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Matriz Tributária

Debates sobre o fenômeno tributário.

Abhner Youssif Mota Arabi e Marcello Lavenère Machado Neto
Rodolfo Tamanaha O objetivo deste breve artigo é contribuir para a reflexão a respeito dos limites e da eficácia do Direito Tributário como instrumento de concretização do desenvolvimento econômico e social previsto na Constituição Federal, notadamente no tocante à proteção da saúde. Isso porque o que se percebe é que a busca por uma maior eficácia do sistema tributário brasileiro é um dos principais desafios da doutrina contemporânea do direito tributário1. E isso se revela premente quando se analisa o uso instrumental dos mecanismos tributários com o objetivo de concretizar políticas públicas por meio da indução de comportamentos dos contribuintes. Não é novo na doutrina nacional e estrangeira o reconhecimento de que as normas tributárias podem exercer funções diversas da mera arrecadação de recursos para a manutenção do Estado2. Entre essas funções extrafiscais, destaca-se a utilização dos instrumentos tributários para a indução de comportamento dos agentes econômicos com vistas a uma determinada finalidade estatal. Porém, o que se percebe na atualidade é que o Poder Judiciário no Brasil, notadamente o Supremo Tribunal Federal, adota uma posição de omissão com relação ao controle da extrafiscalidade. Em algumas situações, o STF parece compreender que o emprego de instrumentos tributários para concretizar finalidades distintas da arrecadação é condizente com o exercício da competência discricionária do Poder Executivo, estando interditada sua sindicabilidade pelo Poder Judiciário. Em outros momentos, viceja a tese do "legislador negativo"3 como justificativa para a ausência de apreciação aprofundada da extrafiscalidade pelo Judiciário. Não obstante, quando realiza algum controle sobre as normas tributárias com função indutora, o Supremo Tribunal Federal se limita a empregar de forma fraca os critérios da igualdade e da proporcionalidade, não aduzindo novos critérios que sofistiquem o exercício da função jurisdicional sobre a competência impositiva ou exonerativa extrafiscal. O que se verifica é que da interpretação da jurisprudência da corte constitucional não se deduzem razões que sinalizem uma preocupação real com a efetividade dos efeitos indutores pretendidos e a concretização das finalidades almejadas com o uso instrumental do direito tributário. Essa situação de ausência de controle dos limites e da eficácia do emprego da tributação como ferramenta de estímulo ou desestímulo de comportamentos é evidente no caso do tratamento tributário do tabaco. Isso porque, desde 2012, a carga tributária incidente sobre esse produto no Brasil tem paulatinamente aumentado, sob a alegação de que ocasionaria um desestímulo ao consumo e promoveria o direito à saúde4. Todavia, o que estudos empíricos comprovam é que a utilização da tributação extrafiscal ocasionou o incremento do mercado ilegal de cigarros5, o que representa um efeito concreto - incentivo ao contrabando - diametralmente oposto à justificativa de proteção da saúde que balizou a instituição dos tributos extrafiscais nesse segmento. Outro exemplo de possível adoção de medida extrafiscal para promover a saúde pode ser colhido da recente decisão do plenário do Conselho Nacional de Saúde, em que se decidiu pela aprovação da recomendação 21, de 09 de junho de 2017. De acordo com essa recomendação, entende-se que o Ministério da Fazenda deve atuar no sentido de aumentar a tributação dos refrigerantes e outras bebidas açucaradas em, no mínimo, vinte por cento, com o intuito de reduzir seu consumo e prevenir doenças. Em razão dessa medida adotada pelo Conselho Nacional de Saúde, a Câmara dos Deputados promoveu uma audiência pública em 31 de outubro de 2017, para colher mais informações, de forma a fundamentar uma possível medida legislativa. Em que pese tratar-se de medida extrafiscal que tem sido adotada em alguns países para enfrentar o problema da obesidade6, a reflexão mais ampla que se impõe é que, no caso de eventual positivação da recomendação do Conselho Nacional de Saúde, o Poder Judiciário brasileiro não pode se furtar a exercer o controle sobre os limites e a eficácia da tributação extrafiscal para alterar o comportamento dos agentes econômicos. Isso porque, ao exercer um controle jurisdicional fraco sobre a efetividade da tributação para "cutucar" (nudge)7 o indivíduo no sentido de adotar a melhor escolha, corre-se o risco de transformar um tributo que visa desestimular determinada conduta (v.g., não fumar ou não consumir refrigerantes) em mais uma fonte de arrecadação ou mesmo em uma espécie de "multa disfarçada", aproximando-o de uma norma penal. Um último exemplo é a lei 12.187, de 29.12.2009, que instituiu a Política Nacional sobre Mudança do Clima (PNMC), que visa, primordialmente, harmonizar o desenvolvimento econômico-social com a proteção do sistema climático mediante a promoção da redução das emissões antrópicas de gases de efeito estufa. Entre os instrumentos da PNMC previstos no art. 6o, encontram-se: "VI - as medidas fiscais e tributárias destinadas a estimular a redução das emissões e remoção de gases de efeito estufa, incluindo alíquotas diferenciadas, isenções, compensações e incentivos, a serem estabelecidos em lei específica". Como se verifica no dispositivo transcrito, o legislador optou por dar destaque aos incentivos fiscais, genericamente falando, como instrumento indutor capaz de conformar a conduta dos agentes econômicos, de maneira que eles sejam estimulados a adotar condutas tendentes a diminuir a emissão de gases de efeito estufa. Ocorre que, a partir da perspectiva teórica da econômica comportamental8, a criação de um tributo específico sobre a emissão de Gases de Efeito Estufa (GEE) poderia ser mais efetivo do que a concessão dos citados benefícios, em razão do "desconto hiperbólico" (hyperbolic discount)9 - fenômeno que inclusive tem sido objeto de estudo no âmbito da teoria constitucional10 -, que afeta os agentes econômicos, haja vista que há uma tendência de se procrastinarem a seleção e a aquisição de produtos cujo consumo de energia seja mais eficiente, por mais que hajam incentivos fiscais. Além disso, deve-se levar em consideração que, em razão da chamada "aversão à perda"11, os agentes econômicos são mais propensos a alterarem o comportamento em razão de um aumento dos encargos tributários do que quando são beneficiados com incentivos fiscais. É o que se verificou no Reino Unido no tocante ao emprego de instrumentos tributários para diminuir a emissão de gás carbônico12. Nesse exemplo, resta evidente a importância da apreciação dos efeitos concretos - eficácia social - quando o Judiciário se depara com o uso instrumental dos mecanismos tributários, na medida em que a extrafiscalidade implica na restrição a direitos e garantias fundamentais, ainda que sob um viés de promoção de outras finalidades de relevo à sociedade. Como o objetivo da intervenção por meio de normas jurídicas tributárias pretende ser a mudança da realidade econômico-social em prol de um ou mais princípios constitucionais, a revisão de fatos e prognoses legislativos pelo órgão judicial13 não pode desconsiderar dados da realidade apreendidos por outras ciências, como a teoria econômica. Em vista do exposto, entende-se que não só o controle sobre o modo como as normas tributárias são empregadas é importante, mas também é indispensável aferir concretamente a efetiva promoção das finalidades e dos efeitos pretendidos, que justifiquem a restrição sobre os direitos fundamentais de propriedade, de liberdade e de igualdade, no que pode contribuir a apreciação jurídica de aportes de outras ciências, especialmente da chamada "economia comportamental" (behavioural economics)14. __________ Rodolfo Tamanaha é doutor em Direito Tributário pela USP e mestre em Direito Público pela UnB. Coordenador da pós-graduação, do Laboratório de Prática Jurídica e Professor da Escola de Direito da Faculdade Presbiteriana Mackenzie Brasília. Fundador e Pesquisador do Grupo de Pesquisa "Estado, Constituição e Tributação" da UnB - GeTrib/UNB. Presidente da Comissão Especial de Inovação da OAB/DF. Foi Diretor de Direitos Intelectuais do Ministério da Cultura e Secretário Executivo do Conselho Nacional de Combate à Pirataria do Ministério da Justiça. Advogado em Brasília e SP. __________ 1 ÁVILA, Humberto. "A Doutrina e o Direito Tributário". In: Fundamentos do Direito Tributário. Madri: Marcial Pons, 2012, p. 221-45. 2 Por todos, cf. AVI-YONAH, Reuven S. The three goals of taxation. Revista Internacional de Direito Tributário, v. 8, p. 547-481, jul.-dez. 2007. 3 A seguinte passagem do voto do Ministro Celso de Mello na ADI 1.063-MC elucida a tese: "O STF como legislador negativo: a ação direta de inconstitucionalidade não pode ser utilizada com o objetivo de transformar o Supremo Tribunal Federal, indevidamente, em legislador positivo, eis que o poder de inovar o sistema normativo, em caráter inaugural, constitui função típica da instituição parlamentar". 4 Aumentar tributos inibe o consumo de cigarro: verdade ou mito? Consultor Jurídico. 15 de agosto de 2017. 5 A lógica econômica do contrabando. Instituto de Desenvolvimento Econômico e Social de Fronteira - IDESF. Acessado em 4/4/2018. 6 De acordo com a citada Recomendação n. 21/2017, Portugal, Espanha e Reino Unido são exemplo de países que já implementaram, ou estão em vias de implementar, a tributação extrafiscal sobre refrigerantes e bebidas congêneres. 7 THALER, Richard H.; SUNSTEIN, Cass R. Nudge: o empurração para a escolha certa. Rio de Janeiro: Elsevier, 2009, p. 87 e seguintes. 