus aliados. Para se conhecer as circunstâncias que ensejaram o já célebre precedente divulgado essa semana, vale incursionar, antes, nos muitos aspectos históricos que forjam a original jurisdição constitucional israelense.    Em 14 de maio de 1948, poucas horas depois do fim do Mandato Britânico sobre a Palestina, David Ben-Gurion estabeleceu Israel, tornando-se o primeiro primeiro-ministro do país. Houve uma Declaração de Estabelecimento do Estado de Israel. Esta, há de ser lida em conjunto com a Resolução nº 181, da Assembleia Geral da ONU, de 29 de novembro de 1947, segundo a qual qualquer que fosse o caminho adotado pelo país ali fundado, ele jamais se daria sem a observância dos direitos fundamentais então estipulados e que nenhuma lei - incluindo a Constituição ou emendas constitucionais -, poderia entrar em conflito ou sequer interferir naqueles direitos, pois, caso isso ocorresse, os direitos fundamentais previstos na Resolução - "fundamental laws" -, prevaleceriam. A Declaração, por sua vez, foi promulgada pelo Conselho do Povo, o parlamento dos Yishuv, que atribuiu a si a designação de Conselho de Estado Provisório e escolheu 13 dos seus membros para servir como Administração Popular. A primeira eleição se deu em 25 de janeiro de 1949. Os cidadãos escolheram uma Assembleia Constituinte de 120 membros, responsável por elaborar a Constituição. Contudo, uma vez reunida, a Assembleia resolveu mudar seu nome e suas responsabilidades. Virou Knesset, o Parlamento, e não aprovou Constituição alguma. Um ano mais tarde, o Knesset promulgou a Resolução Hahari, que conferiu à Comissão de Constituição, Direito e Justiça do Knesset o dever de elaborar uma série de leis básicas as quais, juntas, formariam a Constituição. Acontece que essa compilação jamais aconteceu. Israel segue sem contar com um documento jurídico uno, sistematizado e aprovado de uma só vez, como costuma ocorrer com as Constituições escritas. O que existe são as chamadas leis básicas, muitas delas. Em 1992, o Knesset aprovou a Lei Básica Dignidade Humana e Liberdade.1 A sua Seção 2 diz: "Não deve haver violação da vida, corpo ou dignidade de qualquer pessoa como tal". Já a Seção 4 dispõe: "Todas as pessoas têm direito à proteção de sua vida, corpo e dignidade". Em 1995, a Suprema Corte - o "Beit Mishpat Elyon" - apreciou um caso que reclamava a aplicação da Lei Básica Dignidade Humana e Liberdade. Num julgamento emblemático (United Mizrahi Bank v. Migdal Cooperative Village), mesmo tendo sido, a referida Lei Básica, aprovada sem qualquer quórum especial, como costuma ocorrer com as emendas constitucionais, a Suprema Corte, pela liderança do seu presidente, Aharon Barak, a reconheceu como sendo materialmente constitucional e, deste modo, qualquer outra lei que a contrariasse deveria ser declarada inconstitucional. Segundo o julgamento, "a Lei Básica não meramente declara 'políticas' ou 'ideais' (cf. art. 20(1) da Lei Básica da Alemanha). A Lei Básica não meramente delineia 'um plano de operação' ou um 'propósito' para os órgãos do governo (cf. art. 27(2) da Constituição da África do Sul; art. 39 da Constituição da Índia). Ela não meramente oferta um conceito guarda-chuva para guiar a interpretação..., as Seções 2 e 4 da Lei Básica trazem um direito - o direito que garante a dignidade humana. Esse direito impõe aos órgãos do governo o dever de respeitá-los (s. 11)".2 A decisão correspondeu, para aquele país, a um Marbury v. Madison (1803). Ali nascia a jurisdição constitucional israelense. Nas palavras do então presidente Aharon Barak, foi uma "uma revolução constitucional".3 Em razão do reconhecimento da materialidade constitucional da Lei Básica Dignidade Humana e Liberdade, vários direitos implícitos passaram a ser assegurados: direitos da personalidade, a uma subsistência humana digna, à reputação, à vida familiar, à igualdade, à liberdade de expressão, à liberdade de consciência e religião, à liberdade de movimento, à educação, ao emprego e ao devido processo legal.4 Passando a exercitar, com desenvoltura, o controle de constitucionalidade de atos do poder público, a Suprema Corte também erigiu, em temas de Direito Administrativo, o chamado "padrão de razoabilidade", elemento exegético viabilizador da aferição, pela Corte, da constitucionalidade de nomeações feitas pelo governo para o alto escalão da burocracia israelense. Esses juízos avaliavam se as nomeações atendiam aos parâmetros mínimos exigidos por uma democracia constitucional comprometida com a coisa pública. Caso reputasse a nomeação "irrazoável ao extremo", a Suprema Corte a fulminaria. O caso "The Movement for Quality Government in Israel v. Attorney-General" (HCJ 7367/97)5, apreciado em 2003, ilustra bem. O Movimento por um Governo de Qualidade em Israel havia levado o então primeiro-ministro, Ariel Sharon, à Suprema Corte, em razão de uma escolha para o Ministério da Segurança Pública. Tzahi Hanebi havia sido o indicado. Em 1982, jovem, ele foi condenado por se envolver numa confusão na universidade. Posteriormente, já sendo uma figura pública, viu seu nome pululando em três investigações sem que tivesse sido condenado em nenhuma delas. O Movimento entendia que Hanebi não poderia servir ao Governo, pois apesar de não ter sido condenado, todos os rumores que seu nome minava a confiança pública no Ministério, gerando obstruções populares. Essas obstruções, somadas a toda a mídia que o indicado atraía e ao burburinho de que novas investigações poderiam surgir, atrapalhavam a continuidade do serviço público e pareciam limitar a capacidade do próprio Hanebi de executar legitimamente uma agenda ministerial. A Suprema Corte concluiu, todavia, não haver razão para impedir que Ariel Sharon empossasse Tzahi Hanebi no Ministério da Segurança Pública. Vetar a assunção ao posto sem que houvesse taxativa previsão a respeito ou, pelo menos, que o conjunto dos fatos indicasse evidências mais robustas, poderia se tornar um hábito caprichoso de juízes. O critério da razoabilidade, apesar de tensionado, havia sido cumprido. Esse padrão interpretativo voltou no caso "Israel Women's Network v. Minister of Labor & Social Affairs", (HCJ 2671/98).6  Nele, a Suprema Corte determinou que o governo garantisse representação razoavelmente suficiente para as mulheres nos conselhos de administração de empresas governamentais e outras instituições públicas. Em 2016, a Suprema Corte apreciou o caso "Movement for Quality Government in Israel v. Prime Minister" (HCJ 232/16), no qual se questionava a indicação do membro do Knesset, Aryeh Machlouf Deri, para o posto de Ministro do Interior. Deri havia sido condenado por corrupção na década de 1980. Sua indicação, contudo, foi mantida, entendendo-se que, apesar de problemática, ela não era "irrazoável ao extremo".7 A jurisprudência seguiu assim até que, em janeiro de 2023, a Suprema Corte se valeu uma vez mais desse critério hermenêutico para impedir o mesmo Aryeh Deri, julgado em 2016, de servir no gabinete do atual primeiro-ministro Benjamin Netanyahu.8 Deri havia sido condenado por suborno e fraude em 1999 e novamente por fraude fiscal em 2022. Chegou a cumprir pena na prisão. Ele então fez um acordo de delação premiada com o Procurador-Geral, posteriormente homologado pelo Judiciário. No acordo, Deri se comprometia a renunciar à sua vaga no Knesset, além de se afastar da vida pública. Graças à promessa, garantiu o acordo de confissão, encerrou seu julgamento criminal e assegurou que o Judiciário não decidiria sobre a questão de sua condenação ter ou não sido considerada como de torpeza moral, o que o inabilitaria para a vida pública por um período de sete anos. A Suprema Corte destacou que o indicado havia feito uma promessa perante o Judiciário que terminou ensejando o perdão de penas criminais. A indicação era, portanto, "irrazoável ao extremo". A Corte barrou a nomeação e o primeiro-ministro Benjamin Netanyahu teve de se livrar de Deri de uma vez por todas. Mas o backlash veio quase imediatamente. Em julho de 2023, foi aprovada uma "Lei Básica", ou seja, uma emenda constitucional, impedindo o uso do padrão da razoabilidade para fundamentar a nulidade de nomeações do Poder Executivo. Segundo a emenda, o Poder Judiciário não poderia mais aferir a razoabilidade das decisões do governo, uma vez que razoabilidade seria um conceito vago, jamais positivado no direito israelense, e que havia ganhado, dos juízes, uma aplicação subjetiva.   A questão foi levada à Suprema Corte que, pela primeira vez, teria de definir se uma Lei Básica - formal e materialmente equivalente a uma emenda constitucional - poderia ser reputada, pela própria Suprema Corte, como sendo inconstitucional. Esse exercício hermenêutico jamais havia sido empregado pelos juízes e juízas da Corte.  Essa semana, por 12 x 3, a Suprema Corte reconheceu a sua competência para aferir a constitucionalidade de uma emenda constitucional. Em seguida, por 8 x 7, declarou a inconstitucionalidade da referida lei básica. Segundo o julgamento, o governo, ao aprovar a emenda, "revogou completamente a possibilidade de realizar a revisão judicial da razoabilidade das decisões tomadas pelo governo, pelo primeiro-ministro e pelos ministros", causando, assim, "danos graves e sem precedentes às características centrais de Israel como um estado democrático."9 Há muitos elementos que, de tão raros, tornam esse precedente histórico. Primeiramente, a Suprema Corte de Israel, mesmo na análise da constitucionalidade de leis, não se reúne en banc, ou seja, com toda a sua composição. A Corte é dividida em turmas, com três ministros cada, e é possível haver uma declaração de inconstitucionalidade pela chamada Hight Court of Justice ("Bagatz"), que é a composição estendida, sem que o caso seja necessariamente apreciado pelos quinze ministros que formam o total do Tribunal. Mesmo em casos emblemáticos, basta cinco ministros e o quórum para o judicial review terá sido alcançado. No caso apreciado essa semana, contudo, a Suprema Corte deliberou en banc, com todos os seus quinze integrantes. Foi a primeira vez que algo assim ocorreu. Outro elemento histórico é que duas juízas que tiveram seus mandatos expirados em outubro do ano passado, - Esther Hayut, presidente da Suprema Corte, e Anat Baron - não participariam da decisão se ela tivesse sido proferida após meados de janeiro. Elas terminaram tendo o direito de participar do julgamento pelo fato de haver, em Israel, uma lei que estende por um período de três meses, após a aposentadoria na magistratura, a oportunidade de concluir julgamentos. Foi o que foi feito. Sem as duas juízas, tudo leva a crer que a lei teria sido mantida talvez por um apertado placar de 7 x 6. A construção desse precedente chegou a considerar um apelo ao legislador, requerendo-se ao Knesset que reformulasse o texto de modo a não banir o uso da razoabilidade, estabelecendo, apenas, alguns requisitos para a sua adoção. Também se veiculou, num dos votos, a intenção de promover uma interpretação conforme de modo a restringir o escopo da emenda constitucional, mantendo-a no ordenamento jurídico, mas com um significado restrito. Essa foi a linha seguida por três dos juízes vencidos, tendo prevalecido, contudo, a declaração pura de simples de inconstitucionalidade da emenda. Em 2023, dezenas de milhares de pessoas protestaram pelas ruas de Tel Aviv contra a proposta de Reforma Judicial que, além de proibir a Suprema Corte de anular nomeações do Poder Executivo "irrazoáveis ao extremo", também retirava o seu poder de dar a última palavra em temas jurídicos, entregando-o ao Knesset. O tempo mostrou que essa luta não foi perdida. Na trajetória da jurisdição constitucional em todo o mundo, primeiro as Supremas Cortes foram criadas. Posteriormente, elas floresceram. Agora, muitas delas precisam resistir. A de Israel vem resistindo.   Adotar posturas que possam conferir resiliência à jurisdição constitucional em tempos de crise não significa abdicar da sua função de guardiã de direitos fundamentais, especialmente aqueles pertencentes às futuras gerações. Dentre as muitas estratégias adotadas por uma Corte em perigo, agir com independência e bravura é uma delas. Ninguém poderia imaginar que num país sem uma Constituição nasceria um exuberante campo de estudo sobre a jurisdição constitucional. Em Israel isso aconteceu. __________ 1 Também foi aprovada a Lei Básica da Liberdade Profissional. 2 CA 6821/93. A íntegra do acórdão, em inglês, está disponível aqui. 3 Barak, Aharon. A Constitutional Revolution: Israel's Basic Laws, pp. 83/84. Forum Constitutionnel. HeinOnline -- 4 Const. F. 84 1992-1993. Disponível aqui. 4 São muitos os precedentes que reconheceram direitos implícitos na cláusula geral da dignidade humana: HCJ 366/03 Commitment to Peace and Social Justice v. Minister of Finance, IsrLR 335, 347 (Barak J) (2005). CA 294/91, Jerusalem, Chevra Kadisha v. Kestenbaum, IsrSC 46(2) 464, 524 (1992). HCJ 6427/02 The Movement for Quality Government in Israel v. Knesset, IsrSC 61(1) 619, 681 (2006). 5 HCJ 3094/93. A íntegra do acórdão, em inglês, está disponível aqui. 6 HCJ 2671/98. A íntegra do acórdão, em inglês, está disponível aqui. 7 A íntegra do acórdão, em inglês, está disponível aqui. 8 Análise de Jeremy Sharon, em Deri v. High Court: What did he actually pledge in his 2022 plea bargain?, publicado em 24/01/2023 9 Isabel Kershner, Aaron Boxerman e Thomas Fuller. Israel's Top Court Strikes Down Move to Curb Its Powers. Disponível aqui.
segunda-feira, 26 de junho de 2023

Presidente, não se esqueça de mim

Senhor Presidente da República, Vossa Excelência tomou posse prestando o compromisso de manter os meus postulados, de me defender e de cumprir o que eu prometo. Não se esqueça disso, não se esqueça de mim. Também os ministros e ministras do Supremo Tribunal Federal prestaram o compromisso de bem cumprirem os deveres do cargo, de conformidade comigo e com as leis da República. Eu existo, eu importo, eu conheço esse país. No meu Preâmbulo, coloquei a igualdade ao lado da justiça. Fiz de propósito.  Dispus que um dos objetivos fundamentais da República é promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo ou cor. Também mandei criar incentivos específicos para proteger o mercado de trabalho da mulher e determinei a criação e a manutenção de programas de promoção e difusão da participação pública das mulheres. Presidente, eu ordenei a valorização da diversidade étnica, proibi diferença de critério de admissão por motivo de sexo e de cor e afirmei que homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações. Fiz isso, porque eu, além de ser mulher, tenho cor. Eu sou o resultado legítimo da maioria desse país. Vossa Excelência deve imaginar qual é a minha cor. Conhecendo o Brasil como conheço, tive o cuidado de determinar que se repudiasse o racismo. Ordenei que fôssemos uma sociedade sem preconceitos. Eu imortalizei as reminiscências históricas dos antigos quilombos e de suas comunidades, determinei que o Estado proteja as manifestações das culturas afro-brasileiras e que preserve a memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira.  Mesmo antes de eventos históricos decisivos como a Independência dos Estados Unidos ou a Revolução Francesa, eu, naquela outra vida que tive, já perseverava pelo ideal de justiça no Brasil. Naquele tempo, o meu atual nome, Constituição, era escrito de outro modo. Eu me chamava Esperança. Numa fazenda no interior do Piauí, em 1770, pedi respeito aos direitos prescritos em leis feitas pelos homens do poder. A mulher negra, nordestina, escravizada, que conhece a injustiça, estava lá. Aprisionaram-me e amordaçaram-me. Mesmo o mundo sendo tão duro comigo, segui acreditando na justiça. Vossa Excelência sabe o que é isso? Sei que sabe. Pois é, Presidente, nós conhecemos essa dor. Mas hoje, mais de 250 anos depois da petição que redigi quando eu ainda me chamava Esperança e vivia no Piauí, nunca houve alguém como eu integrando a mais elevada das Casas de Justiça desse país. A leitura e a interpretação que lá fazem de mim jamais foram feitas por uma irmã, por uma mulher como eu, da minha cor. Como pode? Os homens costumam nos associar às rosas. Como elas, somos lembradas, elogiadas, homenageadas, falam da nossa beleza, do nosso perfume..., mas, acredite, Presidente, não somos enfeite, não viemos ao mundo para decorar mesas, para adornar convescotes, para sermos dadas de presente, embrulhadas em pacotes. A nossa história é feita de bravura, queremos igualdade, justiça e por que não ternura?    E por falar em rosas, soube que em outubro uma delas cumprirá o seu extraordinário destino no Supremo Tribunal Federal. Quando uma rosa se vai, o vazio se impõe. Apenas outra é capaz de preencher aquele lugar. Somos tantas, e tão diversas, que não precisamos ter a mesma forma, sequer a mesma cor. Uma rosa pode vir de Porto Alegre; a outra, de Salvador. Mas uma coisa é fato: só se substitui uma rosa por outra, isso é o mínimo.   Senhor Presidente, Vossa Excelência prometeu manter os meus postulados, me defender e cumprir o que eu prometo. Não se esqueça disso, não se esqueça de mim.
segunda-feira, 13 de fevereiro de 2023

Os contribuintes no constitucionalismo

Só há constitucionalismo hoje, porque houve contribuintes corajosos ontem. Com João Sem Terra, vieram dos contribuintes as exigências contempladas pela Carta Magna de 1215, como a anterioridade tributária. Séculos depois, os que foram buscar a felicidade no Novo Mundo exigiram participar das decisões que impunham novos tributos. "No taxation without representation", demandaram. Desprezados pela indiferença do poder, arremessaram o objeto de uma pesada taxação, a produção de chá, ao mar. O ato - Festival do Chá de Boston - precipitou a Declaração de Independência dos Estados Unidos e, então, a Coroa Britânica se viu forçada a nunca mais impor seus caprichos àquela terra da liberdade. Não foi só. Na França, a Bastilha caiu quando pessoas empobrecidas por um sistema tributário arcaico não conseguiam mais comprar pão, enquanto os ricos comiam, bebiam e dançavam em Versalhes. Quando a Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão nasceu, o princípio da capacidade contributiva estava lá. No Brasil-Colônia, a violência portuguesa se intensificou com o Quinto, seguida da Derrama, culminando na Inconfidência Mineira, que, mesmo barbaramente sufocada, deu espaço para a Independência e para a nossa primeira Constituição, a de 1824. Apesar dos avanços normativos atuais, hoje consome-se cerca de 33% do PIB em tributos, sendo necessário quase duas mil horas por ano para que se consiga pagá-los. E as violações seguem. Recentemente, o Supremo Tribunal Federal descobriu que quando uma criança, num lar modesto, acendia a luz para fazer a lição de casa antes de dormir, sobre esse consumo os governadores cobravam a mesma alíquota de ICMS que exigiam do rico ao adquirir um Iate. Faziam isso enquanto a Constituição determinava o contrário. O jeito foi a Suprema Corte derrubar tamanha violência constitucional. A verdade é que quem, produzindo, vindica justiça tributária, o faz também evitando passar para o preço a conta dos abusos estatais. Pensam mais no povo do que as autoridades. Há 10 anos, por exemplo, repassou-se 20 centavos para o preço da passagem de ônibus. Foi o bastante para explodir o país. Será que o Estado não aprendeu nada? Quem se vê obrigado a pagar impostos indevidamente não quer mais ouvir que a solução é ler "o dever fundamental de pagar impostos". Estado Fiscal é, antes de tudo, aquele que assegura aos contribuintes o seu lugar, que foi conquistado e imortalizado pelo constitucionalismo. Não pode haver - e não haverá - retrocessos nessa conquista.  
segunda-feira, 6 de fevereiro de 2023

As rosas são eternas

Elas encantaram o grande William Shakespeare, que lembrou a Romeu do seu perfume; fizeram Umberto Eco com o seu nome batizar sua obra mais conhecida; e cobriram de sensibilidade as reflexões do Pequeno Príncipe, pensadas por Antoine de Saint-Exupéry. Quando Louis Armstrong sentiu a mão de Deus inspirá-lo a escrever o milagre "Que mundo maravilhoso" (What a Wonderful World), lá estavam as árvores verdes, os céus azuis, as nuvens brancas, os brilhantes dias abençoados, as escuras noites sagradas e todas as cores do arco-íris. Mas que mundo maravilhoso seria esse, sem elas? Corrigindo a grave falha, Armstrong tratou de complementar o verso: "red roses too".      Não parece ser apenas a beleza ou o perfume da planta, tampouco a sonoridade do nome, muito menos sua mera cor ou forma, há algo maior, uma coisa de força e mistério que anima, no espírito humano, tamanho carinho pelas rosas. Quando uma mulher, judia, feminista, filósofa e amante da luta política nasceu na Polônia, em 1871, os astros se alinharam para que a ela fosse dado esse nome: Rosa. Nos Estados Unidos, em 1955, o desmantelamento da odiosa segregação racial ganhou impulso com um gesto simples, mas poderoso, vindo de uma trabalhadora negra do Alabama que não aceitou mais ceder seu assento no ônibus sempre que um branco aparecia. O seu nome? Rosa. Elas são assim, navegantes do tempo, enviadas a muitos lugares, apresentadas sob corpos distintos, alimentadas pelas mesmas causas. Elas se espalham com a ajuda do vento da primavera, semeando os campos nos quais, cumprindo os seus destinos, costumam florescer. E não apenas os campos se completam com as rosas, como também as instituições. Na Coreia do Sul, o emblema oficial da Corte Constitucional é a Rosa de Saron, símbolo nacional presente no hino do país e designador da eternidade. No Brasil, para a nossa sorte, também há rosas entre nós e elas são muitas. Dia 8 de janeiro de 2023, o prédio do Supremo Tribunal Federal foi destruído pelo terror. Dias depois, diante dos governadores, de ministros de Estado e do presidente da República, a presidente da Suprema Corte prometeu que dia 1º de fevereiro o Tribunal abriria o Ano Judiciário. Ao final do encontro, todas as autoridades saíram juntas, de braços dados, como caules entremeados, caminhando pela Praça dos Três Poderes, do Palácio do Planalto até a sede do Supremo. O trajeto fez lembrar a Passagem do Knesset, em Jerusalém, percurso que liga a Suprema Corte de Israel ao Parlamento, cruzando o lindo bosque chamado Jardim das Rosas.   A promessa foi cumprida. Dia 1º de fevereiro, o Ano Judiciário foi aberto. Presidindo a sessão, estava ela: Rosa. Nesse que é o seu último ano no STF, o gesto dignifica todas as mulheres que vieram antes e deixa espalhados por um solo fértil botões de inspiração que serão colhidos pelas muitas outras que estão por vir, imortalizando uma mensagem absolutamente necessária, que diz: sejam corajosas! Os portugueses, em 1974, derrotaram o fascismo colocando cravos em fuzis. Em 2023, para colocar o terror em seu devido lugar pelo o que fizeram contra o STF, não dispúnhamos de cravos, mas tínhamos Rosa. Por seu intermédio, dissemos: no jardim da nossa democracia, o fascismo não se cria. Tendo vencido o terror, e apesar de ter sido inteiramente restaurada, a sede do Supremo deixou à vista de todos, para que se preserve a memória dos episódios, alguns machucados gravados em sua alma institucional. Rui Barbosa teve seu rosto ferido, e, mesmo marcado, seguirá lá. O espelho que compunha o Salão Nobre foi destruído e seus estilhaços serão exibidos para sempre. É possível ver as fotos da Galeria de Presidentes que foram arrancadas e rasgadas. Um exemplar queimado da Constituição de 1988 integra a memória dessa tragédia. O STF agora se parece mais com o povo brasileiro: tem marcas em sua pele, cicatrizes em seu corpo, traumas a serem tratados, feridas a serem curadas, mas, apesar de todos os golpes, está de pé, pronto para seguir adiante, sem desistir. Em seu discurso na abertura do Ano Judiciário, perante as mais altas autoridades do país, a presidente do Supremo Tribunal Federal falou de "tempos verdadeiramente perturbadores de maniqueísmos e deformações". Citou, na fala, Carlos Drummond de Andrade. Foi uma feliz lembrança. A mais madura obra do poeta, publicada em 1945, foi dedicada precisamente ao combate a maniqueísmos e deformações. A ela Drummond deu um belo nome: "A Rosa do Povo". Como têm sido fortes, essas rosas. Cartola disse que "as rosas não falam". Falam pouco, é verdade, mas fazem muito, e seus feitos têm, mesmo nas mais graves circunstâncias de uma história repleta de armadilhas, marcado permanentemente tudo por onde elas passam. As rosas são eternas.
Em Israel, o povo teve, após o fim da Segunda Guerra Mundial, a sua primeira eleição, em 1949. Escolheram uma Assembleia Constituinte de 120 membros. Nasceu o Knesset, o Parlamento israelense. Em seguida, foi aprovada a Resolução Hahari, conferindo à Comissão de Constituição do Knesset o dever de elaborar leis básicas que, juntas, formariam a Constituição do país. Essa compilação, todavia, jamais aconteceu. Em 1992, o Knesset aprovou a "Lei Básica: Dignidade Humana e Liberdade", um marco para as liberdades civis no país. O tempo passou até que, em 1995, julgando o caso "Banco Mizrahi v. Ministro das Finanças", a Suprema Corte - ou "Beit Mishpat Elyon" - entendeu que mesmo tendo sido, a referida Lei, aprovada sem um quórum especial, ela era materialmente constitucional, ou seja, equiparava-se a uma Constituição. A partir dali, a Suprema Corte passou a derrubar leis ou atos normativos que, contrariamente ao que estava estipulado na Lei, enfraquecessem direitos das minorias ou incrementassem, abusivamente, o poder do Estado em desfavor dos particulares. Nasceu, assim, a jurisdição constitucional de Israel. A decisão - um verdadeiro Marbury v. Madson israelense - foi chamada, pelo então presidente da Suprema Corte, Aharon Barak, de "Revolução Constitucional". Agora, o Primeiro-Ministro do país tenta, ao lado de aliados extremistas, emplacar uma Reforma do Poder Judiciário que sepulte a independência da Suprema Corte, submetendo suas decisões - especialmente as mais incômodas ao poder - ao Poder Legislativo, que passaria a ter a última palavra, ainda que se trate de uma deliberação judicial emanada da Suprema Corte do país, ou seja, tomada por juízes e juízas. Há poucos dias, quase 90 mil pessoas, debaixo de uma forte chuva, foram às ruas de Tel Aviv lutar pela democracia constitucional israelense. Diante dos adversários da jurisdição constitucional, eles resistem.
segunda-feira, 23 de janeiro de 2023

O televisionamento das sessões do STF

O ponto mais recente da longa história contemporânea se fez pela televisão. Da ida à Lua, ao debate entre os candidatos a presidência dos Estados Unidos, John Kennedy e Richard Nixon, passando pela queda do Muro de Berlin..., a televisão não criou os fatos, mas os imortalizou, equiparando-se a eles em força e significado. Não demoraria nada para essa realidade alcançar o aparato da Justiça. A ligação da televisão com as aspirações humanas por justiça nada tem de espetáculo, muito pelo contrário. Quando Israel buscou reparações pelas feridas abertas no diabólico Holocausto, dentre as muitas iniciativas, talvez a mais simbólica tenha sido a transmissão ao vivo do julgamento de Adolf Eichmann, oportunidade na qual, pela primeira vez, as vítimas puderam confrontar perpetradores e, diante de todos, expressar suas dores e vindicar justiça. Até então, suas memórias eram silenciadas pela desconfiança coletiva daqueles que não haviam passado por tamanho horror.   Também na África do Sul veio do televisionamento os encontros históricos reafirmadores da busca permanente pela emancipação humana dos grilhões de um passado aprisionador. Parte do pós-apartheid se deve precisamente à transmissão das sessões da Comissão de Verdade e Reconciliação, conduzida pelo Nobel da Paz, o arcebispo Desmond Tutu. A televisão permitiu que todos vissem e ouvissem os relatos do terror ao qual os sul-africanos negros foram submetidos. O televisionamento das sessões da Comissão foi o espelho por meio do qual a nação pôde conhecer suas dores mais profundas e, valendo-se da Justiça, tratá-las. No Brasil, temos hoje mais de 70 anos de experiência com transmissões televisivas comerciais. Há 20, o Supremo Tribunal Federal decidiu, na contramão dos Estados Constitucionais mundo afora, abraçar esse ritual e, convertendo-o num convite à cidadania constitucional, transmitir suas sessões plenárias. Não foi fácil. Quem conhece Brasília sabe que a luz do sol não é elemento reinante nas decisões do poder. Mas o STF fez. Hoje, não só a Suprema Corte, mas quase todos os tribunais brasileiros criaram suas formas de transmissão. Em muitas jurisdições estrangeiras, apesar de não haver uma TV Justiça, basta que a imprensa peça e a transmissão pode ser autorizada. Até a discreta Suprema Corte dos Estados Unidos hoje transmite seus "hearings" ao vivo, por áudio. No Brasil, a grita contra essa política institucional do STF costuma ser coberta por exageros. Em 2022, a Corte proferiu 87.983 decisões. No Plenário - órgão máximo que dá assento aos 11 ministros e ministras -, foram julgados apenas 56 casos. Ou seja, o televisionamento do Plenário alcançou, ano passado, 0,006% do todo. Muito pouco. Mesmo assim, esse despertar por uma nova dimensão da cidadania constitucional inspirou. O STF abraçou um sincretismo que traz o "judicial review" dos Estados Unidos, o controle concentrado europeu-continental, as audiências públicas argentinas, o estado de coisas inconstitucional colombiano, o engajamento significativo sul-africano, o apelo ao legislador alemão, a cláusula do não obstante canadense..., mas, quanto à transmissão das sessões, não. Longe de ser mais uma combinação estrangeira, trata-se de uma invenção nossa, genuinamente brasileira, que foi entregue à população para ser usada em proveito da construção de uma arena pública ciente dos seus direitos e conhecedora das missões da Suprema Corte. É uma medida inovadora que traz consigo um permanente convite à conscientização.
terça-feira, 17 de janeiro de 2023

A Corte da resistência

A composição atual do STF - com seus 11 integrantes - encontrou forças para resistir ao terror que lhe foi imposto dia 8 de janeiro de 2023. Imperfeita, pois humana, mas munida de grande patriotismo constitucional, ela se prepara para refundar, dia 1º de fevereiro de 2023, a nossa Suprema Corte. Se, em 1891 a Corte nasceu, no presente ano ela tem uma nova missão histórica: renascer. Imbuído desse propósito, o Supremo Tribunal Federal divulgou, em seu site, uma foto que jamais será esquecida. Nela, ao redor de uma mesa redonda, sem cabeceiras, seus juízes e juízas, em posição de igualdade, tomaram seus assentos despidos das togas, já que pelas circunstâncias foram transformados em mestres e mestras de obra. Eles têm por missão, ao lado de todos os colegas, nos devolver, intacto, um Tribunal que nos pertence, onde encontramos a última possibilidade de, sob as colunas do Direito e da Justiça - com suas linhas retas e curvas -, pedirmos respeito à Constituição. Nas estantes da sala retratada na foto, não há armas, mas livros, que falam sobre liberdade, sobre igualdade, sobre fraternidade, sobre dignidade e sobre democracia. Nas paredes, não há alusões à violência, mas arte, história e fé, elementos que animam os anjos bons da nossa natureza. Em meio a Rochas e Rosas, há Alexandres, Gilmares, Enriques, Josés e Luíses., todos. A sala exibe, ao fundo, a Bíblia, orientadora do espírito humano, mas que fica num espaço individual, de intimidade, pois sobre a mesa, à disposição de todos, sendo o instrumento de trabalho justificador de decisões públicas, o livro é outro: a Constituição. A foto mostra ainda que a ternura não foi derrotada: as flores do campo seguem sobre a estante, num vaso. Os juízes e juízas do STF sabiam que, ao tomarem posse como guardiões da Constituição, pagariam um preço, mas talvez não soubessem que seria tão alto. Foram covardemente hostilizados, à luz do dia, durante quatro anos. Foram submetidos, por pessoas do poder, a discursos de ódio diante de multidões, nas ruas e nas redes, que fizeram com que passassem a ser encurralados, perseguidos, cercados e ameaçados. Dia 8 de janeiro de 2023, seu lugar de trabalho, um Palácio da Justiça, foi deixado em ruínas. Mesmo assim, eles não fugiram, eles resistiram e, por isso, deixam para as presentes e futuras gerações o maior de todos os legados: o exemplo. Mostram que, sempre que a Constituição e a democracia forem atacadas pelo terror, não há outro caminho que não seja o da resistência.
A jurisdição constitucional nasceu para a resistência. Nos Estados Unidos, quando o presidente Thomas Jefferson disse não cumprir uma eventual determinação judicial obrigando-o a dar posse a um juiz indicado por seu antecessor e oponente, John Adams, a Suprema Corte, em Marbury v. Madson, 1803, reconheceu-se competente para declarar leis inconstitucionais, num pioneiro exercício de legítima defesa institucional. A Alemanha, por sua vez, fundou sua Corte atual para ajudar na limpeza das ruínas materiais e imateriais deixadas pelo nazismo. Nasceu para resistir. Na África do Sul, o então presidente Nelson Mandela criou a Corte Constitucional cuja missão é resistir a qualquer ensaio supremacista ou revanchista semelhante aos que forjaram o apartheid. O Estado Constitucional brasileiro, todavia, não havia mostrado, ainda, talento para a resistência. Getúlio Vargas e um grupo de militares, por exemplo, empacotaram a Corte. Mais tarde, ministros como Evandro Lins e Silva, Hermes Lima e Victor Nunes foram cassados pela Ditadura Militar. O então presidente da Corte, Gonçalves de Oliveira, e seu sucessor, Antônio Carlos Lafayette de Andrada, saíram do Tribunal, em protesto. Dizem que Adauto Lúcio Cardoso chegou a arremessar sua toga sobre a bancada e foi para casa para nunca mais voltar. A verdade é que assistimos, desde 1500, o colonizador triunfar sobre o povo originário colonizado; o escravocrata sobre o escravizado; a ditadura sobre a democracia e a desigualdade sobre a igualdade. Há também o tempero permanente do golpismo. "O Senhor Getúlio não deve ser candidato, se for candidato não deve ser eleito, se for eleito, não deve tomar posse, se tomar posse não pode governar", disse Carlos Lacerda, imortalizando, em 1950, o nosso espírito institucional golpista. Somos feitos também disso, da violência, da pilhagem e de golpes de Estado. Não sem razão nos últimos quatro anos, alguns militares e parte da sociedade civil, liderados por um capitão eleito presidente, tramaram tudo: Intervenção Militar, art. 142 da Constituição, Exército como Poder Moderador, fechamento do STF, ameaças de não cumprimento de decisões judiciais, pedidos de impeachment de ministros, balas contra agentes da Polícia Federal em resistência à prisão, negação formal do resultado das eleições, fogo em carros e em ônibus em Brasília, atentados à bomba., tudo à luz do dia. Acontece que, dessa vez, ministros como Edson Fachin, Luís Roberto Barroso e Alexandre de Moraes - os mais atacados - não partiram. Eles ficaram, vestiram suas togas e se juntaram às Rochas, às Rosas e aos demais juízes constitucionais. Quando a Suprema Corte dos Estados Unidos, para sobreviver, em 1937, reverteu sua posição então contrária ao New Deal do poderoso presidente Franklin Delano Roosevelt, ela abriu caminho para a vindicação futura por direitos. Perdeu naquele momento, mas para ganhar no dia seguinte. Nasceu, uma década e meia depois (1953/1969), a Corte de Warren, desmantelando a segregação racial e fazendo muito pela independência judicial e pelos direitos fundamentais. No Brasil, o STF, tendo reconstruído interpretativamente a sua competência para erguer mecanismos de legítima defesa institucional, mostrou ao mundo que o que ocorreu em países como Venezuela, Guatemala, Polônia e Hungria - cujos governos acabaram com a independência judicial -, é um acidente, não um destino. É possível resistir e o Supremo resistiu. Sem dúvida, o Estado Constitucional brasileiro foi o grande vitorioso de 2022.
terça-feira, 9 de agosto de 2022

