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"Desligamos" máquinas, não gente: Os defensores do Espírito Santo

segunda-feira, 29 de janeiro de 2018

Atualizado às 07:41

A alma humana pode caminhar descolada da realidade, flutuando na imaginação infinita ou até mergulhada na loucura. Ela sobrevive. Decisões judiciais, não. Expressão inequívoca do poder do Estado sobre si mesmo e sobre as liberdades das pessoas, ordens de juízes precisam estar associadas às condições essenciais ao seu próprio cumprimento. Quando inexequíveis, ou cruéis, são ruins para a credibilidade do Poder Judiciário. O Santo Graal das Supremas Cortes parece ser a forma de cumprimento de suas decisões, mais do que o conteúdo que elas veiculam.

Na Alemanha, o Tribunal Constitucional Federal determinou, em 1995, a retirada dos crucifixos de escolas públicas do ensino fundamental numa cidade da Baviera. A decisão serviu aos livros, aos colóquios jurídicos e até de inspiração para jovens estudantes. Jamais foi cumprida, contudo. Um desperdício de legitimidade pela Corte. Esqueceram o Santo Graal.

Pragmáticos, os estadunidenses fizeram diferente. Quando a Corte Warren achou por bem desmantelar a segregação racial - pelo menos a promovida pelo Estado -, o Tribunal se colocou à beira do abismo. E se não cumprissem a decisão? Sábio, Earl Warren, presidente da Suprema Corte, maquinou para inserir, ao final da ordem unânime, a expressão "com toda a velocidade possível". Mentes precipitadas podem supor que a decisão foi vaga. Nada disso. Ela mudou o rumo de um país atolado no pântano de uma sangrenta luta racial. Vinte anos depois já não havia uma única escola segregada nos Estados Unidos. Como explicar? Respeito ao Santo Graal.

A jurisdição constitucional não se faz em passe de mágica. O cumprimento de uma decisão da Suprema Corte muitas vezes depende das diretivas às instâncias responsáveis por trazer para a realidade o propósito de transformação social que muitas vezes está embutido em decisões dessa natureza.

Essa discussão é recorrente quando se trata de servidores públicos e a transição para a Constituição de 1988. Caso emblemático é o dos defensores públicos do Estado do Espírito Santo. A Corte declarou, em 2006, na ADI 1199, a inconstitucionalidade do art. 64, caput, e parágrafo único, da lei complementar 55, de 1994, do Espírito Santo, que interpretava o art. 22 do ADCT alcançando os defensores ingressos após a Constituição de 1988. O referido art. 22 diz: "Art. 22. É assegurado aos defensores públicos investidos na função até a data de instalação da Assembleia Nacional Constituinte o direito de opção pela carreira, com a observância das garantias e vedações previstas no art. 134, parágrafo único, da Constituição". Os defensores deveriam ser "desligados". Todavia, não se modulou os efeitos da ordem nem se procedeu a diretivas quanto ao seu cumprimento. Como abrir um alçapão para engolir um grupo de pessoas que trabalha em nome do Estado desde o começo da década de 1990 prestando assistência jurídica integral e gratuita aos que comprovarem insuficiência de recursos, nos termos do art. 5o, LXXIV, da Constituição?

A falta de diretivas resultou na judicialização da questão. Um dos casos requereu indenização contra o Estado do Espírito Santo por defensora que teria sofrido danos morais em razão do "desligamento" que lhe foi imposto sem espaço de diálogo para a preservação de seus direitos1. Outro questionou quem teria competência para "desligar" esses defensores, se o governador ou a Defensora Pública-Geral2. Houve judicialização para saber se teriam, as autoridades do Estado, incorrido em improbidade administrativa3 quanto ao cumprimento da decisão. Também se questionou se o cargo de defensor público-Geral estaria alcançado pelo julgamento da ADI 11994.

Em situações semelhantes, o STF agiu de outro modo5. Em 26/3/2014, na ADI 4876 (Min. Dias Toffoli, DJe 1/7/2014), a Corte modulou os efeitos da declaração de inconstitucionalidade para, em relação aos cargos para os quais não havia concurso público em andamento ou com prazo de validade em curso, produzir efeitos a partir de doze meses, contados da data da publicação da ata de julgamento.

Em seguida, procedeu-se às diretivas. O Tribunal entendeu que doze meses era "tempo hábil para a realização de concurso público, a nomeação e a posse de novos servidores, evitando-se, assim, prejuízo aos serviços públicos essenciais prestados à população". A Corte ressalvou: a) aqueles que já estejam aposentados e aqueles servidores que, até a data de publicação da ata do julgamento, tenham preenchidos os requisitos para a aposentadoria, exclusivamente para efeitos de aposentadoria, o que não implica em efetivação nos cargos ou convalidação da lei inconstitucional para esses servidores; b) os que se submeteram a concurso público quanto aos cargos para os quais foram aprovados; e c) a estabilidade adquirida pelos servidores que cumpriram os requisitos previstos no art. 19 do ADCT, que diz: "Os servidores públicos civis da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos municípios, da administração direta, autárquica e das fundações públicas, em exercício na data da promulgação da Constituição, há pelo menos cinco anos continuados, e que não tenham sido admitidos na forma regulada no art. 37, da Constituição, são considerados estáveis no serviço público".