8 "Behavioral Economics is the combination of psychology and economics that investigates what happens in markets in which some of the agents display human limitations and complications" (MULLAINATHAN, Sendhil; THALER, Richard H. Behavioral economics. Social Science Research Network. Working Paper 00-27. Massachusetts Institute of Technology - MIT. Department of Economics. Working Paper Series, set. 2000). 9 CONGDON, William J.; KLING, Jeffrey R.; MULLAINATHAN, Sendhil. Behavioral economics and tax policy, set. 2009). O desconto hiperbólico representa a forte preferência que as pessoas têm pelo presente em detrimento de datas futuras. Significa dizer que as pessoas preferem descontar o bem-estar futuro por um valor presente menor. 10 Cf. ELSTER, Jon. Ulisses liberto: estudos sobre racionalidade, pré-compromisso e restrições. São Paulo: UNESP, 2008, especialmente p. 40-51. 11 "Human beings dislike losses. In fact, they dislike losses a lot more than they like equivalent gains. This simple point helps to explain what kinds of economic incentives are most likely to have an impact" (SUNSTEIN, Cass R. People hate losses and that affects budget fix. Bloomberg View, 28 dez. 2012). 12 Cf. "Many consumers do not appear to install energy efficiency measures (such as insulation) that would pay for themselves through reduced bills. If this is related to time inconsistency - perhaps people procrastinate in getting around to having the products installed, or the hassle costs are up front whilst the benefits of reduced bills are more far distant and so heavily discounted - then carbon taxes might help people commit to having the products installed. If consumers are time inconsistent, though, policies that promise higher carbon taxes in the future might be relatively ineffective at changing behavior today" (LEICESTER, Andrew; LEVELL, Peter; RASUL, IMRAN. Tax and benefit policy: insights from behavioural economics. London: Institute for Fiscal Studies, julho de 2012, p. 62). 13 MENDES, Gilmar Ferreira. "Controle de Constitucionalidade: hermenêutica constitucional e revisão de fatos e prognoses legislativos pelo órgão judicial", Revista dos Tribunais - 766, n. 88, ago. 1999, p. 11-28 (19). 14 Pode-se avaliar a relevância da economia comportamental na atualidade a partir de duas notícias a respeito da política internacional. A primeira é que, durante as eleições presidenciais norte-americanas de 2008, a equipe de Barack Obama contou com as orientações de um grupo de aconselhamento conhecido como "Consortium of Behavioral Scientists", formado por 29 pesquisadores de comportamento, entre eles, Dan Ariely, do MIT, Richard Thaler e Cass R. Sunstein, da Universidade de Chicago, e o Prêmio Nobel Daniel Kahneman, da Universidade de Princeton. Após as eleições, Cass R. Sunstein foi convidado pelo Presidente Obama para chefiar o "Office of Information and Regulatory Affairs", uma espécie de "super agência reguladora", responsável pela revisão de todos os atos reguladores das outras agências, o que possibilitou que algumas ideias da economia comportamental pudessem ser colocadas em prática (cf. GRUNWALD, Michael. How Obama is using the science of change". Time, 2 abr. 2009). A segunda notícia vem do outro lado do Atlântico. Em 2010, a coalização conservadora que assumiu o poder no Reino Unido, liderada por David Cameron, criou um time de especialistas conhecido como "Behavioural Insight Team", lotado na Chefia de Gabinete do Primeiro Ministro, que exerceria a função de conselheiro de políticas públicas, no que foi apoiado por membros dos partidos conservador e liberal, o que demonstra a centralidade e virtual unanimidade no tocante ao uso dos insights comportamentais para lidar com diversos assuntos de interesse público no Reino Unido (cf. BURGESS, Adam. "Nudging" healthy lifestyles: the UK experiments with the behavioural alternative to regulation and the market. European Journal of Risk Regulation, Symposium on Nudge, jan. 2010). Para uma visão crítica dessa vertente econômica, cf. LOEWENSTEIN, George; UBEL, Peter. Economics behaving badly. The New York Times, 14 jul. 2010.
sexta-feira, 4 de maio de 2018

Economia digital e tributação

Yuri Assen e Raphael Romão Não é novidade que a era digital reestabeleceu parâmetros do sistema regulatório sobre transações comerciais, troca de informações e instituiu novos marcos nos processos de produção da economia1. Como consequência, houve melhoria significativa na qualidade de vida do cidadão comum em razão dos ganhos de eficiência econômica2. Após a recessão econômica dos anos 2000, muitos concluíram incorretamente que a revolução digital não representaria uma ruptura nos modelos de produção, descrença que levou muitos Estados a ignorarem os meios de regulação desse novo mercado durante certo período3. Ocorre que hoje a Economia Digital é parte da realidade social, gerando efeitos diretos nas trocas cambiais, na produtividade, nas relações de emprego, na eficiência dos mercados, na qualidade e criação de novos produtos e serviços4. Chamamos de Economia Digital5 essa nova realidade econômica representada pela mudança que parte de um modelo de economia industrial6 para uma nova concepção de mercado baseado na informação, bens e serviços intangíveis e novas formas de trabalho e organização institucional7. Podemos defini-la como a relação de convergência entre a comunicação computacional e os modelos de negócios, o que propicia maior eficiência e produtividade direta e indireta nos diversos setores da indústria8. Essa convergência permitiu a criação de novos mercados, indústrias, negócios e alterou, inclusive, as relações de trabalho. A Economia Digital inaugurou novas formas de consumo, produção e intermediação de negócios na economia globalizada ao viabilizar o uso de ferramentas ou utilidades para ampliar a produção, aumentar o conhecimento sobre os consumidores, além de permitir a realização de negócios multilaterais por meio da internet9. Esse novo modelo trouxe consequências diretas à dinâmica do capitalismo. As maiores empresas do mundo hoje, como Google e Facebook, estão no ambiente virtual (intangível), uma realidade completamente distante das empresas que dominavam o mercado há 50 anos atrás. Acontece que os modelos de tributação, como tantos outros, não conseguiram acompanhar a velocidade de transformação da economia da era digital, gerando problemas como a indefinição do domicílio fiscal de uma empresa ou serviço, ou até mesmo a identificação do tributo incidente sob um fato de relevância econômica. No relatório "Mapeamento das questões de política pública internacional relacionadas à Internet"10, de 2014, a Comissão de Ciência e Tecnologia para o Desenvolvimento (CSTD) das Nações Unidas asseverou a relevância do tema da tributação a partir da crise financeira de 2008, contexto em que muitos governos identificaram que o volume crescente de atividades econômicas na Internet seria uma fonte imediata para aumento da receita fiscal. Nesse cenário, a tributação da Economia Digital tornou-se assunto emergente nas agendas internacionais11, revelando interesses estratégicos na tendência de que parcelas significativas da economia não informatizada venham a se transferir para um mundo dominado pelos bens intangíveis. No Fórum Fiscal de 2017, a Diretora do Fundo Monetário Internacional (FMI), Cristine Lagarde12, em seu discurso de abertura, ressaltou o impacto da revolução digital em todo o mundo, especialmente para os países subdesenvolvidos que precisam adaptar e modernizar seus métodos de arrecadação de tributos. Em sua conclusão, alertou para a necessidade de discutir a revolução digital em face das crescentes inovações tecnológicas e do seu impacto nas finanças públicas dos Estados. Essa revolução digital colocou a tecnologia e os bens intangíveis no centro das atenções nas esferas econômica, política e social13. A possibilidade de reduzir a informação a dígitos binários e diminuir o custo marginal de produção oportunizou um rompimento de paradigmas na dinâmica do comércio de bens14. A ideia - até então, inabalável - de que a compra e venda exigiria o encontro físico das partes para realizar a transação ou transporte da mercadoria de uma localidade geográfica para outra15 foi superada pela conectividade instantânea, de modo que barreiras geográficas ou distâncias que, em outra época, serviram como fatores impeditivos de qualquer forma de transação internacional, tendem a ser cada vez menos um obstáculo16. A partir da simbiose decorrente da ampliação das comunicações e dos serviços computacionais, a Economia Digital estabeleceu um novo marco nos modelos de negócio, criando novas premissas que precisam ser assimiladas pelas administrações fiscais, caso queiram atuar de forma efetiva e ponderada, viabilizando o crescimento econômico e a inovação tecnológica17. Entendemos que existem quatro premissas-base para compreender como a Economia Digital interfere na percepção da tributação e, consequentemente, no direito tributário. Essas premissas são: (1) a valorização dos bens intangíveis; (2) a aproximação do processo produtivo ao consumidor; (3) a relativização da presença física; e (4) a transmutação das espécies jurídicas. Em primeiro plano está a valorização dos bens intangíveis18 enquanto o maior ativo da nova realidade digital, com capacidade para distorcer os sistemas arrecadatórios anteriormente pautados pela materialidade das transações físicas. Nesse contexto se inserem os softwares, campanhas de branding, marcas e demais produtos de propriedade intelectual. Em segundo lugar, a nova economia alavancou uma forma de consumo que aproxima cada vez mais o produtor do consumidor. Nessa relação o valor agregado aos bens e serviços não depende necessariamente de uma cadeia de produção, mas do compartilhamento de informações entre cada uma das partes. Em síntese, a partir da facilidade de comunicação, a Economia Digital viabilizou a desintermediação de vários modelos de negócios. Veja-se o exemplo das campanhas publicitárias do Google. O que antes era necessário o trabalho especializado de uma agência de