O direito à paz na Constituição

A Constituição se abre pelo seu Preâmbulo, que apresenta a nossa sociedade como sendo fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias. O primeiro comando que replica e detalha esse ethos preambular é o art. 4º, que disciplina os princípios regedores da República nas suas relações internacionais. Colonizamos países? Não, pois a Constituição manda que defendamos a "independência nacional". E quanto a matar pessoas em seus países ou desrespeitar os seus direitos? Um outro princípio imposto pela Constituição é o da "prevalência dos direitos humanos". Não subjugamos os povos, pois estamos constitucionalmente vinculados à sua autodeterminação; não intervimos em nações soberanas, pois um dos princípios que nos regem é o da "não-intervenção"; não nos sentimos superiores, pois sabemos que, segundo o inciso V do art. 4º, devemos respeitar a "igualdade entre os Estados". E quanto às guerras? A Constituição manda que façamos a "defesa da paz" (art. 4º, VI). Ela não apenas dispõe sobre a "solução pacífica dos conflitos", mas determina que repudiemos o terrorismo. O inciso do art. 4º determina que perseveremos pela "cooperação entre os povos para o progresso da humanidade" (inciso IV), concedendo, inclusive, "asilo político" a quem dele necessitar (inciso V). Além da paz externa, a Constituição de 1988 reconhece o direito à paz doméstica. Essa conclusão não é retórica, mas, como se observa, absolutamente decorrente da positivação constitucional, que estabelece como sendo um dos objetivos fundamentais da República o de promover "o bem de todos" (art. 3º, IV). Acontece que essa paz na ordem interna se realiza, por exemplo, por intermédio da segurança. O primeiro e mais central elemento conformador dessa segurança é a dignidade da pessoa humana (art. 1º, III), um dos fundamentos da República e ponto de partida e de chegada de toda a hermenêutica constitucional contemporânea. Assumida a premissa de que a segurança precisa ser buscada nos termos da Constituição e em respeito, especialmente, à dignidade da pessoa humana, é válida a lembrança de que o Preâmbulo diz estarmos destinados a assegurar o exercício dessa mesma segurança. O caput do art. 5º, voltado para os direitos e garantias individuais e coletivos, garante aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à segurança. O art. 6º, caput, veiculador dos direitos sociais, apresenta como um desses direitos exatamente o direito à segurança.  Mas para que haja verdadeira segurança é preciso haver a realização de outros direitos, como, por exemplo, a erradicação da pobreza e da marginalização e a redução das desigualdades sociais e regionais (art. 3º, III). Há uma correlação intrínseca entre esses elementos e os tensionamentos à segurança pública, por isso o país precisa adotar uma visão holística da questão, não depositando todas as suas fichas em termos de políticas públicas na repressão policial, sob pena de fracassar em seu propósito.  Feito esse registro, vale a lembrança de que o art. 144 da Constituição oferece algumas das instituições estatais por meio das quais essa paz interna pode ser alcançada. Diz o comando que a segurança pública, dever do Estado, direito e responsabilidade de todos, é exercida para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio, através dos seguintes órgãos: I - polícia federal; II - polícia rodoviária federal; III - polícia ferroviária federal; IV - polícias civis; V - polícias militares e corpos de bombeiros militares. VI - polícias penais federal, estaduais e distrital. Segundo o § 8º do mesmo dispositivo, os Municípios poderão constituir guardas municipais destinadas à proteção de seus bens, serviços e instalações, conforme dispuser a lei. Paz interna é, portanto, gozar de segurança, sabendo que esta não é um fim em si mesmo, mas uma forma de estabilizar a comunidade e permitir que ela goze de outros direitos. Essa segurança há de ser buscada por meio das instituições estatais previstas na Constituição, nos limites dessa mesma Constituição, e sempre em respeito à dignidade da pessoa humana, elemento catalizador de toda a nossa ordem constitucional. A falta de paz interna compromete o Estado Constitucional. Segundo o inciso XV do art. 5º, "no caso de iminente perigo público, a autoridade competente poderá usar de propriedade particular, assegurada ao proprietário indenização ulterior, se houver dano". O inciso III do art. 34 dispõe que a União não intervirá nos Estados nem no Distrito Federal, exceto para "pôr termo a grave comprometimento da ordem pública". Se é inegável a liderança do presidente da República na condução da paz externa, ou da paz na ordem internacional, não menos evidente é o papel central a ele outorgado pela Constituição em favor da paz interna, ou seja, da paz na ordem doméstica.    Essa compreensão encontra o seu pináculo no inciso IV do art. 85, ao se estipular, como sendo um dos crimes de responsabilidade, os atos do Presidente da República que atentem contra a Constituição e, especialmente, contra "a segurança interna do país". O art. 136 assevera que o Presidente pode, ouvidos o Conselho da República e o Conselho de Defesa Nacional, decretar estado de defesa para preservar ou prontamente restabelecer, em locais restritos e determinados, a ordem pública ou a paz social ameaçadas por grave e iminente instabilidade institucional. Há outros direitos, contudo, de exercício coletivo, que ora reclamam respeito aos "tempos de paz", ora impõem absoluto distanciamento de qualquer associação paramilitar, ora condicionam tal exercício à ausência de armas ou a propósitos de paz. A liberdade de associação, por exemplo, somente é plena quando tenha fins lícitos, sendo vedada "a de caráter paramilitar" (inciso XVII do art. 5º). O art. 17, § 4º veda a utilização, pelos partidos políticos, de organização paramilitar. Mesmo o direito de reunião apenas é assegurado se sua finalidade for pacífica e se as pessoas que dele fazem parte estiverem sem armas. Eis o inciso XVI do art. 5º: "todos podem reunir-se pacificamente, sem armas, em locais abertos ao público, independentemente de autorização, desde que não frustrem outra reunião anteriormente convocada para o mesmo local, sendo apenas exigido prévio aviso à autoridade competente". A reunião precisa ser pacífica e os participantes necessitam estar sem armas.    Há mais. Quando é livre, para qualquer um, a locomoção no território, de modo a que nele todos possam entrar, permanecer ou dele sair com seus bens? Tão fundamental liberdade - a de ir, vir e permanecer - apenas é assegurada pela Constituição de 1988 em "tempo de paz" (art. 5º, XV). Até esse básico intitulamento a guerra nos tira. A Constituição não descansa quanto aos grupos armados, civis ou militares, que agem contra a própria ordem constitucional ou contra o Estado Democrático. Trata-se de prática constitucionalmente abominada. Segundo o inciso XLIV do art. 5º, "constitui crime inafiançável e imprescritível a ação de grupos armados, civis ou militares, contra a ordem constitucional e o Estado Democrático". O terrorismo também conta com absoluto repúdio. A lei considerará crimes inafiançáveis e insuscetíveis de graça ou anistia o terrorismo, por eles respondendo os mandantes, os executores e os que, podendo evitá-los, se omitirem (art. 5º, XLIII). Toda atividade nuclear em território nacional somente será admitida para fins pacíficos e mediante aprovação do Congresso Nacional (art. 21, XXIII, "a"). Na guerra é possível haver penas de morte (art. 5º, XLVII, "a"). Também pode haver requisições civis e militares (art. 22, III) pela União. Esta, mediante lei complementar, poderá instituir empréstimos compulsórios para atender a despesas extraordinárias (art. 148, I) e impostos extraordinários, compreendidos ou não em sua competência tributária (art. 154, II). No estado de defesa, por exemplo, pode haver as seguintes medidas coercitivas: I - restrições aos direitos de: a) reunião, ainda que exercida no seio das associações; b) sigilo de correspondência; c) sigilo de comunicação telegráfica e telefônica; II - ocupação e uso temporário de bens e serviços públicos, na hipótese de calamidade pública, respondendo a União pelos danos e custos decorrentes (art. 136. § 1º). No estado de sítio, as restrições são ainda mais severas: quando decretado com fundamento no art. 137, I: obrigação de permanência em localidade determinada; detenção em edifício não destinado a acusados ou condenados por crimes comuns; restrições relativas à inviolabilidade da correspondência, ao sigilo das comunicações, à prestação de informações e à liberdade de imprensa, radiodifusão e televisão, na forma da lei; suspensão da liberdade de reunião; busca e apreensão em domicílio; intervenção nas empresas de serviços públicos; VII - requisição de bens (art. 139). Não fosse pouca coisa, a Constituição ainda não poderá ser emendada na vigência de estado de defesa ou de estado de sítio (art. 60, § 1º). A ordem constitucional brasileira quer a guerra ou a paz? Ela crê na diplomacia ou na pólvora? Persevera pela revanche ou pela reconciliação? Abraça, como estilo de vida coletiva, o duelo permanente ou a harmonia persistente? Resolve os conflitos pacificamente ou de forma beligerante? Antevê e protege um povo que traz armas em punho ou que mostra, mesmo nos momentos mais difíceis, uma mão estendida ao recomeço? Em caso de divergências, a convocação constitucional é pelo acesso à justiça ou aos duelos armados? A Constituição é da guerra ou da paz?   A Constituição anteviu associações e partidos políticos que jamais tivessem qualquer natureza paramilitar. Previu, ainda, reuniões que não fossem de ódio, mas pacíficas e, principalmente, com pessoas sem armas em punho. Estipulou a necessidade de um perpétuo tempo de paz, pois apenas nele é possível a liberdade de locomoção para que todos possam entrar, permanecer ou sair do nosso território com seus bens. Prevê ser criminosa - inafiançável e imprescritível - a ação de grupos armados, civis ou militares, contra a ordem constitucional e o Estado Democrático. Qualifica como sendo um crime inafiançável e insuscetível de graça ou anistia o terrorismo. O Brasil sonhado pela Constituição de 1988 é um Brasil da paz. 
O plenário do STF se debruçará, dia 3/8/22, sobre o agravo em recurso extraordinário 843.989, relatado pelo ministro Alexandre de Moraes, discutindo o tema 1.199, qual seja: "Definição de eventual (ir)retroatividade das disposições da lei 14.230/21, em especial, em relação: (I) a necessidade da presença do elemento subjetivo - dolo - para a configuração do ato de improbidade administrativa, inclusive no art. 10 da LIA; e (II) a aplicação dos novos prazos de prescrição geral e intercorrente".1 O debate tem início com o advento da lei 14.230/21, que redesenhou a lei de improbidade administrativa (lei 8.429/92), dispondo que a configuração da responsabilidade civil por ato de improbidade exige a comprovação da responsabilidade subjetiva dolosa, fixando também o prazo de prescrição em 8 anos contados da ocorrência do fato ou, no caso de infrações permanentes, do dia em que cessou a permanência (art. 23), mas trazendo marcos interruptivos da prescrição (art. 23, §4º) e a prescrição intercorrente; assim verificada uma das causas interruptivas, "o prazo recomeça a correr do dia da interrupção", mas "pela metade do prazo previsto no caput deste artigo" (art. 23, § 5º). Como o inciso XL do art. 5º da CF/88 diz que "a lei penal não retroagirá, salvo para beneficiar o réu", este caso indaga se seria tal comando aplicável aos implicados em improbidade administrativa, diante do advento da referida lei 14.230/21. Manifestando-se negativamente quanto ao provimento do recurso, o parecer do PGR sugere a seguinte tese: "I - As alterações do caput do art. 10 da LIA apenas explicitam a vedação à responsabilidade objetiva do agente, que, sistematicamente, sempre foi proibida no sistema brasileiro, o qual prossegue permitindo a punição a punição do erro grosseiro. II - Os novos prazos de prescrição geral e intercorrente previstos pela lei 14,230/21, para atos de improbidade administrativa cometidos antes da referida lei, somente são computados a partir da data de sua promulgação".2 Indo por outro caminho, por entender ser o caso de se julgar procedente o referido recurso e propondo uma resposta afirmativa às questões postas pelo tema 1.099, apresento pelo menos dois fundamentos jurídicos que justificam tal conclusão. São eles: (i) aproximação teleológica conferida pela Constituição de 1988 entre condenação criminal e condenação por improbidade; e (ii) a natureza fundamental do vasto plexo de bens jurídicos restringidos pela condenação por improbidade. A corrente que defende a irretroatividade de comandos benéficos no campo da improbidade administrativa costuma invocar as peculiaridades do Direito Penal, vinculado que está à liberdade do criminoso (princípio do favor libertatis), como sendo um elemento que impede a aplicação do inciso XL do art. 5º ("a lei penal não retroagirá, salvo para beneficiar o réu") ao Direito Administrativo Sancionador. Seria, esse comando, uma exceção a ser interpretada restritivamente, uma vez que, no âmbito da jurisdição civil - a qual pertence a improbidade -, o princípio tempus regit actum3 encontraria abrigo no art. 6º da LINDB, que diz: "A lei em vigor terá efeito imediato e geral, respeitados o ato jurídico perfeito, o direito adquirido e a coisa julgada". Nada obstante haja, de fato, correntes teóricas contrapostas no tema - e o ministro Alexandre de Moraes as ilustrou no exame que fez da repercussão geral do caso4 -, há uma resposta à questão na própria Constituição. Não sem razão, o art. 1º, §4º da citada lei 14.230/21 assim dispõe: "Aplicam -se ao sistema da improbidade administrativa disciplinado nesta lei os princípios constitucionais do direito administrativo sancionador." Primeiramente, a Constituição aproximou, estrutural e teleologicamente, a condenação por improbidade da condenação criminal. O inciso III do art. 15, por exemplo, diz que a perda ou suspensão de direitos políticos se dará, além das outras hipóteses trazidas no dispositivo, nos casos de: "III - condenação criminal transitada em julgado, enquanto durarem seus efeitos;" e "V - improbidade administrativa, nos termos do art. 37, § 4º." Mas há mais. A Constituição estipula a possibilidade de perda de mandato de Deputado ou de Senador, desde que sofra "condenação criminal em sentença transitada em julgado" (art. 5º, VI). No mesmo rol acrescenta os que tiverem "suspensos os direitos políticos" (inciso IV), que é uma das consequências da condenação por improbidade. Mais uma vez, ao punir com severidade determinados comportamentos, restringindo gravemente certos direitos - direitos políticos e representação popular -, a Constituição elege a condenação criminal e, ao seu lado, a condenação por improbidade administrativa, como funcionalmente próximas e, juntas, distintas de todas as demais áreas do Direito. A equivalência teleológica entre a improbidade e a criminalização de dadas condutas é tamanha a ponto da Constituição estipular, no inciso V do art. 85, como sendo um dos crimes de responsabilidade, os atos do presidente da República que atentem contra "a probidade na administração". A tradição figura entre nós desde a Constituição de 1891.5 Portanto, a Constituição, nada obstante reconheça as naturezas jurídicas diversas, qualifica igualmente, em nível de gravidade, a condenação criminal e a condenação por improbidade administrativa, abrindo caminho para que uma interpretação do inciso XL do art. 5º mantenha a restrição exegética necessária à preservação da sua força normativa, mas incluindo, em seu alcance e concreção, a única hipótese outra que dimana da própria textualidade constitucional, qual seja, o benefício ao réu numa ação de improbidade. Firmado esse ponto, passa-se agora à natureza fundamental dos bens jurídicos restringidos por uma condenação por improbidade. Eis o § 4º do art. 37 da Constituição: "Os atos de improbidade administrativa importarão a suspensão dos direitos políticos, a perda da função pública, a indisponibilidade dos bens e o ressarcimento ao erário, na forma e gradação previstas em lei, sem prejuízo da ação penal cabível". O primeiro bem da vida restringido são os direitos políticos. A Constituição dedica um capítulo inteiro a eles. O capítulo IV (Dos Direitos Políticos) é inaugurado pelo art. 14 dispondo que a soberania popular será exercida pelo sufrágio universal e pelo voto direto e secreto, com valor igual para todos. O inciso II do § 3º aponta como uma das condições de elegibilidade "o pleno exercício dos direitos políticos". A cidadania fundamenta a República (art. 1º, II) e o parágrafo único desse mesmo art. 1º reafirma que "todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição". Direitos políticos constituem matéria, inclusive, de edição vedada por medidas provisórias.6 Como se observa, uma condenação por improbidade interdita quase um capítulo inteiro da Constituição, nulificando ou restringindo o alcance dos direitos políticos. Mas não é só. Há também a perda da função pública. Somos, desde 1889, uma República. O ideal republicano oferta em sua ribalta mais elevada a oportunidade de servir ao público. Perder a condição necessária ao exercício desse mister é suportar, numa República, a sua mais juridicamente grave e moralmente vexaminosa punição.7 Como se não bastasse, vem, em seguida, a indisponibilidade dos bens. O STF guarda uma Constituição que traz, no rol de direitos fundamentais, o direito de propriedade (art. 5º, XXII), estabelecendo possibilidades excepcionais e vinculadas de uso público de propriedade particular ou da sua desapropriação.8 Quando a Constituição assegura o direito à livre locomoção, ela afirma que esse direito se traduz na possibilidade de qualquer pessoa, em tempo de paz, nos termos da lei, entrar, permanecer ou sair do território nacional "com seus bens" (art. 5º, XV).9 Mas ela vai além. Ao estipular os tipos de pena, primeiro disciplina a "privação ou restrição da liberdade" para, em seguida, apontar a "perda de bens"10 como pena. Ao assegurar o devido processo legal, primeiro dispôs que sem tal direito ninguém será privado da liberdade. Em seguida, complementou: "ou de seus bens" (art. 5º, LIV).11 Prosseguindo, umas das medidas que podem ser tomadas contra as pessoas na vigência do estado de sítio - decretado pelo art. 137, I -, além da restrição à liberdade de locomoção, é a "requisição de bem".12 Segundo o art. 150, V, é vedado à União, aos Estados, ao DF e aos Municípios estabelecer limitações ao tráfego de bens por meio de tributos interestaduais ou intermunicipais (ressalvada a cobrança de pedágio pela utilização de vias conservadas pelo Poder Público). A Constituição chega ao ponto de vedar a edição de medidas provisórias que visem a detenção ou sequestro de bens.13 Logo, sustentar uma suposta restrição exegética do inciso XL do art. 5º ao argumento de que apenas o Direito Penal restringe a liberdade, é desconsiderar a arquitetura constitucional dedicada a outros bens da vida complementares à liberdade e igualmente fundamentais, estando, todos eles, com a eficácia reduzida a partir de uma condenação por uma ação de improbidade administrativa. Assim, a conclusão é a de que o inciso XL do art. 5º da Constituição - "a lei penal não retroagirá, salvo para beneficiar o réu" - autoriza a retroatividade das disposições da lei 14.230/21, em especial, em relação: (i) à necessidade da presença do elemento subjetivo - dolo - para a configuração do ato de improbidade administrativa, inclusive no art. 10 da LIA; e (ii) à aplicação dos novos prazos de prescrição geral e intercorrente. _____ 1 Houve a suspensão do processamento dos recursos especiais nos quais suscitada, ainda que por simples petição, a aplicação retroativa da lei 14.230/21. Suspendeu-se também o prazo prescricional nos processos com repercussão geral. No plano jurisprudencial, o STF havia definido a tese 666, no RE 669.069, de relatoria do saudoso ministro Teori Zavascki: "É prescritível a ação de reparação de danos à Fazenda Pública decorrente de ilícito civil". Posteriormente, fixou a tese 897, no RE 852.475, cuja redação para acórdão coube ao ministro Edson Fachin: "São imprescritíveis as ações de ressarcimento ao erário fundadas na prática de ato doloso tipificado na Lei de Improbidade".  Por fim, a tese 899 (RE 636.886, rel. min. Alexandre de Moraes), que diz: "É prescritível a pretensão de ressarcimento ao erário fundada em decisão de Tribunal de Contas". 2 Parecer ARESV/PGR 350.441/22 (peça 147). 3 Vale lembrar, por lealdade, o seguinte precedente do STF: ARE 1.019.161 AgR, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, 2ª Turma, DJe de 12/5/2017: "(...) a retroatividade da norma mais benéfica em favor do réu é um princípio exclusivo do Direito Penal, onde está em jogo a liberdade da pessoa, admitindo, até mesmo, o ajuizamento de revisão criminal após o trânsito em julgado da sentença condenatória, há qualquer tempo. (...)". 4 Em seu voto quanto à presença de repercussão geral, o ministro Alexandre de Moraes ilustra as correntes teóricas deferentes à retroatividade, por meio dos juristas Heraldo Garcia Vitta (A Sanção no Direito Administrativo, Malheiros: 2003, p. 113) e Edilson Pereira Nobre Júnior (Sanções Administrativas e Princípios de Direito Penal. In: Revista Trimestral de Jurisprudência dos Estados. Ano 24 - Mar/Abr-2000 - Vol. 175. São Paulo: Jurid Vellenich Ltda. p. 69). Em contraponto, Rafael Munhoz de Mello (Princípios constitucionais de direito administrativo sancionador: as sanções administrativas à luz da Constituição federal de 1988. São Paulo, Malheiros, 2007, p. 154-155) e Fábio Medina Osório (Direito Administrativo Sancionador, 5ª ed., São Paulo: RT, 2015. p. 201). 5 Constituição de 1891: "Art 54 - São crimes de responsabilidade os atos do Presidente que atentarem contra: 6º) a probidade da administração;". 6 "Art. 62. § 1º É vedada a edição de medidas provisórias sobre matéria: I - relativa a: a) nacionalidade, cidadania, direitos políticos, partidos políticos e direito eleitoral;". 7 Sob a égide da CF/88, o inciso I do art. 37 assevera que "os cargos, empregos e funções públicas são acessíveis aos brasileiros que preencham os requisitos estabelecidos em lei, assim como aos estrangeiros, na forma da lei". O art. 41, por sua vez, reputa "estáveis após três anos de efetivo exercício os servidores nomeados para cargo de provimento efetivo em virtude de concurso público". 8 "XXIV - a lei estabelecerá o procedimento para desapropriação por necessidade ou utilidade pública, ou por interesse social, mediante justa e prévia indenização em dinheiro, ressalvados os casos previstos nesta Constituição;". "XXV - no caso de iminente perigo público, a autoridade competente poderá usar de propriedade particular, assegurada ao proprietário indenização ulterior, se houver dano;". 9 "XV - é livre a locomoção no território nacional em tempo de paz, podendo qualquer pessoa, nos termos da lei, nele entrar, permanecer ou dele sair com seus bens;". 10 "XLVI - a lei regulará a individualização da pena e adotará, entre outras, as seguintes: a) privação ou restrição da liberdade; b) perda de bens; c) multa; d) prestação social alternativa; e) suspensão ou interdição de direitos; 11 "LIV - ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal;". 12 "Art. 139. Na vigência do estado de sítio decretado com fundamento no art. 137, I, só poderão ser tomadas contra as pessoas as seguintes medidas: (...) VII - requisição de bens." 13 "Art. 62. § 1º É vedada a edição de medidas provisórias sobre matéria: I - relativa a: a) nacionalidade, cidadania, direitos políticos, partidos políticos e direito eleitoral; II - que vise a detenção ou seqüestro de bens, de poupança popular ou qualquer outro ativo financeiro;".
segunda-feira, 28 de março de 2022

A busca da verdade na jurisdição constitucional

Assim começa essa história. "O que é verdade?", perguntou Pilatos. Em seguida, o governador da Judeia partiu. Não lhe interessava ouvir a resposta.1  Milênios foram percorridos pelos passos agitados da humanidade e a verdade segue sendo a bola da vez. Mais pela sua ausência do que pela sua presença, é justo dizer. No Estado Constitucional contemporâneo - do qual o Brasil é adepto desde 1988 -, a verdade importa. A esse respeito, Peter Häberle chegou a afirmar: "na medida em que a comunidade dos povos se 'constitucionaliza', ela também pode se integrar gradualmente aos problemas da verdade e apresentar pretensões de verdade".2 Mas, então, se devemos conferir crédito à afirmação de Häberle no sentido de que declarações materiais e processuais sobre o tema da verdade são possíveis e certas condições de verdade são satisfeitas, como pudemos nos deixar levar para um caminho tão escuro? De que forma terminamos soterrados por um entulho de mentiras? Que bifurcação foi essa, perante a qual poderíamos ter percorrido a verdade e decidimos - ou decidiram por nós - trilhar, ao contrário, o caminho da ilusão?   Peter Häberle não foi indiferente às múltiplas questões da verdade. Em sua obra "Os problemas da verdade no estado constitucional"3, o célebre Professor desenvolve ideias acerca do tema e o faz com grande energia intelectual. Ele inicia com questionamentos: "Constituir o Estado sobre a verdade permanece um belo sonho?" "Sem uma pretensão de verdade também não há tolerância?"4 "É a verdade o resultado de um discurso infindável?" "Está a verdade sujeita às regras da maioria?" "Está a verdade com a maioria?"5 "Podem as constituições mentir?"6 Häberle passa a dividir suas compreensões. "O processo no terceiro poder, o judiciário, relaciona-se especificamente com o problema da verdade"7, diz ele, chegando a falar numa "Verdade jurisprudencial"8 e recordando que a teoria do consenso de Jürgen Habermas "compreende verdade como a conformidade de uma alegação ou, respectivamente, como a capacidade de consenso no discurso dos participantes, o qual, entretanto, está sob a ideia orientadora de um diálogo livre e universal".9 Para além de um direito fundamental à verdade titularizado pelos particulares, democracias constitucionais em outros lugares do mundo têm positivado o que pode ser compreendido como um dever fundamental com a verdade pelo Poder Judiciário. O inciso I do art. 180 da Constituição da Bolívia, por exemplo, determina o seguinte acerca do seu Judiciário: "A jurisdição ordinária baseia-se nos princípios processuais da liberdade, publicidade, transparência, oralidade, celeridade, probidade, honestidade, legalidade, eficácia, eficiência, acessibilidade, imediatismo, 'verdade material', devido processo legal e igualdade das partes perante o juiz".10 Não é apenas a Bolívia. Na Bulgária, o art. 121, 2, da Constituição diz: "O processo judicial assegura a apuração da verdade".11 Essa é a sua finalidade. Além de apurá-la, compete-lhe, a partir dos casos que lhes chegam, proferir uma decisão que seja, no corpo social, a verdade possível revelada. Quem matou? Quem roubou? Quem fraudou? Quem corrompeu? É inconstitucional? É legal? Essas são perguntas cotidianamente formuladas no âmbito da Justiça. Se esta responder com a mentira, trata-se, no Brasil, de erro judicial a ser reparado pelo Estado. Segundo o inciso LXXV do art. 5º da Constituição, "o Estado indenizará o condenado por erro judiciário". O descobrimento da verdade - na mesma acepção de Martin Heidegger12 - é o telos do Poder Judiciário brasileiro. Por isso, o art. 378 do Código de Processo Civil diz: "Ninguém se exime do dever de colaborar com o Poder Judiciário para o descobrimento da verdade".  Como a necessidade de estar sempre aberto para a verdade é perene, o inciso II do art. 504 do CPC diz não fazer coisa julgada "a verdade dos fatos, estabelecida como fundamento da sentença". É como diz Moraes Moreira na música Verdade: "Verdade ninguém pode ser o seu dono". Sequer o trânsito em julgado é capaz de impedir o seu desvelamento (usando, uma vez mais, expressão de Martin Heidegger).    Se a verdade constitui o pináculo do processo penal e do processo civil, então o que dizer acerca do processo constitucional? Especificamente, quanto às ações ínsitas ao controle concentrado de constitucionalidade, quais sejam, a ação direta de inconstitucionalidade (por ação e omissão), a ação declaratória de constitucionalidade e a arguição de descumprimento de prefeito fundamental. Estaria o Supremo Tribunal Federal, ao realizar a Constituição por meios dessas ações, desonerado do seu dever de conduzir os casos pela higidez dos fatos e das provas a partir de quais é possível, após grave escrutínio hermenêutico, alcançar uma resposta que, para além de ser a correta (como previra Ronald Dworkin)13, seja a verdadeira? Ou seria a Suprema Corte, quando do exercício da jurisdição constitucional abstrata, um equivalente funcional da política, conduzida pela retórica, pela opinião e em cujas decisões habitam os elementos de um mero discurso? Se não há fatos, nem provas, nem racionalidade, nem integridade jurisprudencial, como reclamar a preservação do dever da verdade? Teriam suas decisões natureza mágica, oracular, religiosa ou mítica? Se uma Corte Constitucional se coloca na posição de dizer a verdade a partir da emoção, da retórica, da opinião, da força e mesmo da política, impondo suas decisões por meio de estocadas do poder, então toda a autoridade da qual ela deveria se revestir, e os caminhos os quais deveria percorrer - fatos, provas, discurso racional e justificação idônea -, já se perderam. Para Jacob Bazarian, "quando não se respeitam as leis ou princípios lógicos, o pensamento perde sua precisão, sua coerência e consequência, e torna-se incoerente e contraditório".14 Tempestades virão, podem acreditar. Esse quadro ganha relevo se lembrarmos que essas decisões são irrecorríveis, protegidas, portanto, contra ações rescisórias.15 Coberto de razão, Gianni Vattimo anota: "Onde há democracia não pode haver uma classe de detentores da verdade 'verdadeira' que exercitam diretamente o poder (os reis filósofos de Platão) ou que fornecem ao soberano as regras pra seu comportamento".16 A verdade há de ser elemento essencial do discurso jurídico dos juízes e juízas constitucionais, porque é dela que se alimenta a expectativa de uma jurisdição justa, que faz uso de parâmetros racionais para o desenvolvimento dos raciocínios condutores da decisão, tomados a partir de regras previamente estabelecidas, advindos, pelos meios previstos, de uma comunidade livre e igual. Essa decisão também obedece a um conjunto próprio da ritualística judicial, seja quanto ao procedimento, seja quanto ao processo, seja quanto aos múltiplos simbolismos que alimentam a distinção ontológica do Poder Judiciário quando comparado aos Poderes Legislativo e Executivo. A Justiça difere da política, bem como um juiz tem por papel algo diverso do que tem um legislador e uma decisão judicial não equivale a um discurso de um candidato num comício. É por essas e outras razões que a Suprema Corte precisa reafirmar seu compromisso de tomar decisões no âmbito da jurisdição constitucional abstrata, por meio da consideração dos fatos circunscritos ao caso e das evidências nos autos lançadas, fazendo uso de todo o aparato previsto em lei, para que a verdade da Constituição seja revelada não por monarcas ou oráculos, mas por um colegiado formado por brasileiros experientes, dotados de notável saber jurídico, com uma reputação ilibada e dispostos a encontrar a resposta do caso concreto. O processo constitucional não pode se converter num caminho para adivinhações, nem um documento da magnitude de uma decisão de uma Corte Suprema pode ser visto como mero engodo. Não podemos um dia ler um acórdão do STF e lembrarmos de Luís Fernando Veríssimo, quando este cunhou a seguinte frase: "Às vezes, a única coisa verdadeira num jornal é a data".  A ação direta de inconstitucionalidade - incluindo a por omissão - e a ação declaratória de constitucionalidade são regidas pela Lei nº 9.868/99, que, em seu art. 9º, § 1º, diz: "Em caso de necessidade de esclarecimento de matéria ou circunstância de fato ou de notória insuficiência das informações existentes nos autos, poderá o relator requisitar informações adicionais, designar perito ou comissão de peritos para que emita parecer sobre a questão, ou fixar data para, em audiência pública, ouvir depoimentos de pessoas com experiência e autoridade na matéria".17 Não ignora, a lei, a presença de fatos. Tampouco sublima a necessidade de, em dados casos, haver esclarecimentos acerca da matéria ou de não serem bastantes as informações constantes dos autos. Em seguida, entrega a peritos ou pessoas com experiência e autoridade na matéria a oportunidade de emitirem parecer ou serem ouvidos em audiência pública.18 É a instrução do feito constitucional ocorrendo. O equivalente ao regimento interno no Tribunal Constitucional Federal da Alemanha traz, em seu tópico 2, regras procedimentais e, em seu capítulo 1, "regulações procedimentais gerais". O art. 26(1) do Regimento dispõe que "o Tribunal Constitucional Federal produzirá as provas necessárias ao estabelecimento da verdade. Pode, fora da sustentação oral (hearing), instruir um membro do Tribunal a fazê-lo ou solicitar a outro tribunal que o faça em relação a fatos e indivíduos específicos".19 A verdade importa. Quais as evidências? Quais os fatos? O que disseram os peritos? O que demonstraram as testemunhas? O que revelaram os experts? Se nada disso é necessário e uma decisão judicial nascerá após um ciclo de discussões em forma socrática, então o que há, de fato, são filósofos detentores do poder de dizer a verdade. Voltamos à Grécia arcaica. Isso, além de não ser republicano, é absolutamente deletério para a preservação da autoridade da qual se reveste uma Suprema Corte, que, muito mais do que oferecer demonstração de poder em forma bruta, necessita alimentar modos genuínos de exercício de autoridade perante o corpo social que sustenta a democracia.20   O mesmo ocorre quando suas decisões, para serem acatadas, começam a reclamar, com alguma frequência, forte aparato policial, ou o uso da força, ou, ainda pior, reafirmações persistentes de poder. Uma Suprema Corte não foi construída para que os jurisdicionados a temam. Pelo contrário. As Cortes Supremas se impõem pela autoridade que a sua deliberação racional anima até mesmo nas pessoas que não concordam com os resultados de tais deliberações. Quanto mais força tiver de impor a Corte para que as pessoas respeitem as suas decisões, mais fraca estará a sua autoridade. É preciso vindicar o incremento da qualidade do processo constitucional por meio do refinamento da instrução e a consequente aderência dessa instrução à decisão e à sua justificativa, reconhecendo-se a presença de fatos e provas e entendendo que a Suprema Corte tem um dever indeclinável com a verdade nas decisões que profere. Façamos o contrário do que fez Pilatos. Na jurisdição constitucional abstrata, perseveremos pela verdade sem lhe dar as costas. O começo é o fim. O fim é o começo. __________ 1 Agradeço a leitura antecipada dos colegas Rodrigo Barbosa e Ana Gabriela Pereira Matos, colegas de escritório, com quem dividi impressões a respeito do texto. 2 Häberle, Peter. O problema da verdade no Estado Constitucional. Tradução de Urbano Cavelli. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris, 2008, p. 55. 3 Tradução de Urbano Cavelli de Wahrheitsprobleme im Verfassungsstaat. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris, 2008. 4 Häberle, Peter. O problema da verdade no Estado Constitucional. Tradução de Urbano Cavelli. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris, 2008, p. 31. 5 Häberle, Peter. O problema da verdade no Estado Constitucional. Tradução de Urbano Cavelli. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris, 2008, p. 63. 6 Häberle, Peter. O problema da verdade no Estado Constitucional. Tradução de Urbano Cavelli. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris, 2008, p. 121. 7 Häberle, Peter. O problema da verdade no Estado Constitucional. Tradução de Urbano Cavelli. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris, 2008, p. 48. 8 Häberle, Peter. O problema da verdade no Estado Constitucional. Tradução de Urbano Cavelli. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris, 2008, p. 122. 9 Häberle, Peter. O problema da verdade no Estado Constitucional. Tradução de Urbano Cavelli. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris, 2008, p. 33. 10 No original: "Artículo 180. I. La jurisdicción ordinaria se fundamenta en los principios procesales de gratuidad, publicidad, transparencia, oralidad, celeridad, probidad, honestidad, legalidad, eficacia, eficiencia, accesibilidad, inmediatez, verdad material, debido proceso e igualdad de las partes ante el juez." Disponível aqui. 11 "Article 121 (...) 2. Judicial proceedings shall ensure the establishment of truth". Disponível aqui. 12 Sobre o descobrimento da verdade, Martin Heidegger anota: "Para se ver que, de fato, na mesma sentença também se fala da verdade, basta apenas recordar, antes, a palavra grega para o que nós chamamos de verdade: a???e?a, a se traduzir adequadamente por descobrimento. Com isso, porém, não se ganha muito enquanto não nos transferirmos para toda a força significativa, e se nos tornar claro, então, que não se trata de esclarecer um significado qualquer de uma palavra qualquer. Sem dúvida, nós compreendemos provisoriamente o significado da palavra grega para verdade: desencoberto, não velado, não encoberto (...)." Heidegger, Martin. Ser e verdade: a questão fundamental da filosofia; da essência da verdade." Heidegger, Martin. Tradução Emmanuel Carneiro Leão. Revisão da tradução: Renato Kirchner. Petrópolis: Vozes; Bragança Paulista: Editora Universitária São Francisco, 2007 (Coleção Pensamento Humano), p. 110. 13 Toda a construção está erguida nas obras: Levando os Direitos a Sério. Trad. Nelson Boeira. São Paulo: Martins Fontes, 2002. (Coleção Direito e Justiça). Também em Uma questão de princípios. 2. ed. Trad. Luís Carlos Borges. São Paulo: Martins Fontes, 2001. (Coleção Direito e Justiça). Por fim, em O Império do Direito. Trad. Jefferson Luiz Camargo. São Paulo: Martins Fontes, 1999. (Coleção Direito e Justiça). 14 Bazarian, Jacob. O problema da verdade. São Paulo: Editora Alfa-Ômega, 1985, p. 117. 15 Lei nº 9.868/99: "Art. 26. A decisão que declara a constitucionalidade ou a inconstitucionalidade da lei ou do ato normativo em ação direta ou em ação declaratória é irrecorrível, ressalvada a interposição de embargos declaratórios, não podendo, igualmente, ser objeto de ação rescisória." Lei nº 9.882/99: "Art. 12. A decisão que julgar procedente ou improcedente o pedido em argüição de descumprimento de preceito fundamental é irrecorrível, não podendo ser objeto de ação rescisória". 16 Vattimo, Gianni. Adeus à verdade. Tradução de João Batista Kreuch. Petrópolis, RJ: Vozes, 2016, p. 33. 17 A Lei nº 9.868/99, tratando da ação declaratória de constitucionalidade, dispõe: "Art. 20. § 1º Em caso de necessidade de esclarecimento de matéria ou circunstância de fato ou de notória insuficiência das informações existentes nos autos, poderá o relator requisitar informações adicionais, designar perito ou comissão de peritos para que emita parecer sobre a questão ou fixar data para, em audiência pública, ouvir depoimentos de pessoas com experiência e autoridade na matéria". A Lei nº 9.882/99, que regula a arguição de descumprimento de preceito fundamental, assevera, em seu art. 6º, § 1º, que, "se entender necessário, poderá o relator ouvir as partes nos processos que ensejaram a argüição, requisitar informações adicionais, designar perito ou comissão de peritos para que emita parecer sobre a questão, ou ainda, fixar data para declarações, em audiência pública, de pessoas com experiência e autoridade na matéria". 18 Nesse ponto, recomenda-se a leitura do artigo "Instrução probatória e funções da audiência pública na jurisdição do STF, de Paula Pessoa Pereira e Luiz Henrique Krassuski Fortes. 19 Eis a redação: "The Federal Constitutional Court shall take the evidence necessary to establish the truth. It may, outside of the oral hearing, instruct a member of the Court to do so or may request another court to do so in respect of specific facts and individuals". Disponível aqui. 20 A esse respeito escreveu Hannah Arendt: "Mas, se a diferenciação institucional americana entre o poder e autoridade possui traços nitidamente romanos, por outro lado seu conceito de autoridade é completamente diverso. Em Roma, a função da autoridade era política e consistia em dar conselhos, ao passo que na república americana a função de autoridade é jurídica e consiste na interpretação. O Supremo Tribunal deriva sua autoridade da Constituição como documento escrito, enquanto o Senado romano, os patres ou pais da república romana detinham autoridade porque representavam, ou melhor, reencarnavam os ancestrais, cuja única base de pretensão à autoridade no corpo político era exatamente o fato de o terem fundado, de sempre os 'pais fundadores'". Arendt, Hannah. Sobre a revolução. Tradução Denise Bottmann. São Paulo: Companhia das Letras, 2011, p. 258.
segunda-feira, 10 de janeiro de 2022

Perspectivas para o STF em 2022

O ano de 2021 foi mais um, dentre vários, no qual os homens do poder supuseram possível emparedar o Supremo Tribunal. Enganaram-se novamente. Precisam aprender com a História. Franklin Delano Roosevelt é um ícone estadunidense. FDR salvou o país do buraco econômico da Grande Depressão com o seu New Deal; obteve, de forma inédita, quatro mandatos; e, por fim, ganhou a Segunda Guerra Mundial. Não é pouca coisa. Ao lado de George Washington e Abraham Lincoln, brilha na aurora dos maiores presidentes dos Estados Unidos. Em sua singular trajetória há, contudo, uma retumbante derrota: a tentativa de emparedar a Suprema Corte para governar alheio ao seu controle.  Numa série de decisões tomadas por apertada maioria (6 x 3 e 5 x 4) nos anos de 1935 e 1936, a Suprema Corte dos Estados Unidos reputou inconstitucionais leis que visavam recuperar a economia do país. Reeleito em 1936, o presidente Roosevelt enviou um projeto de lei ao Congresso no qual um juiz adicional poderia ser acrescentado para cada um que tivesse mais de 70 anos de idade.1 Com isso, aumentar-se-ia o tamanho da Suprema Corte, temporariamente, de nove para quinze juízes, permitindo que o Executivo nomeasse novos julgadores favoráveis a seus programas econômicos.2 "Na quinta-feira passada, descrevi o sistema de governo americano como um conjunto de três cavalos fornecido pela Constituição ao povo americano para arar suas terras. Os três animais são, naturalmente, os três poderes - o Legislativo, o Executivo e o Judiciário. Dois dos cavalos, o Congresso e o Executivo, trabalham hoje em sintonia, enquanto o terceiro insiste em puxar para o outro lado"3, afirmou FDR, em 9 de março de 1937, não numa live, mas em um de seus Fireside Chats, transmitidos ao vivo pelo rádio. A intenção de Roosevelt se revelou um fiasco. O Congresso dos Estados Unidos não embarcou na aventura. No propósito de emparedar a Suprema Corte, mesmo um homem da envergadura de um FDR, fracassou. É sábio ter alguma humildade para aprender com a lição da História.        Quanto ao Supremo Tribunal Federal, não é apenas um calendário de julgamentos que ele traz para 2022. Muitas peças mudarão de posição num tabuleiro no qual um sopro interno pode provocar, do lado de fora, um vendaval. O Ano Judiciário de 2022 se inicia tendo como presidente da Suprema Corte o ministro Luiz Fux. Terminará, todavia, com a ministra Rosa Weber ocupando esse assento. A "Corte Fux" deixará boa lembrança. Logo no seu início, a soltura do traficante André do Rap, por meio de uma liminar concedida pelo ministro Marco Aurélio, foi cassada pelo Presidente. Ainda que tenha havido protesto do então decano, o ministro Luiz Fux não caiu em qualquer armadilha de confronto interno.4 Seguiu adiante. Bom para o Tribunal.    Houve também reações institucionais em momentos delicados. Em 2021, o presidente do STF anunciou o cancelamento do encontro que reuniria os chefes dos três Poderes, incluindo o presidente Jair Bolsonaro. "Nos últimos dias, o presidente da República tem reiterado ofensas e ataques de inverdades a integrantes desta Corte, em especial os ministros Luís Roberto de Barroso e Alexandre de Moraes. Quando se atinge um dos integrantes, se atinge a Corte por inteiro"5, registrou o ministro Luiz Fux, em sessão do STF transmitida ao vivo para todo o país. Há críticas, contudo, quanto ao excesso de decisões tomadas em sede de suspensões de liminares. A última, determinando o imediato cumprimento das penas aplicadas aos quatro condenados no caso da boate Kiss, gerou uma justa grita na comunidade jurídica. O Presidente acolheu o pedido do Ministério Público gaúcho na Suspensão de Liminar nº 1504. Não foi a primeira vez que presidentes do Supremo fazem um mais do que alargado uso das suspensões de liminares. Infelizmente, não deve ser a última. A partir de setembro, aquela cadeira postada no centro do Plenário será ocupada por uma nova liderança que chega após 45 anos de magistratura, incluindo 10 anos de STF, passagem pelo Tribunal Superior do Trabalho e as presidências do Tribunal Regional do Trabalho da 4ª Região e do Tribunal Superior Eleitoral. Rosa Maria Pires Weber, a juíza gaúcha de Porto Alegre, presidirá o STF.   Atual vice, a Ministra tem experiência, coragem e serenidade suficientes para fazer uma excelente presidência. Se alguma sugestão puder ser dada, deixa-se aqui a inspiração da abertura ofertada aos advogados e advogadas pelo então presidente Dias Toffoli. Presidência de porta fechada não é bom sinal e, em termos de abertura, o ministro Toffoli foi insuperável. Há mais mudanças. Em 2021, o Ano Judiciário foi aberto com a presença do ministro Marco Aurélio. Nesse ano, Sua Excelência não está mais lá. Foi sucedido pelo ministro André Mendonça, jurista com passagem na chefia da Advocacia-Geral da União e no Ministério da Justiça. Como será o seu gabinete? Como o Ministro se portará nas sessões do Plenário? Optará por concessões monocráticas de cautelares? Adotará, como regra, a colegialidade do Plenário Virtual? Receberá advogados e advogadas? Terá um gabinete aberto? Falará com a imprensa ou se portará de maneira mais reservada? É preciso esperar que o ano de 2022 cumpra o seu curso para que as perguntas acima passem a ser respondidas pelos fatos. Cada novo gabinete da Suprema Corte traz em si a sua própria dinâmica, mas também os seus mistérios. Vale aguardar, observar e, se preciso for, reivindicar.     Quem volta a atuar exclusivamente no Supremo Tribunal Federal é o ministro Luís Roberto Barroso. Dia 28 de fevereiro, o ministro Edson Fachin assumirá a presidência da Corte Eleitoral, permanecendo até agosto. O ministro Barroso esteve absolutamente envolvido com as eleições de 2020, mas também se viu empurrado para um inócuo debate acerca do retorno do voto impresso no Brasil. Agora, uma vez mais integralmente mergulhado na Suprema Corte a partir de fevereiro, o Ministro se preparará para a assunção da vice-presidência, que é o caminho antecedente para o mais marcante momento de toda a sua exitosa trajetória jurídica - a presidência do STF. Outra mudança acontecerá em agosto. O ministro Alexandre de Moraes, relator de polêmicos inquéritos no Supremo envolvendo o presidente da República e sua entourage, assumirá a presidência do TSE com a missão de conduzir as eleições de 2022. O seu gabinete na Suprema Corte é, hoje, o de menor acervo (811 processos).6 "Se houver repetição do que foi feito em 2018, o registro será cassado e as pessoas que assim fizerem irão para a cadeia por atentar contra as eleições e a democracia no Brasil", anotou o ministro Alexandre de Moraes, no recente julgamento do TSE sobre o disparo em massa de notícias falsas pela chapa "Bolsonaro-Mourão" na corrida eleitoral de 2018. A conferir.     O ano se inicia também com a ministra Cármen Lúcia compondo a Primeira Turma, presidida pelo ministro Dias Toffoli. Em seu lugar, na Segunda Turma, entra o ministro André Mendonça. A Segunda Turma é presidida pelo ministro Nunes Marques. A dança de cadeiras tem significado, especialmente para quem se vê, em determinados temas, estrangulado por placares apertados.   Além da mudança de peças nesse singular tabuleiro, há ainda a continuidade de práticas recentes, como as sessões híbridas de julgamento (com a possibilidade de patronos e julgadores se fazerem presentes online ou fisicamente) e uma grande quantidade de casos sendo julgados no Plenário Virtual.  Aliás, com a expansão do referido Plenário Virtual, o mérito de muitos recursos com repercussão geral pôde ser apreciado. Com isso, houve uma grande baixa no estoque. Hoje (06/01/2022), restam 185 temas com repercussão geral aguardando deliberação. Para se ter uma ideia, apenas em 2020 foi apreciado o mérito de 126 temas. Abaixo, um gráfico elaborado pelo próprio STF mostra a evolução.  Reconhecida a Repercussão Geral e Julgado o Mérito - Ano Atual7 O ano de 2021 terminou no STF com um acervo de 24.272 processos aguardando deliberação. Eles estão assim divididos: ARE: 9.918; RE: 3.826; Rcl: 2.842; HC: 2.737; ADI: 1.369; MS: 634; RHC: 615; ACO: 404; Pet: 370; ADPF: 309; e RMS: 188.8 Se separarmos por ramo do Direito, o cenário é o seguinte: Direito Administrativo e outras matérias de Direito Público: 9.630; Direito Processual Penal: 3.439; Direito Tributário: 2.693; Direito Processual Civil e do Trabalho: 2.145; Direito Penal: 1.916; Direito Civil: 1.239; Direito do Trabalho: 985; e Direito Previdenciário: 722.9 Abaixo, um gráfico ilustrativo do cenário. O Ano Judiciário de 2022 se inicia, portanto, com algo além de uma agenda de julgamentos no plenário presencial do Supremo Tribunal Federal. Mudança de composição, alteração da presidência e vice-presidência, retorno integral do ministro Luís Roberto Barroso (que preside o TSE) e partida do ministro Alexandre de Moraes para a grave missão de conduzir as eleições gerais de 2022. Essas são movimentações importantes que não podem passar despercebidas de um olhar atento. Em seguida há, como não pode deixar de ser, o calendário completo dos casos incluídos em pauta de julgamento presencial no Plenário do STF para todo o primeiro semestre de 2022. Muitos deles são oriundos do Plenário Virtual e dele foram retirados por pedidos de destaques feitos por ministros.  A esse respeito vale notar que, dia 3 de novembro de 2021, a partir de uma sugestão da ministra Cármen Lúcia, o presidente do STF, ministro Luiz Fux, adiantou que deve haver uma resolução da Suprema Corte disciplinando melhor a questão dos destaques no Plenário Virtual.10 Pela dinâmica atual, sempre que há um destaque, o caso vai ao Plenário Presencial para julgamento que se inicia do zero, ou seja, ainda que tenha o Ministro Relator e outros colegas votado, o destaque reclama, no Plenário Presencial, nova leitura de relatório, realização das sustentações orais, reapresentação do voto do Ministro Relator e retomada de todos os votos. Uma possibilidade aventada é haver algum período antecedente ao início do julgamento virtual para que o destaque seja feito.   O fim é o começo. O Ano Judiciário de 2022 se inicia formalmente dia 1º de fevereiro. Apenas formalmente. Em Brasília e, especialmente, na Praça dos Três Poderes, a Suprema Corte segue em plena atividade, com seus gabinetes repletos de trabalho preparando o percurso a ser trilhado ao longo do novo ano. A Corte persevera altiva e sem receio das armadilhas do poder, como deve ser. __________ 1 Schwartz, Bernard. A History of the Supreme Court. New York: Oxford University Press, 1993. p. 233. 2 O cenário é retratado por Roy Jenkins: "A maior derrota política de Roosevelt foi sua desajeitada tentativa, na primeira metade de 1937, de reformar (alguns diriam subjugar) a Suprema Corte dos Estados Unidos. Enviou mensagem ao congresso argumentando hipocritamente que a Suprema Corte não conseguia dar conta de suas tarefas e que uma administração eficiente exigia a designação de mais um juiz para cada juiz com setenta anos ou mais. Sua derrota foi rica em paradoxos. Primeiro, ocorreu logo depois da grande vitória em novembro anterior. Segundo, na batalha de cinco meses que se travou entre fevereiro e julho, Roosevelt, o mestre da política, cometeu erro após erro, enquanto a Corte de "cavalo e carroça", com seus juízes idosos e obscurantistas, jogou brilhantemente suas cartas defendendo-se. Em conseqüência, numa aliança com o Senado que nada tinha de inevitável, aniquilou a mais importante das primeiras propostas dos mais poderosos e recentemente presidente da história americana". Jenkins, Roy. Roosevelt. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2005, pp. 110-15. 3 Acemoglu, Daron. Por que as nações fracassam: as origens do poder, da prosperidade e da pobreza. Daron Acemoglu e James A. Robinson; tradução Cristiana Serra. Rio de Janeiro: Elsevier, 2012, pp. 317-318. 4 Em outubro de 2020, o ministro Luiz Fux, presidente do STF, suspendeu os efeitos de decisão liminar proferida pelo ministro Marco Aurélio em favor do traficante André do Rap, apontado como líder do PCC - Primeiro Comando da Capital. A prisão foi decretada em maio de 2014, por ocasião da Operação Oversea, deflagrada pela PF. A liminar concedida pelo ministro Marco Aurélio se baseou no excesso de prazo. Ela foi cassada nos autos da SL nº 1.395. 5 Disponível aqui. 6 Dados disponíveis aqui. 7 Dados disponíveis aqui. 8 Dados disponíveis aqui. 9 Dados disponíveis aqui. 10 O Migalhas divulgou matéria completa a respeito da questão.
segunda-feira, 29 de novembro de 2021

