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Teto de gastos: estabilidade fiscal em meio à incompetência política

terça-feira, 18 de outubro de 2016

Atualizado em 17 de outubro de 2016 10:08

Muito se propaga, e com razão, os avanços que a Magna Charta Libertatum de 1215 trouxe ao Direito, notadamente o estabelecimento do devido processo legal para a condenação de acusados de crime, o habeas corpus (elemento jurídico que evita o abuso de poder e que foi melhor desenvolvido pelo Habeas Corpus Act de 1679), bem como as garantias à propriedade privada. Tais fundamentos se tornaram a pedra angular do constitucionalismo britânico que se espalhou pela Europa medieval ao longo dos séculos posteriores. Chegou até hoje.

Interessante notar que esses direitos e garantias individuais foram fruto direto da intenção do baronato inglês em limitar a tributação real de então, notadamente as "ajudas" ou "tributo de isenção militar", contida no artigo 12 daquela famosa Charta que completou 900 anos no ano passado. A consequência de tal previsão foi que qualquer tributo tinha de ter a aprovação do Commune Concilium Regni (Conselho Geral do Reino), o honorável Conselho dos Barões. Assim, nascia não apenas a ideia do "parlamento" que se materializou em sua primeira reunião, digamos, "formal" em 1295 sob Edward I, o qual se utilizou da construção do grande opositor ao monarca Henry III, o franco-inglês Simon de Montfort (1208-1265), conde de Lancaster, sobre o tema do parlamentarismo.

Como se pode perceber facilmente, há uma sequência lógica do gênio humano em relação à Charta Magna: (i) o baronato limitava o poder real quanto à tributação que, dessa forma, (ii) limitava o gasto público (e.g. os gastos militares) e, para isso, eram necessárias (iii) garantias de direitos individuais, notadamente contra o abuso de poder (devido processo legal), prisão ilegal (habeas corpus) e (iv) introduzia o mecanismo de formação de opinião sobre tributos e despesas via a consulta e discussão entre o rei e o baronato por meio de um parlamento.

Vê-se que essa edificação civilizatória se espalhou pelo mundo e se transformou em premissas democráticas no mundo moderno, onde a Constituição se tornou a base de garantias bastante extensas, mesmo que os pilares britânicos já tivessem apontado todos os faróis que iluminam o constitucionalismo desses dias que vivemos.

A limitação de gastos orçamentários por meio do estabelecimento de um "teto" parece ser um fator de estabilidade para a política fiscal no Brasil. O seu objetivo é correlacionar o crescimento do gasto público com o crescimento do PIB (no médio e longo prazo, 20 anos), permitindo a compatibilidade entre a produtividade da economia brasileira com as despesas e receitas tributárias. Não resta dúvida de que a premissa adotada pelo governo e que deve ser aprovada pelo Congresso Nacional, via uma emenda constitucional, pode trazer maior racionalidade à política econômica como um todo.

Todavia, vê-se nessa política dois tipos graves de distorções.

A primeira diz respeito ao fato de que o tal teto é sinal inequívoco da incapacidade do Brasil em construir uma discussão racional e efetiva sobre o orçamento público. Afinal de contas, se o tal "teto" tem as raízes republicanas que tanto se propala, por que o Congresso Nacional não estabeleceria esse "teto" a cada ano por meio do estabelecimento de tributos justos e compatíveis com as despesas e investimentos públicos, avaliados por critérios racionais? Ou seja, se em 1215 (ou 1295, se preferirem) os britânicos conseguiram implementar um parlamento que discutisse o orçamento, por aqui o Congresso cria um teto que demonstra a sua incapacidade de racionalizar a finança pública! Não é isso, portanto, mero detalhe. É o sinal emitido pelo próprio Congresso Nacional sobre a sua incapacidade (ou será representatividade?).

A segunda distorção é a patética corrida da mídia, dos próprios congressistas e alguns poucos "formadores de opinião" para informar que as despesas de educação e saúde serão afetadas. Ora, ora! Até os botões de João Sem-Terra sabem que serão! Se há limitação, significa que para que se mantenham os gastos com a educação e saúde será necessário o corte de outros gastos. O mais notório é o da Previdência Social, alvo de reformas por parte do governo, cuja limitação terá de contar com as tesouradas em direitos - que me perdoem os ultraliberais que não deixam isso claro. Digo isso sem qualquer pretensão ideológica, mesmo porque há "direitos" que são verdadeiros "abusos de direito" em matéria previdenciária, sobretudo no que se refere aos fartos e imorais benefícios do setor público brasileiro, o maior fazedor de déficit da República. Há que se considerar também que quando se propaga por aí a defesa da Educação e da Saúde ninguém informa exatamente ao distinto pagador de tributos do que se está a se falar. Presume-se que a sacralidade de tais gastos quando se sabe da generalizada incompetência e eventual corrupção que reina no reino das secretarias de educação, Brasil afora, e nos hospitais e entidades de saúde. Ou seja, a presunção da "legitimidade" não vem acompanhada pelo empenho não-ideológico dos pregadores para melhorar a gestão pública desses segmentos, nos quais muito se gasta e onde se vê as hordas de miseráveis à espera nas filas dos hospitais públicos, atrás de um mero exame médico ou de um fígado a ser transplantado. A tragédia continua e os defensores da saúde e educação não saem de seus gabinetes refrigerados para mudar a realidade que enxergam pela janela.

Por fim, e sem nenhuma intenção de encerrar o tema, há os tais benefícios para as empresas, vulgarmente denominados de "bolsa-empresário". Já tinha comentado nesse espaço que esses recursos montavam "cerca de R$ 200 bilhões". A Folha de S. Paulo desse domingo (16/10/2016) informou que serão R$ 217 bilhões em 2017, cerca de 3,4% do PIB, destinados aos "campeões de competitividade" que estão por aí. Piada. (Só para provocar, os gastos da previdência social do setor público esse ano são de R$ 137 bilhões esse ano, 2,3% do PIB). Caberia ao governo e ao Congresso Nacional repensar se é justo reformar a previdência social ao tempo em que não se propõe completa revisão desses gastos e benefícios setoriais dados aos empresários, entre tantos desde a Velha República, pelo governo do Partido dos Trabalhadores - o velho Karl Marx teria arrepios em ser informado disso!

Em conclusão: o teto de gastos pode estabilizar a política fiscal do Brasil, mas é sinal inequívoco de nossa incompetência política, sobretudo do fragmentado Congresso Nacional, para decidir sobre os nossos destinos. Isso tudo enquanto se bajula o empresariado na hora de cortar gastos. Os barões por aqui escreveram outro tipo de Charta, não é mesmo?