publicidade, hoje pode ser contratado diretamente por meio de algoritmos que determinam a relevância da publicidade pelo anunciante de acordo com o perfil do consumidor. Em terceiro, está a irrelevância da presença física para fins de atuação econômica, o que entendemos por relativização das fronteiras nacionais. A possibilidade de comunicação instantânea com qualquer lugar do mundo tornou possível a presença econômica em vários países simultaneamente, sem que se tenha um estabelecimento comercial permanente em cada um deles. Essa ruptura das fronteiras permite o deslocamento de produtos, mercadorias, serviços, informações e até relativiza o domicílio fiscal de grandes conglomerados econômicos para outras jurisdições. E, por último, a economia atual estabelece um cenário de incerteza jurídica de suas inovações, pondo em cheque, inclusive, a eficácia das discussões realizadas hoje dada a agilidade no surgimento e desaparecimento de mercados. Diante disso, há uma evidente transmutação das espécies legais em virtude das várias utilidades trazidas pelas novas tecnologias. A consequência inevitável é a dificuldade na identificação da realidade material passível de incidência tributária. As questões fundamentais que atingem o campo tributário recaem sobre os mais diversos temas, tais como a migração do comércio físico para o eletrônico e sua interferência nas fontes de arrecadação em nível nacional e internacional, provocando no legislador um senso de urgência quanto à necessidade de adequar a técnica jurídico-tributária aos recentes fatos. O boom das criptomoedas19 talvez seja um dos melhores exemplos para identificar cada uma das premissas elencadas nesse estudo e que desafiam os modelos de tributação. Em um primeiro plano, a intangibilidade das criptomoedas é evidente na medida em que são, em sua essência, linhas de código produzidas a partir da solução de complexos problemas matemáticos. A tecnologia da blockchain20, que é o grande marco revolucionário na criação das criptomoedas, relativiza a necessidade de um sistema financeiro convencional. É possível transferir uma determinada quantia de criptomoedas para qualquer lugar do mundo sem a necessidade de um banco como intermediário. É óbvio que muitos questionamentos surgiriam em relação a isso, especialmente pela possibilidade de evasão de divisas, mas o fato é que essa tecnologia cortou o "middleman" (intermediário) nessa relação, entregando uma utilidade com menor custo e maior agilidade. Outro fator extremamente relevante é a quase impossibilidade na identificação do domicílio fiscal de uma determinada carteira de bitcoins. Pela ausência de um sistema bancário, não é possível determinar onde a carteira realmente está. Ao contrário de uma moeda convencional (moeda fiat) que deve ser depositada em um banco com sede estabelecida em algum lugar do mundo, a existência de uma carteira de bitcoin não depende de nenhuma outra entidade. Dessa forma, a sua existência é comprovada somente pela verificação e certificação na blockchain. Diante desses fatores, o bitcoin pode ser transacionado para qualquer lugar do mundo sem a necessidade de adentrar por um sistema financeiro regulado pelo Estado. Além disso, a natureza jurídica das criptomoedas ainda é incerta. Somente para fins tributários, a Receita Federal do Brasil entende que a criptomoeda representa uma espécie de ativo. Dessa forma, o proprietário das criptomoedas deve informar que as possui em sua Declaração do Imposto sobre a Renda da Pessoa Física, convertendo o valor da aquisição em reais. Em relação a troca ou alienação por moeda corrente, eventuais ganhos de capital devem ser tributados por alíquotas progressivas (que variam entre 15% e 22,5%, conforme o valor auferido). Contudo, ainda não há uma definição sobre a natureza jurídica das criptomoedas, apesar do seu tratamento no Brasil enquanto ativo21. Note-se que fica evidente a transmutação da espécie legal na medida em que uma linha de código - que basicamente é o que está por trás das criptomoedas - assume um papel completamente diferente do que a entrega de um serviço ou utilidade, como é a praxe dos softwares tributados pelo ISS. Nos EUA, as criptomoedas são consideradas como "propriedade" (property), não sendo denominadas como ativos (asset). Ao mesmo tempo, não se qualificam como moeda estrangeira para fins fiscais, mas são passíveis de tributação por ganho de capital, variando entre as classificações de curto ou longo prazo, dependendo do tempo de posse22. Em relação aos ganhos obtidos com atividades de produção de moedas virtuais, como por exemplo a mineração, nos EUA recebem o tratamento de rendimento de trabalho autônomo, sendo passíveis de incidência tributária. Na União Europeia, ainda não existe uma diretriz comum e harmonizada de incidência tributária, ficando cada Estado membro responsável pela tributação das moedas digitais. Não obstante, já existem decisões em alguns Estados europeus que entendem que as moedas virtuais são uma forma digital de dinheiro, recebendo o tratamento fiscal de moedas estrangeiras23. As inovações da Economia Digital tensionam os Estados nacionais das mais diversas formas, especialmente em níveis regulatórios e tributários. Para além dos vários questionamentos quanto aos limites da atuação estatal, o fato é que a cada dia são impostos novos desafios à renovação da matriz tributária nacional. A redução da dependência de instituições financeiras para troca de valores em razão do surgimento das criptomoedas tem o poder de distorcer completamente o mercado de serviços financeiros. Assim como um dia o Uber inovou o mercado de mobilidade urbana, as criptomoedas podem romper com o sistema financeiro. Por consequência, a tributação também será afetada com a redução da arrecadação ou aumento de sua complexidade para o setor. No caso brasileiro, por exemplo, normalmente há um esforço do governo em prol do aumento de impostos sobre o consumo para manter a arrecadação em um setor da economia que enfrenta instabilidade, ampliando a regressividade da tributação no país. Em síntese, a resposta à crise não poderia ser pior. A questão central não se limita exclusivamente a absorver as novas tecnologias diante da linguagem tributária. Tentar encaixar inovações tecnológicas em uma forma jurídica é apenas o primeiro passo de um processo muito mais complexo que deveria se propor a construir uma matriz tributária que preza pela redução de suas iniquidades e busca de maior eficiência econômica. Entendemos que essa ruptura nos modelos de tributação, provocada pela revolução digital, se apresenta como uma oportunidade para revisitar e reconstruir uma parcela da matriz tributária nacional de modo a adequar-se à nova realidade econômico-fiscal. A aplicação de novas alternativas jurídico-tributárias pode contribuir para o aperfeiçoamento da matriz tributária brasileira com a consequente formação de uma realidade social mais adequada com perspectivas de desenvolvimento da estrutura social. Nesse sentido, questões como o fomento às áreas de pesquisa e desenvolvimento de empresas de tecnologia com a garantia de uma segurança jurídica são questões urgentes com a finalidade de viabilizar o surgimento de novos negócios e permitir o crescimento desse setor. Além disso, a simplificação na arrecadação de tributos como incentivo à formalização de negócios e uma maior abertura à importação e utilização de tecnologia também contribuiriam de forma positiva para o avanço da matriz tributária brasileira que deixaria de lado o seu imediatismo arrecadatório para perseguir uma maior sinergia com o contexto tecnológico. Todas essas alternativas passam por uma série de decisões de cunho político e regulatório que dependem, sobretudo, da vontade do Estado em manter-se em contato com o avanço da tecnologia sem amarras com o passado e sem visualizar o imediatismo arrecadatório nas suas decisões. O contexto fiscal e a definição de uma matriz tributária passam não somente pelo argumento simplista da redução da carga tributária. É preciso avaliar de forma holística as necessidades de desenvolvimento dos substrato sócio-econômico. Sem dúvida, a tributação é um dos fatores que refletem o que o Estado faz a nível de política pública e como prioriza a segurança jurídica na incidência de tributos e na relação que tem com o seu pagador de impostos. Reconstruir a matriz tributária para abraçar a nova revolução tecnológica poderia significar maior atratividade aos investimentos em pesquisa diante de um ambiente mais seguro, o que implicaria na majoração do valor agregado do trabalhador brasileiro. Esse também é um dos caminhos para a efetivação de direitos e justiça fiscal. Citamos aqui a iniciativa do Ministério da Ciência e Tecnologia que criou a Estratégia Brasileira para Transformação Digital (E-Digital)24 que, entre outras disposições para aumentar a receptividade da economia brasileira às inovações tecnológicas, dispõe expressamente que para incentivar o empreendedorismo digital "é preciso atuar na reformulação de mecanismos jurídicos e tributários com vistas a reduzir custos e riscos de investimento associados aos trâmites burocráticos e à segurança jurídica. Também é necessário facilitar formas mais complexas de composição de capital, ampliando os mecanismos disponíveis para aportes investimentos em startups"25. Porém, muitas vezes o Estado atua em sentido contrário. Citamos como exemplo o Convênio ICMS 106/2017 do Conselho Nacional de Política Fazendária (CONFAZ), que dispõe sobre a tributação no comércio nacional e nas importações de bens e mercadorias digitais quando destinados ao consumidor final via download. Esse Convênio altera significativamente a tributação na venda de bens digitais e acrescenta uma nova camada de complexidade e insegurança jurídica na venda de softwares. Infelizmente é impossível definir, até o momento, qual é o caminho correto para o aperfeiçoamento da matriz tributária: se criada uma legislação específica atenta à nova dinâmica do mercado; ou compatibilizar as regras gerais do sistema para que se possa absorver as novas tecnologias e a evolução econômicas resultante. Contudo, é urgente uma maior discussão no cenário jurídico a respeito da inserção de novas tecnologias no mercado brasileiro de modo a conferir maior segurança jurídica, especialmente em seus aspectos tributários. A renovação da matriz tributária é um passo que deve ser dado com um olhar para o futuro, sem que isso prejudique a migração para um sistema tributário eficiente, justo e em sintonia com os novos rumos da economia. REFERÊNCIAS ALVES JÚNIOR, Sérgio. Um tributo à internet. 