E se fosse você? Questões da República brasileira

Minha vida jamais foi fácil por aqui. Saudada e respeitada em quase todo o mundo democrático, no Brasil costumo ser somente saudada. Respeitada, não. E se fosse você? Talvez seja porque o meu país não é fácil. Aqui, quanto mais elevado é o ideal, mais caro será o preço para alcançá-lo. Às vezes sequer é possível alcançar. Destronei imperadores, triunfei sobre ditadores, afugentei golpistas, duelei com coronéis, enfrentei caudilhos, confrontei caciques políticos, desmoralizei corruptos..., mas, em cada uma dessas batalhas, fui ferida e as cicatrizes não se fecharam tão rapidamente quanto eu gostaria. Algumas seguem abertas. Isso dói. Mesmo assim, mesmo sabendo dos vícios originários tão perpétuos que carregamos, o fato é que eu ainda estou aqui. Trago traumas e medos, mas, sim, eu estou aqui. Eles me negam, me excluem, me marginalizam..., mas eu sigo aqui. Eu, a República, não sou jovem. No Brasil, nasci em 1889, a fórceps, num quartinho clandestino, sem pai nem mãe. Os militares, anunciando o parto que me levaria à luz, o fizeram interferindo indevidamente na política. Mais de um século depois eles permanecem com esse vício. É como se fosse uma maldição que de tempos em tempos se repete, impedindo-me de me desenvolver plenamente. No fundo, não acreditam em mim, no meu potencial. Esse mau exemplo pariu filhos ruins. A cada nova geração lá estão eles: os golpistas, prontos para agirem jurando-me em vão. Mundo afora, graças a mim, monarquias sucumbiram, reis tombaram e o vínculo sanguíneo que elevava tiranos ao poder foi deixado para trás. Substituí coroas de ouro por assembleias populares. Eu ajudei a separar o Estado da Igreja, exigi controle das ações praticadas em meu nome e trouxe o povo para dentro da minha casa, para que ele me ajudasse a jamais perecer. Homens da filosofia, como Platão, escreveram sobre mim, povos como os gregos e os romanos se ajoelharam a meus pés. Se tanto eu fiz em proveito de todos, por que me querem tão mal no Brasil? E se fosse você? Sim, eu sei que o meu nome está escrito no caput do artigo 1º da Constituição de 1988: "República Federativa do Brasil". É um lugar de destaque. O Preâmbulo também me celebra. Dizem que a Constituição é minha, que o Presidente é meu, que a federação é minha, que o procurador-Geral é meu..., até um Conselho criaram para mim. Foram-me dados um idioma e símbolos oficiais. Tenho uma bandeira, um hino, armas e selo nacionais. Em minha proteção, a União pode intervir nos Estados e no Distrito Federal. Mas a essa mesma Constituição pela qual eu mais recentemente renasci, impuseram, por emendas, 112 mutilações. Mudaram o meu rosto, reconfiguraram o meu corpo, trocaram os meus órgãos, manipularam o meu DNA..., fizeram tudo o que puderam para que, em verdade, eu simplesmente deixasse de existir. Ou, pelo menos, deixasse de incomodar. Só não mudaram o meu caráter, porque isso, mesmo tentando, eles jamais conseguiriam. Tenho a natureza forte e meus adversários sabem disso. É por isso que eu, mesmo vilipendiada, ainda sigo aqui. Que digam: República, presente! Deram-me objetivos fundamentais. São eles: construir uma sociedade livre, justa e solidária; garantir o desenvolvimento nacional; erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; e promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação. São nobres. Eu tento realizar todos eles, mas essa não é uma tarefa fácil.  E se fosse você? Me diga qual a liberdade, a justiça e a solidariedade que há numa sociedade que olha diariamente os seus irmãos dormindo ao relento, que acompanha crianças espalhadas pelos semáforos vendendo suas infâncias e que toma conhecimento, no almoço farto, que em seguida famílias estarão mergulhadas nos pântanos fétidos dos lixões buscando o que restou daquele almoço? Qual o desenvolvimento nacional que eu posso assegurar se ainda há tanta gente confundindo a minha filosofia de vida, que é zelar pela coisa pública, como sendo o mesmo que tornar o que é do povo algo que, em verdade, pertence a ninguém? Como falar de redução de desigualdades se cada vez mais poucos detêm tudo e muitos têm tão pouco? Se dizem aos meus meninos e às minhas meninas que basta ter talento, ser honesto e trabalhador para que o bom dinheiro aflore em seus bolsos, mas sem revelarem, eles, que essa profecia é vã, já que os assentos desse banquete prometido estão ocupados por estruturas predadoras da igualdade de oportunidades. E o que será de mim, a República, sem igualdade de chances de prosperidade entregue a todos? Como assegurar o bem de todos, sem preconceitos, se quando meus filhos negros disseram que precisavam de uma política pública imediata que lhes ajudasse a ter acesso a graus mais elevados de educação, gritaram contra eles? Se ao assistirem as mulheres suplicarem por armaduras adicionais de proteção para não continuarem sendo mortas pelos homens, gargalharam delas? Se ao ouvir irmãos e irmãs dizerem que não compete ao Estado dispor com quem eles devem se deitar, para quem entregarão os seus afetos, reagiram discriminando-os, perseguindo-os ou desprezando-os?      As coisas são difíceis por aqui. Em meu seio há estados da federação de economia pujante, como São Paulo, Paraná, Santa Catarina e Goiás, pelos quais nutrimos grande orgulho e que nos servem de inspiração. Acontece que, na vida republicana, propósitos em proveito do semelhante valem mais do que o PIB. Dinheiro não é tudo. Foram esses estados os últimos a colocarem suas defensorias públicas para funcionar, logo a instituição trazida pelos braços da Constituição de 1988 para assegurar que, numa República, a pobreza não seja impedimento a que as pessoas alimentem a esperança de ver a justiça se realizar por meio da resposta independente do Judiciário. Santo Ivo, homenageado frequentemente no meio jurídico, era um defensor dos necessitados perante os tribunais franceses. Para mim, um país onde os pobres são afugentados dos Tribunais não pode afirmar ser um lugar onde é possível acreditar na justiça. E, sem poder crer na justiça, o que restaria de mim? O que sobraria da República?    Não me tenham como pessimista. Eu sou consciente de que estou presente em grandes conquistas nesse país. Minhas queixas não são sobre isso. Eu, a República, sei que a Suprema Corte já falou em mim várias vezes. Ela disse que "o princípio republicano apresenta conteúdo contrário à prática do patrimonialismo na relação entre os agentes do Estado e a coisa pública" (ADI 4169, Rel. Min. Luiz Fux, DJe 07/11/2018). Afirmou também que eu "exijo alternância no Poder, não se admitindo a possibilidade de reeleições sucessivas para os mesmos cargos nas mesas diretoras dos órgãos legislativos, mas apenas uma única reeleição para o mandato subsequente" (ADI 6685, Rel. Min. Alexandre de Moraes, DJe 05/11/2021). Escreveu que eu repilo "a manutenção de expedientes ocultos no que concerne ao funcionamento da máquina estatal em suas mais diversas facetas" (ADI 5394, Rel. Min. Alexandre de Moraes, DJe 18/02/2019). Que bom saber que a minha Suprema Corte anda proferindo decisões animada pelos ideais por mim alimentados. Eu ajudo em tudo o que posso. Contudo, para que eu vá além, todos precisam me ouvir mais, me respeitar mais, me entender mais. E se fosse você? Se fosse você quem assistiu os Poderes Executivo, Legislativo e até Judiciário serem tomados pelos filhos de suas autoridades, empregados nas mais elevadas posições, graças a esse traço de hereditariedade que tão mal faz a mim? "Aos filhos, tudo". Logo diante de mim, que vim ao mundo para romper com isso. O nepotismo precisou ser derrubado de cima para baixo, a partir de uma ação conjunta entre o Conselho Nacional de Justiça e o Supremo Tribunal Federal, para que, então, essa gente procurasse corroer-me de outro modo, como seguem fazendo. Já imaginou se isso acontecesse com você? Refiro-me à corrupção, a levar o dinheiro público no próprio bolso, a guardar milhões em malas dentro de apartamentos, a correr nas calçadas das cidades com recursos dos contribuintes dentro de maletas ou a ser capaz de esconder dinheiro alheio nos mais absurdos lugares, incluindo o corpo humano, dando realidade à metáfora do chamado "dinheiro sujo". Já pensou nisso? Eu, a República, peço que eles tenham cuidado com a coisa pública. Eles respondem com funcionários fantasmas, com rachadinhas, com pensões vitalícias às filhas inuptas, com acumulações inconstitucionais, com incorporações acima do teto, com trens da alegria, com carreiras públicas precarizadas, com superfaturamento, com notas fiscais de reembolso fraudadas, com mensalão e com mensalinho, com instituições de controle capturadas, com corporativismo, com personalismos e com privilégios. Eles não ligam para mim, não respeitam a minha presença, não temem a minha autoridade. Como é possível ver nascer tanta raiva ao se entregar um cartão com algum tostão a um necessitado e tamanha negligência com os gastos com cartões corporativos por altas autoridades que de nada precisam? Como podem se incomodar tanto com um desabrigado que luta por um pedaço de terra, por um teto para descansar debaixo, e serem tão omissos com os muitos auxílios para moradia entregues aos que já ganham tanto?  E se fosse você? Se fosse você que tivesse assistido, como eu assisti, governadores entregarem a si, pelas mãos das leis por eles mesmos aprovadas, pensões vitalícias, como se reis e rainhas o fossem, mesmo sabendo, eles, que eu existo, que eu estou aqui? E se fosse você que pediu respeito e recebeu em resposta demandas por Palácios de Mármore, por carros pretos sem placas, por escoltas, batedores e sirenes, por apartamentos e casas funcionais, por retroativos e verbas futuras, pelo desfrute eterno de um poder cujo gozo eu criei para ser temporário? Será que você se sente tão triste quanto eu, ao ver pessoas usarem o meu Ministério Público para fazer política, ao usarem até mesmo o meu Poder Judiciário para fazer política? Não foi essa a missão que eu lhes conferi. O que houve? Você já se imaginou no meu lugar, assistindo o Congresso Nacional relutar em abrir as portas desse quarto tão escuro cuja placa na porta indica o nome "RP-9"? Nesse caso, tratando da chamada "emenda do relator", quando a ministra Rosa Weber proferiu a sua decisão ela disse que assim o fazia para manter vivos os meus ideais. Veja o que se escreveu: "Enquanto a disciplina normativa da execução das emendas individuais e de bancada (RP 6 e RP 7) orienta-se pelos postulados da transparência e da impessoalidade, o regramento pertinente às emendas do relator (RP 9) distancia-se desses ideais republicanos, tornando imperscrutável a identificação dos parlamentares requerentes e destinatários finais das despesas nelas previstas, em relação aos quais, por meio do identificador RP 9, recai o signo do mistério" (ADPFs 850, 851 e 854). Em sua decisão de 49 páginas, eu, a República, apareci 55 vezes. Quando a decisão foi submetida ao Pleno da Suprema Corte, por 8 x 2 ficou entendido que, sim, eu precisava ser respeitada, eu estava aqui há muito tempo e passa da hora dos homens do poder aceitarem o domínio da minha profissão de fé. Eles é que têm de se submeter a mim, não eu a eles. O Congresso Nacional aceitará essa determinação? Ou me afrontará? Eu sou a República. Estou presente 179 vezes na Constituição de 1988. Há mais de um século eu existo nesse país. Há muitas solenidades em minha homenagem, almoços e jantares são oferecidos a mim com boa frequência. Por ocasião da minha proclamação, até um feriado criaram sob a justificativa de que eu precisava ser saudada. Acontece que eu não quero mais ser apenas saudada. Quero ser respeitada.  Não almejo ir embora. Estou há muito tempo e pretendo permanecer. O problema é que a minha vida nunca foi fácil por aqui. E se fosse você? 
Somos feitos de histórias. E a história da ADI 6565, de relatoria do ministro Edson Fachin, ajuizada pelo Partido Verde perante o Supremo Tribunal Federal, precisa ser contada. O caso está pautado para julgamento virtual a partir do dia 1º de outubro. Trata da nomeação do professor mais votado na lista tríplice entregue, pelos campi das universidades federais, ao presidente da República, para nomeação no honroso cargo de reitor. Professores e reitores deram e seguem dando a vida por esse país. Em 1968, o reitor da UFRJ, Pedro Calmon, barrou policiais que tentavam invadir a Faculdade Nacional de Direito, no Centro da cidade do Rio. "Policial só entra na universidade se fizer vestibular", advertiu Calmon, com a extraordinária autoridade moral que tinha.   Outro episódio conhecido se deu com o saudoso Paulo Brossard, que foi ministro do STF e foi expulso da Universidade Federal do Rio Grande do Sul onde, em 1965, começou a lecionar, sem remuneração, tendo lá permanecido por sete anos.1 Ainda na Ditadura Militar, Sepúlveda Pertence, também ministro aposentado do STF, foi demitido da UnB. Pedro Calmon, Paulo Brossard e Sepúlveda Pertence são personagens públicos que, no tema abordado pela coluna hoje, viveram a verdade e percorreram o caminho, construindo as muitas histórias que, juntas, ensejaram a constitucionalização, em 1988, da autonomia universitária no Brasil. É preciso honrar ideais tão elevados como esse.    Moisés Naím, em O Fim do Poder, anteviu tudo: "(...) aqueles que controlam o poder deparam-se cada vez com mais restrições ao que podem fazer com ele". E concluiu: "No século XXI, o poder é mais fácil de obter, mais difícil de utilizar e mais fácil de perder".2 O histórico legislativo disciplinador da nomeação dos reitores de universidades federais torna o diagnóstico de Naím profético, pois indica o curso de uma postura que se iniciou sem limitação do poder do presidente da República no processo de nomeação. Depois, com a lei 6.420/77, o art. 16 da lei 5.540/68 passou a estipular uma lista sêxtupla. Com a lei 9.192/95, reduziu-se ainda mais a discricionariedade. A lista passou a ser tríplice. Atualmente, na lei 11.892/2008, que institui a Rede Federal de Educação Profissional, Científica e Tecnológica, cria os Institutos Federais de Educação, Ciência e Tecnologia, sequer lista há.3 A trajetória prova a redução do espaço de discricionariedade do Presidente. Em verdade, a ADI 6565 não se volta ao poder do presidente da República. Visa, em seu conteúdo, manter as conquistas dos campi, do alicerce cívico de um país crente na educação. Não se dedica, ela, aos palácios, mas às cidades universitárias. Discute a realização, pelo Presidente, quando invocando o art. 84, II da Constituição, da autonomia universitária. A realização da Constituição, a partir da sua aplicação por quem tem competência para tal, se dá também pela intermediação legislativa, que, na espécie, nasce a partir do que se chamou "Reforma Universitária de 1968", com o advento da lei Federal 5.540/68, ora em discussão, com suas alterações. A Ditadura Militar nomeava os reitores autorizada pelo art. 16, I da lei Federal 5.540/68, com a redação dada pela lei Federal 6.420/77. Os anos foram esses: 1968 e 1977. No primeiro, nasceu o Ato Institucional nº 05. No outro, fechou-se o Congresso. O ministro Gilmar Mendes recorda que, em 1968, ocorreu "A invasão mais violenta" num campus universitário no país. "Os alunos protestavam contra a morte do estudante secundarista Edson Luis de Lima Souto, assassinado por policiais militares no Rio de Janeiro. Cerca de 3 mil alunos reuniram-se na praça localizada entre a Faculdade de Educação e a quadra de basquete. Esse foi o estopim para o decreto da prisão de sete universitários, entre eles, Honestino Guimarães"4, registrou o Ministro, referindo-se à UnB. O ministro Gilmar Mendes rememora ainda que, "em 6 de junho de 1977, tropas militares invadiram a UnB, prenderam estudantes e intimaram professores e funcionários".5 O Ministro traz a obra de Roberto Salmeron, A universidade interrompida: Brasília 1964-1965, na qual anota que, na Ditadura Militar, "os professores estavam fartos do clima de instabilidade que havia se instalado na Universidade". E prossegue com a citação: "'Chegara o momento em que devíamos escolher com lucidez entre somente duas alternativas: aceitar as interferências externas ou recusá-las', lembra. Cerca de 80% dos professores decidiram recusar. Em 18 de outubro a Universidade que acabara de nascer perdia a maior parte dos cérebros selecionados para construir a instituição de vanguarda idealizada por Darcy Ribeiro."6 O tempo cumpriu seu destino, 1988 chegou e, com ele, a constitucionalização da autonomia universitária aconteceu. Nesse particular, vale trazer trecho do ministro Edson Fachin, em voto na ADPF nº 548: "A autonomia da universidade é garantia constitucional máxima. Pétrea. Ela destina-se a impedir que o Estado substitua a própria universidade para indicar o que pode ou o que não pode ser debatido nesse ambiente. O que debater, como debater, quando debater são decisões que não estão sujeitas ao controle estatal prévio."7 A compreensão da autonomia universitária como sendo uma garantia institucional expressamente prevista na Constituição de 1988 existe para se preservar as instituições contra predadores antirrepublicanos. Para Paulo Bonavides, "a garantia institucional não pode deixar de ser a proteção que a Constituição confere a algumas instituições, cuja importância reconhece fundamental para a sociedade (...)".8 Ele recorda os juristas da República de Weimar, como Klaus Stern, que enxergam na garantia institucional "o reconhecimento de que determinadas instituições jurídicas devem ser resguardadas de uma supressão ou ofensa ao seu conteúdo essencial ou esfera medular, por parte do Estado, sobretudo do legislador".9 Instituição alguma pode ter o seu destino definido pelo apetite dos presidentes da República. Eles passam e as instituições permanecem. Daron Acemoglu e James Robinson sustentam que o sucesso ou o fracasso das nações depende da qualidade de suas instituições. "Se a distribuição de poder for estreita e irrestrita, as instituições políticas serão absolutistas", anotam, referindo-se às instituições extrativistas. "Em contrapartida, as instituições políticas promotoras de ampla distribuição de poder na sociedade e sujeitas às suas restrições são pluralistas. Em vez de ser investido em um único indivíduo ou grupo limitado, o poder político é depositado nas mãos de uma coalizão ampla ou uma pluralidade de grupos"10. É urgente reconhecer a eficácia do dispositivo constitucional que institui a autonomia universitária, capaz de preservar seu núcleo essencial contra invasões destituídas de interesse público por parte do presidente da República, que, num turning point, revogou a norma anteriormente aplicável à espécie - nomeação do mais votado da lista - e, sem fundamento, tampouco sem demonstrar estar esse novo comportamento a realizar melhor a autonomia universitária, passou a nomear os menos votados, aqueles que saíram derrotados dos campi. Para Paulo Bonavides, a "garantia institucional visa, em primeiro lugar, assegurar a permanência da instituição, embargando-lhe a eventual supressão ou mutilação e preservando invariavelmente o mínimo de substantividade ou essencialidade, a saber, aquele cerne que não deve ser atingido nem violado, porquanto se tal acontecesse, implicaria já o perecimento do ente protegido".11 Essa autonomia jamais se constituirá sob a forma de soberania. Mesmo reconhecendo-se a nulidade das nomeações do presidente Jair Bolsonaro que, sem qualquer fundamentação, quebraram a norma vigente que assegurava o mais votado na lista tríplice, as universidades seguem submetidas aos princípios da legalidade, da impessoalidade, da moralidade, da publicidade e da eficiência (art. 37 da Constituição). Estão vinculadas aos comandos constitucionais dos servidores públicos e dos concursos públicos. Sujeitam-se às regras licitatórias de contratação, à atividade regulatória do Ministério da Educação, à atuação da CGU, do Congresso Nacional, do Tribunal de Contas da União e à feitura de convênios e ao estabelecimento de metas de gestão. Submetem-se à inclusão na lei orçamentária anual e no orçamento fiscal das entidades da Administração Indireta. Emprestar reconhecimento republicano ao resultado das eleições ocorridas no seio dos campi, em nada arrasta, para as universidades, o conceito de soberania. Apenas um país, à luz da Constituição, é soberano.12 Universidade alguma jamais será. Nessa discussão, a ADI 51 tem aparecido como precedente para o deslinde do debate, a partir da liderança do ministro Paulo Brossard, o que resultaria, na prática, num aval jurisprudencial para que o Presidente siga nomeando as lideranças das universidades federais como vem fazendo, promovendo vetos aos vitoriosos e premiando os derrotados. A história desse precedente também merece ser contada. Em 23/05/1989, foi ajuizada a ADI 51, pelo eminente Procurador-Geral Aristides Junqueira, cuja relatoria coube ao ministro Paulo Brossard. Questionava ato do Conselho Universitário da Universidade Federal do Rio de Janeiro (Resolução nº 02/88). Dois dias depois, a cautelar foi concedida, num voto de uma página, diante da iminência das eleições na Universidade. A composição do Supremo era a seguinte: ministros Néri da Silveira - Presidente -, Aldir Passarinho, Francisco Rezek, Sydney Sanches, Octavio Galloti, Carlos Madeira, Célio Borja, Paulo Brossard e Sepúlveda Pertence. O art. 1º da Resolução dispunha: "O Reitor e o Vice-Reitor da UFRJ serão escolhidos em processo de eleição direta pelos docentes, servidões técnico-administrativos e estudantes". Eis o parágrafo único: "O processo eleitoral iniciar-se-á e encerrar-se-á no âmbito da UFRJ". Por sua vez, o art. 3º: "Os candidatos a Reitor e a Vice-Reitor vencedores da eleição serão empossados pelo Conselho Universitário".   A página 12 do acórdão do julgamento de mérito, de 25/10/1989, esclarece o que de fato estava em julgamento: "6. De forma contrária estabeleceu a resolução nº 2. Por ela o reitor e o vice-reitor são escolhidos com exclusão, total e absoluta, de qualquer participação do Presidente da República; são empossados pelo Conselho Universitário; a escolha não se fará de listas sêxtuplas, mas mediante pura e simples; o colégio eleitoral, previsto no art. 8º, de outro lado, não é o previsto na lei 6.420, artigo 16, I, e 1º." Ou seja, o presidente da República deixou de participar da nomeação dos reitores e vice-reitores. Todo o processo se esgotava na Universidade. Sequer lista havia. O ato, complexo, deixou de sê-lo. Tudo feito por ato interno da Universidade, em violação à lei de regência, que é a mesma ora questionada. Tanto que uma das inconstitucionalidades foi de natureza formal, por violação à reserva de lei. Anotou o relator, ministro Paulo Brossard: "a Universidade não podia e não pode revogar a lei federal, ao dispor de maneira diferente quanto à escolha da lista sêxtupla e a nomeação do Reitor, o que lhe escapa por inteiro de sua competência, por ser da União" (p. 17). O caso é absolutamente distinto da ADI nº 6565. O ministro Sepúlveda Pertence, mesmo seguindo o Relator, fez uma ressalva: "(...) Deixo ressalvado, entretanto, o exame mais profundo da questão e das implicações da autonomia universitária, constitucionalmente garantida, em relação ao poder presidencial de provimento dos cargos federais, em geral, e as leis vigentes sobre provimento das reitorias". Ou seja, transformar o julgamento da ADI 6565 numa oportunidade para ampliar o poder do presidente da República, quando, na verdade, o que se pediu foi a manutenção da autonomia universitária, é desconsiderar o princípio do pedido a ponto de apreciar o feito trazendo o art. 84, II da Constituição, isoladamente, para esse juízo, conferindo-lhe leitura capaz de dotar o Presidente da possibilidade de agir alheio aos fundamentos determinantes necessários ao controle dos seus atos. Seria, no alerta do ministro Gilmar Mendes, feito noutro caso, "uma esquisita compreensão do princípio de justiça, que daria ao postulante 'pedra ao invés de pão' (Stein statt Brot)".13 Em resumo, o art. 84, VI, que diz competir ao Presidente da República estruturar e organizar o funcionamento dos órgãos e das entidades vinculadas ao Poder Público federal, não existe, do ponto de vista hermenêutico, fora de uma leitura estruturante e republicana da Constituição. Por isso, o STF deve conferir interpretação conforme a Constituição aos dispositivos legais submetidos à sua jurisdição (art. 1º da lei Federal 9.192/95 e art. 1º do decreto Federal 1.916/96), para, mantendo o regramento do processo de formação das listas, anular, imediatamente, todas nomeações do atual presidente da República para os postos de reitor que não tenham recaído sobre os mais votados das listas, sendo esses imediatamente nomeados e determinando-se, para o futuro, a nomeação, exclusivamente, dos mais votados. __________ 1 Disponível aqui. 2 Naím, Moisés. O Fim do Poder: Como os novos e múltiplos poderes estão mudando o mundo e abalando os modelos tradicionais na política, nos negócios, nas igrejas e nas mídias. São Paulo: Leya, 2019, p. 49. 3 Segundo o art. 12, os Reitores serão nomeados pelo Presidente, para mandato de 4 anos, permitida uma recondução, após processo de consulta à comunidade escolar do respectivo Instituto Federal, atribuindo-se o peso de 1/3 para a manifestação do corpo docente, de 1/3 para a manifestação dos servidores técnico-administrativos e de 1/3 para a manifestação do corpo discente.    4 Voto do ministro Gilmar Mendes na ADPF nº 548 (DJe 09/06/2020). 5 Antônio Ramaiana, autor do livro UnB 1977: O Início do Fim. 6 Voto do ministro Gilmar Mendes na ADPF nº 548 (DJe 09/06/2020). 7 Visava a evitar e reparar lesão a preceitos fundamentais resultantes de atos do Poder Público tendentes a executar ou autorizar buscas e apreensões, assim como proibir o ingresso e interrupção de aulas, palestras, debates ou atos congêneres e promover a inquirição de docentes, discentes e de outros cidadãos que estejam em local definido como universidade pública ou privada. 8 Bonavides, Paulo. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Malheiros Editores, 26ª edição, 2011, p. 537. 9 Bonavides, Paulo. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Malheiros Editores, 26ª edição, 2011, p. 539. 10 Acemoglu, Daron. Por que as nações fracassam: as origens do poder, da prosperidade e da pobreza/Daron Acemoglu e James A. Robinson; tradução Cristiana Serra. Rio de Janeiro: Elsevier, 2012, p. 85. 11 Bonavides, Paulo. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Malheiros Editores, 26ª edição, 2011, p. 542. 12 Segundo o inciso I do art. 1º da Constituição, um dos fundamentos da República é a "soberania". 13 Necessidade de Desenvolvimento de Novas Técnicas de Decisão: Possibilidade da Declaração de Inconstitucionalidade sem a Pronúncia de Nulidade no Direito Brasileiro, conferência Congresso Luso-Brasileiro de Direito Constitucional, Belo Horizonte, 04/12/1992, p. 22.
quarta-feira, 8 de setembro de 2021

Quem é o guardião da Constituição?