Opostos embargos de declaração, o STF estendeu "o prazo de modulação dos efeitos até o final de dezembro de 2015", esclarecendo que deveriam ser mantidos válidos os efeitos produzidos pelo acordo celebrado entre a União, Minas Gerais e o INSS - homologado pelo STJ no Resp. nº 1.135.162 - no que tange à aplicação do regime próprio de previdência social aos servidores atingidos pela declaração de inconstitucionalidade, com a manutenção do período de contribuição junto ao regime próprio. Nada disso foi feito no caso dos defensores do Espírito Santo, a ADI 1199.

Diretivas são ínsitas à jurisdição constitucional. Na África do Sul, a supervisory order - ou interdito - é uma ordem por meio da qual a Corte supervisiona a implementação de suas decisões. Possui quatro elementos: (i) Ordem determinando a Administração a tomar certa ação para remediar uma situação inconstitucional; (ii) Requerimento para que a Administração submeta um relatório com as medidas já realizadas e aquelas ainda a serem tomadas para dar cumprimento à ordem; (iii) Abertura de prazo para que a parte atingida comente o relatório; e (iv) Possibilidade de proferir ordens complementares, seja confirmando o cumprimento da ordem original ou reforçando-a.

No caso Joe Slovo Community, a decisão da Corte Constitucional sul-africana de despejar pessoas em moradias irregulares veio em conjunto com a ordem de provisão de habitações alternativas. Em Pheko, a Corte ordenou o Município de Ekurhuleni a submeter um relatório (confirmado por juramento) contendo as medidas tomadas para realocar as pessoas cujas casas foram ilegalmente demolidas pelo município6.

Há casos nos quais a desconstituição imediata do ato administrativo pode causar uma violação de direitos. Nessas situações, o Supremo deve, ao proferir a declaração de inconstitucionalidade, oferecer diretivas sobre o que fazer com os atos consolidados. É uma demonstração de zelo pela executoriedade de suas ordens e de respeito pelas pessoas submetidas ao seu poder. O respeito é mais elevado do que o temor. Isso vale para as relações humanas e para as Supremas Cortes também.

É imprescindível que seja assegurado o procedimento administrativo próprio, individualizado, que preserve a segurança jurídica (art. 5º, XXXVI, "a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada"), o direito de ser ouvido por autoridade competente (art. 5º, LIII - "ninguém será processado nem sentenciado senão pela autoridade competente"), o devido processo legal (art. 5º, LIV - "ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal"); o contraditório e a ampla defesa (art. 5º, LV - "aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes") e a proteção da confiança legítima (art. 19, II, para ilustrar o dever de confiança). É um estatuto que dimana da própria Constituição.

As instituições não nascem prontas. Uma nação não nasce pronta. Pessoas não nascem prontas. O país deu um salto de qualidade em seu serviço público. Boa parte se deve à regra do concurso público (art. 37, II). Isso não quer dizer que aqueles que arregaçaram as mangas na aurora de 1988, quando tudo era penúria e privação, devem ser esmagados agora. A jurisdição constitucional não nasceu para destruir pessoas.

O aperfeiçoamento institucional de qualquer país reclama a sabedoria do tempo e o apreço pelos pioneiros que, valendo-se das possibilidades que dispunham, e premidos pela força das circunstâncias, deram o melhor à comunidade.

A situação desses defensores segue em discussão no STF em razão de um recurso do Estado do Espírito Santo contra a fórmula de transição que o Tribunal de Justiça avalizou como modo justo de dar cumprimento à decisão da ADI 1199. Embargos de declaração dos defensores sob a relatoria do Min. Alexandre de Moraes foram colocados no Plenário Virtual para julgamento (ED no RE 856.550).

Ter-se-á a apreciação virtual de uma questão que põe fim à vida profissional de um grupo que, desde a década de 1990, presta assistência jurídica integral e gratuita aos que comprovam insuficiência de recursos. O ideal seria proceder às diretivas de modo a viabilizar os standards mínimos a partir dos quais essa grave decisão seria cumprida. Sem isso, o quadro de indefinição tende a persistir.

Não parece justa a mera ordem para que se "desligue" esse pequeno grupo. Os defensores não concursados podem ser exonerados, mantidos ou aposentados. Jamais "desligados". Desligamos aparelhos, interruptores, máquinas, não gente.

__________

1 ARE 1.058.442, Min. Dias Toffoli, DJe 4/10/2017.

2 RE 291.645, Min. Gilmar Mendes, DJ 17/4/2006.

3 Rcl 7167, Min. Dias Toffoli, Dje 5/6/2013.

4 Rcl 10.461, Min. Ellen Gracie, DJe 18/11/2010.

5 Quanto aos defensores públicos de Minas Gerais, o STF derrubou as leis que amparavam defensores sem concurso, porém, modulando os efeitos para 6 meses a contar do julgamento, abrindo espaço para que a Administração Pública construísse uma fórmula de transição constitucionalmente aceitável (ADI 3819,Min. Eros Grau, Pleno, DJe 28/3/2008).

6 Residents of Joe Slovo Community, Western Cape v Thubelisha Homes and Others (Centre on Housing Rights and Evictions and Another, Amici Curiae) 2010 (3) SA 454 (CC) (Joe SlovoCommunity) parágafo 7; Pheko e Outros v Ekurhuleni Metropolitan Municipality 2012(2) AS 598 (CC) parágrafo 53. Cf. Currie & De Waal at 199. Bishop (pp. 9-179) e K Roach & G Budlender Mandatory Relief and Supervisory Jurisdiction: When is it Appropriate, Just and Equitable? (2005) SALJ, 325.