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The New Economy and the International Regulatory Framework. Kiel, Alemanha Kiel Working Paper No. 1030. 2011. Disponível em: https://ssrn.com/abstract=263002 2 ATKINSON, R. D.; McKAY, A. S. Digital prosperity: Understanding the economic benefits of the information technology revolution. Washington, Estados Unidos: Research Technology Management, 51(2), 64. 2007. Disponível em: https://doi.org/10.2139/ssrn.1004516 3 Ibidem. p. 1. 4 Ibidem pp. 1-6. 5 São vários os termos que podemos utilizar para denominar este mesmo paradigma: economia baseada em conhecimento (knowledge-based economy), economia sem fronteiras (borderless economy), economia sem peso (weightless economy), economia conectada (networked economy). Cf. KEHAL, Harbhajan S. SINGH, Varinder P. Digital economy: impacts, influences and challenges. Hershey: Idea Group Pub. 2004. pp. 3-6 6 A transformação provocada pela Economia Digital na produção industrial ocorreu basicamente por dois motivos: (1) a redução de custos das tecnologias, permitindo sua difusão; e (2) a combinação da tecnologia digital com novas formas de aplicação e funcionalidades. Cf. OCDE. The Next Production Revolution: Implications for Governments and Business. Paris: OECD Publishing. 2017. p. 77. Disponível em: https://dx.doi.org/10.1787/9789264271036-en. 7 Ibidem. pp. 3-6 8 Ibidem 9 GUTIÉRREZ, Carlos; BAL, Aleksandra. Taxation of the Digital Economy. in COTRUT, Madalina et. al. International Tax Structures in the BEPS Era: An Analysis of Anti-Abuse Measures. Amsterdam: IBFD International Bureau of Fiscal Documentation, 2015. pp. 203-205. 10 OCDE. Addressing the Tax Challenges of the Digital Economy, Action 1 - 2015 Final Report, OECD/G20 Base Erosion and Profit Shifting Project. Paris: OECD Publishing. 2015, p. 16. Disponível em:. https://dx.doi.org/10.1787/9789264241046- 11 NAÇÕES UNIDAS. The mapping of international Internet public policy issues. Genebra, Suíça: Comissão de Ciência e Tecnologia para o Desenvolvimento. 2014. Disponível em: https://www.giplatform.org/sites/default/files/CSTD_2014_Mapping_Internet_en%20Dec%202014.pdf 12 ALVES JÚNIOR, Sérgio. Um tributo à internet. Brasília: Jota. 2015. Disponível em: https://jota.info/artigos/um-tributo-a-internet-30042015 13 FMI. Fiscal Forum 2017: Digital Revolutions in Public Finance. 2017. Disponível em: https://www.imf.org/en/News/Seminars/Conferences/2017/03/29/2017-fiscal-forum-digital-revolutions-in-public-finance. 14 MENELL, Peter S.; SCOTCHMER, Suzanne. Intellectual Property. in POLINKSY, A. Mitchell; SHAVELL, Steven. HANDBOOK OF LAW AND ECONOMICS. California: UC Berkeley Public Law Research Paper No. 741724. 2005. pp. 1-2. Disponível em SSRN: https://ssrn.com/abstract=741424 15 KU, Raymond Shih Ray. The Creative Destruction of Copyright: Napster and the New Economics of Digital Technology. University of Chicago Law Review. 2001. Disponível em: https://ssrn.com/abstract=266964 or https://dx.doi.org/10.2139/ssrn.266964 16 "[...]exchanging one type of goods for another required the parties either to meet in one location to make an exchange, or to transport or ship the merchandise from one geographical location to another." Cf. PRUSSAK, Assaf, Y. The Income of the 21st Century: Online Advertinsing as a Case Study for the Implications of Technology for Source-Based Taxation. Michigan, Estados Unidos: 16 Tul. J. Tech. &Intell. Prop. 2013. p. 4 Disponível em: . Acesso em: 05 dez. 2017. Conforme destacamos, essa tecnologia se coloca como grande desafio tributário aos Estados, vez que coaduna as quatro premissas-bases destacadas anteriormente: são bens intangíveis, representam uma desintermediação/descentralização dos negócios, extrapolam as fronteiras nacionais e são altamente mutáveis. 21 A blockchain é uma estrutura de dados compartilhada e mantida por todos os usuários de uma determinada rede, na qual cada uma das transações relevantes é registrada em definitivo em uma base de dados pública. Esse registro permite o controle, verificação e certificação de cada operação, como uma espécie de "livro-caixa" da rede. Cada transação é digitalmente assinada com o objetivo de garantir sua autenticidade, o que garante a confiabilidade ao sistema. 22 Note-se que ainda não há uma regulação específica sobre criptomoedas no Brasil, sendo esta uma posição firmada pela Receita Federal do Brasil. O Banco Central do Brasil possui uma posição mais cautelosa sobre a aquisição de moedas virtuais. Nesse sentido, confira o Comunicado n° 31.379/2017 do BACEN que "alerta sobre os riscos decorrentes de operações de guarda e negociação das denominas moedas virtuais." 23 A esse respeito, o Congresso Nacional estadunidense está debatendo o Cr??t??urr?n?? Fairness in Taxation A?t (CFTA), que tem entre uma de suas propostas a isenção de tributação para transações abaixo de U$600,00 24 A Suíça, por exemplo, classificou formalmente o bitcoin como uma "moeda estrangeira". 25 Nesse sentido, confira a Portaria MCTIC n° 1.556, de 21.03.2018, disponível em: https://www.mctic.gov.br/mctic/opencms/legislacao/portarias/Portaria_MCTIC_n_1556_de_21032018.html 26 Cfr. BRASIL, República Federativa do. Estratégia Brasileira para a Transformação Digital: E-Digital. 2018. p. 87-92. Disponível em: https://www.mctic.gov.br/mctic/export/sites/institucional/estrategiadigital.pdf
Abhner Youssif Mota Arabi1 O agravado quadro brasileiro de desigualdade socioeconômica não é novidade. Sabe-se, desde há muito, que há em nosso país um cenário de elevada concentração de renda, fortalecido por um sistema tributário construído sobre bases de incidência indiretas e que, ao se revelar de forma regressiva, acaba por privilegiar iniquidades e gerar ineficiências. Apesar de a Constituição de 1988 representar um importante marco para os esforços político-normativos direcionados à redução de desigualdades, à redistribuição de renda e à construção de um sistema tributário sobre as estruturas progressivas da capacidade contributiva, ainda prevalecem os mesmos problemas já há muito diagnosticados. E as políticas tributárias nacionais possuem participação direta nesse cenário. É que a construção de uma matriz tributária2 baseada em escolhas que conduzem a uma mais incidente tributação sobre o consumo traz consigo as mazelas da regressividade, em que aqueles que menos recebem são os que mais pagam tributos, em oposição à solidariedade social, à capacidade contributiva, à isonomia fiscal e aos valores constitucionais acima destacados. O antigo diagnóstico aqui narrado parte, até mesmo, de dados produzidos pelos próprios órgãos governamentais, como o Relatório de Observação nº2 dos Indicadores de Iniquidade do Sistema Tributário Nacional, produzido em 2011 pelo Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social3, no qual já se apontava, dentre cinco problemas principais da tributação no Brasil, a existência de um sistema tributário regressivo e com má distribuição da carga tributária4. Em tal relatório, mostrava-se que, já em 2004, dados revelavam uma diminuição do ônus tributário sobre a renda total das famílias conforme cresce essa última variável. A propósito, ali se constatava que quem ganhava até 2 salários mínimos mensais comprometia 48,8% de sua renda no pagamento de tributos, enquanto que o peso da carga tributária para as famílias com renda superior a 30 salários mínimos mensais correspondia a 26,3%. Os números que representam tamanha discrepância são ainda mais drásticos quando se considera apenas os tributos indiretos (como são os tributos sobre o consumo): para o primeiro grupo, a carga tributária corresponde a 45,8%, enquanto que para o segundo 16,4%. De modo diverso, a situação se apresenta em melhores panos quando se considera apenas a tributação direta (como é a tributação sobre a renda e o patrimônio): 3,1% para o primeiro grupo e 9,9% para o segundo. Entretanto, como a maior parte de nosso bolo tributário tem como base de incidência o consumo (os tributos indiretos), o saldo geral se revela iníquo e ineficiente. Tais constatações, é importante frisar, colocam-se em contramão à prática de diversos países na experiência internacional, sobretudo aqueles membros da OCDE, nos quais é mais significativa a parcela relativa à tributação direta. Mas o tema sobre o qual aqui se discorre não surge apenas da análise desse já antigo estudo - ao qual aqui se faz menção apenas como elemento que exemplifica que o problema não é de diagnóstico ou constatação de nossas deficiências tributárias. É que ao longo desse ano dois outros importantes estudos publicados revelam, também, diagnósticos semelhantes, ratificando esse cenário de iniquidades e ineficiências na matriz tributária brasileira e reclamando a necessidade de mudanças. O primeiro deles foi publicado em 25 de setembro de 2017 pela Oxfam Brasil, intitulado de "A distância que nos une: um retrato das desigualdades brasileiras"5. Apesar de se apontar a desigualdade social e a concentração de renda como um problema mundial, o relatório evidencia que tal fenômeno se apresenta com especial gravidade no contexto brasileiro6. No que se refere à renda, indica-se que 25% de toda a renda nacional está concentrada junto ao 1% mais rico