O presidente da República, Jair Bolsonaro, chamou para si a função de guardião da Constituição. Ao invocar o nome do povo, na verdade fala de si. Suas palavras, por ocasião do 7 de setembro, lembram o mandamento central do Livro Verde: "O poder deve ser inteiramente do povo". Foi a base do regime de Muammar Kadafi por quase quarenta anos, na Líbia. Numa democracia constitucional, o povo é o poder apenas se agir em conforme a Constituição. É, como lembra Peter Häberle, a substituição da velha ideia de "soberania popular" pelo conceito atual de "soberania da Constituição".1 A queixa do presidente se volta ao Supremo Tribunal Federal, aquele que é, segundo o caput do art. 102, o guardião da Constituição. Supremas Cortes não nasceram para enfraquecer democracias. Foi o contrário. A elas compete manter a pluralidade de regimes democráticos, o seu caráter tolerante e inclusivo. Também erra quem diz que democracia é "o governo da maioria" sem limites ou compromissos. Nem mesmo Aristóteles, no seu Política, assim o dizia. "Não se deve, como costumavam fazer certas pessoas, definir simplesmente a democracia como o governo em que a maioria domina"2, anotou o filósofo. Numa democracia constitucional, o povo governa, direta ou indiretamente, nos limites da Constituição. É esse o modelo adotado no Brasil e cravado na pedra fundamental da Constituição de 1988. Aharon Barak, que presidiu a Suprema Corte de Israel, afirmou que, se não protegermos a democracia, a democracia dificilmente nos protegerá.3 O mesmo vale para o Supremo Tribunal Federal.   Esses episódios de ataques, pelo presidente da República, à Suprema Corte, tem sido experimentado em outros países. Anne Applebaum lançou recentemente a obra "O crepúsculo da democracia: como o autoritarismo seduz e as amizades são desfeitas em nome da política".4 Ao rememorar a vitória apertada do partido Lei e Justiça, em 2015, na Polônia, ela recorda que o "novo governo violou a Constituição ao inadequadamente indicar novos juízes para o Tribunal Constitucional. Mais tarde, usou uma estratégia igualmente inconstitucional em uma tentativa de dominar a Suprema Corte e criar uma lei para punir juízes cujos vereditos contrariassem as políticas governamentais". Lembra ainda do jornalista inglês Christopher Caldwell, que produziu um artigo no Claremont Review elogiando o ataque de Viktor Órban, primeiro-ministro da Hungria, "às estruturas sociais neutras e ao campo de jogo nivelado", expressão considerada pela escritora "um eufemismo para tribunais independentes e estado de direito". A conclusão de Anne Applebaum é a seguinte: "não foi por acidente que juízes e tribunais se tornaram objeto de crítica, escrutínio e raiva em muitos outros lugares. Não pode haver neutralidade em um mundo polarizado, porque não pode haver instituições apartidárias ou apolíticas". Ou seja: há método nessa loucura. No caso brasileiro, o que se vê é uma tentativa de enfraquecer o modelo atual de Estado constitucional - cuja essência reside na atuação contramajoritária do Judiciário -, fortalecendo uma concepção de democracia popular segundo a qual, pelo "poder do povo", a Constituição passaria a dever obediência à vontade de multidões aglomeradas por aí, com seus discursos, gritos de guerra, cantos e marchas. O célebre debate entre Carl Schmitt e Hans Kelsen ajuda a entender. A proposta teórica de Carl Schmitt ganhou publicação inicial em 1929, sob o título O Tribunal Constitucional como guardião da Constituição. Em 1931, ele publica uma versão ampliada daquelas reflexões, denominada O guardião da Constituição. Hans Kelsen, no mesmo ano de 1931, divulga sua resposta e o faz por meio do texto intitulado Quem deve ser o guardião da Constituição? Para Schmitt, a Constituição é uma decisão consciente de uma unidade política concreta que define a forma e o modo de sua existência. Analisando a realidade vivida à época, pela Alemanha, sob a Constituição de Weimar, era contraditório para o jurista o fato das propostas de lei e projetos partirem do princípio de que um Tribunal do Estado deveria decidir, em um processo judicial, tanto litígios constitucionais quanto dúvidas e divergências de opinião acerca da constitucionalidade de leis do Reich.5 Para Schmitt, instituir, perante tal Constituição, um Tribunal Constitucional para divergências constitucionais e não lhe entregar um conceito de divergências constitucionais, ou seja, nenhuma outra delimitação de sua competência além de uma "definição vocabular totalmente vã, segundo a qual toda divergência acerca de uma disposição constitucional é uma divergência constitucional, significa entregar ao próprio tribunal a decisão sobre sua competência".6 É a partir desse ponto que Carl Schmitt inicia seu périplo na defesa do Füher como guardião da Constituição. Se a Constituição se baseia, como correspondente a uma concepção difundida no século XIX, em um contrato entre príncipe e povo, governo e representação do povo, toda parte contratual surge como guardiã "da parte constitucional que diz respeito a seus próprios direitos e poderes e tenderá a qualificar as determinações constitucionais vantajosas a suas reivindicações políticas como 'a' Constituição". O jurista entendia que guardiões da Constituição "não são todas as posições e pessoas que, ocasionalmente pela não aplicação de leis anticonstitucionais, possam contribuir para que a Constituição seja respeitada e não seja violado um interesse protegido constitucionalmente". Daí ele não considerar "os tribunais, mesmo quando exercerem o direito de exame judicial acessório e difuso, como guardiões da Constituição". Na sequência, fala do pouvoir neutre, lembrando Benjamin Constant. Schmitt sustentava que o guardião da Constituição tem que ser independente e político-partidariamente neutro.7 O presidente do Reich encontrar-se-ia no centro de todo um sistema de neutralidade e independência político-partidária. Assim, ao se criar um Tribunal como guardião da Constituição para apreciar questões e conflitos relativos à alta política o que se teria era uma politização que oneraria e colocaria em risco a justiça. Schmitt arremata: "Consoante o presente conteúdo da Constituição de Weimar, já existe um guardião da Constituição, a saber, o Presidente do Reich." A tese foi sustentada com base no art. 42 da Constituição de Weimar, segundo o qual o Presidente do Reich, por meio de seu juramento, "defenderá a Constituição". O comando se assemelha ao art. 78 da Constituição brasileira, que alude ao compromisso firmado pelo presidente da República, no ato de sua posse, de "manter, defender e cumprir a Constituição (...)". Para Schmitt, "o juramento político sobre a Constituição faz parte, segundo a tradição do direito constitucional alemão, da 'garantia da Constituição'" e o texto escrito do regulamento constitucional vigente qualifica o Presidente do Reich como guardião da Constituição. Logo, "o fato de o presidente do Reich ser o guardião da Constituição corresponde, porém, ao princípio democrático, sobre o qual se baseia a Constituição de Weimar."8 A visão final anunciada por Carl Schmitt foi profética e sombria: "A Constituição busca, em especial, dar à autoridade do presidente do Reich a possibilidade de se unir diretamente a essa vontade política da totalidade do povo alemão e agir, por meio disso, como guardião e defensor da unidade e totalidade constitucionais do povo alemão. A esperança de sucesso de tal tentativa é a base sobre a qual se fundam a existência e a continuidade do atual Estado alemão."9 Hans Kelsen pensava de outro modo. Defendia a possibilidade do exercício, por um corpo de juízes integrantes de um Tribunal e desprovidos de mandatos populares, do controle de constitucionalidade das leis aprovadas pela maioria popular.  Em alusão ao escrito de Schmitt, Kelsen diz que "o que mais admira, porém, é que o mesmo escrito, que pretende restaurar a doutrina de um dos mais antigos e experimentados ideólogos da monarquia constitucional - a doutrina do pouvoir neutre do monarca, de Benjamin Constant - a aplicá-la sem qualquer restrição ao chefe de Estado republicano, tenha como autor o professor de direito público na Berliner Handelshochschule, Carl Schmitt".10 Kelsen continua:  "É verdade que, no intuito de que o chefe de Estado apareça como o apropriado 'guardião da Constituição', Schmitt caracteriza o seu pouvoir neutre não como uma instância que está acima dos 'detentores de direitos de decisão e de influência política', ou como um 'terceiro mais alto', nem como 'senhor soberano do Estado', mas sim como um 'órgão justaposto', como um poder 'que não está acima, mas sim ao lado dos outros poderes constitucionais'. Ao mesmo tempo, porém, através de uma interpretação mais do que extensiva do art. 48, ele procura ampliar a competência do Presidente do Reich de maneira tal que este não escapa de tornar-se senhor soberano do Estado, alcançando uma posição de poder que não diminuiu pelo fato de Schmitt recusar-se a designá-la como 'ditadura' e que, em todo caso, segundo as expressões acima citadas, não é compatível com a função de um garante da Constituição."11 Kelsen previu tudo. Anotou, acima, que a proposta de Schmitt ampliaria a competência do "Presidente do Reich de maneira tal que este não escapa de tornar-se senhor soberano do Estado, alcançando uma posição de poder que não diminuiu pelo fato de Schmitt recusar-se a designá-la como 'ditadura' e que, em todo caso, segundo as expressões acima citadas, não é compatível com a função de um garante da Constituição".12 E conclui: "Declarar o Presidente do Reich como único guardião da Constituição contraria as mais claras disposições da Constituição do Reich."13 A história deu razão a Hans Kelsen. Dia 25 de outubro de 1932, o Tribunal do Estado alemão negou-se a definir os limites da atuação do Presidente e de seu Chanceler, deixando-os absolutamente livres para atuarem contra as instituições democráticas da República de Weimar. Hitler agiu sem restrições institucionais.   A ideia de controle do poder por meio do Judiciário e, em particular, de controle do chefe do Poder Executivo por uma Suprema Corte, é uma concepção vitoriosa. No Reino Unido, último bastião material - formalmente já não o era desde 2005 - da soberania do Parlamento, a Suprema Corte derrubou, recentemente, uma ordem da Rainha dada, a pedido do primeiro-ministro Boris Johnson, à Câmara dos Lordes, para suspender os trabalhos do Parlamento. A decisão unânime, lida pela juíza presidente Brenda Hale, qualificou a ordem como uma "folha em branco, porque a decisão era nula na origem".14 Se mesmo a Rainha está submetida às decisões da Suprema Corte, por qual razão o Capitão não estaria? A incredulidade dá razão a Peter Häberle, que enxerga com pesar que, em alguns países, esteja havendo um renascimento de Schmitt. Ele diz: "resulta incompreensível este renascimento, se tem em conta essa dupla faceta da pessoa e muitas das manifestações de Carl Schmitt durante o regime nazista."15 Há mais exemplos. Ficou conhecida como Corte de Warren a Suprema Corte dos Estados Unidos quando estava sob o comando do Chief Justice Earl Warren, de 1953 a 1969, quando o Tribunal avançou rumo à garantia de direitos até então negados aos estadunidenses mais vulneráveis da sociedade, notadamente a comunidade negra. Nesse período, militantes odiosos fizeram circular pelos estados americanos manifestos pedindo o impeachment de Warren. Adesivos eram afixados nos veículos. Em outubro de 1958, em São Francisco, foi divulgado o primeiro manifesto no qual estava estampado: "Earl Warren: Procurado para sofrer impeachment". Eis a acusação contra o presidente da Suprema Corte: "ele proferiu várias decisões compelindo brancos a se misturarem com negros nas escolas, nos prédios públicos, nos restaurantes e nos banheiros públicos". Ao final, o manifesto acusa Warren de impor uma tirania judicial sobre os cidadãos brancos. Argumentava-se que Warren era dócil com os delinquentes, libertando todos aqueles que lhe dirigiam habeas corpus na Suprema Corte.16 As falas do presidente da República, Jair Bolsonaro, acerca do Supremo Tribunal Federal são iliberais e afrontosas à independência judicial. Aliam-se à visão de mundo de Kadafi, com o seu Livro Verde, às iniciativas de Viktor Órban, primeiro-ministro da Hungria e, numa perspectiva hermenêutica, à concepção de Carl Schmitt. É tudo de mais atrasado que há em termos de jurisdição constitucional e proteção aos direitos fundamentais. A retórica incendiária precisa ser punida por meio do aparato institucional que a própria democracia brasileira ergueu. É bom que não se demorem tanto. __________ 1 Conversas Acadêmicas com Peter Häberle. Organizador Diego Valadés, traduzido do espanhol por Carlos dos Santos Almeida. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 4. Entrevista de César Landa. 2 Aristóteles, A política. São Paulo: Martins Fontes, 2006, p. 120. 3 The judge in a democracy. Princeton University Press, 2017, p. 226. 4 Traduzida no Brasil por Alessandra Borrunquer e publicada pela Record. 5 Schmitt, Carl. O guardião da Constituição. Tradução de Geraldo de Carvalho; coordenação e supervisão de Luiz Moreira. Belo Horizonte: Del Rey, 2007, p. 05. 6 Schmitt, Carl. O guardião da Constituição. Tradução de Geraldo de Carvalho; coordenação e supervisão de Luiz Moreira. Belo Horizonte: Del Rey, 2007, p. 73. 7 Schmitt, Carl. O guardião da Constituição. Tradução de Geraldo de Carvalho; coordenação e supervisão de Luiz Moreira. Belo Horizonte: Del Rey, 2007, p. 227. 8 Schmitt, Carl. O guardião da Constituição. Tradução de Geraldo de Carvalho; coordenação e supervisão de Luiz Moreira. Belo Horizonte: Del Rey, 2007, p. 233. 9 Schmitt, Carl. O guardião da Constituição. Tradução de Geraldo de Carvalho; coordenação e supervisão de Luiz Moreira. Belo Horizonte: Del Rey, 2007, pp. 233-234. 10 Kelsen, Hans. Jurisdição constitucional. São Paulo: Martins Fontes, 2007. Especialmente o capítulo intitulado "Quem deve ser o guardião da Constituição?", p. 243. 11 Kelsen, Hans. Jurisdição constitucional. São Paulo: Martins Fontes, 2007. Especialmente o capítulo intitulado "Quem deve ser o guardião da Constituição?", p. 246. 12 Kelsen, Hans. Jurisdição constitucional. São Paulo: Martins Fontes, 2007. Especialmente o capítulo intitulado "Quem deve ser o guardião da Constituição?", pp. 257-258. 13 Kelsen, Hans. Jurisdição constitucional. São Paulo: Martins Fontes, 2007. Especialmente o capítulo intitulado "Quem deve ser o guardião da Constituição?", p. 287. 14 R (Miller) v The Prime Minister and Cherry v Advocate General for Scotland ([2019] UKSC 41), cuja decisão pode ser assistida nesse vídeo, e o inteiro teor acessado aqui. 15 Valadés, Diego (Org.). Conversas acadêmicas com Peter Häberle. Traduzido, do espanhol, por Carlos dos Santos Almeida. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 25. 16  Vale conferir o artigo assinado, no jornal The New York Times, pelo jornalista Alden Whitman, em 10/07/1974, em razão do falecimento de Earl Warren, intitulado "Earl Warren, 83: Morre aquele que liderou o topo da Suprema Corte num período de intensa mudança social". Disponível aqui.
Está submetida a julgamento virtual iniciado em 13/08/2021, a ação direta de inconstitucionalidade nº 6811, ajuizada pela Procuradoria-Geral da República, sob a relatoria do ministro Alexandre de Moraes.  A ação pede a declaração de inconstitucionalidade da expressão "e municípios", constante do art. 97, § 6º, da Constituição de Pernambuco, acrescido pelo art. 1º da EC nº 35/2013, que fixa subteto remuneratório único para os servidores públicos estaduais e municipais.1 O dispositivo, na referida redação, teria afrontado os artigos 18, caput, 29, V (autonomia dos municípios para dispor sobre a remuneração de seus agentes públicos), e 37, XI e § 12 (subsídio do prefeito como subteto remuneratório único em âmbito municipal), da Constituição Federal. O ministro Alexandre de Moraes, relator, aplicou ao caso as razões de decidir da ADI-MC nº 6221, ajuizada em face da EC nº 72/2018, que deu nova redação ao §2º do art. 39 da Constituição do Pará. No caso, a maioria concedeu parcialmente a cautelar, suspendendo a eficácia da expressão "e dos Municípios", constante do art. 39, § 2º, da Constituição do Pará, na redação dada pela EC nº 72/20182, afirmando-se que o teto remuneratório aplicável aos servidores municipais, excetuados os vereadores, é o subsídio do prefeito municipal. Vale rememorar o que escreveu, em seu voto, na anterior ADI nº 6221, o ministro Edson Fachin: "a própria Constituição da República expressamente estendeu aos Estados a possibilidade de estabelecer o subteto aos municípios do seu território. Essa previsão deriva da utilização no art. 37, §12, da expressão 'no seu âmbito', que, do contrário, seria redundante, e pela expressa exceção aos vereadores, que, do contrário, seria, senão paradoxal, inócua". Para o ministro Edson Fachin, "desvincula-se, assim, também o subsídio dos servidores municipais ao subsídio do prefeito (na forma do art. 37, XI), o qual naturalmente depende de influxos políticos, impondo-se, ainda, certa isonomia regional". O ministro Edson Fachin conclui: "se previu expressamente a exceção é porque a autorização abrange os demais servidores municipais". Logo, "a fixação do teto - e do subteto, portanto - não implica aumento de despesa, uma vez que a lei que fixa a remuneração persiste sendo de iniciativa do chefe do Poder". A exegese adequada reclamaria a desvinculação "do teto remuneratório aos subsídios de agentes políticos - governadores e prefeitos -, mitigando a permissividade advinda dessa vinculação". Todavia, para o ministro Alexandre de Morais, que liderou a maioria formada no caso, "a faculdade conferida aos estados para a regulação do teto aplicável a seus servidores não permite que a regulamentação editada com fundamento nesse permissivo venha a inovar no tratamento do teto dos servidores municipais". Isso porque o art. 37, XI, da Constituição "já estabelece um teto único para os servidores municipais, não havendo motivo para se cogitar da utilização do art. 37, § 12, para fixação de teto único diverso, pois essa previsão é direcionada apenas para servidores estaduais, esfera federativa na qual existem as alternativas de fixação de teto por poder ou de forma única". Logo, "o inciso XI define o teto único dos servidores municipais (subsídio de prefeito); e o § 12 excepciona desse teto os vereadores, sem permitir que os demais servidores municipais sejam submetidos a teto remuneratório diverso". Ficaram vencidos os ministros Edson Fachin, Cármen Lúcia, Luís Roberto Barroso, Luiz Fux e Marco Aurélio. O STF vem construindo, cautelosamente, algumas exceções constitucionalmente aceitáveis. Quando esse STF apreciou o pedido cautelar na ADI nº 3854 (DJe 29/06/2007), o douto relator, ministro Cezar Peluso, anotou: "seria distinção arbitrária, portanto em descompasso com o princípio da igualdade, estabelecer limites remuneratórios diferenciados para os membros das carreiras da magistratura federal e estadual, ante o caráter nacional do Poder Judiciário". (DJe 29/06/2007), Na oportunidade, o ministro Ricardo Lewandowski enfatizou o "caráter unitário e nacional da magistratura, o qual se mostra com muita clareza na medida em que ela está submetida a um regime único, definido nos arts. 93 a 96 da Constituição e, mais ainda, por ter ela uma lei orgânica nacional única". O STF deu intepretação conforme ao inciso XI e ao §12 do art. 37 da CF, no sentido de desconsiderar, para fins de fixação de teto da magistratura, a parte final desses dispositivos, que vinculavam o teto do Desembargador do TJ a 90,25% do subsídio do Ministro do STF.3 Posteriormente, no Tema nº 510, no RE nº 663.696 (Rel. Min. Luiz Fux, DJe 22/08/2019), constou: "2. O teto de remuneração fixado no texto constitucional teve como escopo, no que se refere ao thema decidendum, preservar as funções essenciais à Justiça de qualquer contingência política a que o Chefe do Poder Executivo está sujeito, razão que orientou a aproximação dessas carreiras do teto de remuneração previsto para o Judiciário". Para o STF, os Procuradores do Município "devem se submeter, no que concerne ao teto remuneratório, ao subsídio dos desembargadores dos Tribunais de Justiça estaduais, como impõe a parte final do art. 37, XI, da Constituição da República". A Suprema Corte anotou que "o texto constitucional não compele os Prefeitos a assegurarem aos Procuradores municipais vencimentos que superem o seu subsídio, porquanto a lei de subsídio dos procuradores é de iniciativa privativa do chefe do Poder Executivo municipal, ex vi do art. 61, §1º, II, c, da Carta Magna". Para o ministro Luiz Fux, "atrelar a remuneração dos advogados públicos municipais ao subsídio do Prefeito relega a carreira a um indesejável e iníquo desprestígio quando em cotejo com a advocacia pública dos Estados e da União. E não foi essa a intenção do constituinte ao redigir o art. 37, XI, da CRFB/88". Consta do RE nº 663.696: "o Prefeito é a autoridade com atribuição para avaliar politicamente, diante do cenário orçamentário e da sua gestão de recursos humanos, a conveniência de permitir que um Procurador do Município receba efetivamente mais do que o Chefe do Executivo municipal". E concluiu: "As premissas da presente conclusão não impõem que os procuradores municipais recebam o mesmo que um Desembargador estadual, e, nem mesmo, que tenham, necessariamente, subsídios superiores aos do Prefeito". Isso porque o Chefe do Executivo municipal está, apenas, autorizado a implementar, no seu respectivo âmbito, a mesma política remuneratória já adotada na esfera estadual, em que os vencimentos dos Procuradores dos Estados têm, como regra, superado o subsídio dos governadores".4 Na ADI nº 6257 (DJe 03/02/2020), ajuizada pelo PSD, questionou-se o art. 1º da EC nº 41/2003, a qual conferiu nova redação ao art. 37, XI, da Constituição Federal. O Partido explicou que, no Estado de São Paulo, a nova redação do aludido art. 37, XI, estava contando com interpretação segundo a qual a sua abrangência incluiria, no subteto que ela fixa, as Universidades Estaduais, fazendo com que os professores ativos e inativos das três universidades sofressem profunda redução de seus proventos. Na presidência do STF, o ministro Dias Toffoli, decidindo a cautelar, asseverou haver "risco de diminuição da remuneração de professores e pesquisadores das universidades públicas estaduais com a observância do subteto estabelecido pelo art. 37, XI, da CF/88, com a redação conferida pela EC nº 41/2003". E prosseguiu: "os professores que exercem as atividades de ensino e pesquisa nas universidades estaduais devem ser tratados em direito e obrigações de forma isonômica aos docentes vinculados às universidades federais. Essa é a percepção que me leva a entender que a interpretação constitucionalmente adequada do art. 37, XI, da Constituição Federal de 1988 deve contemplar também os docentes e pesquisadores das universidades estaduais". A conclusão foi a de que é necessário "interpretar o art. 37, XI, da Constituição Federal de 1988 a partir da totalidade dos comandos constitucionais, não sendo possível conferir tratamento discriminatório sem observância do princípio da igualdade".5 Professores, pesquisadores, magistrados estaduais e procuradores municipais são exemplos de servidores públicos ligados a um tipo de atividade que reclama, quanto à valorização, uma leitura nacional, incluindo os parâmetros de teto e subteto remuneratórios, em razão da qualificação que a própria Constituição Federal lhes deu.   Esse também é o caso dos auditores das administrações tributárias. Segundo o inciso XVIII do art. 37 da Constituição Federal: "a administração fazendária e seus servidores fiscais terão, dentro de suas áreas de competência e jurisdição, precedência sobre os demais setores administrativos, na forma da lei". O inciso XXII do mesmo art. 37 diz: "as administrações tributárias da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, atividades essenciais ao funcionamento do Estado, exercidas por servidores de carreiras específicas, terão recursos prioritários para a realização de suas atividades e atuarão de forma integrada, inclusive com o compartilhamento de cadastros e de informações fiscais, na forma da lei ou convênio". Tanto as da União, como as dos Estados, como a do Distrito Federal, como as administrações tributárias dos Municípios são igualmente reputadas, pela Constituição Federal, "atividades essenciais ao funcionamento do Estado". Ao dispor sobre os servidores, a Constituição afirma que se trata de carreiras específicas, que terão "recursos prioritários para a realização de suas atividades e atuarão de forma integrada". Esse prestígio constitucional conferido às administrações tributárias de todos os entes da federação se deve ao fato de que apenas por meio delas se realiza o tão fundamental "dever de pagar tributos", qualificado, pelo STF, quando do julgamento do RE nº 601.314 (DJe 16/09/2016, Tema nº 225), no qual o relator, ministro Edson Fachin, anotou haver um "dever de pagar tributos, constituinte no que se refere à comunidade política, à luz da finalidade precípua da tributação de realizar a igualdade em seu duplo compromisso, a autonomia individual e o autogoverno coletivo". Ou seja, os fundamentos os quais, no STF, resultaram na compreensão das carreiras dos professores, pesquisadores, magistrados e procuradores municipais, como demandantes de uma leitura exegética própria quanto à parte final do inciso XI do art. 37, está presente na leitura dogmática e teórica feita das administrações tributárias da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, é dizer, a ratio decidendi da ADI nº 3854 (magistrados), do RE nº 663.696 (Tema nº 510 - procuradores municipais), da ADI nº 6257 (professores e pesquisadores das universidades) é extensível às carreiras constantes do inciso XXII do art. 37 da Constituição Federal. É de fundamental importância que a Suprema Corte reconheça a distinção da ADI nº 6811 das razões de decidir da cautelar concedida na ADI nº 6221, vislumbrando, no cargo de auditor fiscal municipal, a natureza de carreira de Estado a contar com maior nível de independência vencimental quanto ao teto remuneratório do chefe do Poder Executivo, sob pena de sofrer graves prejuízos institucionais. Daí a necessidade de interpretação conforme à Constituição para excluí-los da declaração de inconstitucionalidade pleiteada pelo Procurador-Geral da República na ADI nº 6811. __________ 1 Comando impugnado: "Art. 97. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes do Estado e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência, além dos relacionados nos arts. 37 e 38 da Constituição da República Federativa do Brasil e dos seguintes: (Redação alterada pelo art. 1º da EC n° 16/99.) (.) § 6º Para efeito do disposto no inciso XI e no § 12 do art. 37 da Constituição da República, fica fixado como limite da remuneração, subsídio, proventos, pensões ou outra espécie remuneratória, no Estado de Pernambuco e municípios, abrangendo os Poderes Judiciário, Legislativo e Executivo, Ministério Público e Tribunal de Contas do Estado, o subsídio mensal dos desembargadores do Tribunal de Justiça do Estado de Pernambuco, limitado a noventa inteiros e vinte e cinco centésimos por cento do subsídio mensal dos ministros do Supremo Tribunal Federal, não se aplicando o disposto neste parágrafo aos subsídios dos deputados estaduais e vereadores. (Acrescido pelo art. 1º da EC nº 35/2013)." 2 "Art. 1.º O art. 39, §2.º da Constituição do Estado do Pará, passa a vigorar com a seguinte redação: Art.39. ... §2.º A remuneração e o subsídio dos ocupantes de cargos, funções e empregos públicos da administração direta, autárquica e fundacional, dos membros de qualquer dos Poderes do Estado e dos Municípios, dos agentes políticos e os proventos, pensões ou outra espécie remuneratória, percebidos cumulativamente ou não, incluídas as vantagens pessoais ou de qualquer outra natureza, não poderão exceder o subsídio mensal dos Desembargadores do Tribunal de Justiça, limitado a noventa inteiros e vinte e cinco centésimos por cento do subsídio mensal dos Ministros do Supremo Tribunal Federal, aplicável este limite aos Membros do Ministério Público, aos Procuradores e aos Defensores Públicos, excluindo-se o disposto neste parágrafo aos subsídios dos Deputados Estaduais e Vereadores." 3 Eis a ementa do julgado: "Remuneração. Limite ou teto remuneratório constitucional. Fixação diferenciada para os membros da magistratura federal e estadual. Inadmissibilidade. Caráter nacional do Poder Judiciário. Distinção arbitrária. Ofensa à regra constitucional da igualdade ou isonomia. Interpretação conforme dada ao art. 37, inc. XI, e § 12, da CF. Aparência de inconstitucionalidade do art. 2º da Resolução nº 13/2006 e do art. 1º, § único, da Resolução nº 14/2006, ambas do Conselho Nacional de Justiça. Ação direta de inconstitucionalidade. Liminar deferida. Voto vencido em parte." Vale dividir também a ementa do acórdão da ADI nº 4900, cuja redação do acórdão coube ao ministro Luís Roberto Barroso (DJe 20/04/2015): "(...) 1. No que respeita ao subteto dos servidores estaduais, a Constituição estabeleceu a possibilidade de o Estado optar entre: (i) a definição de um subteto por poder, hipótese em que o teto dos servidores da Justiça corresponderá ao subsídio dos Desembargadores do Tribunal de Justiça (art. 37, XI, CF, na redação da Emenda Constitucional 41/2003); e (ii) a definição de um subteto único, correspondente ao subsídio mensal dos Desembargadores do Tribunal de Justiça, para todo e qualquer servidor de qualquer poder, ficando de fora desse subteto apenas o subsídio dos Deputados (art. 37, § 12, CF, conforme redação da Emenda Constitucional 47/2005). 2. Inconstitucionalidade da desvinculação entre o subteto dos servidores da Justiça e o subsídio mensal dos Desembargadores do Tribunal de Justiça. Violação ao art. 37, XI e § 12, CF. 3. Incompatibilidade entre a opção pela definição de um subteto único, nos termos do art. Art. 37, § 12, CF, e definição de "subteto do subteto", em valor diferenciado e menor, para os servidores do Judiciário. Tratamento injustificadamente mais gravoso para esses servidores. Violação à isonomia. Ação direta a que se julga procedente." 4 A tese do Tema nº 510 ficou assim fixada: "A expressão 'Procuradores', contida na parte final do inciso XI do art. 37 da Constituição da República, compreende os Procuradores Municipais, uma vez que estes se inserem nas funções essenciais à Justiça, estando, portanto, submetidos ao teto de noventa inteiros e vinte e cinco centésimos por cento do subsídio mensal, em espécie, dos Ministros do Supremo Tribunal Federal". 5 O ministro Dias Toffoli deferiu a cautelar para dar interpretação conforme ao inciso XI do art. 37, da Constituição Federal, no tópico em que a norma estabelece subteto, para suspender qualquer interpretação e aplicação do subteto aos professores e pesquisadores das universidades estaduais, prevalecendo, assim, como teto único das universidades no país, os subsídios dos ministros do Supremo Tribunal Federal.
segunda-feira, 31 de maio de 2021

A jurisprudência da crise na educação

Na formação de precedentes pela Suprema Corte, a História tem papel relevante. Assim o diz Thomas Vesting, que a associa à "estabilidade decisória", capaz de fornecer "reflexão sobre a produção do direito, no sentido de uma análise da estrutura da normatividade jurídica".1 Daí o seu arremate: "não há interpretação fora da história".2 A exegese quanto ao texto, reclama atenção ao contexto. Já a História, essa é feita de muitas histórias. Na década de 1940, Gustavo Capanema, o ministro que mais tempo ficou naquele cargo (1934 a 1945), tinha a porta da sua sala aberta pelas mãos do poeta Carlos Drummond de Andrade, chefe de gabinete. Como membros da equipe estavam nomes como Mário de Andrade, Cândido Portinari, Manuel Bandeira, Heitor Vila-Lobos, Cecília Meireles, Lúcio Costa, Vinicius de Morais, Afonso Arinos de Melo Franco e Rodrigo Melo Franco de Andrade. Era esse o Ministério da Educação. Na Ditadura Militar, a pasta contou com figuras públicas como Pedro Aleixo. Após a Constituição de 1988, recebeu Marco Maciel, Paulo Renato Souza e Cristovam Buarque, dentre outras personalidades que legaram contribuições valiosas ao país. Buarque, a propósito, foi escolhido, em 1984, para a reitoria da UnB pela comunidade universitária, mas teve seu nome vetado pelo presidente João Figueiredo, que optou por outro. O escolhido enfrentou tamanha resistência que terminou renunciando dias depois. Ano seguinte, eleito uma vez mais, Buarque foi designado reitor pelo presidente José Sarney.3 Depois, elegeu-se governador do Distrito Federal e senador da República, tendo sido ministro da Educação, chegando a se candidatar a Presidente da República, não tendo sido eleito, mas realizando uma campanha cuja bandeira era a educação.      O ato de o presidente da República nomear o mais votado pela comunidade acadêmica passou a ser uma convenção constitucional, na dicção de Lucas Melo4, para quem "as convenções constitucionais se originam dos entes que participam do exercício do poder político; são soluções dadas a situações fáticas, de forma reiterada, com pressupostos idênticos ou de grandes similitudes. São, na verdade, regras de conduta criadas sem a respectiva previsão formal para a sua criação, logo são fontes-fatos do direito, da mesma forma que os costumes encontram respaldo no princípio da eficiência".5 Mas o tempo passou e tudo mudou. Uma crise permanente passou a ser a história. Como diz Konrad Hesse, "a Constituição jurídica está condicionada pela realidade histórica. Ela não pode ser separada da realidade concreta de seu tempo".6 Nada mais real.   Em 26/05/2020, o ministro Alexandre de Moraes, do STF, teve de determinar que a Polícia Federal tomasse o depoimento do então ministro da Educação, Abraham Weintraub, para que explicasse as declarações feitas numa reunião ministerial.7 O Ministro, no Palácio do Planalto, numa reunião liderada pelo Presidente, teria ameaçado os ministros do STF, com declarações consideradas gravíssimas, não atingindo apenas a honorabilidade dos integrantes da Corte, mas sendo uma ameaça ilegal à segurança dos ministros e ministras. Mês seguinte, a Suprema Corte, pelo seu Pleno, rejeitou o Habeas Corpus nº 186.296, em que o ministro da Justiça e Segurança Pública pedia a suspensão da oitiva ou a retirada do referido ex-ministro da Educação da relação de depoentes do Inquérito nº 4781, que apura a divulgação de notícias falsas, ofensas e ameaças a ministros do STF.8 Em julho, foi a vez de o ministro Celso de Mello remeter à Justiça Federal do Distrito Federal o INQ nº 4827, instaurado contra o mesmo ex-ministro da Educação, dessa vez para apurar a suposta prática do crime de racismo contra o povo chinês em publicação no Twitter.9 O inquérito foi instaurado a pedido da Procuradoria-Geral da República (PGR). Mesmo com a mudança na liderança da pasta, a judicialização da crise na educação persistiu. Em outubro, passou a tramitar no STF, sob a relatoria do ministro Dias Toffoli, a Petição nº 9209 (apensada à PET nº 9186), por meio da qual a Polícia Federal ficou encarregada de colher o depoimento do novo ministro, Milton Ribeiro, a respeito da entrevista em que teria proferido manifestações depreciativas à comunidade LGBTQ+. A diligência foi requerida pela Procuradoria-Geral da República, que vislumbrou, nas afirmações feitas em entrevista publicada no jornal O Estado de S. Paulo, em 24/09, infração penal prevista no art. 20 da Lei do Racismo (lei 7.716/89). "O adolescente que muitas vezes opta por andar no caminho do homossexualismo vêm, algumas vezes, de famílias desajustadas", afirmou o ministro da Educação. Em 12/07/2019, o Conselho Federal da OAB ajuizou a ADI nº 6186, questionando dispositivos do decreto 9.725/2019, da Presidência da República, que extinguem cargos em comissão e funções de confiança nas instituições federais de educação, em violação dos princípios da autonomia universitária e da reserva legal. Essas instituições foram as mais prejudicadas, com a extinção de 119 cargos de direção e 1.870 funções comissionadas de coordenação de cursos e, em 31/7, de mais 11.261 funções gratificadas. Em junho de 2020, foram ajuizadas as ADPFs nº 698, 699 e 700, de relatoria do ministro Gilmar Mendes10, nas quais partidos políticos questionaram a revogação, pelo ex-ministro da Educação, da Portaria Normativa nº 13/2016, que previa a adoção de políticas de inclusão de negros, pardos, indígenas e pessoas com deficiência nos programas de pós-graduação em universidades e institutos federais. A Portaria foi revogada.   No mesmo mês, o ministro Gilmar Mendes já havia tido de solicitar informações ao comandante do Colégio Militar de Brasília e ao advogado-geral da União em relação a notícias sobre o afastamento e à abertura de processo administrativo disciplinar contra um professor em razão de opiniões emitidas em sala de aula. A medida se deu na ADPF nº 689, em que o partido Rede Sustentabilidade apontou violações à liberdade de expressão e de cátedra.11 Em agosto, o STF, por maioria, declarou a inconstitucionalidade de leis sobre a Escola Livre e proibição de ensino de sexualidade, por entender ter havido violação à liberdade de ensinar e ao pluralismo de ideias. O precedente foi firmado nas ADIs nº 5537, 5580 e 6038 e nas ADPFs nº 461, 465 e 600, de relatoria do ministro Luís Roberto Barroso.12 No mesmo mês, o STF referendou a cautelar concedida pela ministra Cármen Lúcia na ADPF nº 722, para suspender qualquer ato do Ministério da Justiça e Segurança Pública que tivesse por objetivo produzir ou compartilhar informações sobre a vida pessoal, as escolhas pessoais e políticas e as práticas cívicas de cidadãos. As ações alcançavam, dentre outras pessoas, professores universitários.13 Em dezembro, o STF referendou a liminar deferida pelo ministro Dias Toffoli na ADI nº 6590, suspendendo o Decreto nº 10.502/2020, do Presidente, que instituiu a Política Nacional de Educação Especial Equitativa, Inclusiva e com Aprendizado ao Longo da Vida. A norma estabelecia políticas fragilizadoras da inclusão de alunos com deficiência, transtornos globais do desenvolvimento e altas habilidades ou superdotação na rede regular de ensino.14 O ano de 2020 acabou, 2021 chegou, mas a primavera não veio. O quadro de desinstitucionalização passou a se agravar, reclamando, no Supremo Tribunal Federal, intervenções cada vez mais constantes na área. A judicialização da crise na educação se intensificou. Em março desse ano, partidos políticos questionaram o fato de a Controladoria-Geral da União (CGU) ter imposto a dois professores da Universidade Federal de Pelotas o compromisso de não proferir "manifestações de desapreço" ao Presidente da República, no local de trabalho, pelo período mínimo de dois anos. A ADPF nº 800 foi distribuída ao ministro Ricardo Lewandowski, assim como a ADI nº 674415, com objeto semelhante.   Ainda em março, o STF encerrou o julgamento da ADI nº 6543 e impediu que o Ministério da Educação nomeie diretor interino de centros técnicos federais. A Suprema Corte enxergou, na iniciativa, afronta à autonomia das entidades de ensino, da gestão democrática do ensino público, da isonomia, da impessoalidade e da proporcionalidade.16 A relatora, ministra Cármen Lúcia, registrou: "Supervisão ministerial não se confunde com subordinação, menos ainda tem esvaziada a estrutura constitucional desenhada no sistema vigente garantidor da democracia nestes espaços de ensino". Em seguida, arrematou: "retirar delas a autonomia que atende os preceitos constitucionais por ato unilateral, pessoal e voluntarioso de um Ministro de Estado e esvaziar o direito da comunidade acadêmica de participar da gestão democrática da entidade contraria o princípio da autonomia previsto legalmente e que se fundamenta no princípio do pluralismo e da participação da comunidade na busca de realização dos fins a que ela se destina" (p. 12/13). O caso acima prova a reiteração do Poder Executivo nesse particular. O decreto 9.908/2019 permitiu "a designação de Diretor-Geral pro tempore de Centro Federal de Educação Tecnológica, de Escola Técnica Federal e de Escola Agrotécnica Federal, na hipótese de vacância do cargo". O STF o declarou inconstitucional, à luz da autonomia universitária e da gestão democrática. Depois, a Medida Provisória nº 979/2020 estabeleceu uma nova forma de designação de dirigentes pro tempore para as instituições federais de ensino durante a pandemia (Covid-19). O Congresso reputou a iniciativa inconstitucional, "devolvendo" a medida provisória, em nome da autonomia universitária (art. 207) e da gestão democrática (art. 206, VI). Quanto às consequências das ações insistentes do Executivo, a poeira já se deixa ver. A BBC chama de "Fuga de cérebros"17, a diáspora de cientistas, intelectuais e acadêmicos que deixam o país em busca de melhores condições de trabalho, rejuvenescendo a máxima: "Brasil, ame-o ou deixe-o!". O país perde seus cérebros e, a nação, os seus maiores talentos.   O quadro revela intensa judicialização de uma crise que se abateu na educação superior no país, a partir do Ministério da Educação, alcançando as universidades. A solução não pode ser outra que não seja ela, a Constituição. A esse respeito, inclusive, Konrad Hesse que desde há muito já alertava: "se também em tempos difíceis a Constituição lograr preservar a sua força normativa, então ela configura verdadeira força viva capaz de proteger a vida do Estado contra as desmedidas investidas do arbítrio. Não é, portanto, em tempos tranquilos e felizes que a Constituição normativa vê-se submetida à sua prova de força. Em verdade, esta prova dá-se nas situações de emergência, nos tempos de necessidade".18 O Supremo Tribunal Federal, guardião que é da Constituição, há de seguir zelando pelas garantias institucionais voltadas para a educação, notadamente a superior. Isso porque, a vida cívica, a formação política, a elevação intelectual e a consolidação científica de uma nação começam nas universidades. Nos Estados Unidos, o desmantelamento da segregação racial imposta pelas leis Jim Crow19 teve as universidades como um dos seus celeiros. Na África do Sul, a retirada da estátua que cultuava um supremacista branco no campus da Universidade da Cidade do Cabo acendeu a fagulha que se espalhou levantando uma pergunta fundamental: para quem uma nação democrática, diversa e inclusiva deve render homenagens?20 Uma greve dos estudantes nas universidades de Pequim resultou na reação autoritária do governo que culminou com o Massacre da Praça da Paz Celestial, em 1989. No Brasil, a política de cotas foi reputada constitucional pelo STF, por unanimidade, a partir de uma experiência da UnB.21 Em Israel, Albert Einstein e Sigmund Freud se deram as mãos para, depois do Holocausto (Shoah), ajudarem a construir, para todos, um novo amanhã. O primeiro passo foi a fundação, por eles, da Universidade Hebraica de Jerusalém.22 O Universo está nas universidades e o STF há de assegurar as bases constitucionais que conferem a essa essencial instituição todas as condições para cumprir os seus propósitos. Propósitos esses que, como demonstrado, não podem ser engolidos por essa profunda crise na educação que tem resultado na judicialização aqui explicitada. __________ 1 Apud, Abboud, Georges. Processo constitucional brasileiro. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2019, p. 274. 2 Apud, Abboud, Georges. Processo constitucional brasilei... São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2019, p. 278. 3 Ribeiro, Darcy (Abril de 1995). "1961 - 1995: a invenção da Universidade de Brasília" (PDF). Senado Federal. Márcia Quarti, Maria Letícia Correia e Elizabeth Dezouzart (2018). "BUARQUE, Cristovam". Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil. Fundação Getúlio Vargas. 4 Melo, Lucas Fonseca e. Normas constitucionais não escritas. A&C - Revista de Direito Administrativo & Constitucional, Belo Horizonte, ano 20, n. 80, p. 211-239, abr./jun. 2020. DOI: 10.21056/aec.v20i80.1263. 5 Melo, Lucas Fonseca e. Normas constitucionais não escritas. A&C - Revista de Direito Administrativo & Constitucional, Belo Horizonte, ano 20, n. 80, p. 211-239, abr./jun. 2020. DOI: 10.21056/aec.v20i80.1263. 6 Hesse, Konrad.  Força Normativa da Constituição. Tradução: Gilmar Mendes. Sergio Antonio Fabris Editor. Porto Alegre: 1991, p. 24. 7 A decisão no INQ nº 4781 se baseou no laudo da Polícia Federal produzido no âmbito do INQ nº 4831, de relatoria do ministro Celso de Mello. 8 HC nº 186.296, Rel. Min. Edson Fachin (DJe 08/07/2020): "(...) Não cabe pedido de habeas corpus originário para o Tribunal Pleno contra ato de Ministro ou outro órgão fracionário da Corte. 2. Não conhecimento do habeas corpus. Decisão O Tribunal, por maioria, não conheceu do habeas corpus, nos termos do voto do Relator, vencido o Ministro Marco Aurélio. Impedido o Ministro Alexandre de Moraes". 9 Em sua decisão, o ministro Celso de Mello reconheceu a cessação da competência do STF para processar e julgar o caso, pois, com a exoneração do cargo, o ex-ministro perdeu o foro por prorrogativa de função. 10 A Portaria Normativa nº 13/2016 foi revogada pela Portaria Normativa nº 545/2020, do MEC. 11 Na ADPF, a Rede sustenta que, segundo noticiado pela imprensa, o comandante do Colégio Militar de Brasília determinou o afastamento de um professor de Geografia e a instauração de um PAD para apurar suas manifestações durante uma aula para o nono ano do ensino fundamental. O professor, que é major da Polícia Militar (PM), teria dito aos alunos que a PM agiu com "dois pesos e duas medidas" na manifestação ocorrida em São Paulo no dia 31/05 que a situação "remete a um fascismo, que a gente não quer mais isso no mundo". 12 O STF, por maioria, julgou procedente o pedido para declarar inconstitucional a integralidade da Lei nº 7.800/2016 do Estado de Alagoas, nos termos do voto do Relator, vencido o ministro Marco Aurélio. 13 A ADPF nº 722, ajuizada pela Rede, questionou investigação sigilosa aberta pelo Ministério da Justiça e Segurança Pública contra quem era identificado, pelo Estado, como integrantes do "movimento antifascismo". 14 O STF, por maioria, referendou a liminar para suspender a eficácia do Decreto nº 10.502/2020, nos termos do voto do relator, vencidos os ministros Marco Aurélio e Nunes Marques. O ministro Roberto Barroso acompanhou o Relator com ressalvas. 15 Ajuizada pelo partido Cidadania. 16 O STF, por maioria, julgou procedente o pedido para declarar a inconstitucionalidade do parágrafo único e do caput do art. 7º-A do decreto 4.877/2003, acrescentado pelo Decreto nº 9.908/2019, nos termos do voto da Ministra Relatora, vencido o ministro Nunes Marques, que julgava parcialmente procedente o pedido. Eis os comandos centrais do decreto 9.908/2019: "Art. 1º O Decreto nº 4.877, de 13 de novembro de 2003, passa a vigorar com as seguintes alterações: 'Art. 7º-A O Ministro de Estado da Educação poderá nomear Diretor-Geral pro tempore de Centro Federal de Educação Tecnológica, de Escola Técnica Federal e de Escola Agrotécnica Federal quando, por qualquer motivo, o cargo de Diretor-Geral estiver vago e não houver condições de provimento regular imediato. Parágrafo único.  O Diretor-Geral pro tempore será escolhido dentre os docentes que integram o Plano de Carreiras e Cargos de Magistério Federal com, no mínimo, cinco anos de exercício em instituição federal de ensino.'" 17 Disponível aqui. 18 Hesse, Konrad.  Força Normativa da Constituição. Tradução: Gilmar Mendes. Sergio Antonio Fabris Editor. Porto Alegre: 1991, p. 24. 19 As leis Jim Crow foram leis locais que impunham a segregação racial no sul dos Estados Unidos. Há exemplos. Em 1963, o Alabama era o único estado cuja segregação racial, a despeito da decisão da Suprema Corte, era mantida. O governador George C. Wallace Jr proclamara que ficaria em frente da porta de qualquer escola do Alabama que tivesse de acabar com a segregação. "Eu digo: segregação agora, segregação amanhã, segregação para sempre", afirmava em seus discursos. Depois de resistir diante da Universidade, o Governador viu o General Henry Graham se aproximar e afirmar, sem alterar o tom de voz: "É meu grave dever pedir-lhe que se afaste do caminho para que sejam cumpridas as ordens do presidente dos Estados Unidos". O país era comandado por John Kennedy. O governador Wallace saiu da frente e os corajosos jovens James Hood e Vivian Malone se tornaram os dois primeiros negros a se matricularem na universidade do estado. Cf.: C. Vann Woodward. The Strange Career of Jim Crow: A Commemorative Edition. Oxford, 2001. 20 Disponível aqui. 21 ADPF nº 186, de relatoria do ministro Ricardo Lewandowski. 22 45 Disponível aqui.
segunda-feira, 5 de abril de 2021