da população e que os 5% mais ricos recebem juntos o mesmo que os outros 95%; não apenas por aqueles receberem muito, mas também por estes representarem uma grande massa que aufere pouca renda - tendo grande parte desse pouco comprometida já com o pagamento de tributos. Nesse sentido, constata-se que 9 dos 10% mais ricos da população brasileira são compostos por declarantes de renda individual correspondente à faixa de 3 a 20 salários mínimos mensais (R$ 2.364,00 e R$ 15.760,00), concentrando metade do total de rendimentos declarados dentro desse recorte. A outra metade pertence ao 1% que ocupa o ápice do topo da pirâmide econômica, com renda média aproximada de R$ 190.000,00 mensais, dos quais grande parte não é tributada. Entre as classes sociais, as desigualdades são ainda mais acintosas quando consideradas parcelas populacionais de maior discriminação histórica, como as mulheres e os negros7. As desigualdades se traduzem em números também no que se refere ao patrimônio; aqui, de maneira ainda mais discrepante. Os dados trazidos pelo relatório apontam que os seis brasileiros mais ricos concentram a mesma riqueza que outros 100 milhões de pessoas. Os 10% mais ricos possuem consigo 74% de toda a riqueza nacional, estando 48% concentrada com o primeiro percentual mais rico, enquanto uma pequena margem de cerca de 3% da riqueza está junto a 50% da população brasileira. Sem que se condene o êxito empresarial e as iniciativas empreendedoras bem sucedidas, há que se destacar que grande parte dessas riquezas acumuladas é transmitida entre as gerações por herança, cuja maior parte é também não tributada. Diagnósticos semelhantes decorrem também do segundo estudo que aqui se menciona: "Pesquisa Desigualdade Mundial 2018", realizado por um grupo conduzido por Thomas Piketty, que disponibilizou em 14 de dezembro um grande banco de dados comparativo sobre a evolução da desigualdade de renda no mundo8. Na plataforma, os dados brasileiros são registrados a partir de 2001 e a sua sucessão revela um agravamento do cenário de concentração de renda. Segundo os dados ali constantes, em 2001, a parcela de 1% mais rica da população detinha consigo 25% de toda a riqueza obtida no país, número que avançou para quase 28% nos números agora publicados (referentes a 2015). O que esses todos esses números e percentuais que se embaralham sugerem é que as escolhas tributárias favorecidas pelo desenho brasileiro, ao dar primazia a bases indiretas de tributação, privilegiam desigualdades pelo incentivo à regressividade. Nesse sentido, é importante destacar que a matriz tributária e as suas características perversas revelam verdadeiras seleções empreendidas em determinados momentos pelos agentes políticos de uma sociedade. Apesar de se apontar, muitas vezes, que o principal problema tributário brasileiro é sua elevada carga tributária, a verdade é que sua média aproximada de 33%9 do PIB não destoa daquela praticada pelos países membros da OCDE, estando abaixo de muitos desses países. O cerne do problema está, portanto, não em seus números globais, mas na sua iníqua distribuição sobre as bases de incidência e entre os contribuintes, privilegiando a regressividade e a manutenção - senão o agravamento - das apontadas desigualdades social. Ao invés, se se pautasse mais fielmente pelo princípio da capacidade contributiva (art. 145, §1º, da CRFB/88) ao se reestruturar sobre bases diretas de incidência (especialmente renda e patrimônio), poder-se-ia ter um importante instrumento jurídico-político de redução de desigualdades e de promoção da autonomia e da dignidade individuais. É que também as determinações jurídicas de uma sociedade possuem fortes influências sobre as transformações sociais e econômicas que se passam nessa comunidade, devendo o Direito ser concebido também como um instrumento de política social e econômica. Dentro dessas definições jurídicas que refletem consequências socioeconômicas, situam-se as teorias e políticas de tributação adotadas por uma nação e as consequências dessas escolhas na formação de sua matriz tributária. Cumpre destacar que a defesa de uma melhor redistribuição da carga tributária não se guia por preocupações apenas patrimoniais ou financeiras daqueles menos favorecidos, mas por aspectos que se relacionam diretamente à concretização de seus direitos fundamentais, na busca de uma maior igualdade material. Além de a dignidade humana depender concretamente da titularidade de um patrimônio mínimo que lhe permita ter condições reais de alimentação, moradia, saúde, educação, lazer, dentre outros10; a realização dos direitos fundamentais na esfera concreta da vida possui custos11, que se revelam necessários não apenas no âmbito estatal, como também na esfera particular e autônoma de cada cidadão. É dizer: a diminuição de desigualdades possibilita incrementar o acesso, inclusive por meio da tributação, a direitos básicos pelos menos favorecidos12. Essas preocupações se revelam especialmente relevantes em um cenário de crise fiscal, pelo qual passa o Brasil já há alguns anos. Com efeito, tal ambiente contribui para um cenário político em que ganham forças as reformas, muitas delas pautadas por pressões político-financeiras que acabam por ensejar a relativização de direitos fundamentais. Não que haja direitos absolutos que não possam, em situações excepcionais e de emergência, ter seu regime jurídico modificado, desde que respeitado o núcleo essencial de cada um, definido a partir da noção de limite dos limites (Schranken-Schranken)13. Entretanto, a incidir sobre setores sociais mais vulneráveis - sobretudo quando existentes outros espaços para ajustes fiscais ou incremento de receita tributária -, os quadros de desigualdades sociais podem se agravar. Não basta garantir a igualdade de oportunidades e nos pontos de partida - o que ainda não temos -, mas também reduzir as desigualdades nos resultados. Cumpre destacar que as raras propostas que surgem no plano político relativas a um fortalecimento de bases tributárias diretas - quase sempre consideradas não como mecanismos corretivos de justiça social, mas como instrumento para o incremento arrecadatório em tempos de crise - costumam ser sumariamente bloqueadas por pressões de setores de elite socioeconômica brasileira. Comumente, vale-se de um falacioso argumento de que "a sociedade não suporta mais pagar impostos" para manter e fazer persistir um cenário de desigualdades e injustiças, tal qual o aqui brevemente exposto14. Diz-se falacioso porque uma reforma que privilegiasse uma maior justiça social na tributação não demandaria o aumento da carga tributária, mas tão somente a sua melhor redistribuição, a ser disposta de modo progressivo - e não regressivo. Nesse contexto pós-impeachment de reformas, retomaram-se os debates e as propostas de reforma tributária. A mais destacada delas - por ter o apoio inicial do governo - foi apresentada ao Congresso pelo Deputado Federal Luiz Carlos Hauly15, em cujas alterações sugeridas não são propostas quaisquer modificações relevantes que pudessem tentar corrigir as mazelas aqui apontadas. Não obstante, apesar de inicialmente apontado para um sentido que mais parece manter do que reformar, o ambiente que permite a discussão de mudanças floresce a possibilidade de que melhorias sejam indicadas e enseja o dever acadêmico de contribuir ao debate e propor alternativas. Sob outra perspectiva, 2018 é ano de eleições nacionais, outra razão pela qual o espaço deliberativo sobre novas propostas ganha maiores força e destaque. Nesse sentido, para que aqui não se fique apenas com as críticas ou as constatações dos problemas, entende-se que o cenário de desigualdades e de regressividade da tributação poderia começar a ser corrigido por medidas como a redistribuição da carga tributária para fortalecer as bases diretas de incidência; a criação de novas e mais bem escalonadas faixas de tributação para o imposto de renda, com alíquotas maiores nos patamares mais elevados; restabelecer a tributação sobre lucros e dividendos; criar novas técnicas de combates à elisão e à evasão fiscais. Precisamos falar sobre desigualdade. Mais que isso, precisamos discutir como as políticas de tributação podem - e devem - constituir mecanismos ensejadores de redução de diferenças socioeconômicas e de promoção de objetivos constitucionais expressos, como a construção de uma sociedade livre, justa e solidária, a diminuição da pobreza e das desigualdades sociais e regionais; em busca de uma maior dignidade material garantida às vidas humanas. E o fortalecimento das bases diretas de incidência tributária representa um caminho possível para tanto. ________________ 1 - Assessor de Ministro do Supremo Tribunal Federal desde 2014. Autor dos livros: "Terceirização: uma leitura constitucional e administrativa" (Editora Fórum, 2018); "Mandado de Segurança e Mandado de Injunção" (Editora Juspodivm, 2018); "A Tensão Institucional entre Judiciário e Legislativo: controle de constitucionalidade, diálogo e a legitimidade da atuação do Supremo Tribunal Federal" (Editora Prismas, 2015); coordenador da obra "Direito Financeiro e Jurisdição Constitucional" (Editora Juruá, 2016) e autor de diversos capítulos de livro e artigos jurídicos. Professor. Palestrante. 2 - GASSEN, Valcir (organizador). Equidade e eficiência da matriz tributária brasileira: diálogos sobre Estado, Constituição e Tributação. Belo Horizonte: Arraes Editores, 2016. 3 - A íntegra do relatório pode ser consultada em https://www.todospelaeducacao.org.br//arquivos/biblioteca/indicadores_de_iniquidade_do_sistema_tributario_nacional__web.pdf. 4 - Os outros quatro problemas ali apontados eram: o baixo retorno social em relação à carga tributária; uma estrutura tributária desincentivadora das atividades produtivas e da geração de emprego; a inadequação do pacto federativo em relação às competências tributárias; e a ausência de cidadania tributária. 