É por ela que ainda estamos aqui

Que tão sedutora palavra é essa, cuja ausência na Constituição Federal de 1988 parece não ter sido notada e, ainda assim, os feiticeiros da política não deixam de invocá-la sempre que precisam encantar o eleitorado? A miúda palavrinha lustra discursos, entusiasma gabinetes e anima o grande auditório nacional. Ela habitou todas as Constituições que tivemos, até que, a de 1967, entregue por um Congresso sem opositores a mando de um presidente sem voto popular - o marechal Castello Branco -, atreveu-se a rifá-la do nosso duradouro convívio. Nação. Duas sílabas apenas. Pelo prazer de jurá-la a torto e a direito, presidentes se disfarçam de camponeses, se preciso for. Todos os que querem nos tornar súditos dos palácios e do poder justificam-se à exaustão: "Pela Nação! Pela Nação!". Mas onde está essa palavra na Constituição de 1988? Não está. Apenas o seu plural, nações, aparece, e num contexto outro, voltado à aspiração de estabelecer uma "comunidade latino-americana de nações". Nada mais. Não há "Nação brasileira". A Constituição Imperial de 1824 assim se anunciava: "O Imperio do Brazil é a associação Politica de todos os Cidadãos Brazileiros. Elles formam uma Nação livre (...)". Eis trecho do juramento do Imperador: "Juro observar, e fazer observar a Constituição Politica da Nação Brazileira (...)". "Nação" se repete dezessete vezes.   Em 1891, trocamos o Império pela República. A Constituição mudou, mas manteve a tradição: "A Nação brasileira adota como forma de Governo, sob o regime representativo, a República Federativa, proclamada a 15 de novembro de 1889 (...)". Passo seguinte, a Constituição de 1934 fundou "um regime democrático, que assegure à Nação a unidade, a liberdade, a justiça e o bem-estar social e econômico (...)", e repetiu o comando do art. 1º da Constituição anterior. Nem a "Polaca" ousou fazer de conta que a Nação não existe. Usou-a várias vezes, boa parte delas para o que o presidente Getúlio Vargas queria, é verdade. A Constituição de 1937 - a Polaca - alertava que a situação ideológica do Brasil naquele momento terminaria "colocando a Nação sob a funesta iminência da guerra civil". E concluiu: "Resolve assegurar à Nação a sua unidade, o respeito à sua honra e à sua independência, e ao povo brasileiro, sob um regime de paz política e social, as condições necessárias à sua segurança, ao seu bem-estar e à sua prosperidade, decretando a seguinte Constituição, que se cumprirá desde hoje em todo o País". Já a Constituição de 1946, cuidando da "lei que decretar o estado de sítio", se valeu da expressão "crimes contra a segurança da Nação ou das suas instituições políticas e sociais". Foi a única menção que fez.    Da Constituição do Império até a de 1967 são quase 150 anos. A Nação abria boa parte dessas Constituições. Jamais ficou de fora. Até que desapareceu. Removeram a palavra da nossa história constitucional. Como puderam? Ela já não constava do anteprojeto elaborado pela Comissão Especial de Juristas formada por Levi Carneiro, Orozimbo Nonato, Miguel Seabra Fagundes e Themístocles Brandão Cavalcanti. Seguiu de fora com a promulgação da Constituição de 1967 e permaneceu apagada na Emenda de 1969. O que temiam? A palavra ou o sentimento? Na Constituição de 1988, a Pátria está presente: as Forças Armadas destinam-se à "defesa da Pátria". República também: "são símbolos da República Federativa do Brasil a bandeira, o hino, as armas e o selo nacionais". No preâmbulo, estão os "representantes do povo brasileiro". "Território nacional" aparece dezenove vezes. A cabeça do art. 5º, por exemplo, traz "País". Mais à frente, diz que o "Estado promoverá, na forma da lei, a defesa do consumidor". Ou seja, tem Pátria, tem República, tem povo, tem Território nacional, tem País, tem Estado..., há de tudo, menos Nação. A Constituição manteve a palavra de fora, mas reconstituiu o seu significado. Como há formas institucionalizadas de cumprimento dos comandos constitucionais, esse conteúdo está vivo e livre, expressado em outras construções semânticas. Diz: "constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira". Nação é patrimônio cultural, mas é mais do que isso. São aqueles bens sentidos, mas difíceis de serem vistos ou tocados. São conhecidos e percebidos. Ainda assim, não é fácil explicá-los. De tão diversos e intangíveis que são, não cabem num rol. Por isso, são "imateriais, tomados individualmente ou em conjunto". O conceito é fluido, mas a fluidez de um conceito não prova que o fenômeno a ser conceituado não existe. Ele existe e é definitivo na conformação da nossa comunidade.    Há muito da Nação numa Festa Junina, na feijoada temperada pelo samba no sábado ou no churrasco em casa no domingo. Há farta Nação numa apresentação da Esquadrilha da Fumaça, no Desfile de 7 de setembro, num atendimento num posto médico do Sistema Único de Saúde ou no anúncio do resultado das eleições pelo Tribunal Superior Eleitoral. Há espetáculos desportivos agregadores, há festivais musicais que ilustram, com a arte, nossas dores, há livros mostrando o Brasil pelos nossos escritores e há filmes e novelas falando dos nossos amores. Há um país repleto de arte à disposição do mundo. Há a geografia, a língua, as referências nacionais e as datas oficiais. Há folclore, há nomes de pessoas, há festas populares, há histórias, há registros e memórias. São elementos formadores da Nação. Símbolos estatais que combinam heroísmo e graça também adornam essa ideia. Quando as Forças Aéreas transformam o céu num arco-íris repleto de cores, com as cambalhotas mágica da Esquadrilha da Fumaça, colocamos as crianças nos ombros, dançamos e aplaudimos. As Forças Armadas batem à porta dos nossos lares não para levar nossos meninos para guerras onde a única vencedora é a morte. Batem nos convidando a conhecer os fardados artistas de um céu azul infinito que, manobrando com perícia, imitam a Mãe Natureza pintando riscos coloridos no ar que pertence a todos nós. A fumaça deles não é ruína, não é destruição, não é morte. É arte e arte feita por pilotos e mecânicos. É claro que esses símbolos ornamentam a Nação. E não precisa ser estatal. Pelo contrário. Devem ser populares também. Quando um nordestino deixa para trás a vida conhecida que vivia para abraçar, num ambiente hostil, uma outra por ele desconhecida e, na partida, leva consigo um isopor com a última refeição preparada pelos seus, o que ele carrega, na verdade, é a liga invisível constitutiva da Nação, a base afetiva e identitária que o alimentará na solidão. Essas são "brasilidades". Por que os brasileiros, morando no exterior, tendo deixado voluntariamente o país, se entregam ao encanto dos nossos artistas que desfilam de live em live legando ao mundo nossas raízes? Por que procuram a comida brasileira em lugares onde reina a abundância gastronômica? Será que ali comem comida ou comem suas saudades? Por que se reúnem no domingo para exercitar a lembrança, fazer churrasco e beber cerveja? Por que, em sua intimidade, oram em língua portuguesa e dizem para seus companheiros e companheiras "eu te amo!", mantendo o pertencimento à língua oficial? Essas práticas mostram que o país pode ter ficado para trás, mas a Nação, não. Ela permanece viva neles. Nação não é apenas um bem, ainda que imaterial. É um valor. Valores existem e a Constituição não é indiferente a eles. Tanto que, no preâmbulo, chama de "valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos" os "direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça". Diz mais: "Serão fixados conteúdos mínimos para o ensino fundamental, de maneira a assegurar formação básica comum e respeito aos valores culturais e artísticos, nacionais e regionais". Indo adiante, "a lei estabelecerá incentivos para a produção e o conhecimento de bens e valores culturais". Por fim, compete à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios "proteger os documentos, as obras e outros bens de valor histórico, artístico e cultural". Em resumo: formação, incentivo e proteção dos nossos "valores culturais".   Como se vê, a Constituição de 1988 foi espalhando a Nação em seu texto. Torna inviolável "a liberdade de consciência e de crença", assegurando "o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias". Torna "livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença". Veda "toda e qualquer censura de natureza política, ideológica e artística". Não há a palavra, mas há a essência. Trata-se de algo que integra todas as memórias construídas no feliz lazer ao redor dos nossos. Lazer tanto é um direito social como uma "necessidade vital básica". Nele nasce boa parte das nossas histórias. Somos feitos delas. Ao assegurar um lugar de destaque para algo que parece banal, a Constituição de 1988 realçou mais um dos elementos do espírito da Nação.    E quanto ao Brasil, que país somos? Beligerante ou pacífico? Da pólvora ou da diplomacia? Da bomba ou do diálogo? Da invasão ou da negociação? Da arma em punho ou da mão estendida? Da cura ou da ferida? Da morte ou da vida? Somos uma República de paz, que se vale, interna e externamente, da "solução pacífica dos conflitos" e "controvérsias"; que assegura o direito de todos reunirem-se, em locais abertos ao público, independentemente de autorização, desde que "pacificamente e sem armas"; que diz ser plena a liberdade de associação para fins lícitos, "vedada a de caráter paramilitar"; que qualifica como crime inafiançável e imprescritível "a ação de grupos armados, civis ou militares, contra a ordem constitucional e o Estado Democrático"; que veda "a utilização pelos partidos políticos de organização paramilitar"; e que condiciona a admissão de atividade nuclear em território nacional a "fins pacíficos e mediante aprovação do Congresso Nacional". Por isso, mais do que um país, somos uma Nação da paz.   E não se esqueçam: no Brasil, Nação é respeito à diferença. Segundo a Constituição de 1988, "o ensino da História do Brasil levará em conta as contribuições das diferentes culturas e etnias para a formação do povo brasileiro". Em nossa penosa caminhada, muitas culturas e etnias deram às mãos em prol de um ideal comum, fazendo isso, a propósito, com indescritíveis sacrifícios. Ao estudarmos História, valorizaremos esse esforço resiliente, digno, corajoso e plural. Não bastasse, "a lei disporá sobre a fixação de datas comemorativas de alta significação para os diferentes segmentos étnicos nacionais". Diferença novamente. "O Estado protegerá as manifestações das culturas populares, indígenas e afro-brasileiras, e das de outros grupos participantes do processo civilizatório nacional". Não há estranhos entre nós. Para cada "outro", deve haver uma casa, em nossa individualidade, para abrigá-lo em nossas relações humanas, porque o manancial infinito de possibilidades individuais é elevado quando reverbera coletivamente.  Há mais demonstrações de pertencimento como diferença. Apesar de o idioma oficial ser a língua portuguesa, e do ensino fundamental regular ser nela ministrado, é "assegurada às comunidades indígenas a utilização de suas línguas maternas". Ou seja, sequer a língua é um tabu. Abrimos espaço para outras possibilidades. É reconhecido "aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens". Os índios não são hóspedes incômodos ou estranhos exóticos numa terra "colonizada" ou "descoberta". Não sejamos cínicos. Não houve descoberta, houve pilhagem. Eles são, historicamente, os donos da terra e a Constituição assim os reconhecem no espaço que tradicionalmente ocupam. Respeito à diferença uma vez mais. O outro sou eu.     Somos uma Nação cujo país qualifica como brasileiros natos os nascidos aqui, ainda que de pais estrangeiros, desde que estes não estejam a serviço de seu país; e os nascidos no estrangeiro, de pai brasileiro ou mãe brasileira, desde que qualquer deles esteja a serviço do Brasil. Sensível ao fato de que o rigor do Direito não pode intensificar a crueza da vida, tratamos de aprovar a Emenda Constitucional nº 54, de 2007, abraçando como nossos os nascidos no estrangeiro de pai brasileiro ou de mãe brasileira, "desde que sejam registrados em repartição brasileira competente" - uma grande inovação - ou venham a residir no Brasil e optem, em qualquer tempo, depois de atingida a maioridade, pela nacionalidade brasileira. Foi a forma de dizer que, em nossa Nação, nenhum brasileiro ou brasileira será deixado para trás.   Em 2020, quando muitos radicais em todo o mundo adoravam os demônios da xenofobia, nós, no Brasil, por meio de um julgamento unânime do Supremo Tribunal Federal, derrubamos o pedaço de uma lei excludente e reafirmarmos a crença includente que nos forma, ao fixarmos a tese nº 373, cujo trecho essencial diz: "vedada a expulsão de estrangeiros cujo filho brasileiro foi reconhecido ou adotado posteriormente ao fato ensejador do ato expulsório, uma vez comprovado estar a criança sob a guarda do estrangeiro e desde depender economicamente". Como poderíamos, sentindo o que sentimos pelos nossos filhos, não conferir dignidade e proteção aos filhos do outro, ainda que, esse outro, não seja um nacional?    Mas na Nação também é há tristezas. O que diz a Constituição sobre a possibilidade de haver algo de profundamente doloroso apto a gerar trauma e rejeição à própria ideia de Nação? Falo do tipo de experiência que enseja ojeriza a tudo o que lembre o país de origem, sua gente e costumes, por mais que esse país seja o seu.   A Constituição de 1988 trouxe algumas armaduras. Ela diz ser dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, "o direito à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão". Anteviu que, para aqueles que iniciam a caminhada, há muita sabotagem na trilha. Negligência. Discriminação. Exploração. Violência. Crueldade. Opressão. A proteção se inicia quando criança, mas não cessa quando adulto. Há a determinação geral de que "ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante". São blindagens contra horrores que podem se impor sobre nós. É opressor erguer um país que se comporte com os seus como uma espécie de festa esnobe, na qual aos ricos tudo é dado e aos pobres é servido apenas sofrimento. Isso corrompe o sentimento de Nação. A desigualdade persistente é uma predadora inveterada. Por isso, a Nação não pode reduzir o potencial de contribuição dos seus ao tamanho dos bolsos. Quem faz isso é o dinheiro. O dever dela é o de reconhecer, em cada um, o mesmo potencial cívico para, preservadas as individualidades, aglutinar a força capaz de criar a obra coletiva comum que será entregue às futuras gerações. "A lei reprimirá o abuso do poder econômico que vise à dominação dos mercados, à eliminação da concorrência e ao aumento arbitrário dos lucros", diz a Constituição de 1988. Dispõe ainda que "o mercado interno integra o patrimônio nacional e será incentivado de modo a viabilizar o desenvolvimento cultural e sócio-econômico, o bem-estar da população e a autonomia tecnológica do País, nos termos de lei federal". O país tem regras e propósitos que devem servir ao "bem comum", o qual não é a mesma coisa de "bem do Estado", assim como "qualidade de vida" não quer dizer "quantidade de bens", como bem advertiu Eduardo Galeano. Mesmo o sistema financeiro nacional tem, segundo a Constituição de 1988, o seu propósito: "promover o desenvolvimento equilibrado do País e a servir aos interesses da coletividade". Isso não quer dizer que seja esse o propósito dos bancos e dos banqueiros. Eles são livres para escolherem suas aspirações, mas esses atores, que formam a Nação, estão juridicamente submetidos às regras de um sistema que precisa funcionar bem e para todos, de modo a promover o desenvolvimento equilibrado do País, servindo ao interesse coletivo. Assim, como privar o país da sua humanidade pode resultar numa repulsa à Nação, numa ojeriza à nossa brasilidade, a Constituição de 1988 tenta evitar abismos, para que assim a Nação contemple memórias que mais elevem do que destruam. Há, por fim, a raiz histórica. A literatura diz que foi o presidente Franklin Delano Roosevelt quem sugeriu o nome "Nações Unidas" para o que hoje é a ONU. Ocorreu durante a visita de Winston Churchill a Washington, em dezembro de 1941. Churchill aceitou citando Lord Byron, que usou a expressão "Nações Unidas" no poema "Childe Harold's Pilgrimage", referindo-se aos Aliados na Batalha de Waterloo, em 1815. Para Roosevelt e Churchill, a palavra Nação deveria estar lá.    Foi um erro histórico Castello Branco - ou sua entourage -ter aquiescido ou patrocinado, em 1967, a retirada da palavra Nação da nossa trajetória constitucional. Ela sobrevive, nos une e dá sentido à nossa vida coletiva. Se esse acidente tiver sido planejado, miraram a palavra, querendo apagar o sentimento. Qualquer que tenha sido a intenção, fracassaram nisso também. A verdade é que a Nação tem sido alimentada por nós muito mais do que pelos governantes. É por ela que ainda estamos aqui.
Em 26 de fevereiro último, a premiada escritora, jornalista e historiadora Anne Applebaum, deu uma entrevista para Marcelo Marthe, nas Páginas Amarelas da Veja. Americana de 56 anos, tendo sido editora das revistas The Economist e The Spectator, ela foi apresentada como "estrela indisputada da intelectualidade conservadora". A coluna de hoje aborda a sua mais recente obra, "O crepúsculo da democracia: como o autoritarismo seduz e as amizades são desfeitas em nome da política", traduzida por Alessandra Borrunquer e publicada pela Record. O livro começa com Anne Applebaum narrando os bastidores de uma festa num sobrado da cidade polonesa de Chobielin, oferecida por ela e por seu marido, Radek Sikorski, então vice-ministro do Exterior de um governo de centro-direita na Polônia, na noite do dia 31 de dezembro de 1999, celebrando a chegada do novo milênio. O grupo de convidados poderia ser colocado "na categoria que os poloneses chamam de direita: conservadores, anticomunistas". Eram "liberais de livre mercado, liberais clássicos, talvez thatcheristas". Todos acreditavam "na democracia, no estado de direito, em freios e contrapesos em uma Polônia que era membro da Otan e estava a caminho de se filiar à União Europeia (EU), uma Polônia integrada à Europa moderna". Vinte anos se passam. Em agosto de 2019, o casal deu uma nova festa. Os convidados eram outros. Muitos daqueles amigos de 1999 não eram mais bem-vindos. Eles haviam se radicalizado em pelejas ideológicas infinitas, todas elas profundamente desestabilizadoras das crenças anteriores por um mundo mais democrático. A obra então se desenvolve na História e na Teria Política, com recortes geopolíticos certeiros e atuais. A coluna se concentrará nas conclusões da autora quanto aos riscos que a independência judicial corre no mundo. O passeio global tem início na experiência polonesa. Ao rememorar a vitória apertada do partido Lei e Justiça em 2015, na Polônia, a obra recorda que o "novo governo violou a Constituição ao inadequadamente indicar novos juízes para o Tribunal Constitucional. Mais tarde, usou uma estratégia igualmente inconstitucional em uma tentativa de dominar a Suprema Corte e criar uma lei para punir juízes cujos vereditos contrariassem as políticas governamentais". Uma vez no poder, o radicalismo ficou óbvio. "O objetivo das mudanças não era fazer com que o governo funcionasse melhor. Era torná-lo mais partidário, com os tribunais mais influenciáveis e obedientes ao partido", anota a jornalista. Tendo sido eleito com uma margem de votos que lhe permitia governar, mas não modificar a Constituição, o Lei e Justiça, a fim de justificar a desobediência às leis, "deixou de usar argumentos políticos comuns e começou a identificar inimigos existenciais". Daí o alerta da autora: os autoritários precisam "de pessoas que saibam usar uma sofisticada linguagem legal, capaz de afirmar que agir contra a Constituição ou distorcer as leis é a coisa certa a fazer". Para que um projeto autoritário de poder possa ser implementado numa nação, com adesão popular a ele, é preciso que pessoas que ficaram para trás, no modelo competitivo e aberto que a democracia plural erige, enxerguem, pelo oportunismo de suas ambições irrealizadas, uma possibilidade de ascensão num mundo indiferente à falta de talento ou preparo. Essas pessoas, ressentidas, buscam causas para darem sentido a megalomanias pessoais ou projetos abortados. Surgindo o líder autoritário disposto a convocá-las, são esses os soldados certos para as missões mais deletérias à própria democracia. Eles sempre existiram. A diferença é que, agora, estão no poder. A escritora alerta que o mais proeminente ex-comunista na política polonesa hoje é Stanislaw Piotrowicz, indicado do Lei e Justiça para o Tribunal Constitucional. "É, sem surpresa, grande inimigo da independência judiciária". Ou seja, para que o Poder Judiciário seja capturado, é preciso escolher as pessoas certas para a missão e, ao contrário de escondê-las, projetá-las, dando-lhes poder. Foi o caso de Piotrowicz. Desmoralizar o conjunto de institutos e instituições que dão sustentação ao estado de direito é um projeto que reclama método. Por isso, as Supremas Cortes, a Constituição e o Poder Judiciário costumam ser visados. Eles representam um escudo contra os excessos desse tipo de projeto iliberal, logo, precisam ruir ou, pelo menos, ser tão cotidianamente desmoralizados até que não haja mais qualquer adesão à sua autoridade. Anne Applebaum lembra do jornalista inglês Christopher Caldwell, que produziu um artigo no Claremont Review elogiando o ataque de Viktor Órban, primeiro-ministro da Hungria, "às estruturas sociais neutras e ao campo de jogo nivelado" -, expressão considerada, por ela, "um eufemismo para tribunais independentes e estado de direito". Além da Polônia, a obra discorre sobre o fenômeno Brexit: "vencer exigia passos sem precedentes. A Constituição tinha de ser levada ao limite", registra a jornalista. Em setembro de 2019, o primeiro-ministro Boris Johnson suspendeu o Parlamento inglês, "de modo inconstitucional", diz. Anne lembra que o manifesto do Partido Tory, escrito antes da campanha eleitoral de dezembro de 2019, continha pistas da vingança contra os freios e contrapesos da Constituição. Eis trecho: "Após o Brexit, precisaremos analisar também os aspectos mais amplos de nossa Constituição: o relacionamento entre governo, Parlamento e tribunais; o funcionamento da prerrogativa real; o papel da Câmara dos Lordes e o acesso à justiça para as pessoas comuns". Sobre a Espanha, aborda uma "controversa decisão judicial sobre um caso de estupro que levou centenas de milhares de mulheres às ruas em grandes e ruidosas manifestações, perturbando muitos católicos tradicionais". Em 2017, o governo regional catalão, fortemente controlado por separatistas, "decidiu realizar um referendo sobre a independência. O Tribunal Constitucional espanhol declarou o referendo ilegal". Controvérsias variadas, às vezes dirigidas aos tribunais, serviram de insumo para que o discurso político raivoso seduzisse populares contra as intervenções do Poder Judiciário. Nasceu o Vox, partido espanhol que, após patinar em eleições passadas, se coloca hoje como uma agremiação com representatividade parlamentar, disposto a perseverar com pautas incompatíveis com a base de uma democracia liberal.    Os Estados Unidos não poderiam ficar de fora do livro. No capítulo V, "Prairie fire", Anne Applebaum lembra que o republicano Ronald Reagan pediu que os americanos se unissem em torno não do sangue ou do solo, "mas da Constituição": "Enquanto lembrarmos de nossos primeiros princípios e acreditarmos em nós mesmos, o futuro sempre será nosso", exortou o então presidente. Ela anota que radicais do Weather Underground (Submundo do Tempo), em 1970, atiraram "coquetéis molotov na casa de um juiz nova-iorquino da Suprema Corte". Para a autora, "(...) a monotonia contrastante da burocracia e dos tribunais; tudo isso tem enervado a parte da população que prefere unidade e homogeneidade". Anne Applebaum destaca que quando dizemos coisas como "a Rússia é corrupta, mas todo mundo é", o que se faz é uma defesa da equivalência moral, "um argumento que mina a fé, a esperança e a crença de que podemos estar à altura da linguagem da Constituição". Nasce uma carta em branco para que se viole as leis. A obra segue com erudição - numa linguagem simples - e cosmopolitismo. Num dado momento, aparece Laura Ingraham, que fora assistente de Clarence Thomas, juiz da Suprema Corte dos Estados Unidos, e era advogada de uma firma moderna. "Seu otimismo reaganista desapareceu e, lentamente, transformou-se no pessimismo apocalíptico partilhado por tantos outros", anota Anne, transcrevendo uma das tantas falas da advogada: "Os Estados Unidos estão condenados, a Europa está condenada, a civilização ocidental está condenada. A imigração, o politicamente correto, o transgenerismo, a cultura, o establishment, a esquerda e os democratas são responsáveis". A escritora questiona: "O político iliberal quer enfraquecer os tribunais a fim de obter mais poder para si mesmo, mas como persuade os eleitores a aceitarem essas mudanças?". Há muitas formas. O medo é uma delas. O ressentimento, outra.   Voltando-se para a realidade francesa, diz que o nacionalismo "A França para os franceses", de Marine Le Pen, se opõe à visão mais ampla de Emmanuel Macron sobre uma nação "republicana que ainda defende um conjunto de valores abstratos, entre eles a justiça imparcial e o estado de direito". Esses são os princípios regedores de qualquer democracia liberal no mundo, pouco importa qual a sua inclinação política. Apesar do cenário, ela não joga a toalha: "a Europa, os Estados Unidos e o mundo estão cheios de pessoas - urbanas e rurais, provincianas e cosmopolitas - com ideias criativas e interessantes sobre como viver em um mundo muito mais justo e mais aberto". Anne reconhece que "os freios e contrapesos das democracias constitucionais ocidentais jamais garantiram estabilidade", mas enfatiza que "eles sempre exigiram certa tolerância pela cacofonia e pelo caos, assim como certa disposição em reagir às pessoas que criam cacofonia e caos". A democracia reclama reação para que possa se manter viva.   A obra, todavia, é contundente em suas conclusões: "é possível que já estejamos vivendo o crepúsculo da democracia; que nossa civilização já esteja caminhando para a anarquia ou a tirania, como temiam os antigos filósofos e os fundadores americanos; que uma nova geração de clercs, os defensores de ideais iliberais ou autoritárias, cheguem ao poder no século XXI, assim como fizeram no século XX; e que suas visões de mundo, nascidas do ressentimento, da raiva ou de sonhos messiânicos, possam triunfar". Nesse particular, ela alerta sobre os efeitos desse tempo em relação ao Poder Judiciário: "não foi por acidente que juízes e tribunais se tornaram objeto de crítica, escrutínio e raiva em muitos outros lugares. Não pode haver neutralidade em um mundo polarizado, porque não pode haver instituições apartidárias ou apolíticas". A afirmação acima se aplica às relações humanas. Num mundo dividido entre facções raivosas, os moderados precisam ser machucados. São reputados sem opinião, sem posição, sem expressão. Pela sua lucidez e ausência de ódios empedernidos, nada têm a contribuir. Precisam ser subestimados, silenciados e, então, excluídos. Só os autoritários, se alimentando reciprocamente, devem ter voz nesse grande teatro barulhento. Mesmo porque, não é mais uma arena pública. É uma guerra.    O livro de Anne Applebaum faz uma profecia já realizada. Acurado intelectualmente e repleto de perspectivas sensatas, mostra que tudo pelo o que estamos passando já chegou em nossos telefones, em nossas redes sociais, em nosso ambiente de trabalho, em nossos lares e em nossas famílias. Não dá mais para ignorar. Há uma predisposição autoritária por parte de pessoas muito próximas, pessoas essas que, num outro momento, chegaram a celebrar as conquistas da democracia e de um pensamento ligado à liberdade, aos direitos e às instituições dedicadas à elevação da condição humana. Para que essa tempestade assombrosa varra do mapa a acepção de democracia liberal que conhecemos, a Constituição e o Poder Judiciário precisam ser feridos. Não se trata de corrigir excessos dos seus integrantes por meio dos órgãos criados para isso, tampouco de aperfeiçoar funcionamentos. O líder autoritário precisa tentar, repetidas vezes, envolver pessoalmente integrantes do Judiciário ou, pelo menos, exibi-los como aliados. Enquanto faz isso, usa o seu poder para, cotidianamente, questionar a autoridade judicial e desmoralizar a instituição. A mão que acena é a mesma que sabota. Com o registro pessoal das duas celebrações que ofereceu em momentos distintos da história política mundial - a primeira, em 1999, e a segunda, em 2019 - Anne Appleblaum mostra que há colegas, amigos e familiares que simplesmente escolheram um lado que não é o da democracia e que abraçarão todo tipo de pensamento simplista para justificar essa guinada existencial. Eles estão cada vez mais predispostos a uma postura autoritária e os arranjos normativos da democracia lhes deram um título de eleitor. Por outro lado, há também muita gente que, ilhada e sozinha, embarcou nesse barco, mas, olhando agora, não tem mais fôlego para negar os buracos no casco. Eram amigos e amigas enfastiados pelas disputas passadas que, exauridos, abraçariam qualquer convite que os tirasse dali. Essas pessoas hoje sentem-se perdidas. Devem voltar para o nosso convívio, ver resgatados os fios de amizade esgarçados e retomar a lucidez de antes para que, juntos, ajudem a encontrar soluções para o atoleiro no qual estamos. Se assim o for - e tudo leva a crer que é -, está na hora de convidarmos novas pessoas para as nossas casas, para as nossas festas e para as nossas vidas. Pessoas comprometidas com a democracia e com tudo o que de edificante e plural que ela abraça. A independência judicial e o estado de direito constituem pilares dessa crença. Essa é pelo menos uma das muitas lições de "O crepúsculo da democracia: como o autoritarismo seduz e as amizades são desfeitas em nome da política". Vale ler.
segunda-feira, 22 de fevereiro de 2021

Limitação territorial dos efeitos da sentença em ACP

O Supremo Tribunal Federal pautou, para quinta-feira, 25/2, em seu plenário, o recurso extraordinário nº 1.101.937, que veicula o Tema nº 1.075 da repercussão geral, de relatoria do ministro Alexandre de Moraes, qual seja, a discussão sobre a "constitucionalidade do art. 16 da lei 7.347/85, segundo o qual a sentença na ação civil pública fará coisa julgada erga omnes, nos limites da competência territorial do órgão prolator". O assunto é mais do que relevante. Em sua redação original, o art. 16 da lei 7.347/85 - Lei da Ação Civil Pública - determinava, de forma genérica, que a sentença civil proferida em ação civil pública operaria eficácia erga omnes. Isso, sem explicitar os limites territoriais do provimento jurisdicional prolatado: "Art. 16. A sentença civil fará coisa julgada erga omnes, exceto se a ação for julgada improcedente por deficiência de provas, hipótese em que qualquer legitimado poderá intentar outra ação com idêntico fundamento, valendo-se de nova prova." O art. 2º da Medida Provisória nº 1570-5/97, convertida na lei 9.494/97, alterou a redação do dispositivo e explicitou que os efeitos da coisa julgada em sede de ação civil pública é erga omnes, mas nos limites territoriais do órgão prolator da sentença. Eis a redação: "Art. 16. A sentença civil fará coisa julgada erga omnes, nos limites da competência territorial do órgão prolator, exceto se o pedido for julgado improcedente por insuficiência de provas, hipótese em que qualquer legitimado poderá intentar outra ação com idêntico fundamento, valendo-se de nova prova." No STF, o ministro Marco Aurélio anotou, ao julgar a cautelar pleiteada na ação direta de inconstitucionalidade nº 1576, que a lei 9.494/97, ao promover a emenda aditiva ao art. 16 da lei 7.347/85, apenas explicitou a eficácia erga omnes da sentença proferida em sede de ação civil pública aos limites territoriais do órgão prolator da sentença. Eis trecho do acórdão nesse particular:  "A alteração do artigo 16 correu à conta da necessidade de explicitar-se a eficácia erga omnes da sentença proferida na ação civil pública. Entendo que o artigo 16 da lei 7.347, de 24 de julho de 1985, harmônico com o sistema Judiciário pátrio, jungia, mesmo na redação primitiva, a coisa julgada erga omnes da sentença civil à área de atuação do órgão que viesse a prolatá-la. A alusão à eficácia erga omnes sempre esteve ligada à ultrapassagem dos limites subjetivos da ação, tendo em conta até mesmo o interesse em jogo - difuso ou coletivo - não alcançando, portanto, situações concretas, quer sob o ângulo objetivo, quer subjetivo, notadas além das fronteiras fixadoras do juízo. Por isso, tenho a mudança de redação como pedagógica, a revelar o surgimento de efeitos erga omnes na área de atuação do Juízo e, portanto, o respeito à competência geográfica delimitada pelas leis de regência. Isso não implica esvaziamento da ação civil pública nem, tampouco, ingerência indevida do Poder Executivo no Judiciário. Indefiro a liminar".  Em 2006, a Corte Especial do Superior Tribunal de Justiça, ao julgar o Recurso Especial nº 293.407 e seguindo posição de 2001 no Recurso Especial nº 253.589, concluiu não haver como, no âmbito do "microssistema processual das tutelas coletivas", estender-se a eficácia da sentença em ação civil pública para além dos limites territoriais em que prolatada.   De fato, não se coaduna com o juiz natural que um provimento jurisdicional emanado em uma determinada Circunscrição, Comarca ou Seção Judiciária irradie seus efeitos para além do limite territorial em que exarado. No REsp nº 293.407, por exemplo, o ministro Ruy Rosado registrou: "assim como não cabe centralizar em uma Vara de Brasília a competência para todas as ações civis públicas do país, pelos evidentes inconvenientes que disso decorreriam, também inadmissível que sentença com trânsito em julgado de pequena comarca do interior desse imenso Brasil possa produzir efeito sobre todo o território nacional". Com algumas oscilações, o STJ passou a sinalizar, em meados de 20091, que alteraria seu entendimento para afastar a limitação territorial imposta pela norma contida no art. 16 da Lei nº 7.347/85, prognóstico que veio se confirmar anos mais tarde com o recurso especial repetitivo n.º 1.243.887, de relatoria do ministro Luís Felipe Salomão. Ocorre que, quanto ao art. 16 da Lei nº 7.347/85, não se afigura constitucionalmente adequado ou funcional em termos de organização do Sistema de Justiça, que um magistrado de 1º grau de jurisdição, cujas competências são restritas ao âmbito de seu território ou mesmo um Tribunal, limitado pelas fronteiras com outras Regiões ou Estados, exerça sua jurisdição nacionalmente impondo obrigações a realidades absolutamente distintas entre si. Vale recordar o que anotou o ministro Néri da Silveira, na citada ADI nº 1576: "sempre entendi essa cláusula da eficácia erga omnes nos limites da competência do juiz. Creio que há um princípio maior concernente à definição da competência do juiz. O juiz só pode oficiar sobre matéria a respeito da qual é competente e dentro dos limites da sua jurisdição". Nessa mesma ação, registrou o ministro Nelson Jobim: "o que está dito é que a eficácia erga omnes da decisão é contra todos dentro do universo de competência territorial do juiz prolator. É evidente, senão estaríamos estendendo a competência de um juiz, em termos concretos, reais, fora do seu território de competência, o que é uma inversão total do critério da competência e da territorialidade". Logo, só há decisão, porque há um Juízo prévio fixado em um limite territorial. Seus provimentos só produzem efeitos onde ele possui jurisdição. Se assim não fosse, ter-se-ia, como já se têm, uma 'autofagia federativa', ocasionando-se prejuízos não apenas ao cidadão, mas aos mercados regulados que se desenvolvem em território nacional. E é sobre esses mercados regulados que os efeitos são mais perversos. Consoante o art. 22, IV da Constituição, compete privativamente à União legislar sobre telecomunicações. O art. 21, XI entrega à União a competência para "explorar, diretamente ou mediante autorização, concessão ou permissão, os serviços de telecomunicações, nos termos da lei, que disporá sobre a organização dos serviços, a criação de um órgão regulador e outros aspectos institucionais". Realizando esses comandos, veio a lei 9.472/97 - Lei Geral de Telecomunicações -, dispondo "sobre a criação dos serviços de telecomunicações, a criação e funcionamento de um órgão regulador e outros aspectos institucionais", qual seja, a Anatel. Ocorre que, não raramente, provimentos jurisdicionais, a pretexto de corrigirem distorções em benefício de uma suposta tutela de direitos, acabam por desconsiderar a complexa regulação técnica feita pela Anatel e por todos os demais setores essenciais regulados. Cria-se verdadeiro dano reverso, com quebra de isonomia entre usuários distintos. Essa substituição da discricionariedade técnica do administrador por uma decisão judicial que, por sua 'capacidade institucional', não leva em conta fatores sistêmicos que fazem parte de uma escolha regulatória, se revela ainda mais gravoso com a expansão dos efeitos de uma ação civil pública para além dos limites territoriais do órgão prolator, pois cria-se dificuldade de (i) precificação de serviços públicos prestados e de estabelecimento de uma adequada contraprestação pecuniária que remunere a prestação do serviço de telecomunicações; (ii) de cumprimento de decisões judiciais que criam múltiplos, diversos e contraditórios cenários "regulatórios" para regiões completamente diferentes entre si, ocasionando não apenas danos ao arquétipo regulatório da Anatel, mas desigualdades entre os próprios usuários e consumidores ao se estender indistintamente regras criadas por decisões que refletem a realidade de um local a outro totalmente distinto; e (iii) de se estabelecer um marco normativo-regulatório seguro em razão da necessidade de a todo tempo e ao sabor de decisões contraditórias se adequarem regras que devem ser estáveis. Sensível a esses aspectos, é de fundamental importância que o Supremo Tribunal Federal, ao deliberar sobre o Tema nº 1.075 da repercussão geral, nessa quinta-feira, fixe a interpretação constitucionalmente aceitável do art. 16 da lei 7.347/85, vedando qualquer exegese que desconsidere a letra do comando para conferir-lhe uma ampliação para além dos limites do órgão prolator do pronunciamento. __________ 1 REsp nº 399.357/SP.
segunda-feira, 19 de outubro de 2020