5 - O relatório está disponível em: https://www.oxfam.org.br/sites/default/files/arquivos/Relatorio_A_distancia_que_nos_une.pdf. 6 - Em seu teor, aponta-se que "há pouca dúvida sobre o que não deu certo: nosso sistema tributário regressivo onera demasiadamente os mais pobres e a classe média por meio de uma alta carga de impostos indiretos e pela perda de progressividade no imposto sobre a renda dos mais ricos" (p. 7). 7 - Sobre o ponto, o relatório afirma: "Se há diferenças grandes entre homens e mulheres, o enfoque em raça mostra que a situação da população negra é ainda mais grave. Com base nos mesmos dados, entre as pessoas que recebem até 1,5 salário mínimo, estão 67% dos negros brasileiros, em contraste com menos de 45% dos brancos. Cerca de 80% das pessoas negras ganham até dois salários mínimos. Tal como acontece com as mulheres, os negros são menos numerosos em todas as faixas de renda superiores a 1,5 salário mínimo, e para cada negro com rendimentos acima de 10 salários mínimos, há quatro brancos" (p. 27). Ainda, destaca-se a recente Síntese de Indicadores Sociais - SIS, publicada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística - IBGE em 15/12/2017, na qual se indica que os filhos de pais integrantes das classes sociais mais altas possuem muito mais chances de oportunidade e de ascensão social; variando também o índice percentual de mobilidade social ascendente conforme a raça, sendo ele cerca de 50% menor entre os considerados pretos ou pardos. Seu inteiro teor está disponível em: https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv101459.pdf. 8 - A base de dados está disponível em https://wid.world/world. 9 - O último levantamento da Receita Federal, publicado em 27/12/2017, aponta para o exercício de 2016 uma carga tributária bruta de 32,38% do Produto Interno Brito (PIB), superior aos 32,11% de 2015. Apesar de a arrecadação tributária nos três níveis de governo ter decaído em números reais (não obstante tenha sido maior em números absolutos), indica-se no relatório que o principal fator de incremento desse percentual decorre do decréscimo em valores reais de 3,5% do PIB de um ano para o outro. O estudo completo está disponível em: https://idg.receita.fazenda.gov.br/dados/receitadata/estudos-e-tributarios-e-aduaneiros/estudos-e-estatisticas/carga-tributaria-no-brasil/carga-tributaria-2016.pdf, acesso em 29/12/2017. 10 - Cf. FACHIN, Luiz Edson. Estatuto jurídico do patrimônio mínimo. Rio de Janeiro: Renovar, 2001. 11 - Cf. SUNSTEIN, Cass; HOLMES, Stephen. The Cost of Rights: why liberties depends on taxes. New York/London: W. W. Norton & Company, 1999. 12 - A propósito, o mencionado relatório produzido pela Oxfam Brasil faz coro ao que aqui se afirma, ao assentar que "dentro do Brasil, quanto menor a desigualdade de renda, maior a garantia a serviços essenciais como oferta de água ou de médicos, menores as taxas de mortalidade infantil e maior a expectativa de vida ao nascer. Combater desigualdades é também o caminho para vivermos em uma sociedade menos violenta, já que a exclusão social está diretamente relacionada ao aumento da violência, seja na cidade ou no campo. Por fim, a boa saúde de uma democracia depende de sociedades igualitárias: quanto maior a desigualdade e a interferência indevida de elites na definição de políticas, menor é a crença das pessoas na capacidade da democracia melhorar suas condições de vida, e menor é a crença na democracia em si" (p. 17). 13 - Especificamente sobre a relativização de direitos trabalhistas e a definição de suas possibilidades e limites no âmbito da terceirização, conferir: ARABI, Abhner Youssif; ARAUJO, Valter Shuenquener de. Terceirização: uma leitura constitucional e administrativa. Belo Horizonte: Editora Fórum, 2018, pp. 68-7268-72.14 - Veja-se, a propósito, o que noticiado no sítio eletrônico do jornal O Globo em 8 de agosto de 2017: https://oglobo.globo.com/economia/fiesp-firjan-criticam-possibilidade-de-aumento-de-imposto-de-renda-21682399. 15 - As linhas gerais da proposta podem ser consultadas em https://www2.camara.leg.br/atividade-legislativa/comissoes/comissoes-temporarias/especiais/55a-legislatura/reforma-tributaria/documentos/outros-documentos/resumo-hauly.
Rafael Santos de Barros e Silva Vamos aqui tecer algumas considerações relativas ao instituto da fraude à execução tributária, especificamente no que concerne às situações em que ocorrem alienações sucessivas de bens, a partir de uma análise da jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça sobre a matéria. O instituto da fraude à execução tributária encontra previsão no art. 185 do Código Tributário Nacional - CTN e representa garantia da Fazenda Pública contra aqueles devedores que, já possuindo seus nomes inscritos em dívida ativa, venham a alienar ou onerar seus bens, sem que haja reserva de outros para garantir o pagamento do crédito inscrito, frustrando, assim, a satisfação da dívida1. O efeito da fraude consiste na ineficácia do negócio jurídico perante a Fazenda Pública, de modo que, ainda que o bem tenha sido transferido e já se encontre registrado em nome de terceiro, poderá o credor tributário buscar a penhora e alienação desse bem. O STJ, no Recurso Especial Repetitivo 1.141.990/PR, decidiu que a presunção de fraude estabelecida em favor da Fazenda Pública é absoluta, não cabendo prova em contrário e não tendo aplicação o disposto na súmula 375/STJ, a qual estabelece que a configuração da fraude apenas ocorra a partir do registro da penhora do bem que venha a ser alienado ou onerado2. A lógica da súmula 375/STJ é a de proteger o terceiro adquirente de boa-fé, de modo que, se não consta do registro do bem, móvel ou imóvel, qualquer constrição, a aquisição pode ser realizada sem o risco de futura perda sob a alegação de que a alienação teria sido fraudulenta, salvo, claro, se o credor prejudicado provar que houve má-fé na operação de aquisição e o adquirente tinha ciência da situação de insolvência do alienante. Nada obstante, o STJ passou a entender que este enunciado sumular não tem aplicação para o caso de execuções tributárias, ao que parece, fechando os olhos para o fato de que, dentre os precedentes que serviram de fundamento para a edição da Súmula 375, muitos foram tirados de julgamentos proferidos em execuções tributárias (por exemplo, AgRg no REsp 1046004/MT, REsp 734.280/RJ, REsp 739.388/MG, REsp 810.170/RS, REsp 865.974/RS, REsp 944.250/RS), demonstrando-se, aí, uma incoerência da tese firmada no recurso repetitivo com os julgamentos que já existiam sobre a matéria. Pois bem, com a redação do art. 185 do CTN conferida pela LC 118/2005, o termo inicial a partir do qual a alienação ou oneração dos bens do devedor caracteriza fraude à execução é a data do ato de inscrição em dívida ativa3. Assim, a inexistência de constrições na matrícula do bem é insuficiente para garantir ao adquirente de boa-fé que não poderá perdê-lo em razão de o credor tributário identificar uma situação que caracterize a fraude, já que pode haver inscrição na dívida, mas ainda não ter havido penhora ou nem mesmo ter sido ajuizada execução fiscal. Dessa maneira, de acordo com a jurisprudência do STJ, o adquirente, para se resguardar do risco de perder o bem futuramente, em razão de débitos do alienante, deverá não apenas obter a certidão negativa quanto à existência de constrições relativas ao bem adquirido, mas, também, deverá obter certidões negativas da dívida ativa daquele que lhe está vendendo o bem (débitos que o vendedor possua na DA, mas que não possuem relação com o objeto da alienação). Essa necessidade de verificar a inexistência não apenas de constrições na matrícula do bem, mas, igualmente, ter que verificar a ausência de inscrição em dívida ativa no nome do alienante, traz alguns complicadores que podem resultar na ausência de qualquer segurança ao adquirente de boa-fé. Por exemplo, é plenamente possível que o adquirente obtenha certidão negativa do alienante junto às Fazendas Nacional, Estadual e Municipal, mas, mesmo assim, não tenha qualquer garantia de que não poderá perder o bem em razão da incidência do art. 185 do CTN. Isso se dá por uma simples razão, não existe uma CND nacional, que abranja todas as Fazendas Públicas Estaduais e Municipais. Com isso, ainda que o adquirente consiga a CND no estado e no município onde reside e trabalha o alienante, pode ser que esse esteja inscrito na dívida ativa de outro município, em relação ao qual o adquirente não teria como saber que lá existiriam débitos tributários. E, de acordo com a atual jurisprudência do STJ, qualquer alegação que o adquirente venha a deduzir para tentar provar sua boa-fé será inócua, já que se entende pela presunção absoluta (jure et de jure) da fraude prevista no art. 185 do CTN, bastando a presença dos elementos objetivos previstos no dispositivo legal. Esse entendimento do STJ, ao conferir presunção absoluta de fraude após a inscrição em dívida ativa, já gera, por si só, uma situação de insegurança e imprevisibilidade para os adquirentes de bens no Brasil, de uma forma geral. Mas há uma preocupação ainda mais específica que gera a necessidade de um sério debate em torno dessa jurisprudência do STJ, são os casos em que ocorre alienação sucessiva de um bem e o último alienante não tem qualquer inscrição em dívida ativa, mas, mesmo assim, possa vir o adquirente a perder o objeto da aquisição em execução fiscal movida contra proprietário anterior àquele que lhe vendeu o imóvel. Na hipótese, então, o alienante não possui inscrição em dívida ativa, mas, quando adquiriu o bem que agora está alienando, o antigo proprietário possuía inscrição e, com isso, estava sendo caracterizada a fraude à execução, com presunção absoluta, conforme jurisprudência do STJ. Como fica, então, a situação do adquirente na última operação? Mesmo tomando todas as cautelas para verificar a inexistência de constrição na matrícula do bem e a inexistência de inscrição em dívida ativa em nome daquele que lhe está vendendo o móvel/imóvel, poderia perdê-lo em razão de dívida tributária de proprietário anterior ao alienante que lhe realizou a venda? Em pesquisa de jurisprudência no sítio eletrônico do STJ, utilizando-se as expressões "alienação sucessiva", "fraude", "execução" e "tributário", constata-se que a 2ª Turma do STJ tem aplicado a presunção absoluta mesmo para os casos de alienação sucessiva, sem fazer qualquer distinção para o caso. Na 1ª Turma não foram encontrados julgados que tratem especificamente dessa questão, mostrando-se, então, que ainda há espaço para um melhor ajuste da jurisprudência quanto ao tema. Quando se parte para verificar o entendimento sobre o tema em nível dos Tribunais Regionais Federais, verifica-se a existência de uma preocupação em fazer um distinguishing na aplicação da fraude à execução para os casos em que houve alienação sucessiva. Cumpre destacar alguns entendimentos dos Tribunais Regionais: "...não obstante a orientação tomada pela Corte Superior, nas situações em que houve sucessivas alienações e o último adquirente tomou todas as cautelas a seu encargo, bem como se encontre configurada a omissão do Fisco, deve ser afastada a presunção de fraude à execução por ser desarrazoado e desproporcional que se imponha ao alienante o ônus de investigar toda a cadeia dominial do bem que pretende adquirir". Processo n.: 0014828-90.2006.4.01.3600/MT, 8ª Turma do TRF 1.ª região, Data de julgamento: 22/05/2017. O terceiro embargante observou todas as cautelas ordinariamente exigidas nessa espécie de negócio (compra de bem imóvel), constando expressamente na Escritura Pública de Compra e Venda o rol necessário das certidões negativas, inclusive a de Tributos Federais do último proprietário do imóvel. 4. A decisão judicial que decretou fraude à execução fiscal não pode produzir efeitos em relação ao último adquirente de imóvel quando este comprou o bem em segunda alienação desembaraçado de qualquer ônus no registro imobiliário, não havendo demanda capaz de conduzir o alienante à insolvência, e, também, quando a Fazenda Pública não comprovou a negligência ou má-fé do último comprador. 5. Sendo o imóvel sujeito a registro, deve a Fazenda Pública apurar a existência de alienações posteriores, requerendo a necessária integração de terceiros à lide, para estender a estes os efeitos da decretação da fraude à execução. Caso não providenciada a integração de terceiros à lide, a projeção 'extra' autos dos efeitos da decisão dependerá de demonstração, pela Fazenda Pública, da má-fé ou negligência dos posteriores adquirentes do bem, nas alienações onerosas supervenientes, devendo prevalecer, se não houver tal demonstração, o princípio da boa-fé. 6. Se houver alienações sucessivas, a presunção de boa-fé favorece os posteriores adquirentes. Assim deve ser interpretado o art. 185 do CTN. Não se pode atribuir ao crédito tributário privilégio que vai além daqueles expressamente previstos na legislação tributária. 7. Uma vez que a parte embargante não adquiriu o imóvel diretamente do devedor/executado, mas de terceira pessoa que havia adquirido daquele, e ausentes provas de que tivesse conhecimento efetivo ou presuntivo da existência de demanda capaz de levar o devedor/executado à insolvência, não há como subsistir o reconhecimento de ocorrência de fraude à execução, sob pena de se desprestigiar a segurança dos negócios jurídicos. (AC 50040440920164047003, LUCIANE AMARAL CORRÊA MÜNCH, TRF4 - SEGUNDA TURMA, D.E. 28/06/2017) "...Quando os embargantes adquiriram o imóvel de boa fé, o fizeram já de terceiro adquirente, inclusive com interveniência da CEF, mediante financiamento. Se os embargantes não tivessem apresentado todas as certidões exigidas por aquela instituição bancária, o financiamento não teria sido concedido. 5. Se todas as cautelas para a concretização do negócio jurídico foram observadas, há que se considerar a boa-fé dos embargantes na aquisição do imóvel, objeto da penhora no feito executivo. 6. Ausência de provas nos autos de que os embargantes tinham conhecimento do débito fiscal do executado, bem como que agiram em consilium fraudis com o executado, mesmo porque, neste aspecto, negociaram a alienação do imóvel já com terceiro adquirente e não com o executado. 7. Se assim não fosse, estaria configurada uma relevante insegurança jurídica nas relações de compra e venda de imóveis que possuam uma cadeia dominial extensa, haja vista que não seria possível ou certamente seria muito dificultoso ao adquirente checar a existência de todos os gravames oriundos de débitos dos proprietários anteriores, se tais dívidas não estiverem registradas nas certidões imobiliárias. 8. Remessa oficial não-provida.(REO 00002715620144058305, Desembargador Federal Gustavo de Paiva Gadelha, TRF5 - Terceira Turma, DJE - Data::19/01/2015 - Página::92.) ...Sensatamente concluiu a sentença recorrida que "a alienação operada em favor do embargante não guarda mais qualquer relação com o executado, não sendo razoável exigir do adquirente a realização de diligências e busca de informações sobre a existência de execução em andamento com relação a todos os anteriores proprietários". Precedentes deste Tribunal". (AC 00110285720164039999, DESEMBARGADOR FEDERAL NELTON DOS SANTOS, TRF3 - TERCEIRA TURMA, e-DJF3 Judicial 1 DATA:21/08/2017 ..FONTE_REPUBLICACAO:.) É certo que, conforme a jurisprudência do STJ, o art. 185 do CTN trata de uma presunção absoluta de fraude e deve ter aplicação quando o devedor, inscrito em dívida ativa, aliena ou onera seus bens, devendo o adquirente adotar toda a precaução necessária no sentido de obter as certidões negativas do alienante. Mas, quando se trata de alienação sucessiva a aquisição do imóvel não se deu do devedor inscrito em dívida ativa, mas, sim, de um adquirente posterior que já havia comprado o imóvel do devedor, não estando o atual alienante inscrito em dívida. Ainda que a súmula 375/STJ não tenha aplicação para as execuções fiscais, quando se tratar de alienações sucessivas, a única forma de o adquirente ter conhecimento a respeito de alguma restrição decorrente de dívidas de proprietários anteriores ao atual alienante é por meio do registro da penhora. Do contrário, exigir-se-á uma tarefa absurda de ter o adquirente que analisar a existência de débitos inscritos em dívida em relação a todos aqueles que, um dia, já foram proprietários do bem objeto da alienação atual. Aquele que tomou todas as precauções para verificar se quem lhe vendia o imóvel estava inscrito em dívida ativa não pode vir a perder o bem adquirido porque um proprietário anterior estava inscrito em dívida ativa quando vendeu o bem ao ultimo alienante. Não se pode exigir que o adquirente seja obrigado a verificar a situação fiscal de todos os antigos proprietários do bem que constem da cadeia dominial, quando não consta nenhum gravame na matrícula do imóvel, essa exigência não consta da lei. A previsão legal se refere ao alienante atual, não a todos os anteriores que um dia foram proprietários do bem. Não se desconhece que as alienações sucessivas podem, é verdade, servir de instrumento para fraudar a Fazenda Pública, mas essa é uma questão cujo ônus da prova deve recair sobre o credor, não podendo o adquirente que cumpriu as cautelas previstas na lei ser penalizado com o estabelecimento de uma presunção, absoluta, de que estaria em conluio com o devedor fazendário. Situações de insegurança como esta são um dos grandes fatores para aumentar o "risco Brasil", tornando nossa economia mais cara para investidores, diante da falta de segurança jurídica para as transações econômicas que sejam realizadas, daí a importância de que a jurisprudência construída no âmbito dos tribunais superiores represente um capital consistente num conjunto de conhecimentos que presta serviços aos potenciais litigantes, informando acerca de suas obrigações legais4. Se a sociedade não conta com esse capital, é dizer, com precedentes jurisprudenciais uniformes e com interpretações claras e seguras do direito positivo, os indivíduos não podem avaliar com exatidão as consequências de seus atos, o que os induz a não realizar condutas econômicas que passam a ser, desnecessariamente, transformadas em condutas arriscadas, diante de uma, por vezes ocorrente, apatia dos juízes em refletir acerca das consequências finais de suas decisões. * Rafael Santos de Barros e Silva é advogado em Brasília. Assessor de ministro do STJ (2007/2008). Advogado da União (2006/2008). Mestre em Direito (2012). Professor substituto da UFPE (2005). Bacharel em Direito pela UFPE (2004). __________ 1 Art. 185 CTN: Presume-se fraudulenta a alienação ou oneração de bens ou rendas, ou seu começo, por sujeito passivo em débito para com a Fazenda Pública, por crédito tributário regularmente inscrito como dívida ativa. (Redação dada pela Lcp 118, de 2005) Parágrafo único. O disposto neste artigo não se aplica na hipótese de terem sido reservados, pelo devedor, bens ou rendas suficientes ao total pagamento da dívida inscrita. (Redação dada pela Lcp 118, de 2005) 2 O reconhecimento da fraude à execução depende do registro da penhora do bem alienado ou da prova de má-fé do terceiro adquirente. (Súmula 375, CORTE ESPECIAL, julgado em 18/3/2009, DJe 30/3/2009) 3 Antes da LC 118/2005, com base na redação original do art. 185 do CTN, a fraude apenas estava caracterizada a partir da citação do devedor na execução fiscal. 4 POSNER, Richard A. El Analisis Economico del Derecho. México: Fondo de Cultura Económica, 2007. p. 836