A cor da liberdade

A editora Zahar publicou, em 2018, "A cor da liberdade: os anos de presidência", a continuidade da biografia de Nelson Mandela, Longa caminhada até a liberdade. "Tem como espinha dorsal as memórias que Mandela começou a escrever quando se preparou para deixar o cargo, mas não teve condições de terminar", consta da orelha do livro. O premiado escritor sul-africano Mandla Langa terminou a tarefa usando "o rascunho inacabado e as notas detalhadas que Mandela fez ao longo dos anos - além de um rico e inédito material de arquivo".   Com prólogo de Graça Machel, viúva de Madiba, o livro é estruturado a partir de uma Nota ao leitor, seguida do Prefácio, trazendo, então, o seguinte sumário: "1. O desafio da liberdade; 2. Negociando a democracia; 3. Eleições livres e idôneas; 4. Entrando no Palácio do Governo; 5. Unidade Nacional; 6. A presidência e a Constituição; 7. O Congresso; 8. Liderança tradicional e democracia; 9. Transformação do Estado; 10. Reconciliação; 11. Transformação social e econômica; 12. Negociando com os meios de comunicação; 13. Na África e no mundo; Epílogo". Com tradução de Denise Bottmann, trata-se de uma aventura de 470 páginas. Logo no início, ligando os pontos com o passado, há uma fala de Nelson Mandela em Longa caminhada para a liberdade: "A verdade é que ainda não somos livres, alcançamos apenas a liberdade de sermos livres, o direito de não sermos oprimidos. Demos não o passo final de nossa jornada, mas o primeiro numa estrada mais longa e ainda mais difícil". No prefácio, a nova África do Sul é contextualizada com as consequências traumáticas de um "nascimento difícil" (p. 15). Mandela é o "parteiro de um nascimento problemático" (p. 236). A obra mostra um líder com defeitos e contradições, mas apaixonado pelo seu país e que encontrou na luta contra o racismo a sua missão imortal. "Não era um santo, mas um pecador que continua a se esforçar", escreveu Mandla Langa (p. 378). A compreensão dos direitos fundamentais foi imortalizada num discurso em 20 de dezembro de 1997, na Conferência do partido, o Congresso Nacional Africano - CNA, quando Nelson Mandela falou: "O dia de hoje marca a realização de mais um salto naquela corrida de revezamento - que ainda continuará por muitas décadas" (p. 22). Segundo o livro, "tendo estudado longamente o inimigo e lido suas obras de história, jurisprudência, filosofia, língua e cultura, Mandela chegava à conclusão de que os brancos fatalmente descobriram que o racismo os prejudicava tanto quanto aos negros" (p. 24). Em entrevista a Oprah Winfrey, retratada no livro, Madiba disse: "nossa conversa com o inimigo foi resultado do domínio da razão sobre a emoção" (p. 285). A prisão amainou o espírito de Mandela. "Sobreviver no cárcere demandava enormes reservas de força mental - ele precisava se armar com o que fortalecesse sua estabilidade interior e abandonar tudo o que pudesse debilitá-la" (p. 235). Encarcerado, Madiba "aperfeiçoou aquela capacidade que, mais tarde, viria a ser um de seus pontos mais fortes: a de perceber que a pessoa diante dele, amiga ou inimiga, era um ser humano complexo, com personalidade multifacetada" (p. 31). Mandla Langa prossegue: "Ele sabia que precisava se livrar do peso do ressentimento" (p. 31). O autor diz que Mandela "via o encarceramento como uma oportunidade de conhecer a si mesmo" (p. 60). O arremate vem do próprio Madiba, que diz: "A cela lhe dá a oportunidade de examinar diariamente sua conduta, de vencer o que há de ruim e desenvolver o que há de bom em você" (p. 61). Ao sair da prisão Victor Verster, Nelson Mandela já havia dito a si mesmo que a missão de sua vida era "libertar oprimidos e opressores". O livro enfatiza o erro das hesitações em momentos raros de um chamamento histórico para as grandes missões humanistas que a jornada dos tempos costuma fazer. "Na versão nguni, as pessoas dizem: 'Sihamba nabahambayo', que em isiZulu significa simplesmente: 'Levamos conosco os que estão prontos para a viagem'. 'Ha e duma eyatsamaya' (quando o motor começa a funcionar, esse veículo vai partir), diz o refrão de uma cantiga tradicional em setswana - um conselho aos indecisos para andarem logo". Para Mandela, "era hora de entrar em movimento" (p. 58). Esse espírito de luta foi retratado pela viúva Graça Machel, no prólogo: "Possamos todos nós encontrar um local de descanso, mas nunca demorarmos demais na jornada a que fomos chamados" (p. 11).   Langa lembra que "um elemento importante na grandeza de Mandela era nunca tomar nada - nem ninguém - por definitivo" (p. 91). Enfatiza a convicção pessoal no sentido de jamais ser descortês com outro líder. "Os líderes, a seu ver, representavam um eleitorado. Qualquer grosseria com eles se convertia, portanto, numa afronta geral a seus seguidores" (p. 137). A personalidade cativante de Mandela permeia o livro. Ele "somava à inflexível praticidade uma cortesia de tipo europeu, que também esperava da parte de outros, sobretudo dos colegas" (p. 199). "Era afável, simpático e sorria muito" (p. 61). Seus predicados fizeram o congressista republicano Amory R. Houghton Jr., dos Estados Unidos, comentar: "Ele é o George Washington da África do Sul" (pp. 149/150). Mas esse jeito envolvente não o impedia de às vezes sair da linha em embates verbais com oponentes: "Não sou diplomata, pois passei meu tempo lutando com carcereiros. O que eu devia declarar?", disse certa feita (p. 205). Na cúpula da Organização da Unidade Africana (OUA), um mês após a sua posse como presidente da África do Sul, Nelson Mandela dividiu com o público essa linda construção retórica: "Se a liberdade era a coroa que os combatentes da libertação procuraram pôr na cabeça da mãe África, que o avanço, a felicidade, a prosperidade e o conforto de seus filhos sejam a joia da coroa" (p. 355). A obra traz detalhes do singular processo constituinte sul-africano. Recorda que o Termo de Entendimento assinado pelo CNA e pelo Partido Nacional, em 26 de novembro de 1992, abriu caminho para um processo de duas etapas; a primeira, um fórum pluripartidário de negociação que resultou em 34 princípios aprovados pelo governo do Partido Nacional como parte da Constituição interina. Dispunha sobre a eleição de um Congresso com representação proporcional dos partidos com base no voto universal, que operaria como uma Assembleia Constituinte, encarregada de elaborar o texto final. Caberia à Corte Constitucional, criada pela Constituição interina, certificar que o novo texto estava em conformidade com os 34 princípios antes de ser promulgado (p. 176). Enquanto o fórum pluripartidário negociava a Constituição interina, o texto da Constituição final foi elaborado pelos representantes dos cidadãos que compunham a Assembleia Constituinte em número proporcional aos votos recebidos por seus partidos na eleição de 1994. Houve "participação pública direta, inclusive propostas de cidadãos tanto por escrito quanto em forma oral, em fóruns nas vilas, cidades e comunidades" (p. 177). Em 8 de maio de 1996, a Assembleia Constituinte adotou o texto que o Comitê Constitucional do Congresso terminara de redigir de madrugada. Mandela o acolheu dizendo: "Os breves segundos em que a maioria dos ilustres membros assentiu silenciosamente à nova lei fundamental do país capturaram, num instante fugaz, os séculos de história que o povo sul-africano suportou em busca de um futuro melhor" (p. 182). Para o presidente, "ao fim e ao cabo, não devia haver ganhadores e perdedores", e sim "a África do Sul como um todo deve sair ganhadora" (p. 184). Disse ainda: "Todos os dias vou me deitar sentindo força e esperança, porque posso ver que estão surgindo novos líderes do pensamento, líderes que são a esperança do futuro" (p. 185). Voltando no tempo, a obra "A cor da liberdade" vai a 20 de abril de 1964, quando, no banco dos réus, no julgamento do caso Rivônia, diante de uma provável sentença de morte, Mandela disse ao Tribunal e ao mundo: "acalento o ideal de uma sociedade livre e democrática em que todos vivam juntos em harmonia e igualdade de oportunidades. É um ideal pelo qual espero viver e espero alcançar. Mas, se for necessário, é um ideal pelo qual estou preparado para morrer" (p. 169). Trinta anos depois, Mandela nomeou Arthur Chaskalson, integrante da equipe de defesa no julgamento e membro do Comitê Constitucional do CNA, para a presidência da Corte Constitucional. "Ele havia sido impedido pelo Estado do apartheid de exercer a advocacia em várias partes do país, mediante um bizantino conjunto de medidas" (p. 189). Na inauguração da Corte, em fevereiro de 1995, Mandela dividiu suas impressões sobre o constitucionalismo: "significa que nenhum cargo e nenhuma instituição podem ficar acima da lei. Os mais poderosos e os mais humildes da terra, todos, sem exceção, devem obediência ao mesmo documento, aos mesmos princípios. Não interessa se você é negro ou branco, homem ou mulher, jovem ou velho; se fala setswana ou africâner; se é rico ou pobre, se usa um carro novo e elegante ou anda a pé e descalço; se usa farda ou está preso numa cela. Todos nós temos certos direitos básicos, e esses direitos fundamentais estão expostos na Constituição" (pp. 186/187). Afirmou ainda que a Constituição "permite que as múltiplas vozes do povo sejam ouvidas de maneira organizada, articulada, dotada de sentido e orientada por princípios" (p. 187). O presidente Nelson Mandela lembrou que, no desenho institucional sul-africano pintado pela recente Constituição por ele gestada, existem "entidades institucionais que são comandadas por figuras públicas fortes e qualificadas, totalmente independentes do governo" (p. 190). São elas: o Protetor Público, o Diretor Nacional dos Processos Públicos, o Ouvidor-Geral, a Comissão de Direitos Humanos, a Comissão de Verdade e Reconciliação e a Corte Constitucional (p. 190). A obra lembra que "a Comissão de Verdade e Reconciliação (CVR), presidida pelo arcebispo Desmond Tutu, tornou-se o símbolo da nova África do Sul tal como o apartheid a simbolizara no regime antigo, ficando atrás apenas da nova Constituição. Para a comunidade internacional, foi uma vívida demonstração da corajosa missão da África do Sul em aprofundar a democracia" (p. 297). A reafirmação do princípio do "nunca mais" veio em seu Discurso à Nação, em 1997, quando disse: "Todos nós, como nação que acaba de encontrar a si mesma, partilhamos a vergonha perante a capacidade de seres humanos de qualquer raça ou grupo linguístico de serem desumanos com ouros seres humanos. Todos nós devemos participar do compromisso com uma África do Sul onde isso nunca mais se repetirá" (p. 304). Mas Mandela, que criou a Corte Constitucional, por mais de uma vez se viu às voltas com suas decisões. A primeira delas, quando exonerou sua ex-esposa, Winnie Mandela, do cargo de vice-ministra de Artes, Cultura, Ciência e Tecnologia. Pela Constituição, o presidente deveria consultar os dois vice-presidentes e os líderes de todos os partidos no gabinete. Ele não o fez. Então decidiu que "a demissão da sra. Mandela deve ser tratada como inválida em termos técnicos e de procedimento". Procedeu assim pelo compromisso de "agir dentro do espírito da Constituição, e ademais deseja poupar ao governo e à nação as incertezas que poderiam se seguir a uma prolongada ação judicial sobre essa questão" (p. 146). Outro episódio havia se dado antes mesma da redação da nova Constituição. Chegando o prazo final dos preparativos para as eleições locais, o Congresso adotou a Lei de Transição do Governo Local antes que a sua redação estivesse pronta. Para compensar, foi incluída uma cláusula conferindo ao presidente o poder de emenda à lei. Com o dispositivo, Mandela transferiu o controle sobre a composição dos comitês de demarcação do governo local do governo provincial para o governo nacional. Todavia, isso invalidou decisões tomadas pelo governador do Cabo Ocidental, Hernus Kriel, que levou a questão à Corte Constitucional. O tribunal deu ganho de causa para o governo provincial do Cabo Ocidental e concedeu ao Congresso o prazo de um mês para retificar a lei (p. 170). Uma hora depois da divulgação, pela Corte Constitucional, da decisão, o presidente Nelson Mandela aceitou publicamente a determinação: "Logo que fui informado da decisão, convoquei uma coletiva de imprensa e conclamei o público geral a respeitar a sentença da mais alta corte no país em assuntos constitucionais" (p. 171). E fechou: "devo enfatizar que a decisão do Tribunal Constitucional confirma que nossa nova democracia está lançando raízes sólidas e que ninguém está acima da lei" (p. 171). Há na obra uma passagem de Albie Sachs, indicado pelo presidente Nelson Mandela para a primeira composição da Corte Constitucional, onde ele recorda que Madiba, em maio de 1961, "estava na clandestinidade e tinha convocado uma greve geral. Declarando que a maioria do povo não fora consultada sobre a transformação da África do Sul numa República fora da Commonwealth (Comunidade das Nações), ele juntou ao apelo de paralização a reinvindicação de que se realizasse uma convenção nacional pra redigir uma nova Constituição". Mandla Langa então diz que, "trinta e cinco anos depois, a lei, antes cruel instrumento de exclusão e opressão, finalmente se transformava para servir a todos" (p. 191). O livro lembra que todas as províncias sul-africanas tinham suas histórias de desgraças. Dentre elas, Natal arcava com o maior peso da brutalidade. "Era ali que o Partido da Liberdade Inkatha, com o respaldo de agentes do Serviço Policial Sul Africano, travava guerra ao CNA e seus seguidores". Mandela foi duro com os partidários do Inkatha. Para ele, esses oponentes "ficam falando sobre o caráter sagrado da Constituição, mas, quando estavam no poder, ao mais leve pretexto intervinham na Constituição. (...) Agora nos passam sermões sobre o caráter sagrado da Constituição" (pp. 230/231). Duas semanas após a sua saída da prisão, Mandela discursou para 100 mil pessoas no Kings Park Stadium, na cidade de Durban. A obra retrata o evento como "um dos momentos memoráveis e purificadores para Mandela" (p. 40). "Peguem suas armas, suas facas e suas pangas e joguem no mar!", ordenou Madiba. "Entre a multidão, iniciou-se um som surdo e baixo de desaprovação, que foi crescendo e se transformou num coro de vaias". Mesmo assim, Mandela prosseguiu: "Fechem as fábricas de morte! Terminem já essa guerra!" (p. 41). A compreensão se aproximava de Martin Luther King Jr, que, ao receber o Prêmio Nobel da Paz, em 1964, dissera: "A violência como forma de alcançar a justiça racial é inviável e imoral", pontuando em seguida: "A violência é inviável, porque é uma espiral descendente que termina em destruição para todos" (pp. 55/56). Para além de perseverar pela paz, Mandela também tinha outras agendas e seu governa não as negligenciaria. Menos de um mês depois do início do governo, Mandela escreveu a seus ministros mostrando a urgência que atribuía à questão específica da nomeação de mulheres. Escreveu o presidente da África do Sul: "Nosso país alcançou o ponto em que se reconhece que a representação das mulheres é essencial para o êxito de nosso programa de construção de uma sociedade justa e equitativa. O governo precisa liderar esse processo dando provas visíveis da presença de mulheres em todos os níveis de governo. Assim, eu gostaria de lhes solicitar que deem prioridade à nomeação de mulheres para cargos nos departamentos do governo, no serviço público e nos comitês permanentes. Também gostaria de lembra-los de que os serviços a serem prestados pelos departamentos de vocês devem trazer melhorias às condições não só dos homens, mas também das mulheres" (p. 271). Ele conclamava todos a honrarem "as mulheres e as crianças de nosso país que estão expostas a todas as espécies de violência e abusos domésticos" (p. 337). Questão sensível foi o debate sobre o hino nacional. Antes da eleição de 1994, a solução combinada entre o CNA e o Partido Nacional no Conselho Executivo de Transição foi que se cantariam "Nkosi Sikelel' iAfrika (Deus abençoe a África) e "Die Stem van Suid-Afrika (O chamado da África do Sul), um depois do outro. "Assumindo a presidência, Nelson Mandela encarregou uma equipe de criar uma versão bem mais curta e menos canhestra, juntando elementos dos dois hinos" (p. 288).               O livro traz mensagens duras e muito críticas de Nelson Mandela dirigidas a seus próprios apoiadores em muitos momentos do seu mandado presidencial de 5 anos. Numa delas, ele adverte as futuras gerações dos perigos do poder: "A menos que sua organização política se conserve forte e com princípios, impondo igualmente rigorosa disciplina aos líderes e aos membros comuns (...), a tentação de abandonar os pobres e começar a cumular uma enorme riqueza para si mesmos se torna irresistível" (p. 30). Mandela via com decepção o comportamento de muitos líderes africanos à frente de seus países. Na prisão, ele anotou: "Eles passaram a crer que são líderes insubstituíveis. Nos casos em que a Constituição permite, tornam-se presidentes vitalícios. Naqueles casos em que a Constituição do país impõe limitações, geralmente emendam a Constituição para poderem se agarrar ao poder por toda a eternidade" (p. 30). As queixas de Mandela expostas no livro prosseguem: "os sintomas de nossa enfermidade espiritual são mais do que conhecidos. Incluem a extensão da corrupção no setor público e no setor privado, em que os cargos e postos de responsabilidade são tratados como oportunidades para o enriquecimento pessoal; a corrupção que vigora dentro de nosso sistema judiciário; a violência nas famílias e relações interpessoais, em especial o vergonhoso recorde de abusos contra mulheres e crianças; a extensão da evasão fiscal e a recusa em pagar pelos serviços utilizados" (p. 335). Eis aqui uma dura fala a trabalhadores que faziam uma greve geral no país: "Há pelo menos 5 milhões de pessoas desempregadas, que não sabem onde vão conseguir uma refeição durante o dia, não sabem onde vão dormir, não sabem como vestirão os filhos, como pagarão a escola. Este problema vocês é que têm de resolver. Ao fazerem greve, não olhem seus próprios interesses pessoais ou apenas os interesses do seu sindicato; vocês precisam adotar uma visão ampla. Precisam criar condições para que a iniciativa privada consiga realmente se expandir e absorver esses 5 milhões de desempregados. É sua tarefa. Vocês também precisam saber que, mesmo que tenhamos o direito de lutar por melhores condições de vida, não podemos nos precipitar; quanto maior o custo de produção, mais cortes de pessoal o empresariado quer fazer, e assim aumenta o exército de desempregados - tenham isso em mente" (p. 336). Numa passagem, Mandela exige equilíbrio entre liberdade e responsabilidade: "Está muito claro que há algo de errado numa sociedade em que se tende liberdade como alunos ou professores irem bêbados para a escola, os guardas expulsarem os diretores e nomearem seus amigos pra o comando das instituições, os grevistas recorrerem à violência e destruição das propriedades, os empresários torrarem dinheiro em ações judiciais somente para protelar a aplicação de leis que não lhes agradam, a evasão fiscal transformar os sonegadores em heróis das conversas de bar" (p. 336). Como presidente, Nelson Mandela encarnava a Constituição e todos os seus dispositivos, inclusive a seção 16, que garantia o direito à liberdade de expressão. Ele leu com grande interesse a decisão do juiz Edwin Cameron, ao tempo no Tribunal Superior de Recursos, no caso Holomisa v. Argus Newspapers Ltd., 1996 (2) S.A. 588 (W), no qual Cameron fez uma defesa intransigente da liberdade de expressão, de imprensa e de comunicação em questões que envolvessem atos ou ações de governos (p. 339). No discurso no Congresso do Instituto Internacional de Imprensa, em 1994, Madiba afirmou: "É apenas tal imprensa livre que pode moderar o apetite de qualquer governo em acumular poder em detrimento do cidadão. É apenas tal imprensa livre que pode ser o guardião vigilante do interesse público contra a tentação de abuso do poder por parte de seus detentores. É apenas tal imprensa livre que pode ter a capacidade de expor incessantemente os excessos e a corrupção por parte do governo, das autoridades do Estado e de outras instituições que detêm poder na sociedade" (p. 343). O presidente Nelson Mandela apelava aos parlamentares no sentido de que, "em seus diversos partidos, ajudassem mais a construir do que a destruir" (p. 174). Na última sessão parlamentar de 1999, afirmou: "é nas legislaturas que os instrumentos são criados para trazer uma vida melhor a todos" (p. 207). Em 1997, na Conferência Nacional do CNA, Mandela fez um balanço da sua jornada como presidente da nova África do Sul: "O mundo nos admira por nosso êxito como nação em nos elevarmos à altura dos desafios da nossa era. Tais desafios eram: evitar o pesadelo da guerra racial e dos derramamentos de sangue tão debilitantes e reconciliar nosso povo, tendo como base que nosso objetivo geral deve ser o de superarmos juntos a herança da pobreza, da divisão e da injustiça" (p. 382). Sua mensagem derradeira na obra é essa: "A longa caminhada continua!". É de fato longa a caminhada rumo à liberdade. E essa caminhada, assim como a venturosa jornada pela conquista de direitos fundamentais, há sempre de continuar. "A cor da liberdade: os anos de presidência" é uma linda obra. Escrita com refinamento, a partir de documentos oficiais fundamentais e dos próprios manuscritos de Nelson Mandela, o livro pontua os momentos mais relevantes de uma presidência que ocupou raro lugar na história contemporânea. Ela expõe a intimidade de um alinhamento de astros que dificilmente se repetirá diante dos nossos olhos. Vale cada página.
quarta-feira, 7 de outubro de 2020

A aposentadoria do ministro Celso de Mello

Essa é a última semana de deliberações do Supremo Tribunal Federal ainda com a presença do ministro Celso de Mello. A sessão de ontem da Segunda Turma da Corte, e a grande emoção que ela despertou em todos os seus integrantes, mostra um pouco do impacto que essa aposentadoria irá gerar no Tribunal. De todas as formas de homenagem ao ministro, e elas são muitas e merecidas, vou deixar aqui apenas uma pequena mostra das tantas virtudes do ministro Celso de Mello e o farei com um retrato das audiências que muitos advogados e advogadas tiveram ao longo desses mais de trinta anos com ele. No gabinete, há uma mesa redonda. É ali, ao redor de uma mesa sem cabeceiras, onde não há espaço para lugares fisicamente mais elevados que separem as pessoas em mais ou menos importantes, que o ministro ouvia as partes. Ao som de música clássica, as audiências eram eruditas, cosmopolitas, repletas de informações históricas, com um singular conhecimento da jurisprudência e, acima de tudo, uma absoluta compreensão do caso. Ao redor daquela mesa, as partes se sentiam acolhidas e estimuladas a falar, pois sabiam que seriam ouvidas por um julgador justo e disposto a compreender as múltiplas questões envolvidas nas controvérsias constitucionais. Sempre foram audiências longas, regadas a um café muito forte, num ambiente mergulhado em livros de todos os tipos. Junto à porta de saída havia um quadro com um registro antigo das "Arcadas", a faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, de onde o ministro Celso de Mello é oriundo. "Eu já lhe falei sobre como o ministro Moreira Alves ia dar aula?", o ministro Celso perguntava, dando início a um percurso histórico sobre os professores a quem mais admirava. A memória era prodigiosa e os relatos precisos fascinavam os ouvintes. Qualquer que fosse o caso e a matéria nele envolvida, em algum momento haveria uma deixa para que o assunto migrasse para a vindicação por direitos fundamentais. Nesse momento, em particular, em razão do meu trabalho, surgia a deixa para que o Direito à Felicidade aparecesse. "Você chegou a pesquisar as cartas de Thomas Jefferson?", perguntava o ministro, antes de emendar uma nova incursão fascinante, dessa vez sobre o founding father estadunidense. Era tanta informação, tanto detalhe histórico, que ali surgia uma nova frente de estudo, em questões de minutos, de improviso. Jamais houve limite intelectual ao ministro Celso de Mello, desde o tempo que era promotor de Justiça em Cândido Mota, no interior de São Paulo. "Celso Jurista", seus colegas o chamavam. Essa força intelectual foi cultivada pelos integrantes do seu gabinete. Um time de notáveis. Interpretando a Constituição, o ministro Celso não se limitou a medir a temperatura de um dia. Ele foi, usando uma metáfora deixada por Ruth Bader Ginsburg, mais sensível e sentiu o clima de toda uma era. De seus longos votos (com itálico, negrito e sublinhado), conquistas foram entregues às presentes e futuras gerações. Assim como as linhas retas e curvas que pelas colunas do arquiteto Oscar Niemeyer dão sustentação ao edifício-sede do Supremo Tribunal Federal, o decano combinou a certeza do Direito com as múltiplas possibilidades da Justiça. E fez história. A sua independência, o seu compromisso com o Supremo, a sua dedicação aos casos, o seu respeito pela advocacia, o time por ele formado para ao seu lado atuar no gabinete por ele liderado..., tudo isso fará muita falta com a sua aposentadoria. Quanto mais o tempo seguir a marcha, mais vivo será o legado do ministro Celso de Mello. Um homem que viveu a verdade e percorreu o caminho.
segunda-feira, 14 de setembro de 2020

A Corte Fux

Dia 11 de setembro de 2020, o ministro Luiz Fux, aos 67 anos, ascendeu ao posto de presidente do Supremo Tribunal Federal. Para Oliver Wendell Holmes Jr, um dos mais influentes juízes da história da Suprema Corte dos Estados Unidos, "a vida do Direito não tem sido a lógica, mas experiência"1. Na trajetória do ministro Fux, sobra experiência. 38 anos se passaram entre a posse como juiz de Direito no Estado do Rio de Janeiro e a presidência do STF, tendo sido desembargador do Tribunal de Justiça carioca e ministro do Superior Tribunal de Justiça. Algumas prognoses já foram lançadas quanto à Corte Fux. Thiago Prado e Paulo Celso Pereira, de O Globo, fizeram a sua aposta: "Ao assumir o STF, Luiz Fux mira uma Corte mais distante da política"2. Isadora Peron e Luísa Martins, no Valor Econômico, anotaram que "na presidência do STF, Fux quer evitar novas derrotas à Lava Jato"3. Já Matheus Teixeira, na Folha de São Paulo, estampou o seguinte: "À frente do STF, Fux deve priorizar economia e evitar pautas polêmicas como corrupção, drogas e aborto"4. Qualquer que seja a análise, é preciso reconhecer, antes, que a Suprema Corte de hoje é diversa da encontrada pelas 48 presidências anteriores.   Primeiro, os fatores exógenos. Para além da catástrofe da pandemia da Covid-19, há as tempestades políticas. Por isso, vale perguntar: há, por exemplo, um processo de impeachment aberto contra o presidente Jair Bolsonaro? Se a resposta for negativa - e ela é -, pelo menos essa tormenta o presidente Luiz Fux não deve enfrentar. Não até aqui.   O último ano da presidência do ministro Ricardo Lewandowski (2014-2016) foi impactado pelo processo de impedimento da então presidente Dilma Rousseff, já que além da judicialização da questão no STF, foi necessário que o ministro exercesse a sua competência de presidir as sessões do Senado Federal5. Mais tarde, caiu no colo da presidente Cármen Lúcia (2016-2018) o tumulto político gerado pela gravação de uma conversa do presidente Michel Temer com Joesley Batista6 e, na sequência, a pressão para que fossem pautadas as ações declaratórias de constitucionalidade voltadas à discussão sobre a prisão em segunda instância7, cujo destinatário era o ex-presidente Lula, ao tempo preso. Outro elemento de turbulência são as grandes operações policiais quando há acusações de violação de direitos, notadamente o devido processo legal. O então presidente Gilmar Mendes (2018-2010) se viu às voltas com a operação Satiagraha. A concessão de um habeas corpus ao banqueiro Daniel Dantas pautou o noticiário nacional8. Como consequência daquele tempo, a aprovação da Súmula Vinculante nº 11, a "súmula das algemas", reclamou tempo e energia da presidência9. O ministro Ayres Britto (2012-2012), nos sete meses à frente do STF, dedicou-se a dar início ao julgamento da Ação Penal nº 470, o "caso mensalão". Esse julgamento consumiu também a presidência do ministro Joaquim Barbosa (2012-2014). Os furacões penais ganharam ápice na presidência do ministro Dias Toffoli (2018-2020), que viu as ações da sua gestão serem engolidas pelo inquérito das fake news (Inquérito nº 4781)10. Hecatombes palacianas e mega-operações policiais tensionadoras do devido processo legal costumam sacodir as presidências do STF. A Corte Fux viverá isso? Há também os elementos endógenos. O desenho institucional atual do Supremo quanto ao seu funcionamento é diferente de antes. Houve a quebra histórica do poder de agenda exclusivamente entregue ao presidente para pautar temas no plenário. O ministro Luiz Fux será o primeiro a sentar na cadeira de presidente dividindo a tinta da sua caneta, nesse particular, com os outros dez ministros e ministras. Em março desse ano, em razão da pandemia do coronavírus, o então presidente Dias Toffoli anunciou a alteração do art. 21-B do Regimento Interno (Emenda Regimental nº 53/2020), consolidando tais alterações nas Resoluções nºs 642/19 e 669/2020. "Todos os processos de competência do Tribunal poderão, a critério do relator ou do ministro vistor com a concordância do relator, ser submetidos a julgamento em listas de processos em ambiente presencial ou eletrônico, observadas as respectivas competências das Turmas ou do Plenário", consta11. Foi a expansão da competência do plenário virtual, antes concentrado no exame da repercussão geral dos recursos extraordinários, mas que, agora, pode julgar o mérito de qualquer ação. Cada relator assumiu o papel de gestor do timing do julgamento dos seus próprios casos, inserindo-os no plenário virtual quando quiser. Outra peculiaridade da Corte Fux será a accountability interna. Na Suprema Corte dos Estados Unidos, cuja composição conta com nove ministros e ministras, quando um jovem assessor indagava ao justice Willian Brennan como havia sido possível um dado julgamento, o juiz levantava a mão, mexia os cinco dedos e dizia: "Cinco votos. Com cinco votos podem fazer qualquer coisa por aqui"12. Na Corte Fux será diferente. O presidente contará, a partir de 31 de outubro de 2020, além da necessidade de maioria dos votos, com o ministro Marco Aurélio como decano. O estilo será diferente do ministro Celso de Mello, decano atual. O ministro Nelson Jobim, que já presidiu o Supremo, se referia ao ministro Marco Aurélio como "aquele motorzinho de dentista"13. Haverá cobranças públicas persistentes.   Mas as mudanças recentes feitas pela presidência do ministro Dias Toffoli podem ajudar a evitar desgastes com os pares causados quase sempre por atuações individuais. Tramita no STF a proposta de emenda regimental que atribui ao relator a competência para decidir, em caso de urgência, as medidas cautelares, com a condição de submetê-las imediatamente ao Plenário ou à respectiva Turma para referendo, preferencialmente em ambiente virtual, sob pena delas não gerarem efeitos. Uma das alterações no Regimento Interno e na Resolução nº 642/2019, aprovada recentemente, foi a que estabelece a necessidade de submeter a referendo do Plenário a decisão do relator sobre pedido de tutela de urgência contra atos dos presidentes da República, da Câmara dos Deputados, do Senado Federal14 ou do próprio STF15. É, para além da desconcentração de poder do presidente, um apelo à colegialidade. Mas há concentração também. Deu-se ao presidente a competência para despachar como relator, até eventual distribuição, as petições, os recursos extraordinários e os agravos em recurso extraordinário ineptos ou manifestamente inadmissíveis, inclusive os que, conforme a jurisprudência, não tenham repercussão geral. O presidente também atuará como relator, até eventual distribuição, nos recursos extraordinários e agravos com pretensão contrária à jurisprudência dominante ou à súmula do STF. Talvez a mudança recente mais significativa tenha sido a gestão dos temas com repercussão geral trazidos pelos recursos extraordinários. Até aqui, a média tem sido de aproximadamente 70% de reconhecimento da repercussão geral e 30% de rejeição16. Acontece que agora (i) é mais fácil votar o mérito das repercussões gerais; (ii) é possível reverter o conhecimento de repercussões gerais passadas; e (iii) o quórum para reconhecimento de natureza constitucional da matéria que será submetida à apreciação da repercussão geral subiu de quatro para seis votos17. Tirando o ano de 2007, quando o instituto da repercussão geral no Supremo era embrionário18, o ano de 2020 foi o ano de menor quantidade de temas reconhecidos. Apenas 30. Em 2011, foram 152. Isso diz muito e impacta a condução dos casos no STF.   Em 2012, ano do julgamento do "mensalão", a Corte julgou o mérito de apenas 7 temas. Em 2014, o ano recordista em apreciações, foram 47. Em 2020, até o dia 1º/9, foram 84. Nada igual jamais ocorreu. Tudo fruto da expansão do plenário virtual. Essa mudança é um divisor de águas para a gestão do contencioso estratégico no Supremo. Apenas para ilustrar, em maio de 2019 foi reconhecida a repercussão geral do Tema nº 1.049 (RE nº 1.156.197), de relatoria do ministro Marco Aurélio. Em agosto de 2020, pouco mais de um ano depois, o mérito da disputa já tinha sido apreciado. Esse será o tempo médio de tramitação de um tema com repercussão geral: um ano.        Outros elementos que devem ser considerados pelo contencioso estratégico perante a Corte Fux são as suspensões de segurança (ou de liminar) e as conciliações.  O art. 13 da lei 191/36, que, regrando o mandado de segurança, introduziu a suspensão entre nós, passou a permitir que pessoa de direito público (União, Estados, Municípios e suas autarquias e fundações públicas) requeira a suspensão da eficácia de decisões desfavoráveis, desde que demonstrados os pressupostos objetivos da grave lesão à ordem, saúde, segurança e, a partir de 1964, à economia pública19. A jurisprudência do STF permite que pessoas jurídicas de direito privado, quando no exercício de atividades públicas essenciais, gozem de legitimidade para defender esse interesse público primário, desde que haja fundado receio de que a execução de decisão coloque em risco o serviço essencial por elas prestado. Alessandra Baldini e Leonardo Santos Costa lembram ainda, citando precedentes, que o mesmo vale para partidos políticos20, agente público afastado de suas funções21, Defensoria Pública22, Tribunais de Contas e demais órgãos despersonalizados quando em defesa de suas prerrogativas23. A suspensão de segurança (e de liminar), de competência do presidente do STF, tem sido usada como um "super trunfo". É preciso se familiarizar com o instrumento. Quanto às conciliações, elas certamente comporão a Corte Fux e poderão ser ventiladas nos mais variados casos e em qualquer tipo de classe processual, atém por que, para além da predileção do presidente Fux pela iniciativa, o ministro Dias Toffoli, na véspera de deixar a presidência, aprovou a Resolução nº 697/2020, que dispõe sobre a criação do Centro de Mediação e Conciliação. Segundo o art. 3º, "a tentativa de conciliação poderá ocorrer nas hipóteses regimentais de competência da Presidência ou a critério do relator, em qualquer fase processual". Houve tentativa de conciliação pelo ministro Luiz Fux, por exemplo, nas ações diretas de inconstitucionalidade 5956, 5959 e 5964, que questionam a constitucionalidade da Medida Provisória nº 832 e da Resolução nº 5.820/2018, da ANTT, que estabeleceram a política de preços mínimos do transporte rodoviário de cargas (frete)24. Vale lembrar que das 33 audiências públicas convocadas na história do Supremo, 10 foram da iniciativa do ministro Fux. Foi quem mais as convocou25.  E quanto à sua filosofia judicial? Certa feita, no Tribunal Superior Eleitoral num debate com o ministro Gilmar Mendes, o ministro Fux registrou: "o Direito é aquilo que os tribunais dizem que é"26. Essa linha hermenêutica é chamada de realismo jurídico. Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy explica que o realismo jurídico "levou ao limite a premissa de que juízes primeiramente decidem e depois engendram modelos de dedução lógica"27. A corrente relaciona-se com o pragmatismo e com o law and economics (Direito e Economia ou Análise Econômica do Direito - AED)28. Nada obstante seja pragmática, é importante dissipar qualquer fantasia de que a Corte Fux será indiferente a temas moralmente controvertidos. O presidente e o time de juristas que compõe o seu gabinete compreendem que esses temas chegam às Supremas Cortes por encontrarem na jurisdição constitucional o ambiente habilitado a ouvir as súplicas por proteção adicional, pelos direitos fundamentais, de grupos vulnerabilizados. O ministro Luiz Fux votou favoravelmente às minorias, às vítimas ou às partes suplicantes nos seguintes casos: (i) cotas raciais nas universidades públicas (ADPF 186); (ii) cotas sociais - ProUni - nas universidades públicas (ADI 3330); (iii) cotas raciais no serviço público (ADC 41); (iv) proteção aos ritos religiosos de matrizes africanas que se valem do sacrifício de animais (RE 494.601); (v) uniões homoafetivas (ADI 4277 e ADPF 132); (vi) autorização a transexuais e transgêneros a alterarem o nome no registro civil sem a realização de cirurgia de mudança de sexo (ADI 4275); (vii) doação de sangue por homens que tenham tido relação sexual com outros homens; (viii) equiparação da homofobia e transfobia ao crime de racismo (ADO 26 e MI 4733); (ix) constitucionalidade da Lei Maria da Penha (ADI 4424 e ADC 19)29; (x) interrupção da gravidez de fetos anecéfalos (ADPF 54); (xi) Marcha da Maconha (ADPF 187);  e (xii) inconstitucionalidade das leis que vedam a adoção de políticas de ensino que se referissem a "ideologia de gênero", "gênero" ou "orientação de gênero" (ADPF 460). Além do mais, é indiferente à história o fato de um presidente do Supremo querer ou não tratar de temas controvertidos. Esses temas se impõem à Corte. As causas chegam e negligenciá-las não é garantia de paz. Antes pelo contrário. É como o ministro Marco Aurélio afirmou para a ministra Cármen Lúcia a respeito da sua opção de não pautar as ações declaratórias de constitucionalidade relativas à prisão em segunda instância: "Em termos de desgaste, a estratégia não podia ser pior"30. Apesar da postura altiva quanto à vindicação legítima de proteção de direitos fundamentais, a Corte Fux se guiará pela "deferência ao Poder Legislativo" em tudo o que seja de competência típica desse Poder31. Vale lembrar o que o ministro Fux anotou no julgamento da constitucionalidade do Código Florestal (lei 12.651/2012): "(...) no âmbito do Parlamento, mais de 70 (setenta) audiências públicas foram promovidas com o intuito de qualificar o debate social em torno das principais modificações relativas ao marco regulatório da proteção da flora e da vegetação nativa no Brasil. Consectariamente, além da discricionariedade epistêmica e hermenêutica garantida ao Legislativo pela Constituição, também militam pela autocontenção do Judiciário no caso em tela a transparência e a extensão do processo legislativo desenvolvido, que conferem legitimidade adicional ao produto da atividade do Congresso Nacional"32. Quando se pesquisa na jurisprudência do STF o uso, nos acórdãos, da expressão "deferência ao Legislativo", aparecem três menções do ministro Roberto Barroso, duas dos ministros Gilmar Mendes e Rosa Weber e apenas uma dos ministros Edson Fachin e Cármen Lúcia. Com o ministro Luiz Fux, são oito, quase o triplo do segundo. Essa deferência se desdobra em outras duas vertentes: (i) o reconhecimento da capacidade institucional dos entes especializados; e (ii) a autocontenção. Quanto à expressão "capacidade institucional", eis a radiografia de utilização nos acórdãos: Celso de Mello (13); Dias Toffoli e Edson Fachin (6); Roberto Barroso e Gilmar Mendes (5); Rosa Weber, Ricardo Lewandowski e Cármen Lúcia (3); Alexandre de Moraes e Marco Aurélio (1). Já o ministro Luiz Fux: 30. Quando a palavra é "autocontenção", o resultado é o seguinte: ministro Edson Fachin (6); ministro Roberto Barroso (5); ministro Marco Aurélio (4); ministros Alexandre de Moraes e Rosa Weber (3); ministro Dias Toffoli (2); ministros Ricardo Lewandowski e Cármen Lúcia (1). O ministro Fux utilizou a expressão em 18 ocasiões.      Exemplo é o voto na ADI 4923, sobre o novo Marco Legal da televisão por assinatura (lei 12.485/2011): "1. A revisão judicial de marcos regulatórios editados pelo legislador requer uma postura de autocontenção em respeito tanto à investidura popular que caracteriza o Poder Legislativo quanto à complexidade técnica inerente aos temas a que o Poder Judiciário é chamado a analisar pela ótica estrita da validade jurídica". Deferência também aos marcos regulatórios das agências especializadas33. Essa será a Corte Fux. O presidente não é mais senhor das pautas do plenário e os novos desenhos normativos tentam resgatar a colegialidade. Com tecnologia, julga-se com celeridade. Uma Corte consciente do seu papel na preservação dos direitos fundamentais, mas capaz de ser deferente ao Legislativo ou aos órgãos especializados em certos casos. Uma presidência pragmática e aberta à conciliação. Essa é a expectativa. __________ 1 A frase é famosa, mas a citação vem de Mark Tushnet, no seu "The logic of experience: Oliver Wendell Holmes on the Supreme Judicial Court". Virginia Law Review 63, no. 6 (1977): 975-1052. 2 Clique aqui. 3 Na presidência do STF, Fux quer evitar novas derrotas à Lava Jato. 4 À frente do STF, Fux deve priorizar economia e evitar pautas polêmicas como corrupção, drogas e aborto. 5 Art. 27 da lei 1.079/50: "No dia aprazado para o julgamento, presentes o acusado, seus advogados, ou o defensor nomeado a sua revelia, e a comissão acusadora, o Presidente do Supremo Tribunal Federal, abrindo a sessão, mandará ler o processo preparatório o libelo e os artigos de defesa; em seguida inquirirá as testemunhas, que deverão depor publicamente e fora da presença umas das outras". 6 Julho de 2017, no site do STF: "A defesa do presidente da República, Michel Temer, apresentou petição no Inquérito (INQ) 4483, nesta quarta-feira (19), pedindo para ter acesso aos sete arquivos de áudio recuperados de gravadores usados pelo empresário Joesley Batista para gravar conversa com o presidente. (...) A defesa diz na petição, dirigida à presidente do Supremo, ministra Cármen Lúcia, por conta do período de férias forenses, que já havia feito pedido semelhante ao relator do caso, ministro Edson Fachin, juntamente com o pleito de acesso aos gravadores usados. (....)".  7 ADC's 43 e 44. No julgamento do Habeas Corpus 152.752, cujo paciente era o ex-presidente Lula, o ministro Marco Aurélio, insatisfeito com o fato de a presidente Cármen Lúcia não pautar as ADC's, afirmou: "Vossa Excelência, sei bem, é toda poderosa, no tocante à feitura da pauta dirigida!". A presidente respondeu: "Não, não sou toda-poderosa, sou apenas a Presidente, que tenho a pauta, Ministro". 8 O presidente Gilmar Mendes concedeu duas liminares no Habeas Corpus 95.009 para o banqueiro Daniel Dantas, preso por determinação da 6ª Vara Criminal Federal de São Paulo. O pleno do STF as referendou. 9 "Só é lícito o uso de algemas em caso de resistência e de fundado receio de fuga ou de perigo à integridade física própria ou alheia, por parte do preso ou de terceiros, justificada a excepcionalidade por escrito, sob pena de responsabilidade disciplinar civil e penal do agente ou da autoridade e de nulidade da prisão ou do ato processual a que se refere, sem prejuízo da responsabilidade civil do Estado". 10 Num placar de 10 x 1 - vencido apenas o ministro Marco Aurélio -, o plenário, julgando a arguição de descumprimento de preceito fundamental nº 572, reputou válido o inquérito sobre fake news. 11 STF mantém realização de sessões presenciais e amplia possibilidades de julgamento por meio virtual. 12 Em: The Constitucionalist. Também na obra de Peter Irons, "A people's history of the Supreme Court. The Men and Women whose cases and decisions have shaped our Constitution", publicado pela Penguin Books. Página 416. 13 A expressão foi retratada pelo jornalista Rodrigo Haidar, no perfil que fez do ministro Marco Aurélio por ocasião dos seus vinte anos no Supremo. 14 Em dezembro de 2016, o ministro Marco Aurélio, julgando um pedido cautelar na ADPF 402, determinou o afastamento do senador Renan Calheiros da presidência do Senado Federal. A decisão foi derrubada pelos seus pares em seguida. 15 Emenda Regimental nº 54. 16 Dados e gráficos extraídos do próprio STF. 17 "Art. 324. (...) § 1º Somente será analisada a repercussão geral da questão se a maioria absoluta dos ministros reconhecerem a existência de matéria constitucional". 18 Em 30/11/2007, foi aprovada a Emenda Regimental nº 22, acrescendo o art. 21 ao Regimento Interno do STF: "O Relator comunicará à Presidência, para os fins do art. 328 deste Regimento, as matérias sobre as quais proferir decisões de sobrestamento ou devolução de autos, nos termos do art. 543-B do CPC". 19 Texto complexo sobre a evolução da suspensão de liminar: "Quem é mais legítimo para propor suspensão de liminar?", de Alessandra Gomes F. Baldini e Leonardo P. Santos Costa, publicado aqui. 20 Suspensão de Liminar nº 178-MC (ministro Luiz Fux). 21 Suspensão de Liminar nº 1313 (ministro Dias Toffoli). 22 Suspensão de Liminar nº 866 (ministro Dias Toffoli). 23 Suspensão de Segurança nº 5182 (ministra Cármen Lúcia). 24 Há conciliações lideradas pelo ministro Fux em vários casos: ACO's 347, 652, 1966, 2536, 2865, 3033, 3034, 3038, 3040, 3233 e 3270; MS's 30.952, 34.123 e 35.398; e RCL's 19.537, 16.535, 17.320 e 17.320.  25 ADI 4103 (Lei seca - proibição da venda de bebidas alcoólicas nas proximidades de rodovias); ADI's 4679, 4747 e 4756 (Novo marco regulatório para a TV por assinatura no Brasil); RE 586224 (Queimadas em canaviais); ADI 4650 (Financiamento de campanhas eleitorais); ADIs 5062 e 5065 (Alterações no marco regulatório da gestão coletiva de direitos autorais no Brasil); ADIs 4901, 4902, 4903 e 4937 (Novo código florestal); ADI 5956 (Tabelamento de fretes); ACO 3233 (Conflitos federativos sobre questões fiscais dos Estados e da União); REEE 1037396 e 1057258 (Responsabilização civil de provedores por conteúdo ilícito gerado por terceiros); ADIs 6298, 6299, 6300 e 6305 (Juiz das Garantias).  26 "Gilmar Mendes e Luiz Fux batem boca em sessão do TSE", por Breno Pires, O Estado de São Paulo. 27 O realismo jurídico norte-americano é intrigante. 28 A jornalista Luísa Martins, do Valor Econômico, ao fazer uma matéria sobre a presidência do ministro Luiz Fux, anotou: "Futuro presidente do Supremo Tribunal Federal é um entusiasta da "análise econômica do direito".  29 Nesse julgamento, o ministro Luiz Fux criticou abertamente o machismo estrutural brasileiro: "É a denominada vitimologia machista, a mulher é culpada por ter apanhado". 30 Habeas Corpus nº 152.752, de relatoria do ministro Edson Fachin. 31 Aliomar Baleeiro, que presidiu o Supremo, anotou: "Cúpula de todos eles, o Supremo carrega por precípua missão a de fazer prevalecer a filosofia política da Constituição Federal sobre todos os desvios em que o Congresso Nacional e o presidente da República, Estados, Municípios e particulares se tresmalhem, quer por leis sancionadas ou promulgadas, quer pela execução delas ou pelos atos naquela área indefinida do discricionarismo facultado, dentro de certos limites, a ambos aqueles Poderes. O traçado desses limites, quer quanto ao legislador quer quanto ao executor, nunca foi, não é, nem será nunca uma linha firme, clara e inconfundível. Há uma terra de ninguém nesta faixa fronteiriça". O Supremo Tribunal Federal. Esse outro desconhecido. Rio de Janeiro: Forense, 1968, p. 103. 32 ADC 42 e ADI's 4901, 4902, 4903 e 4937. 33Exemplo: "1. A capacidade institucional na seara regulatória, a qual atrai controvérsias de natureza acentuadamente complexa, que demandam tratamento especializado e qualificado, revela a reduzida expertise do Judiciário para o controle jurisdicional das escolhas políticas e técnicas subjacentes à regulação econômica, bem como de seus efeitos sistêmicos. 2. O dever de deferência do Judiciário às decisões técnicas adotadas por entidades reguladoras repousa na (i) falta de expertise e capacidade institucional de tribunais para decidir sobre intervenções regulatórias, que envolvem questões policêntricas e prognósticos especializados e (ii) possibilidade de a revisão judicial ensejar efeitos sistêmicos nocivos à coerência e dinâmica regulatória administrativa. (...)". AgReg. no RE 1.083.955, de relatoria do ministro Luiz Fux.
terça-feira, 1 de setembro de 2020

Qual o legado da Corte Dias Toffoli?

Em seu discurso de posse na presidência do Supremo Tribunal Federal, em 13 de setembro de 2018, o ministro Dias Toffoli trouxe a criatividade e a inovação tecnológica para o centro da equação jurisdicional: "Precisamos ser criativos. Criatividade - esse é o graal da sociedade contemporânea", afirmou Sua Excelência. Então, explicou: "Novas ferramentas tecnológicas - julgamentos virtuais, comunicação processual por meio de redes sociais, programas de inteligência artificial, arquitetura de computação em nuvem". Ao final, fez um apelo: "Adaptemo-nos às novas tecnologias e às novas mídias. O virtual agora é real".1 Próxima semana, dois anos após aquele dia no qual a criatividade e a inovação tecnológica deram as caras num discurso presidencial, o ministro passará o bastão para o ministro Luiz Fux. O que podemos dizer dessa temporada à frente do Supremo Tribunal Federal? Num exame contemporâneo, qual teria sido a ação que possivelmente dará um lugar na história das presidências do Supremo ao ministro Dias Toffoli? Depende. Antes de tudo, ninguém é ingênuo o suficiente para imaginar que o inquérito das fake news será dissociado historicamente dessa presidência. Não será. Muita gente entende - e eu estou com essas pessoas - que o art. 43 do Regimento Interno do STF2 não foi recepcionado pela Constituição de 1988 nos moldes compreendidos pelo presidente quando da fundamentação da criação do referido inquérito3 e, principalmente, englobando todas as múltiplas medidas adotadas em iniciativas do seu relator, o ministro Alexandre de Moraes. Mas a minha opinião não vincula o Supremo, tampouco integra qualquer ata de sessão. Para além dos fundamentos apresentados, apenas o livro de memórias do ministro Dias Toffoli saberá dizer um dia como nasceu exatamente o Inquérito nº 4781. A respeito desse nascimento, veio à mente um breve trecho de uma reportagem jornalística exibida no documentário Sérgio4, baseado na obra "Chasing the Flame: Sergio Vieira de Mello and the Fight to Save the World", de Samatha Power, ganhadora do Prêmio Pulitzer, sobre o ícone brasileiro morto num ataque terrorista em Bagdá. O trecho mostra um jornalista contando a história que explicaria a decisão do então presidente dos Estados Unidos, George W. Bush, de partir para a guerra no Iraque após o atentado às Torres Gêmeas. Uma delegação da ONU teria saído de Genebra até Washington para indagar diplomaticamente o presidente americano sobre o respeito aos protocolos internacionais para qualquer incursão forçada no Iraque. Todos ficaram aguardando a resposta. Decidido a responder, Bush, um homem experimentado, disse que o problema era grave demais para ser gerido ao som das valsas dos salões de Genebra. "Dançaremos à moda do Texas", teria dito. E partiu para a guerra. O Supremo partiu para a guerra. Foi a forma que encontrou para lidar com uma horda de lunáticos que saíram das sombras para intimidar a Corte. Acontece que a força e o poder não podem suplantar as regras jurídicas. O Supremo existe exatamente para preservar essa regra básica do Estado de Direito. Dobrar-se aos loucos é enlouquecer-se com eles. Mesmo assim, se em qualquer exegese há texto e contexto, então precisamos rememorar um pouco alguns fatos ensejadores dos contextos a partir dos quais os textos - no caso, o Regimento Interno do Supremo - podem ter sido interpretados em momentos de tensão institucional extrema. O primeiro deles se deu bem antes, quando o deputado Federal mais votado da história do Brasil, o filho do presidente da República, disse, numa aula de Direito gravada, que para fechar o Supremo bastava "um soldado e um cabo".5 Tripudiava, o parlamentar, da falta de salvaguardas institucionais para a Suprema Corte defender a si mesma de investidas de terceiros contra a sua própria independência. Depois, no julgamento do Supremo ao qual farei menção a seguir, relatos sórdidos vieram à tona, com registros de ministros sendo perseguidos nas ruas, em aeroportos e aviões, tendo suas casas vilipendiadas, seu lares amedrontados e suas vidas e a das suas famílias ameaçadas abertamente nas redes sociais por estruturas organizadas e financiadas com o propósito de intimidar os ministros e ministras do Tribunal.6 Por fim, posteriormente, vem ao conhecimento de todos a matéria de Monica Gugliano na Revista Piauí, cujos disparates retratados podem ser resumidos no seguinte trecho: "Agitado, entre xingamentos e palavrões, o presidente saiu logo anunciando sua decisão: '- Vou intervir!' - disse. Bolsonaro queria mandar tropas para o Supremo porque os magistrados, na sua opinião, estavam passando dos limites em suas decisões e achincalhando sua autoridade. Na sua cabeça, ao chegar no STF, os militares destituiriam os atuais onze ministros".7 Para Carlos Maximiliano, jurista de incomum talento que integrou o Supremo Tribunal Federal, a interpretação serve para "revelar o sentido apropriado para a vida real"8. Parece ter sido a partir dessa "vida real" que a exegese do art. 43 do Regimento Interno se deu. "Eu sou eu em minhas circunstâncias"9, explicou Ortega y Gasset. Talvez as circunstâncias tenham feito o Supremo entender que não daria para resolver questões dessa magnitude com mais uma nota de repúdio publicada no site da Corte.   Dia 18 de junho de 2020, chegou o momento de a decisão do presidente Dias Toffoli de abrir o inquérito ser julgada pelos seus pares. Nove deles, de um total de dez, disseram, na prática, que, se estivessem no lugar do presidente, teriam feito o mesmo que Sua Excelência. Num placar de 10 x 1 - vencido apenas o ministro Marco Aurélio -, o plenário, julgando a arguição de descumprimento de preceito fundamental nº 572, reputou válido o inquérito sobre fake news. O resto fica de insumo para os historiadores e para as conversas de bares.  Esse é um dos espólios da presidência do ministro Dias Toffoli. Não há dúvida. Mas não é o único. Uma presidência dura, em regra, dois anos. Esse foi o tempo em que o ministro esteve à frente do Supremo Tribunal. Presidência nenhuma se constitui como samba de uma nota só. Há tantas ações, tantas iniciativas, tantas decisões, tantos episódios..., que apenas o desconhecimento da engrenagem de uma Suprema Corte é capaz de estereotipar um período de dois anos como sendo absolutamente entregue a uma única iniciativa. Por isso, seria importante perceber, ainda a tempo, algum outro elemento da presidência do ministro Dias Toffoli. Antes, vale identificar e lembrar um breve resumo das cerca de dez queixas que, pelo menos na última década, se tornaram as mais comuns nas rodas de profissionais com experiência na defesa de terceiros perante o Supremo Tribunal Federal em julgamentos do plenário. As críticas eram as seguintes:  1) Os julgamentos demoram muito. São anos de idas e vindas entre votos, discussões, vistas, revisões, mudanças de composição, novos votos e a conclusão; 2) Os votos são muito extensos, com longas remissões históricas, teóricas ou contextuais. É possível fundamentar uma decisão sem precisar de 200 páginas para isso; 3) Há muitas redundâncias no processo deliberativo. Deveria haver a leitura do voto do relator, da eventual divergência e, no máximo, concorrências pontuais com algum fundamento adicional. Não é preciso onze longos votos dizendo a mesma coisa com palavras diferentes; 4) Desrespeita-se advogados e partes quando acontece dos patronos viajarem muitas vezes até Brasília, cruzando o país, chamados pelo Tribunal em razão de casos anunciados na pauta e, após horas a fio esperando no plenário, vir a notícia de que os casos não serão julgados e que sequer é sabido quando voltarão à pauta; 5) Não há espaço na pauta do plenário para todos os casos que aguardam julgamento. Muitos deles, mesmo liberados pelos relatores, não são apreciados; 6) O presidente não deveria ser o senhor absoluto da agenda do plenário. Esse poder deveria ser compartilhado de algum modo com os demais colegas da Corte; 7) As sessões não começam no horário, o intervalo é longo e às vezes elas terminam antes das 18h; 8) A regra de divisão do tempo de sustentação oral dos amici curiae pode ensejar situações como a de patronos terem de expor seus argumentos por apenas dois minutos, um minuto ou até mesmo menos de um minuto; 9) Quando casos pautados no plenário não são julgados e simplesmente desaparecem do radar presidencial para que possam retornar à pauta, todo o trabalho anteriormente feito pelos patronos nas audiências é perdido; 10) Muitas vezes a temperatura das discussões no plenário sobe tanto que a impressão que sem tem é a de que já não é mais o caso que está sendo julgado. Dediquei a última década da minha carreira a repetir essas queixas. Repetia não por falta de assunto, mas porque era, de fato, o que sentia na pele todos os dias sendo um advogado que milita no Supremo. Essas críticas, feitas por muitos advogados e advogadas, eram justas. Merecidas.  Tudo seguia do mesmo jeito até que, em março desse ano10, em razão da pandemia do coronavírus, o presidente, ministro Dias Toffoli, anunciou a alteração do art. 21-B do Regimento Interno (Emenda Regimental nº 53/2020), consolidando tais alterações nas resoluções nºs 642/19 e 669/2020. "Todos os processos de competência do Tribunal poderão, a critério do relator ou do ministro vistor com a concordância do relator, ser submetidos a julgamento em listas de processos em ambiente presencial ou eletrônico, observadas as respectivas competências das Turmas ou do Plenário", consta do art. 21-B do RISTF. Foi o anúncio da expansão do chamado plenário virtual, o ambiente hospedado pelo site do Supremo onde é possível haver deliberações no espaço digital sem a presença física e síncrona de todos os ministros, como há nas deliberações físicas do plenário. Foi um choque para nós. Como serão as sustentações orais? Quando disponibilizarão os votos dos ministros? Por que apenas cinco dias úteis se ainda há a sexta-feira disponível para a continuidade do julgamento? Como manter a figura do voto por omissão, se ele, em julgamentos de mérito, é claramente inconstitucional? Onde ficarão disponibilizados os vídeos das sustentações orais? O Conselho Federal da OAB se manifestou formalmente. Num ofício enviado para a presidência do STF, a entidade expôs todas suas preocupações com a operacionalização dos julgamentos virtuais de precedentes célebres que sempre foram apreciados fisicamente no plenário da Casa, jamais num ambiente digital. O receio era de comprometimento do devido processo legal, do contraditório e da ampla defesa.11  As preocupações surtiram efeito. Meses depois, na última sessão administrativa do semestre, foram aprovadas quatro propostas de emendas ao Regimento Interno e uma Resolução para a alteração da Resolução nº 642/2019, corrigindo todas as falhas do sistema de votação virtual, incluindo o fim do "voto por omissão". Vídeos de sustentações orais passaram a ser vinculados ao processo com acesso público por qualquer pessoa através do site do Supremo. Os votos passaram a ser disponibilizados em tempo real. O julgamento passou a contar com mais um dia útil para que os advogados e advogadas façam o seu trabalho de persuasão dos julgadores. Por fim, caso o ministro não vote, o seu silêncio será computado como ausência, não como voto.12 Hoje, o atual modelo de processo deliberativo virtual dos julgamentos de mérito de casos cuja competência constitucional é do plenário do Supremo deu respostas a todas as dez críticas mais comuns feitas na última década e anteriormente expostas por mim. As respostas são as seguintes:   1) Os julgamentos virtuais têm dia e hora para começar e se encerrar. A não ser que haja vista ou destaque, o caso começa no primeiro instante de uma sexta-feira e termina no último instante da sexta-feira seguinte; 2) Os votos passaram a ser objetivos, relatando suscintamente o caso e partindo diretamente para a fundamentação; 3) A regra tem sido a apresentação dos votos escritos do relator e da divergência, podendo haver um aporte adicional de fundamentos em direção à mesma conclusão de um dos votos; 4) Os advogados não precisam mais cruzar o país para ficarem sentados no plenário do STF aguardando a notícia de que seus casos, mesmo pautados, não serão julgados. O julgamento virtual não é mais uma esperança. É uma realidade; 5) Acabou a escassez. O plenário virtual suporta qualquer quantidade de casos; 6) O presidente deixa de ser o senhor absoluto da inserção em pauta dos casos que serão apreciados pelo plenário. Cada relator assume o papel de gestor do timing do julgamento dos seus próprios casos, inserindo-os no virtual quando quiser; 7) Não há atrasos nas sessões virtuais; 8) Acabou a disputa por segundos de tempo de sustentação oral dos amici curiae. Todos podem mandar as suas sustentações com o tempo integral de 15 minutos; 9) O caso pautado, a não ser que haja vista ou destaque, será julgado; 10) Não há desarmonia no plenário virtual. Os julgadores estão focados nos casos. Evidentemente que a nova realidade traz com ela novas queixas. A minha sustentação oral é mesmo assistida? Como pode, uma Suprema Corte, fixar dezenas de precedentes na mesma semana? Há condições de reflexão verdadeira com esse volume de casos de plenário apreciados ao mesmo tempo? E as questões de ordem ou os esclarecimentos? São efetivos? E se os julgadores quiserem fazer perguntas aos patronos? Como fazer? O fato de ser uma sessão virtual sem interação física entre os ministros priva o caso da atenção que ele merece? Todas essas são questões que devem ser respondidas pela nova presidência do Supremo e os advogados e advogadas não renunciarão a um centímetro que seja de devido processo legal, contraditório e ampla defesa na jurisdição constitucional. Mas uma coisa é aperfeiçoar algo que foi construído, outra é passar décadas queixosos dos mesmos problemas sem ver nada mudar. Agora mudou. E mudou para valer.   A expansão do plenário virtual, operada na presidência do ministro Dias Toffoli, não apenas cumpre o que anunciado em seu discurso de posse, mas, indo além, cria algo absolutamente novo em termos de jurisdição prestada por Supremas Cortes ou Cortes Constitucionais. É algo original, pioneiro, corajoso. O sucesso de uma ideia é feito desses elementos. Não para passar sem críticas, mas para inovar sem medo. Houve uma histórica ressignificação da tribuna do Supremo. Apesar de formalmente qualquer advogado poder ocupá-la, materialmente nunca foi fácil fazê-lo. Eu me lembro bem daquela tribuna. O primeiro obstáculo de acesso físico é um degrau escondido sob o carpete claro que cobre o piso. Logo que ele é vencido, há o fino microfone. Um pouco mais abaixo, um pequeno espaço, semelhante a uma escrivaninha, para que o patrono ou a patrona possa colocar suas anotações, os autos do processo, livros ou quaisquer outros materiais de suporte à sustentação. Há um copo com água. À direita, cinco julgadores. À esquerda, outros cinco. O Presidente fica no meio. Ali é o santuário da advocacia. É a realização, perante a Suprema Corte, do art. 133 da Constituição, que diz ser o advogado "indispensável à administração da justiça, sendo inviolável por seus atos e manifestações no exercício da profissão, nos limites da lei". Agora, aquela tribuna está em qualquer aparelho com áudio e vídeo conectados à internet. Isso, num país continental de mais de um milhão de advogados. A quebra desse paradigma empoderará muitos profissionais ansiosos por justiça que, antes, terminavam afastados da vindicação por direitos fundamentais perante a Corte Suprema pelo fato de não conseguirem suportar os variados custos de uma disputa no Supremo. Essas novas lideranças já começam a surgir. E elas estão suplicando por justiça constitucional absolutamente conscientes do poder transformador da Constituição Federal. Exemplo é o advogado autodeclarado indígena Luiz Henrique Eloy Amado, o Eloy Terena, de 32 anos, nascido em uma aldeia da etnia terena em Aquidauana/MS. No recente julgamento do referendo da cautelar concedida nos autos da arguição de descumprimento de preceito fundamental nº 709, ele representou a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), e fez a defesa oral de Paris, onde cursa pós-doutorado na Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais da França. O STF, por maioria, confirmou a determinação para que o governo federal adote medidas de contenção do avanço da Covid-19 nas comunidades indígenas. Eloy Terena deu início à sua sustentação afirmando que aquela era uma ação histórica. "Porque pela primeira vez, no âmbito da jurisdição constitucional, os povos indígenas vêm ao judiciário, em nome próprio, por meio de advogados próprios, defendendo interesse próprio".13 Em qual Corte Constitucional do mundo isso seria possível, dessa forma? Em qual Suprema Corte esse jovem advogado assomaria a tribuna sem quaisquer requisitos adicionais, na condição de patrono do ente plural representativo dos indígenas, por videoconferência ou tendo encaminhado um vídeo, numa disputa nacional histórica travada no âmbito da jurisdição constitucional? No Brasil isso é possível. E nós celebramos essa abertura.   A tribuna, que é o santuário da advocacia, agora está em todas as mesas profissionais, nas salas de advogados, nos escritórios ou no canto improvisado de um apartamento pequeno, no Brasil ou no exterior. Onde quer que haja um advogado ou uma advogada habilitada num processo constitucional com previsão de defesa oral, lá estará o Supremo, com seus onze ministros e ministras abertos a ouvir. O inquérito das fake News foi a guerra que a Suprema Corte decidiu - ou se viu obrigada - a viver. Muitos de nós, olhando à distância, dizemos que teríamos feito diferente. Mas, entre dez ministros, nove disseram que teriam feito, com uma ressalva aqui e outra acolá, a mesma coisa. Há tempos de guerra e tempos de paz. Há quem diga que, às vezes, para se conseguir a última, é preciso percorrer a primeira. Mas quanto à expansão dos julgamentos virtuais e à introdução das sessões por videoconferência, pelo contrário, não há guerra com ninguém. O que há é emancipação. E é a emancipação do outro que imortaliza presidentes. Earl Warren, presidente da Suprema Corte dos Estados Unidos de 1953 a 1969, sofreu maus bocados com as investidas da John Birch Society, que pedia seu impeachment em todos os lugares. Ele, ao seu modo, seguiu tocando a marcha em frente. Quando Warren morreu, Mae Taylor, aos 66 anos, tendo trabalhado na equipe de limpeza do Capitólio, do outro lado da rua, foi se despedir de um homem que jamais conhecera. "Devemos muito a ele, ele queria direitos iguais para todas as pessoas".14 O presidente Dias Toffoli não é Earl Warren. Cada presidente tem a sua personalidade, o seu estilo e é responsável pelos seus acertos e desacertos. Mas o fato é que ele fez algo raro e, como anotou o ex-presidente dos Estados Unidos John Adams, "os fatos são coisas teimosas". O ministro Toffoli transformou uma promessa lançada na folha de um discurso de posse em realidade. Criatividade e inovação tecnológica. Dois anos depois, já de partida da presidência, ninguém pode dizer que ele não cumpriu o prometido. A expansão do plenário virtual tornou o Supremo ainda mais aberto. Mesmo com todas suas imperfeições, essa abertura, no âmbito da jurisdição constitucional, eleva o semelhante que suplica por acesso à justiça à luz da Constituição. Ela emancipa. Esse é, para mim, o maior legado da Corte Dias Toffoli. Por ele, o ministro será sempre lembrado. __________ 1 O discurso de posse está disponível aqui.  2 "Art. 43. Ocorrendo infração à lei penal na sede ou dependência do Tribunal, o Presidente instaurará inquérito, se envolver autoridade ou pessoa sujeita à sua jurisdição, ou delegará esta atribuição a outro Ministro. § 1º Nos demais casos, o Presidente poderá proceder na forma deste artigo ou requisitar a instauração de inquérito à autoridade competente. § 2º O Ministro incumbido do inquérito designará escrivão dentre os servidores do Tribunal".  3 A Portaria GP nº 69, de 14 de março de 2019, determinou a abertura do Inquérito nº 4781 no âmbito do STF, para investigar a existência de notícias fraudulentas (fake news), denunciações caluniosas, ameaças e infrações revestidas de animus calumniandi, diffamandi e injuriandi, que atingem a honorabilidade e a segurança do STF, de seus membros e familiares.  4 Documentário de 2009, dirigido por Greg Barker, disponível na plataforma Netflix.  5 Disponível aqui.  6 O julgamento da ADPF nº 572 pode ser visto aqui.  7 Disponível aqui.  8 Maximiliano, Carlos. Hermenêutica e aplicação do direito. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1965, p. 22.  9 A frase consta na primeira obra do filósofo espanhol, Meditaciones del Quijote, de 1914.  10 Ver aqui.  11 No Ofício nº 42/2020-PCO, endereçado à Presidência da Suprema Corte, o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil havia anotado: "O deslocamento do ambiente decisório - a despeito de simplificar e facilitar debates - não pode ignorar as regras constitucionais referentes ao controle de constitucionalidade. Não há modalidade de julgamento por omissão, tampouco existe voto por presunção no plenário físico, de maneira que o mesmo entendimento deve ser aplicado às sessões virtuais".  12 Ver aqui.  13 Para ter acesso à íntegra da sustentação oral, acesse. 14 No original: "Mae Taylor, who was sixty-six and had worked on the cleaning staff of the Capitol, just across the street, came to say goodbye to a man she had never met. 'We owe a lot to him, he wanted equal rights for all people', she told a reporter. 'America is a better place because he lived'". Obra de Peter Irons, "A people's history of the Supreme Court. The Men and Women whose cases and decisions have shaped our Constitution". Penguin Books, p. 420.
segunda-feira, 17 de agosto de 2020

Que força é essa, mulher?

Que força é essa, mulher, que vi nos Estados Unidos, quando, em 1955, o doloroso e incompleto processo de libertação racial da nação ganhou o reforço de Rosa Parks, a costureira negra corajosa que se recusou a ceder seu assento no ônibus ao senhor branco que o reclamava com base nas injustas Leis Jim Crow? Daquela força na cidade de Montgomery, uma rama de igualdade floresceu como Rosa. Em Nazaré do Piauí, no nosso país, dois séculos antes foi preciso Esperança para tentar realizar essa mesma aspiração. Tendo aprendido a ler, Esperança Garcia passou a denunciar maus tratos e abusos contra quem, como ela, era escravizado. Apenas a centelha de uma coragem infinita é capaz de acender numa mulher escravizada essa retidão de caráter a ponto de acreditar no Direito e na Justiça mesmo em condições tão hostis. Ela foi a nossa primeira advogada. Antes, em 1694, Dandara, a guerreira negra no Brasil colonial, se atirou de uma pedreira ao abismo, após ter sido capturada. Ela jamais aceitaria retornar à escravidão. Perdeu a vida e, apenas com a morte, recuperou, noutro plano, a sua dignidade. Esse tipo de poder infinito está espalhado por todos os lugares, como flores levadas pelas correntes dos ventos, em qualquer era, semeando os campos femininos com essa inclinação persistente para a integridade e a coragem. Na Checoslováquia comunista, Milada Horáková, advogada e política checa, foi executada sob acusação de conspiração e traição, aos 48 anos de idade. Enquanto a corda percorria o seu pescoço, antes do golpe final do cadafalso, Milada disse: "Perdi essa luta, mas eu sigo com honra". O tempo não apaga histórias imortais. E elas são muitas. A Constituição sul-africana de 1996 abriu espaço para a criação da Comissão da Verdade e Reconciliação. Por intermédio da Comissão, a história de Phila Ndwandwe foi conhecida. Phila foi morta a tiros pelas forças de segurança do governo do apartheid, depois de ser mantida nua, sob tortura, durante semanas na tentativa de fazer com que delatasse seus companheiros. Não delatou. Ela manteve a sua dignidade confeccionando calcinhas e usando uma sacola plástica azul, vestimenta que foi encontrada envolvendo sua pélvis quando da exumação do seu corpo. "Ela simplesmente não falava", testemunhou perante a Comissão um dos policiais envolvidos em sua morte. "Meu Deus..., ela era corajosa!". A artista plástica sul-africana Judith Mason chorou ao ouvir os depoimentos dos assassinos de Phila. "Quem dera eu ter podido fazer um vestido para você". A artista juntou sacolas plásticas azuis descartadas e as cozeu, fazendo um vestido. Na saia da veste, pintou a seguinte carta: "Irmã, uma sacola plástica talvez não seja a armadura completa de Deus, mas você estava lutando com unha e dentes e contra poderes superiores, contra os senhores da escuridão, contra a maldade espiritual em lugares sórdidos. Suas armas era seu silêncio e um pouco de lixo. Achar aquela sacola e vesti-la até ser exumada foi algo tão frugal, sensato, um ato de esposa zelosa, um ato simples..., em algum nível, você envergonhou seus captores, e eles não acrescentaram a seus maus tratos um segundo desnudamento. Mesmo assim, mataram você. Só sabemos sua história porque um homem com um riso constrangido lembrou-se de como você foi corajosa. Há testemunhos de sua coragem por toda parte; sopram pelas ruas e perambulam nas ondas e se enroscam nos espinheiros. Esse vestido é feito de alguns deles. Hamb kahle. Umkhonto (descanse em paz)".1 Que força é essa, mulher? Ela reverbera um elo universal. Há mais testemunhos. Lembrem-se da estreia da carreira de advogada de Ruth Bader Ginsburg, defendendo a igualdade entre os sexos perante as leis dos Estados Unidos. Ela, muito jovem, ocupava a tribuna num Tribunal inteiramente masculino quando um dos julgadores interrompeu o seu argumento: "A palavra 'mulher' não aparece uma única vez sequer na Constituição dos Estados Unidos!". Ruth respondeu: "Nem a palavra 'liberdade' originariamente aparecia, Excelência". Era preciso mudar. Ganhou o caso. Mulheres de todas as cores. Adultas, jovens ou mesmo crianças. Da cidade ou da zona rural. Estudadas ou não. Dos lugares mais impossíveis, em qualquer época. Pouco importa. Elas sempre estiveram lá. E continuarão estando. É seu destino. Nas montanhas do vale do Swat, no nordeste do Paquistão, Malala, com 15 anos, desafiou talibãs e insistiu em frequentar a escola, o que era considerado um acinte, por ela ser mulher. Em 2012, num ônibus escolar, um homem armado chamou-a pelo nome, apontou-lhe uma pistola e disparou três tiros. Uma das balas atingiu sua cabeça. Malala sobreviveu. Esse ano, ela postou uma foto em suas redes sociais. Formava-se em Oxford. Esse tipo de gana conduziu no passado a história de Linda Brown, do Kansas, Estados Unidos, em seu triunfo pessoal com efeitos coletivos arrebatadores. Linda não compreendia a razão de seus longos percursos diários para a escola, principalmente quando soube que havia um colégio a quatro quarteirões da sua casa. A criança tinha a pele negra e em seu país a educação era separada pela cor da pele. A escola perto de casa era para brancos. A questão chegou à Suprema Corte, que a apreciou em 1954. Foi o caso Brown v. Board of Education, que serviu de estopim judicial para o início do longo desmantelamento da segregação racial naquele país. Que força é essa, mulher? Quem olhar com a sabedoria da sensibilidade verá um espontâneo pendor para a liderança e uma liderança cristalizada pelo exemplo. O exemplo de Madre Teresa de Calcutá. O exemplo de Irmã Dulce. De Mãe Menininha do Gantois. O exemplo da coragem sem limites de Anita Garibaldi, cujo nome está no Livro dos Heróis da Pátria, depositado no Panteão da Liberdade e da Democracia, em Brasília. O exemplo das mulheres para quem o Banco Grameen foi criado, enxergando no microcrédito o sopro de ar para uma Bangladesh sufocada pela pobreza. 97% dos mutuários do banco são elas, as mulheres, seriamente comprometidas em adimplirem suas dívidas mesmo que não haja documentos nem contratos de empréstimos. Livres dos agiotas, elas conquistaram pão e asas. Passa da hora de mudar. Precisamos menos de um Juízo Final que nos machuque como um pai cruel e mais de uma mãe justa como é a Mãe Natureza. Necessitamos menos de alter ego e mais de alma mater. Que a justiça seja feita menos de martelos e mais de balanças, menos de poder e mais de autoridade. É fundamental que eles, os Códigos, não fiquem entregues a si mesmos, mas submetidos aos domínios derradeiros delas, as Constituições, como a Constituição de 1988. Uma Constituição que abriu o portal dos direitos fundamentais com seus 78 incisos do art. 5º, mas que, como primeiro deles, escolheu aquele cuja redação diz: "homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos termos desta Constituição". Uma Constituição que reconhece que quando o bebê chora de fome, pouco importa se a mãe desfruta de liberdade ou não. Ela assegura às presidiárias "condições para que possam permanecer com seus filhos durante o período de amamentação". Uma Constituição que traz como um dos objetivos fundamentais promover o bem de todos, sem preconceitos de "sexo" e quaisquer outras formas de discriminação. Uma Constituição que ao dispor sobre os direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, assegura a "proteção do mercado de trabalho da mulher, mediante incentivos específicos, nos termos da lei" e proíbe "qualquer diferença de salários, de exercício de funções e de critério de admissão por motivo de sexo". E uma Constituição que determina que os direitos e deveres referentes à sociedade conjugal são exercidos "igualmente pelo homem e pela mulher". Mas não bastam as leis, tampouco as Constituições. A transformação definitiva não ocorrerá sem o insubstituível elemento humano, vocês, que não falam apenas em nome próprio, mas por intermédio das procurações metaforicamente dadas pela sua linha ancestral, as bisavós, avós e mães de cada uma. Que falam para o amanhã, para filhas, netas e bisnetas. Vocês são as advogadas do passado, do presente e do futuro. Uma travessia como essa jamais será fácil. O terreno costuma ser extremamente escorregadio. Acham que foi fácil para a advogada e política britânica Margaret Thatcher? Mais diligente do que o seu gabinete masculino, Thatcher obteve dele, no final da sua longa temporada como Primeira-Ministra, apenas inveja e traição. Essa é uma luta que visa a reconstruir as bases do edifício acinzentado do poder contemporâneo para que, a partir da nova formatação desses pilares, possa o edifício inteiro se tornar mais vivo, mais colorido e mais funcional. Mas o poder não cede passagem. Ele é renitente. Vocês são as desbravadoras em suas embarcações e ele o mar revolto sob os lances das tempestades, com monstros marinhos argutos dando botes a todo instante. Por isso, saibam que não chegarão lá com timidez. Não. Passem com coragem e uma grande dose de atrevimento. Cruzem esse limite artificialmente imposto com bravura e resignação. Passem em marcha, de mãos dadas, com cânticos ou em silêncio. Protejam-se. Passem unidas, em harmonia, guiadas por um propósito emancipador. Passem sem pedir licença, sem pedir desculpa, sem pedir perdão, sem baixar a cabeça nem desviar a vista. Passem com suas mentes e seus corpos, ao seu modo, do seu jeito. Apenas passem. Lembrem-se de Conceição Evaristo, que alertou para o grave fato de que não há apenas a "pedra" no meio do caminho. Há ainda "pau, espinho e grade": "'No meio do caminho tinha uma pedra',Mas a ousada esperançade quem marcha cordilheirastriturando todas as pedrasda primeira à derradeirade quem banha a vida todano unguento da corageme da luta cotidianafaz do sumo beberragemtopa a pedra pesadeloé ali que faz paradapara o salto e não o recuonão estanca os seus sonhoslá no fundo da memória,pedra, pau, espinho e gradesão da vida desafio.E se cai, nunca se perdemos seus sonhos esparramadosadubam a vida, multiplicamsão motivos de viagem." Passem não apenas por vocês. Passem por nós também. A ideologia machista nos prometeu honra e orgulho. Entregou vergonha, dor e sofrimento. Alcoolismo, pânico, trauma, doença, vício e resistência. Atraso mental, moral e comportamental. Não me refiro às imperfeições daqueles que aqui estão para evoluir. Dos tropeços de um percurso que é mesmo difícil. Dos erros humanos reparáveis, tampouco dos ânimos inerentes a quem tem os córregos do corpo irrigados por sangue, não por água. Somos seres sociais e emocionais. Haverá ruídos sempre. Atos falhos, incoerências, inconsistências, medo ou egoísmo. Tudo isso é vida humana. Não é disso que falo. Falo do machismo. Dessa ideologia impregnada em quase todos os lugares, como manchas que transformam uma linda peça de roupa num rebotalho sem valor. Uma construção velha repleta de cômodos escondidos, difíceis de serem identificados para que possam ser limpos, reformados ou demolidos. Um machismo cujo maior escândalo, o estatístico, deu à luz à Lei Maria da Penha e ao crime de Feminicídio. A realidade trágica fez o Estado reconhecer que as mulheres precisariam de armaduras institucionais para se protegerem das investidas covardes. Mas não recuamos, não reconhecemos o fracasso que o machismo é. Chegamos ao ponto de, em nome dele, tirarmos a vida de mulheres a quem dizíamos amar. Quando não, ceifamos a vida dos novos amores das mulheres cujos corações não nos ofereciam mais morada. Para o machismo, "não" não é "não". Que ímpeto é esse? O machismo acabou conosco. Tornou os ambientes decisórios menos diversos, menos holísticos e pouco interessantes. Excludentes e concentradores. Mais do mesmo. Disse ainda que seríamos mártires. Terminamos em calabouços sombrios, presos, alijados do banquete de uma vida social abundante e repleta de possibilidades. No limite, sua perspectiva extrema gerou assediadores, agressores, estupradores e assassinos. Nada de honra, nem orgulho. Apenas ultraje. Muito antes, ele já havia prometido que faria de nós heróis, que venceríamos guerras, que seríamos aplaudidos e lembrados. E pelo menos nas duas grandes guerras, lá estávamos matando pessoas, inimigos e amigos, homens e mulheres, idosos e crianças. Do outro lado do front, estavam elas, as mulheres, que não deram causa a nada daquilo, e, mesmo assim, foram compulsoriamente mergulhadas nos hospitais e seus equivalentes, para curarem e repararem tanto mal. A cura pela qual Ana Néri voluntariamente perseverou, em nosso nome, muito antes, na Guerra do Paraguai. Cura. Há muitas formas de vivê-la. Em Jerusalém, no Museu do Holocausto (Yad Vashem), foi agraciada com a rara honraria de "Justa entre as Nações", Aracy Moebius de Carvalho Guimarães Rosa, que, na sua condição de funcionária do Consulado brasileiro na Alemanha, ajudou judeus a entrarem ilegalmente no Brasil durante a Segunda Guerra Mundial, salvando todos eles. Salvar vidas é algo nobre. Curar pessoas é divino. Matá-las, não. Vocês são o fio de água no chão árido, a linha que percorre a pele fechando feridas abertas. E esse poder de realizar a alquimia da cura está aí para quem quiser ver, nessa terrível pandemia. Quais nações animam puro orgulho? Alemanha, Nova Zelândia, Taiwan, Islândia, Dinamarca, Finlândia e Noruega. Quem as governa? Sim, elas. Que força é essa, mulher? Os homens não podem se enxergar como inimigos do descortino dessa jornada. Se buscam um nome masculino para tomarem como alguma referência nessa conversa, que se inspirem em John Stuart Mill, autor da obra "Sobre a sujeição das mulheres". Ele afirmava que a igualdade de direitos, deveres e oportunidades entre homens e mulheres, notadamente no campo da educação, da propriedade e da participação política, contribuiria para a ampliação da felicidade de toda a coletividade. Mill chegou a integrar o Parlamento Britânico e a propor leis nesse sentido. Era um liberal e um democrata. Essa foi a mensagem desse homem, em 1869. No século XXI, qual é a sua mensagem, meu irmão? Precisamos de novos marcos filosóficos, de premissas que libertem, não que aprisionem. Propostas teóricas que advirtam, plantando entre nós o "nunca mais". Necessitamos ter em nossas cabeceiras obras escritas por quem viveu a verdade e percorreu o caminho, por quem fala sobre o que sentiu na pele. É dessa experiência que vem a autoridade, um elemento muito mais valioso do que o poder. Obras como a de Hannah Arendt, judia que escapou do holocausto liderado por um homem que se dizia forte. Hannah advertiu sobre a origem do totalitarismo. Trabalhos como o de Djamila Ribeiro, que escreve sobre aquilo o que vive, não apenas sobre o que conhece de ouvir dizer. Djamila adverte sobre o mal do racismo. Ainda assim, mesmo inspiradas por mulheres que entregaram suas razões e seus sentimentos para uma caminhada sem igual, a verdade é que essa jornada jamais terá fim. Um edifício ajuda a explicar a afirmação acima. Do lado de fora do plenário da sede da Corte Constitucional da África do Sul, em Joanesburgo, há um painel com luzes vermelhas de neon e uma mensagem em língua portuguesa: "A luta continua". Inspirada no mote político em busca por independência vindo de Moçambique, a expressão do letreiro mostra para as pessoas que entram e saem da Corte Constitucional, local destinado a ouvir súplicas por justiça, que não há descanso na jornada de vindicação por direitos. Encerrando-se um ciclo, outro se inicia. Também é assim nessa aventura histórica. Na realização da vossa emancipação, não há descanso. A luta sempre continua. Mas esse não pode ser um problema insuperável para quem chegou até aqui. Siga edificando. Você é forte. Forte demais. Ela, a força, está contigo. Sempre esteve. ____________ 1 Sachs, Albie. Vida e direito: uma estranha alquimia. Tradução de Saul Tourinho Leal. São Paulo: Saraiva, 2016, p. 14.
segunda-feira, 3 de agosto de 2020

Rede de Ódio

Estreou semana passada, na Netflix, "Rede de Ódio", obra polonesa desse ano dirigida por Jan Komasa e escrita por Mateusz Pacewicz. Não é um filme. É uma profecia. Ele começa com a cena de uma bela sala repleta de alunos atentos a seus laptops, em suas mesas, dedicados aos estudos na faculdade de Direito de Varsóvia. Tomasz Giemza, contudo, está sozinho, disperso e aflito. O jovem estudante tem que dar explicações à professora de Direitos Humanos, Hoff-Studnicka, e a outro professor do departamento. A acusação é grave: plágio. Confrontado, ele tenta convencê-los da sua própria interpretação sobre o incidente. É um jovem manipulador, mas, ali, seus truques retóricos não têm poder algum. "Plágio não é interpretação", diz a professora. "Você violou a lei na faculdade de Direito", encerra o professor. Tomasz é expulso. Assunto encerrado. Em seguida, aparece a jovem Gabriela Krasucka, a "Gabi", seu eterno amor, filha de Robert e Zofia, que têm Tomasz como um sobrinho pela ligação com seus pais, que eram moradores de uma vila distante onde a família Krasucka costumava passar as férias. A família paga a faculdade e não faz a menor ideia da sua recente e vexatória expulsão. Gabi estava atrasada para o jantar. Ficou presa por conta de uma manifestação. No trajeto, escuta gritos: "Mortes aos inimigos da Pátria!". Em seguida, lê uma faixa: "Europa branca ou nenhuma Europa!". Quando chega, todos já estão à mesa. Zofia, Robert e Tomasz. "É difícil imaginar que no século XXI os fascistas viriam para as ruas", desabafa Robert, dando início à noite. O apartamento elegante, com música de bom gosto aclimatando a ambiência da sala decorada, tem uma mesa bem-posta. Taças de vinho branco harmonizam o camarão preparado por Zofia. Tomasz tem dificuldade de cortá-lo. Mastiga e engole a cauda, que deveria ser deixada de lado. Com um gole d'água, faz um bochecho. Gabi olha, constrangida. Há sete anos Tomasz espera dela uma resposta ao seu convite para serem amigos na rede social. Quando ele parte, os três zombam da sua falta de habilidade à mesa. A lembrança que ele havia dado para a família - um pote de geleia de morango -, é doada para a empregada Oksana: "Ela é gulosa, gosta de coisas doces", diz Robert. Os três gargalham. Perguntada por Zofia se conhece o dormitório da universidade onde Tomasz reside, Gabi responde: "Por quê? Eu sei como é. Homens suados, sopa instantânea e uma longa fila na porta do banheiro". A gargalhada se repete. Depois, noutra cena, o manipulador Tomasz está saindo de uma boate e encontra Beata Santorska. Ele sabe quem ela é. Insatisfeito com seu emprego de moderador de rede social, com salário atrasado, Tomasz vê no encontro uma grande oportunidade. Ele estava disposto a tudo. Havia tocado o fundo do seu poço particular. Beata foi demitida da agência de publicidade onde trabalhava. Perdeu o primeiro filho. Criava, sozinha, uma criança. Expulsa do seu nicho de mercado, restou-lhe o comando da Best Buzz, uma agência de assassinato de reputações. Destruiria pessoas, violaria a lei e infringiria a ética. Não titubeou em aceitar. "Eu lhe mostro o que um millennial é capaz de fazer", diz Tomaz. O primeiro job dizia respeito à FitAneta, celebridade fitness das redes sociais que ganhava dinheiro com produtos detox. A Best Buzz havia sido contratada para organizar uma campanha de perda de popularidade para reduzir o perfil público da jovem. Tomasz propõe a estratégia: espalhar que o suco dela é prejudicial. A cúrcuma (açafrão-da-terra) excederia o limite de betacaroteno (pigmentos amarelo-alaranjados de frutas e vegetais), o que faria com que as pessoas ficassem com partes do corpo amareladas. Não tendo percorrido os níveis mais elevados de educação formal, Tomasz descobriu tudo na internet. Assim montou seu plano. Era o que lhe bastava. Na reunião na Best Buzz, ele mostra a mão maquiada. "Vamos criar a hashtag '#FiqueiAmarelo', plantar informações e fazer uma bola de neve disso". Beata topa. A garota fitness é rapidamente destruída. Quando vê um vídeo dela desesperada, Beata vibra e agradece a Tomasz. Eles tinham liga. Fariam, a partir dali, o mal, juntos. Gabi reaparece. Era o aniversário de Natália, sua irmã. O buffet da recepção orgulhosamente anuncia que a comida é "vegetariana e sem glúten". Na recepção, ela diz que o jovem Staszek Rydel, que trabalha na fundação de sua mãe, havia estagiado no MoMa, Museu de Arte Moderna, em Nova Iorque. Pergunta a Tomasz se ele conhece o MoMa. "A Mãe? Claro!". Não fazia ideia. Gabi percebe. Rapazes tocam piano e violoncelo. Zofia avisa que Robert fará um discurso. Todos se aproximam. "Tribalismo, nacionalismo, autoritarismo....", discursa Robert, segurando a taça de champanhe. Ele enaltece a filha aniversariante, Natália, seu orgulho. Frisando que ela era uma estudante de Oxford, confere à moça a grave missão de lutar por um futuro melhor. "Uma filha assim é uma benção para seus pais", finaliza. Aplausos. Já Gabi, a irmã, é apresentada como "uma menina muito talentosa e sensível". "Um dia ainda vai nos surpreender", fecha Robert. Sem mais. Nada mais. Gabi havia passado o ano anterior afundada em depressão e terapias, lutando contra a dependência química. Na noite na qual Tomasz conheceu Beata, ela havia capotado num sofá, drogada. Tomasz a resgatou e a levou para casa a salvo. No aniversário, Gabi chama Tomasz para um quarto, uma espécie de depósito. Lá, mostra-lhe droga e o convida a usar. Robert, o pai, vê. Nada diz. Depois, para Gabi e Zofia, responsabiliza Tomasz, chama-o de mentiroso compulsivo. "Isso é de família!", bufa. Tomasz ouvia tudo, chorando escondido. Gabi não revela a verdade. Deixa Tomasz levar a culpa. Depois disso, se afasta dele completamente. Na Best Buzz, Beata mostra o site do candidato a prefeito de Varsóvia, Paweł Rudnicki, o bem-intencionado gay liberal contrário aos populistas nacionalistas. Esse será o segundo job. Rudinicki precisa ser destruído e o caminho é conhecido: as redes sociais. Beata ordena a compra de 80 perfis falsos de jovens entre 20 e 25 anos. Tomasz inicia a campanha de desinformação, associando o candidato à "islamização da Europa" e à "vinda em massa de refugiados". Ele cria a página "Parem a Islamização!". Um fluxo inimaginável de vídeos, fotos e posts ganha impulsionamentos. A campanha não apanha apenas radicais estúpidos. Pessoas esclarecidas também se permitem alienar. Tudo é monitorado, estudado, capitalizado e serve de base para as novas estratégias da agência. O candidato lamenta os ataques anônimos, mas diz que "tentativas de censura na internet prejudicam o debate e violam a liberdade de expressão". Melhor para Tomasz. Certo dia, ele pede comida por delivery. Quando vai à porta do apartamento, vê que o entregador estrangeiro está com um grande hematoma no rosto. Tinha sido agredido. Havia um marginal de um lado do computador manipulando anonimamente as pessoas, e, nas ruas, bandidos dispostos a, pela violência, dar asas ao seu próprio radicalismo. Tomasz vê que sua campanha estava dando certo. Num dado momento, Beata lhe entrega o audiolivro "A Arte da Guerra". Nele, diz-se que para vencer uma guerra é preciso ter um espião, um agente duplo que seja manipulado segundo a vontade do líder. Tomasz precisa encontrar o seu. Ele começa a procurar num clube de tiro. Não encontra. Junto com os homens com quem lá estivera, vai ao bar. Vê o candidato Rudnicki na televisão. Pergunta a um dos colegas o que acha. "Eu lhe daria um tiro na cara", responde. Tomasz completa: "Viado idiota! Puta esquerdista!". Todos riem. Aparece Stefan Guzek Guzkowski, o "Guzek". "Um idiota, um anormal", alerta um dos jovens. Guzek queria viralizar os vídeos que fazia. No passado, havia escondido explosivos num porão, tendo sido apanhado pela polícia, mas sem consequências. Agora, passava o dia inteiro, todos os dias, no computador, jogando MMO (no qual jogadores, de seus computadores, interagem entre si). Ele lidava com a sua baixa autoestima e com uma vida sem sentido exibindo-se nas redes sociais atirando com armamento pesado. Num dos vídeos, elogia uma AK-47 e pede um like ao final. "É o colapso da nossa civilização", diz, diante de uma manifestação pacífica em Varsóvia. Em seguida: "Querem enterrar o velho continente cristão". Ao final, pede: "Precisamos de grandes homens, de grandes feitos". Guzek não fazia nada de grandioso na vida. Mesmo assim, em seu quarto escuro no pequeno apartamento onde vivia com a avó, entendia que ele seria o grande homem que salvaria o continente europeu e a civilização. "Na Europa, abundam hordas islâmicas que ameaçam os valores fundamentais sobre os quais o nosso mundo foi construído", afirmou. Numa cena, tenta medicar a avó doente. Ela o despreza. Depois, estapeia o rosto de Guzek com grande violência. Ele volta para o quarto. Coloca as mãos sobre a cabeça, desesperado. Era tudo o que Tomasz precisava. Ele, valendo-se do anonimato, cria um personagem sedutor no jogo e passa a conversar com Guzek. Elogia seus feitos, credencia-o como homem eleito para salvar a Europa e passa a lhe dar pequenas missões desestabilizadoras da candidatura de Rudnicki. Na exposição Neuropea, realizada na fundação de Zofia, Guzek tenta formular uma pergunta ao candidato Rudnicki. Robert - enfiado num elegante cachecol -, intervém. Guzek, sem ter talento sequer para articular ideias, argumentos e perguntas, é retirado do ambiente. "Porco comunista! Fora o comunismo!", grita. Tudo é gravado e espalhado na internet. Beata vibra uma vez mais. E ganha dinheiro com isso. O cliente, um candidato opositor, faz uma nova encomenda: um escândalo social. A missão cabe a Tomasz. Ele droga Rudnicki, o atrai para um bar gay, beija-o e, ao vê-lo dançando com outros homens, parte. Guzek filma e espalha nas redes sociais. "Pervertido", escreve. O vídeo viraliza e desestabiliza novamente a campanha. Tomasz cria, pelas redes sociais, eventos antagônicos para o mesmo dia, hora e local. Um contra e o outro a favor do candidato. Atrai centenas de pessoas para ambos. Ninguém fazia a menor ideia de onde aquela iniciativa havia partido. Mas, no dia e hora marcados, estavam lá, manipulados pelas fabricações virtuais da Best Buzz. Chega a hora de Tomasz dar a última missão para Guzek. Tudo é arquitetado por meio dos jogos de computador. Guzek não sabia quem era Tomasz. Mesmo assim, recebe a missão do personagem do jogo. A ele caberia salvar a civilização e impedir a Europa de tombar diante das "forças do mal". Para isso, a solução: armas de fogo. Num momento de hesitação, porém, escuta de Tomasz, que queria convencê-lo a não desistir: "Para eles - as elites -, você será sempre um Zé Ninguém! Um Zé Ninguém!". Posteriormente, Guzek retruca: "O que vocês sabem sobre como é viver nesse buraco? Voltar para casa e não ter nada, exceto quatro paredes?". Chorava. Tomasz tinha uma vida familiar colapsada, havia perdido a mãe, sido expulso da faculdade, foi um moderador medíocre de rede social e teve de suportar o desprezo de Gabriela, o amor da sua vida. Beata, demitida da agência de publicidade da qual fazia parte, perdera um filho e tentava criar, sozinha, outro. Passara a ganhar dinheiro destruindo pessoas. O limitado Guzek era maltratado pela avó, desprezado por todos e vivia uma vida vazia, tentando, sem êxito, ser notado na internet. Do outro lado, a família Krasucka, cujas virtudes intelectuais eram eclipsadas por uma certa empáfia, defendia valores elevados enquanto negava a verdade de que tinha em casa uma filha dependente química que precisava de ajuda, dividia as irmãs dando mais afeto a uma em detrimento da outra, e agia com preconceito contra Tomasz, mesmo ajudando-o materialmente. Essa era a matéria-prima da rede de ódio. Por anos, radicais nacionalistas armados ou jovens simplesmente perturbados diziam que seus países sucumbiriam à matança vinda de fora, de inimigos externos. Pediam que as pessoas se armassem para combater o mal estrangeiro. Mas, na verdade, eles próprios é quem matariam seus concidadãos. Eram eles os assassinos. Foi assim na Noruega, em 2011, quando o militante nacional da extrema-direita Anders Behring Breivik matou 77 pessoas (69 jovens integrantes do Partido Trabalhista Norueguês em Utøya e 8 pedestres em Oslo).1 No Brasil, também em 2011, na Escola Tasso da Silveira, no Município do Rio de Janeiro, o brasileiro Wellington Menezes de Oliveira matou doze alunos, com idade entre 13 e 16 anos. Foi o Massacre do Realengo.2 O mesmo em 2019, em Christchurch, Nova Zelândia, quando Brenton Tarrant, militante de extrema-direita, assassinou pelo 51 pessoas que frequentavam a mesquita Al Noor e o Centro Islâmico Linwood.3 No filme, Guzek é mais um desses. Ele vai à convenção eleitoral de Rudnicki e, munido de uma submetralhadora roubada por Tomasz do clube de tiro, promove uma matança em seu país, contra os seus próprios concidadãos. Esse é, no filme, o resultado de uma jornada que se iniciou com um jovem de má índole, frustrado, sozinho num dormitório, diante do computador. Ele enxergava naquela tela o portal aberto para que, alheio a qualquer responsabilidade ética ou jurídica, fizesse o que quisesse para conquistar a atenção que jamais obteve seguindo as regras do jogo. Aliado a uma empresária inescrupulosa, Tomasz criou o seu próprio gabinete do ódio, para amealhar prestígio, poder e dinheiro. Ele queria ir à forra. E foi. O filme convida à reflexão. A Constituição brasileira pressupõe a ideia de consciência, cuja liberdade está assegurada no art. 5º, VI. Garante ainda a convicção filosófica ou política (inciso VIII do art. 5º). Mas como construir a sua consciência, a sua convicção, a partir da mentira ou do delírio? Como erguer um conjunto ordenado de ideias de base racional a partir das quais você tomará uma decisão, se, a matéria-prima dessas ideias, é pura alienação repassada por meio das múltiplas fontes de informação das quais você se abastece diariamente? O filme também coloca em xeque o trabalho de agências como a Best Buzz. Fala de assassinato de reputações nas redes sociais. É daí que vêm alguns dos cancelamentos?4 É de onde partem as campanhas para dislikes? Os comentários odiosos? As hastags alavancadas? Essa é uma atividade lícita? O que tem de intelectual nesse tipo de trabalho? De artístico? De científico? De comunicação? Uma Best Buzz poderia fazer o que fez no filme, independentemente de censura ou licença, em nosso país? O mesmo se diga do processo eleitoral. Segundo o art. 14, § 10, da Constituição, nenhum mandato eletivo pode ser obtido com base em fraude. Mas a mentira nas redes sociais é a grande fraude do nosso tempo. No filme, fica claro que a legitimidade do processo eleitoral ao qual o candidato Paweł Rudnicki se submeteu era uma quimera. O eleitor de Varsóvia votaria segundo a sua consciência e a sua convicção. Mas a consciência e convicção seriam formadas a partir do que chegaria até eles vindo de Tomasz, que não mostrava a cara, não jogava limpo e tinha lado na disputa. O seu jogo era sujo e dessa sujeira emergiria o resultado da eleição para prefeito da cidade. Rede de Ódio é mais do que um filme. É um aviso, uma antevisão, uma profecia. Mostra a tendência de que muitos fatos da vida contemporânea deixem de ter qualquer espontaneidade. Eles perderam a sua própria verdade. É como se nada mais fosse real. Seja a ascensão e queda de celebridades das redes, seja a glória e o fracasso de candidatos na internet, sejam os eventos agendados online, seja a competição entre empresas concorrentes no ambiente virtual, seja o valor de companhias no mercado..., tudo pode ser muito facilmente manipulado por interesses não revelados, diretamente influenciados por aspirações desconhecidas, em prejuízo dos cidadãos ou dos consumidores, da democracia ou da livre concorrência, com consequências verdadeiramente perigosas. Há dinheiro envolvido. Também há busca por prestígio e poder. Somos todos apenas marionetes nesse grande teatro? É isso o que nos restou? O filme mostra jovens excitados, em desprezo à ética e ao Direito, brincando com nossas vidas e com conquistas granjeadas ao longo dos séculos, a partir da internet, como se vivessem um game, mas, nele, os personagens somos nós. Gente inescrupulosa, cansada do fracasso e percebendo a disposição dos voluntários, arregimentam seus exércitos, organizam os procedimentos, precificam os feitos e criam um novo mercado: a rede de ódio. Estamos em perigo. Contudo, pelo menos no filme, não nos damos conta disso. O game precisa continuar e quem quer que se oponha a isso será destruído na velocidade de um clique. Que fim lamentável é esse reservado a todos nós. Que seja apenas no filme. Oxalá. _____________ 1 A obra definitiva a respeito é "One of Us: The Story of a Massacre in Norway - and Its Aftermath", da extraordinária jornalista norueguesa Åsne Seierstad. Há tradução para a língua portuguesa da Editora Record. Baseado na obra, há o filme "22 de julho", na Netflix, do diretor inglês Paul Greengrass. 2 A imprensa brasileira tem vasto material a respeito. Apenas para ilustrar: clique aqui . Caso haja interesse em ler a carta deixada pelo assassino: clique aqui. 3 O assassino australiano se declarou culpado. Disponível em: clique aqui. 4 A BBC Brasil, numa longa matéria de Mariana Sanches, explica a cultura do cancelamento. Disponível em: clique aqui. John McDermott, do The New York Times, também escreveu a respeito: clique aqui.
terça-feira, 21 de julho de 2020

Fracassocracia

Não se fracassa persistentemente em algo sem que haja, para além da vocação para a derrota, certa engenharia de procedimento. É preciso cometer, de forma planejada, os mesmos erros, sempre. Se o sucesso tem um método, o fracasso também tem. Na edição de 18/7/2020, O Globo trouxe entrevista de Joel Birman à jornalista Maria Fortuna. Médico pela UFRJ onde leciona psicanálise, com consultório há mais de 40 anos, doutor em Filosofia pela USP e dono de um Jabuti (2013) pela obra "O sujeito na contemporaneidade", Birman disse: "O brasileiro hoje, diante do mundo, aparece como um ser violento, xenófobo, agressivo, racista, homofóbico, ressentido."1 Não foi o primeiro alerta. Em maio, Fernando Henrique Cardoso, Aloysio Nunes Ferreira, Celso Amorim, Celso Lafer, Francisco Rezek, José Serra, Rubens Ricupero e Hussein Kalout publicaram o artigo "A reconstrução da política externa brasileira". Referindo-se ao governo, destacaram "o desapreço por questões como a discriminação de raça e de gênero" e "os preconceitos de uma minoria obscurantista e reacionária".2 Antes, em 2019, Ricupero já havia chamado a atenção, em entrevista a Jamil Chade, no Uol, para o seguinte: "Hoje em dia, o que caracteriza um governo admirado, merecedor de prestígio internacional, é seu comportamento nos domínios que integram o conjunto de aspirações da humanidade: direitos humanos, meio ambiente, promoção de igualdade entre mulheres e homens, tolerância e respeito pelas minorias, combate à desigualdade social e racial. Cada sociedade será julgada em última instância pela maneira como trata seus membros mais frágeis e vulneráveis".3 A partir de constatações como essas, intelectuais brasileiros enxergam a consolidação entre nós de uma "caquistocracia", que seria, na expressão de Michelângelo Bovero, "o governo dos piores".4 No meu modo de ver, o que temos experimentado, desde o dia 1º de janeiro de 2019, é algo diverso. O compromisso inarredável não é o de ter os piores nas posições de poder do governo. A profissão de fé é, na verdade, o fracasso. Vamos começar pela primeira crítica a essa atmosfera: o racismo. A escravidão, catapultada pelo tráfico de africanos pelo globo, foi um modo de produção, além de indigno, alheio aos princípios de democracias liberais com economias dinâmicas reconhecedoras dos direitos fundamentais. Não enxergava a dignidade da pessoa humana como um valor intrínseco de cada um. Era um absurdo moral. Tampouco conferia o status de cidadania aos escravos. Portanto, um vandalismo político. Para Adam Smith, em 1776, que a tinha como um jogo de soma negativa5, a escravidão não estimulava o nascimento de um mercado consumidor emergente. Logo, era também uma contradição econômica, pois negligenciava a necessidade de cooperação e confiança. Pilhagem desumana, apenas. A barbárie dos mais fortes sobre os mais fracos. Nos Estados Unidos, resultou numa guerra onde os vitoriosos foram os anti-escravagistas que, triunfando sobre o Sul, impuseram a 13ª Emenda à Constituição, pondo fim a essa história. A colonização de nações europeias sobre o continente africano foi outro fracasso. Mais um tipo de pilhagem que gerou disfuncionalidades sociais, violações de toda ordem, concentração de riqueza e ressentimentos políticos eternos. Uma tragédia em nome da "civilização". A segregação racial nos Estados Unidos, por meio das Leis Jim Crow, foi atirada ao chão pela Suprema Corte a partir da década de 1960. Já o apartheid sul-africano partiu o país em pedaços, social e economicamente, além de expor as vísceras de um regime político não apenas repulsivo, mas insustentável. Uma vez derrubado e humilhado, o apartheid cedeu espaço para eleições que consagraram Nelson Mandela, alguém que havia lutado - com palavras, livros e armas -, contra aquele mal completo. Alguém duvida que, além da indignidade que impôs, o racismo fracassou? Em 2015, um estudante jogou fezes e urina na estátua de Cecil Rhodes, na Universidade da Cidade do Cabo, África do Sul. Eu estava lá. A presença do colonizador racista britânico causava vergonha e o fato de o seu dinheiro ter servido para ajudar a fundar a universidade pouco importou. A estátua simplesmente tinha que sair dali. E saiu, retirada pela própria instituição. Esse ano, foi a vez da estátua de Cecil Rhodes ser retirada do espaço de destaque que ocupava em Oxford, Inglaterra, de onde fora aluno e para quem deixara um pedaço da sua fortuna. A decisão foi tomada graças a uma votação envolvendo os funcionários da instituição.6 Uma vez mais o dinheiro doado por Rhodes foi indiferente à desonra que o seu racismo hoje representa. Numa democracia liberal moderna alicerçada na ideia de direitos fundamentais, o racismo não merece qualquer espaço de glória. No Brasil, o racismo não é apenas um vício moral. É um crime. O mesmo se diga da homofobia. Julgando a Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão nº 26 e o Mandado de Injunção nº 4733, o Supremo Tribunal Federal, sob a relatoria do decano, o ministro Celso de Mello, definiu que as condutas homofóbicas e transfóbicas, reais ou supostas, que envolvem aversão odiosa à orientação sexual ou à identidade de gênero de alguém, por traduzirem expressões de racismo, compreendido este em sua dimensão social, ajustam-se à Lei nº 7.716/1989, constituindo, na hipótese de homicídio doloso, circunstância que o qualifica, por motivo torpe (Código Penal, art. 121, § 2º, I, "in fine").7 Quanto mais civilizada é a nação e mais progresso alcançou a alma coletiva, maior abertura há para o reconhecimento dos mistérios que envolvem a sexualidade humana. No Brasil, a comunidade LGBTI+ é articulada, tem pauta bem definida, acumula vitórias perante o STF e tem avançado em sua justa luta por reconhecimento e conquista de espaços de poder. Tanto o racismo como a homofobia são violadores da Constituição. Dois dos princípios que regem as nossas relações internacionais são a prevalência dos direitos humanos e o repúdio ao racismo (art. 4º, II e VIII). O racismo, no qual a homofobia se inclui, constitui crime inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de reclusão (art. 5º, XLII da Constituição e Lei nº 7.716/1989). Somos, a partir do Preâmbulo constitucional, uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos. "Construir uma sociedade livre, justa e solidária" e "promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação" são objetivos da nossa República (art. 3º, I e IV), cujo um dos fundamentos é exatamente a dignidade da pessoa humana (art. 1º, III). Mesmo a liberdade partidária é condicionada ao respeito aos "direitos fundamentais da pessoa humana" (art. 17). Até o pacto federativo ganha exceção quando os direitos da pessoa humana estiverem em risco. A União não intervirá nos Estados nem no Distrito Federal, exceto para assegurar a observância desses direitos (art. 34, VII, "b"). Ou seja, o racista ou o homofóbico não é um sujeito chato que deve ser ignorado. Ele é, no Brasil, um criminoso que precisa ser exposto, investigado, denunciado, condenado e chamado a cumprir a sua pena, nos termos da lei e da Constituição. Quanto à violência, à agressividade e o ressentimento encontrados por Joel Birman na imagem internacional do brasileiro atualmente, parece haver nesse movimento um "militarismo romântico" baseado na ideia de que "a guerra é nobre, enaltecedora, virtuosa, gloriosa, heroica, empolgante, bela, santa, emocionante".8 O romantismo é a forma de ver a vida pelo passado, em desprezo ao presente e sem antever traços do futuro. É como o filme Meia-Noite em Paris, de Woody Allen. Uma fuga infantil. Em março de 2019, em entrevista ao jornal chileno La Tercera, o deputado federal Eduardo Bolsonaro, referindo-se à Venezuela, afirmou que "o uso da força será necessário em determinado ponto", apesar de o Brasil não "querer uma guerra".9 Voltou atrás posteriormente, sob a justificativa de que "a guerra custa caro".10 Como assim, guerra? O Preâmbulo da Constituição reafirma que somos uma sociedade fundada na harmonia social comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias, solução pacífica essa que reaparece no inciso VII do art. 4º como um dos princípios regedores das nossas relações internacionais. A Constituição se refere à paz como algo a ser defendido (art. 4º, VI) e celebrado (arts. 21, II; 49, II; e 84, XX). Quando a ONU nos entregou a liderança da MINUSTAH ("Mission des Nations Unies pour la Stabilisation en Haïti"), no Haiti, sabia que não era uma missão de guerra, mas de paz e, nessa tarefa, somos um dos melhores do mundo. Cumprimos o nosso papel e o fizemos com graça. Em 19 de agosto de 2004, na capital haitiana, Port-au-Prince, aconteceu o "Jogo da Paz". A Seleção Brasileira de Futebol participou de uma partida com a Seleção Haitiana. Repetiu-se a lógica de Nelson Mandela, segundo a qual o esporte há de ser usado para unir, não para separar. Basta lembrar a final da Copa do Mundo de Rugby, em 1995, quando o capitão da seleção sul-africana, François Pienaar, ao ouvir que o time contava no estádio com 16 mil sul-africanos dando apoio, fez uma correção: "Não. Nós tivemos 43 milhões de sul-africanos nos dando suporte".11 Referia-se a toda a população do país. A estratégia da paz pelo esporte já havia sido adotada para conseguir um cessar-fogo na guerra de Biafra, na Nigéria, em 1969, quando o Santos, liderado por Pelé, jogou um amistoso na cidade de Benin e interrompeu um conflito que durava dois anos.12 Então, se somos da paz, como explicar essa agressividade? Esse culto messiânico às armas de fogo? Qual a fonte de inspiração dos delírios relativos à guerra? O art. 5º da Constituição assegura, no inciso XVI, que todos podem reunir-se em locais abertos ao público, desde que pacificamente e sem armas. O inciso seguinte dispõe ser plena a liberdade de associação para fins lícitos, vedada a de caráter paramilitar. Segundo o inciso XLIV, é crime inafiançável e imprescritível a ação de grupos armados, civis ou militares, contra a ordem constitucional e o Estado Democrático. O art. 17, § 4º, por sua vez, veda "a utilização pelos partidos políticos de organização paramilitar". Somos da paz. E somos uns dos melhores nisso. Também veio à tona nos textos que abrem essa coluna a advertência quanto a algum flerte com episódios de xenofobia. Acontece que os líderes xenófobos foram derrotados. Genocídios nasceram da xenofobia. Massacres também. Ufanismos nacionalistas excluíram o capital humano essencial à prosperidade das nações. Comunistas, nazistas, fascistas..., todos eles depositavam suas fichas ideológicas num nacionalismo extremo, isolacionista e profundamente opressor. Esses xenófobos, além de derrotados, foram capturados e presos. Eles não são heróis, são criminosos condenados por um tribunal internacional - o Tribunal de Nuremberg. O nazista Adolf Eichmann foi enforcado em Ramla, Israel, depois de julgado e condenado. Foi esse o final decadente de gente da sua estirpe. Quem é capaz de aplaudir personagens como esses? Enquanto isso, Nova York, nos Estados Unidos, seguia inspirando o mundo com a Estátua da Liberdade dando boas-vindas aos imigrantes. Abrir-se é manter-se firme na crença kantiana: "democracia, comércio, cidadania universal e direito internacional como meio para implementar a paz".13 A vitória não é xenófoba. O fracasso é. No Brasil, o caput do art. 5º da Constituição garante aos estrangeiros a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade. O inciso LII dispõe que "não será concedida extradição de estrangeiro por crime político ou de opinião". Estrangeiros podem assumir cargos, empregos e funções públicas (art. 37, I), podem ser admitidos em nossas universidades como professores, técnicos e cientistas, (art. 207, § 1º) e podem adotar as nossas crianças (art. 227, § 5º). Eles são bem-vindos. Ainda segundo a Constituição, uma das competências da União é manter relações com Estados estrangeiros e participar de organizações internacionais (art. 21, I). Na Corte Internacional de Justiça, em Haia, há Cançado Trindade e, antes, havia Francisco Rezek. Na Comissão Interamericana de Direitos Humanos, Flávia Piovesan. A Organização Mundial do Comércio (OMC) era até bem pouco tempo dirigida por Roberto Azevêdo, diplomata brasileiro. A Organização das Nações Unidas para a Agricultura e a Alimentação (FAO) foi, de 2012 a 2019, dirigida por José Graziano. A projeção que muitos nomes brasileiros granjearam na cena mundial inspira orgulho. Coube a um brasileiro e a um chinês encaminharem a proposta que resultou na criação da Organização Mundial da Saúde (OMS), agência internacional especializada, fundada em 1948, subordinada à ONU. Geraldo Horácio de Paula Souza, médico sanitarista, e Szeming Sze, médico e diplomata, fizeram história. Um ano antes, em 1947, o mundo teve de lidar com a catástrofe do Holocausto após a Segunda Guerra Mundial. O fato de os judeus não terem para onde ir tocava a própria autodeterminação dos povos, deixando exposta uma vulnerabilidade permanente. Foi quando a ONU decidiu aprovar uma resolução criando o Estado de Israel. Quem esteve à frente do processo foi Oswaldo Aranha, representante do Brasil na Assembleia Geral. Coube a ele presidir a sessão da aprovação da Resolução nº 181. Em sua autobiografia, Shimon Peres, que exerceu as mais elevadas posições em Israel, registrou: "Nós podíamos ouvir Oswaldo Aranha, o presidente da Assembleia Geral, chamando para a votação da resolução. Nós ouvíamos com toda a atenção, ao lado de comunidades judaicas de todo o mundo".14 Em homenagem a Aranha, foi construída uma praça em Jerusalém, além de terem atribuído o seu nome a uma rua em Tel Aviv.15 Alguém tem dúvida do quão vitoriosos nós somos no tabuleiro da diplomacia? Que país conseguiu ir tão longe valendo-se dos meios que dispúnhamos e dispomos? Não nos esqueçamos que a maior liderança individual da história da ONU foi um brasileiro, Sérgio Vieira de Mello. Sérgio ajudava a construir e a reconstruir nações. Fez isso no Timor Leste. Morreu em Bagdá, Iraque, vítima de um ataque terrorista. É uma tradição de longa data. Em 1907, o mundo parou pela Convenção sobre a Resolução Pacífica de Controvérsias Internacionais, a "Segunda Convenção de Haia". Nela, Ruy Barbosa defendeu que selecionar para o Tribunal Internacional que ali se desenhava países com maior poderio militar estimularia uma corrida armamentista que desembocaria em guerra, o que contrariaria os objetivos daquela Conferência de Paz. Impressionou as potências. Saiu aclamado mundialmente como a "Águia de Haia". Logo, como é possível a uma nação que deu tanto ao mundo na defesa da paz e dos direitos humanos atualmente determinar, pelo Itamaraty, por exemplo, que seus diplomatas sabotem uma iniciativa da ONU que ajudaria no combate à mutilação genital feminina em garotas na África?16 Querem nos transformar no que, exatamente? A nossa democracia é aberta ao mundo e muito maior do que obsessões cruéis. A República rege-se nas suas relações internacionais pela cooperação entre os povos para o progresso da humanidade e pela concessão de asilo político (art. 4º, IX e X da Constituição). Buscamos a integração econômica, política, social e cultural dos povos da América Latina, visando à formação de uma comunidade latino-americana de nações (art. 4º, parágrafo único). Os direitos e garantias expressos na Constituição não excluem outros decorrentes dos tratados internacionais em que o Brasil seja parte (§ 2º do art. 5º). Tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos podem ser aprovados pelo Congresso Nacional de modo a equivalerem às emendas constitucionais (§ 3º do art. 5º). Por fim, o Brasil se submete à jurisdição de Tribunal Penal Internacional a cuja criação tenha manifestado adesão (§ 4º do art. 5º). Fomos juridicamente empoderados para a cooperação internacional, não para o isolacionismo. Não podemos negar essa vocação. Há ainda a nossa originalidade. Quando o mundo buscava uma solução para os ciclos de hiperinflação, entregando-se ingenuamente aos planos do Fundo Monetário Internacional, criamos o real17, graças à experiência acumulada ao longo de tanto tempo e às custas de muitos fracassos que serviram de aprendizado, não como referencial a ser imitado. O real não é uma moeda, é um tesouro nacional. Na Índia, as notas da rupia estampam a face de Mahatma Gandhi. O rand sul-africano traz o rosto de Nelson Mandela. Todas as cédulas de libra têm a Rainha Elizabeth II. O real brasileiro não copiou nenhum desses modelos. Quem aparece nas nossas cédulas são o beija-flor-de-peito-azul, a tartaruga-de-pente, a garça-branca-grande, o mico-leão-dourado, a onça pintada e a garoupa. Ao contrário de festejar políticos ou heróis, adotamos os animais, especialmente os que correm o risco de serem extintos. Homenageamos os nossos bichos. Tempos depois, quando o desafio global era o combate à fome e não se sabia ao certo qual a melhor resposta estatal a esse drama, montamos o Bolsa Família18, citado pela FAO como um dos responsáveis pela saída do país do Mapa Mundial da Fome, em 2014. Fizemos o que nenhum outro país em desenvolvimento fez. Recentemente o ex-presidente do Banco Central, Armínio Fraga, disse que o Brasil, que já foi exemplo mundial em questões de meio ambiente, voltou, no governo do presidente Jair Bolsonaro, a ser um "pária internacional".19 Meses antes, o diretor-geral para as Américas da consultoria Eurasia, Christopher Garman, afirmou que a questão ambiental é o principal risco para o Brasil em 2020.20 Não são "ongueiros" ambientalistas que estão pedindo respeito à natureza. É o dinheiro. O mercado global. Esse chamamento mundial à responsabilidade ambiental apenas rememora a liderança assumida pelo nosso país desde 1992. Ocorreu no Brasil a convocação para uma nova ética universal relativa à produção e ao consumo. Na reunião - Rio-92, Eco-92 ou Cúpula da Terra -, há quase 30 anos, representantes de 178 países reuniram-se para decidir que medidas tomar para conseguir diminuir a degradação ambiental e garantir a existência de outras gerações. Eles reconheceram o conceito de desenvolvimento sustentável. A Eco-92 foi realizada por nós, em nosso país. Uma nação que conduziu algo dessa magnitude e alterou por completo a lógica global de produção e consumo não pode se entregar a discussões mesquinhas, tais como se devemos transformar a Amazônia em pasto para bois ou não. Chega a ser bárbaro, de tão estúpido que é. O art. 225, § 4º, da Constituição reconhece a Floresta Amazônica brasileira como patrimônio nacional, e sua utilização far-se-á, na forma da lei, dentro de condições que assegurem a preservação do meio ambiente, inclusive quanto ao uso dos recursos naturais. Fiéis a esse compromisso, mantivemos de pé, na Amazônia, uma zona de livre comércio, a Zona Franca de Manaus, que gera meio milhão de empregos diretos e indiretos. Produzimos tecnologias. Com os empregos, ajudamos a preservar a floresta. Quem foi capaz, em qualquer parte do mundo, de erguer, numa floresta, algo assim? O desenvolvimento econômico indiferente ao compromisso ambiental é mais uma ideia fracassada. O mundo não quer esse tipo de produção. O mercado reclama uma ética alicerçada no desenvolvimento sustentável. Quem nega isso ficará para trás. Segundo a Constituição, um dos princípios da ordem econômica é a defesa do meio ambiente (art. 170, VI).21 O Capítulo VI é dedicado ao "meio ambiente". Segundo o art. 225, todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações.22 Preocupado com o que o país tem feito contra o meio ambiente, o ministro do Supremo Tribunal Federal, Luís Roberto Barroso, acaba de convocar audiência pública para que integrantes do governo, entidades de proteção ambiental, especialistas e outros interessados contribuam para um relato sobre o quadro ambiental no Brasil. A decisão foi tomada na Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão nº 60, apresentada por quatro partidos - PT, PSOL, PSB e Rede Sustentabilidade. Segundo o ministro, "o quadro descrito na petição inicial, se confirmado, revela a existência de um estado de coisas inconstitucional em matéria ambiental, a exigir providências de natureza estrutural. Vale reiterar: a proteção ambiental não constitui uma opção política, mas um dever constitucional". Há mais ideias derrotadas de volta ao palco dos acontecimentos. Veja-se, por exemplo, os pedidos de intervenção militar feitos por simpatizantes histriônicos. Esquecem eles que o general João Baptista Figueiredo, esmagado por algo que lhe era estranho - a democracia - saiu pelos fundos do Palácio do Planalto recusando-se a transmitir a faixa presidencial ao eleito, em 1985. Assumiu a presidência com inflação em 40,81% e entregou a 215,27%. Em entrevista ao jornalista Alexandre Garcia, pediu que o povo o esquecesse.23 O povo obedeceu. Não foi difícil. Percebam que são derrotas atrás de derrotas. O mesmo se diga quanto ao culto retórico à tortura. Segundo o art. 5º, III, da Constituição, "ninguém será submetido a tortura". Indo além, a lei considerará crimes inafiançáveis e insuscetíveis de graça ou anistia a prática da tortura (art. 5º, XLIII). Ressuscitar, mesmo que retoricamente, esse tema, é perseverar numa visão obtusa da vida que foi suplantada pelo humanismo. Há mais tragédias. Até o fechamento dessa coluna, eram mais de 80 mil brasileiros mortos pelo Covid-19. Como é possível assistirmos a essa falta de liderança nacional que temos visto na condução das políticas de combate à pandemia do coronavírus, se a nossa experiência conquistada nesse tipo de desafio nos credencia a sermos o farol do mundo? O Ministério da Saúde já havia estabelecido, em 1985, o Programa Nacional de DST e AIDS -PNDST /AIDS (Portaria nº 236) e criado o Departamento de DST, AIDS e Hepatites Virais, visando estimular políticas públicas de prevenção e assistência aos portadores da enfermidade, em sintonia com os princípios e diretrizes do SUS. Em julho de 1996, na Conferência Internacional de Aids, em Vancouver, Canadá, foi anunciado a descoberta do chamado coquetel. Em novembro, o Congresso Nacional aprovou a Lei nº 9.313, obrigando o Estado a fornecer medicamentos de combate a AIDS. No ano 2000, na Conferência Internacional de Aids de Durban, África do Sul, a comunidade internacional reconhecia o acerto da política brasileira, indicando "o protagonismo e a liderança do país nas discussões sobre acesso universal, propriedade intelectual e patentes de medicamentos".24 "Protagonismo e liderança". Com essas ferramentas montamos um programa universal e gratuito de combate aos males do HIV. Mas, hoje, cá estamos nós ouvindo uma homilia pregada no Palácio do Planalto - às vezes no Alvorada - sobre a hidroxicloroquina. Para entender a obsessão, é importante ir ao ano de 2016. Foi da iniciativa do então deputado federal Jair Bolsonaro, o Projeto de Lei nº 4.510/2016, que dispunha sobre o uso da fosfoetanolamina sintética por pacientes com neoplasia maligna (câncer), sem autorização da Anvisa. A Associação Médica Brasileira ajuizou no STF a Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 5501, contra a Lei nº 13.269/2016. A Advocacia-Geral da União, o Conselho Federal de Medicina e o Instituto Nacional do Câncer também eram contrários à lei. O Supremo deferiu a liminar. Para o relator, ministro Marco Aurélio, "a esperança depositada pela sociedade nos medicamentos, especialmente naqueles destinados ao tratamento de doenças como o câncer, não pode se distanciar da ciência. Foi-se o tempo da busca desenfreada pela cura sem o correspondente cuidado com a segurança e eficácia das substâncias. O direito à saúde não será plenamente concretizado sem que o Estado cumpra a obrigação de assegurar a qualidade das drogas distribuídas aos indivíduos mediante rigoroso crivo científico, apto a afastar desenganos, charlatanismos e efeitos prejudiciais ao ser humano". O ministro Roberto Barroso fez uma indagação e advertiu que, nesses casos, "o Estado poderá ser responsabilidade pelos danos causados". Eis a sua colocação: "O que acontecerá se a substância produzir efeitos colaterais adversos ou tóxicos no organismo de pacientes? E se portadores da doença, impulsionados pela medida estatal de liberação, abandonarem os tratamentos médicos convencionais para utilizarem a pílula e, posteriormente, for comprovada a sua inocuidade? Certamente, o Estado poderá ser responsabilizado pelos danos causados." Já a ministra Carmen Lúcia justificou assim o seu voto: "para que não se amplie e não se veja nisso, na pílula do câncer, mais uma pílula de engano para quem já está sofrendo com o desengano a que a doença pode conduzir". O arremate veio com o ministro Ricardo Lewandowski: "o Estado contemporâneo, esse Estado que nós conhecemos, o Estado de Direito, é o Estado que se organiza em bases racionais, e ele é limitado a partir de regras legais de caráter objetivo. Então, não me parece admissível que hoje o Estado, sobretudo num campo tão sensível como é o campo da saúde, que diz respeito à vida, e à própria dignidade da pessoa humana, possa agir irracionalmente, levando em conta razões de ordem metafísica, ou fundado em suposições, enfim, que não tenham base em evidências científicas". Se antes era a fosfoetanolamina, agora é a cloroquina. O fracasso tem método. Em maio desse ano, o Supremo apreciou sete ADIs contra a Medida Provisória nº 966/2020, que trata sobre a responsabilização dos agentes públicos durante a crise de saúde pública. Ela prevê, entre outros pontos, que os agentes públicos somente poderão ser responsabilizados nas esferas civil e administrativa se agirem ou se omitirem com dolo ou erro grosseiro pela prática de atos relacionados com as medidas de enfrentamento à pandemia e aos efeitos econômicos e sociais dela decorrentes.25 No julgamento, o ministro Luiz Fux, que está na iminência de assumir a presidência do STF, vaticinou: "O erro grosseiro previsto na norma é o negacionismo científico. O agente público que atua no escuro o faz com o risco de assumir severos resultados". É o que os estudiosos chamam de "signaling", uma sinalização judicial de postura a ser adotada caso o comportamento potencialmente inconstitucional persista. Não há outra conclusão a se chegar, quanto ao percurso histórico do Brasil em muitas frentes de ação, que não seja a de que o nosso sucesso, local e globalmente, é estrondoso. Isso porque muitas de nossas figuras públicas depositaram nas luzes da razão e do conhecimento suas esperanças. Fizemos a nossa parte com cooperação e empenho. Por isso, é inaceitável que estejamos na condição que estamos. Mais do que um regime de governo, a fracassocracia é um plano que, para vingar, precisa da perseverança dos que, dispostos a segurar a sua alça, querem a todo custo implementá-lo. Como eu anotei no início, se o sucesso tem um método, o fracasso também tem. Mas essa perseverança destrutiva só será possível se nós nos omitirmos. E isso não acontecerá. __________ 1 Disponível aqui. 2 Disponível aqui. 3 Disponível aqui. 4 Disponível aqui. 5 Smith, Adams. A riqueza das nações (1776). São Paulo: Martins Fontes, 2003, p. 281. 6 Disponível aqui. 7 O precedente seguiu a linha jurisprudencial firmada no julgamento do Habeas Corpus nº 82424 (DJ 19/3/2004), o "caso Ellwanger", cuja redação para o acórdão soube ao ministro Maurício Corrêa. Eis um trecho seminal: "8. Racismo. Abrangência. Compatibilização dos conceitos etimológicos, etnológicos, sociológicos, antropológicos ou biológicos, de modo a construir a definição jurídico-constitucional do termo. Interpretação teleológica e sistêmica da Constituição Federal, conjugando fatores e circunstâncias históricas, políticas e sociais que regeram sua formação e aplicação, a fim de obter-se o real sentido e alcance da norma". Outro trecho: "Jamais podem se apagar da memória dos povos que se pretendam justos os atos repulsivos do passado que permitiram e incentivaram o ódio entre iguais por motivos raciais de torpeza inominável. 16. A ausência de prescrição nos crimes de racismo justifica-se como alerta grave para as gerações de hoje e de amanhã, para que se impeça a reinstauração de velhos e ultrapassados conceitos que a consciência jurídica e histórica não mais admitem". 8 Pinker, Steve. Os anjos bons da nossa natureza: Por que a violência diminuiu. Tradução Bernardo Joffily e Laura Teixeira Motta. São Paulo: Companhia das Letras, 2013, p. 269. 9 Disponível aqui. 10 Disponível aqui. 11 Disponível aqui. 12 Evidentemente, há certa propaganda nesse feito. De todo modo, vale conferir. 13 Pinker, Steve. Os anjos bons da nossa natureza: Por que a violência diminuiu. Tradução Bernardo Joffily e Laura Teixeira Motta. São Paulo: Companhia das Letras, 2013, p. 342. 14 Peres, Shimon. No room for small dreams. Courage, imagination, and the making of modern Israel. Weidenfeld & Nicolson, 2017. 15 O Brasil também esteve presente na primeira Missão de Paz da ONU - a Força de Emergência das Nações Unidas (UNEF-1), que em 1948 monitorou a assinatura do Acordo de Armistício entre Israel e seus vizinhos árabes. Desde então participou em mais de 50 dessas operações. 16 Disponível aqui. 17 Disponível aqui. 18 Disponível aqui. 19 Armínio Fraga participava de uma live organizada pelo CEBDS (Conselho Empresarial Brasileiro para o Desenvolvimento Sustentável) que contou com presença do ex-ministro da Fazenda, Pedro Malan. 20 Disponível aqui. 21 É competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios proteger o meio ambiente e combater a poluição em qualquer de suas formas; e preservar as florestas, a fauna e a flora (art. 23, VI e VII). Compete à União, aos Estados e ao Distrito Federal legislar concorrentemente sobre: VI - florestas, caça, pesca, fauna, conservação da natureza, defesa do solo e dos recursos naturais, proteção do meio ambiente e controle da poluição; VII - proteção ao patrimônio histórico, cultural, artístico, turístico e paisagístico; VIII - responsabilidade por dano ao meio ambiente, ao consumidor, a bens e direitos de valor artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico (art. 24). A função social é cumprida quando a propriedade rural atende à utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do meio ambiente (art. 186, II). Compete à lei federal estabelecer os meios legais que garantam à pessoa e à família a possibilidade de se defenderem da propaganda de produtos, práticas e serviços que possam ser nocivos ao meio ambiente (art. 220, § 3º, II). 22 Dispõe ainda a Constituição que qualquer cidadão é parte legítima para propor ação popular que vise a anular ato lesivo ao meio ambiente (art. 5º, LXXIII). Uma das funções institucionais do Ministério Público é promover o inquérito civil e a ação civil pública, para a proteção do meio ambiente (art. 129, III). 23 Disponível aqui. 24 Green, Duncan. Da pobreza ao poder: como cidadãos ativos e estados efetivos podem mudar o mundo. Tradução de Luiz Vasconcelos. São Paulo: Cortez; Oxford: Oxfam International, 2009. Logo no começo de 2001, o Brasil declarou a possibilidade de licenciamento compulsório das patentes de dois medicamentos. No mês de março, conseguiu a redução do preço de um deles. Quanto ao outro, em agosto de 2001, o Ministério da Saúde anunciou o licenciamento compulsório de patente do medicamento, sustentando emergência em razão do custo e do interesse público. Contudo, após o anúncio a detentora da patente reduziu o preço. Todo o histórico nacional pode ser conhecido acessando o site mantido pelo próprio Ministério da Saúde no Brasil. Disponível em: https://www.aids.gov.br/. O Decreto Presidencial nº 4.830/2003, autorizou a importação de medicamentos genéricos, em caso de emergência ou interesse público. Tentava-se, ao tempo, reduzir os custos. O Decreto autorizava ainda a produção, em grande escala, dos referidos antirretrovirais pelo laboratório estatal Far-Manguinhos. 25 As ações foram ajuizadas pelos partidos Rede Sustentabilidade (ADI 6421), Cidadania (ADI 6422), Partido Socialismo e Liberdade (ADI 6424), Partido Comunista do Brasil (ADI 6425), pela Associação Brasileira de Imprensa (ADI 6427), pelo Partido Democrático Trabalhista (ADI 6428) e pelo Partido Verde (6431). Sustentam que esses critérios poderiam implicar a anistia ou o salvo-conduto a toda e qualquer atuação estatal desprovida de dolo ou erro grosseiro. Por maioria, o Supremo firmou as seguintes teses: "1. Configura erro grosseiro o ato administrativo que ensejar violação ao direito à vida, à saúde, ao meio ambiente equilibrado ou impactos adversos à economia, por inobservância: (i) de normas e critérios científicos e técnicos; ou (ii) dos princípios constitucionais da precaução e da prevenção. 2. A autoridade a quem compete decidir deve exigir que as opiniões técnicas em que baseará sua decisão tratem expressamente: (i) das normas e critérios científicos e técnicos aplicáveis à matéria, tal como estabelecidos por organizações e entidades internacional e nacionalmente reconhecidas; e (ii) da observância dos princípios constitucionais da precaução e da prevenção, sob pena de se tornarem corresponsáveis por eventuais violações a direitos".