Abhner Youssif Mota Arabi Desde a definitiva cisão entre o Estado e a propriedade, o fenômeno da tributação passou a ser medida inevitável à manutenção do poder público. Após o deslocamento da propriedade para fora do patrimônio estatal, passou-se a mais fundamentalmente depender das receitas denominadas derivadas, as quais são, em grande parte, constituídas por recursos tributários. É certo, porém, que esse poder conferido ao Estado de instituir tributos e exigir o seu pagamento por seus cidadãos não se dá ilimitadamente. Se assim fosse, ter-se-ia uma situação de insegurança dos particulares diante de tamanho poder estatal. Como decorrência de um Estado Constitucional e Democrático de Direito - que impõe limites não apenas aos cidadãos, mas também ao poder público -, a atuação tributária estatal apenas é legítima se enquadrada nos limites estabelecidos pelo ordenamento jurídico. Tem-se, assim, como exemplo dessas limitações, os princípios tributários (como os elencados no art. 150 do texto constitucional) e as imunidades tributárias (previstas no art. 150, VI, da CRFB/88). Alguns desses princípios, aliás, decorrem da proteção jurídica da previsibilidade e da confiança do cidadão, isto é, de sua segurança, como são os casos dos princípios da irretroatividade, da legalidade, da anterioridade anual e nonagesimal. De todo modo, em linhas gerais, essas limitações, juntamente com as outras disposições constitucionais tributárias e com os demais atos normativos que regem a matéria, compõem o que comumente se denomina de sistema tributário nacional. Por outro lado, em uma acepção mais abrangente e mais adequada às preocupações que um Estado Democrático de Direito deve ter, tem se construído o conceito de matriz tributária, que, resumidamente, pode ser definido como "as escolhas feitas em um determinado momento histórico no campo da ação social, no que diz respeito ao fenômeno tributário"1. Tal referencial teórico apresenta uma interpretação mais adequada do fenômeno tributário em geral, já que considera não apenas as normas e institutos que regem a relação jurídico-tributária, mas também as consequências - fiscais e extrafiscais - das escolhas político-legislativas sobre a tributação. É sob tal perspectiva teórica que os textos veiculados nesta coluna têm se apresentado, buscando evidenciar algumas distorções e iniquidades da matriz tributária brasileira. Em especial, destaca-se um forte caráter regressivo, isto é, cidadãos de menor renda contribuem mais do que aqueles de maior renda, fato que se expressa em grande medida pela forte tributação sobre o consumo, em desrespeito a postulados constitucionais como o da capacidade contributiva e o da justiça social. Nesse mesmo contexto teórico, mas sob outro viés, o presente texto pretende lançar luz sobre outra origem de possíveis iniquidades nas políticas de tributação adotadas no Brasil: as distorções do federalismo fiscal. Em uma breve e direta anunciação, a matriz tributária brasileira tem se estruturado de forma bastante centralizada no ente federal, em prejuízo aos entes federativos menores - apesar de juridicamente iguais -, em verdadeiro desacordo às premissas constitucionais de um federalismo de cooperação. A forma federalista de Estado adotada pela Constituição de 1988 estrutura-se em nosso país a partir da proclamação da república em 1889 e do subsequente texto constitucional de 1891. Fundado em raízes históricas que remontam ao período de elaboração da Constituição dos Estados Unidos de 1787, o federalismo desenvolve-se mundo afora sob diversos modelos distintos, conforme a realidade político-social na qual se estruturará, mantendo sempre, entretanto, alguns traços básicos comuns que lhe dão identidade: a existência de entes federados distintos e juridicamente iguais; as prerrogativas do autogoverno, auto-organização e autoadministração atribuídas aos entes federativos; a repartição de competências legislativas e administrativas; além da divisão das receitas públicas. Com efeito, como em outra oportunidade já se afirmou, "dentro dessas definições mínimas, traço importante que também deve ser destacado diz respeito à divisão constitucional de recursos financeiros", já que "o orçamento dos entes federados e a aplicação das receitas que lhes competem são questões diretamente ligadas ao desempenho da autonomia de cada um deles e de suas prerrogativas atribuídas pelo regime federativo"2. Não há como se assegurar a autonomia, a auto-organização e o autogoverno sem que sejam garantidos recursos econômico-financeiros que subsidiem a concretização das decisões autonomamente tomadas. E isso não é peculiaridade do direito tributário ou financeiro, mas senão premissa básica que mesmo na vida cotidiana sem dificuldade se constata. É ínsito a tal forma de estado que a unidade política conviva com a possibilidade de diversidade de organização local e regional, conciliando os diversos interesses e realidades existentes em cada ente federado. Não se trata, porém, de estrutura estática, pelo que a organização da arquitetura institucional e a interação entre as forças políticas oscilam em movimentos pendulares, ora em direção à centralização, ora em direção à descentralização, o que implica uma maior ou menor autonomia local diante da unidade nacional. Mais recentemente, porém, tem-se notado uma tendência centralizadora na repartição das competências constitucionais entre os entes federativos, as quais se concentram junto ao ente federal. Para tal fenômeno, se apontam duas razões principais: a própria engenharia constitucional brasileira (privilegiando, por exemplo, competências privativas e exclusivas da União em detrimento de competências concorrentes - arts. 21 a 24 da CRFB/88); e a postura interpretativa comumente adotada no momento de aplicação do direito (e aqui se refere especialmente ao Supremo Tribunal Federal, como guardião da Constituição), a qual tradicionalmente se inclina à prevalência das ações federais unitárias em detrimento das iniciativas locais. É dizer: apesar de se afirmar a existência de um federalismo de cooperação, no qual os entes autônomos cooperam igualmente para a realização dos objetivos constitucionais, a realidade brasileira tem se aproximado muito mais de um federalismo de integração, expressão que se atribui a Alfredo Buzaid3, cunhada em uma realidade distante da democracia que hoje afirmamos ter. No âmbito tributário, essa tendência centralizadora se revela pelo fortalecimento das receitas percebidas pela União e uma maior dependência dos entes menores em relação aos repasses federais de recursos financeiros. De modo mais direto, nota-se a proliferação de contribuições - forma tributária de criação quase que exclusiva da União e que, em regra, não integra a discriminação constitucional de composição dos Fundos de Participação dos Estados e dos Municípios -; o reflexo negativo de políticas exonerativas federais nos valores repassados aos mencionados Fundos de Participação - montantes que, a rigor, representam receitas originárias e de titularidade inicial dos respectivos entes federativos, nos termos dos artigos 159 e seguintes da CRFB/88; a eternização da sempre temporária Desvinculação de Receitas da União (DRU). A partir de tal realidade, especialmente em relação aos Estados e municípios de menor arrecadação tributária e diminuta capacidade financeira, exsurge um cenário de dependência para com o ente central, pelo qual se agravam as desigualdades sociais regionais (muitas vezes decorrentes de razões geográficas, climáticas e sociais, por exemplo), imprimindo mais essa distorção à matriz tributária brasileira. Não bastasse, o instrumento constitucional dos Fundos de Participação, idealizados para que fossem supridas tais necessidades, tem sofrido sucessivas debilitações, pelas quais as enunciadas distorções se intensificam. Nesse sentido, destaca-se, por exemplo, o recente julgamento do RE 705.423 pelo Supremo Tribunal Federal, em que se assentou como tese conclusiva ser constitucional a "concessão regular de incentivos, benefícios e isenções fiscais relativos ao Imposto de Renda e Imposto sobre Produtos Industrializados por parte da União em relação ao Fundo de Participação de Municípios e respectivas quotas devidas às Municipalidades". Prejudica-se os entes federativos sob duas frentes: de um lado, o ente federal aumenta a percepção de recursos financeiros por meio das contribuições tributárias, cuja criação a Constituição lhe reserva; de outro, concede diversos benefícios fiscais em relação aos impostos de sua competência, acarretando em decréscimo direto da arrecadação dos entes federativos menores. Sucessivamente, bloqueada a via das transferências constitucionais obrigatórias, resta aos entes federados menores o pedregoso caminho das transferências voluntárias, em que é maior o espaço de discricionariedade política e negociação, o que acaba servindo de meio à imposição de severas restrições e condicionamentos por parte do ente central, representando, uma vez mais, novo mecanismo de diminuição do exercício da autonomia dos entes locais/regionais. Por meio de tal distorção federativo-tributária, permite-se a maior influência da União na realização das políticas públicas dos entes subnacionais e de sua atividade tributária e financeira. Note-se que, dentre outros fatores, a situação de desigualdade econômico-financeira entre os entes federativos na obtenção de receitas públicas tem se mostrado atualmente evidente diante do grave cenário de crise dos Estados, por exemplo, que os conduz a uma maior dependência em relação à União, na contramão dos fundamentos teóricos do federalismo. Contrariamente, porém, as competências e os serviços públicos que devem ser realizados pelos Estados-membros e pelo Municípios não são reduzidos, atingindo-se uma desproporção entre as atividades estatais e os necessários recursos financeiros que as subsidiam. É necessário ter-se em conta a noção de que os direitos têm custos4 e que, ante à escassez de recursos e a infinitude das necessidades, há que se prezar por uma maior eficácia alocativa, não apenas de forma a privilegiar as classes sociais menos favorecidas, mas também que busque uma maior proporcionalidade e equidade na distribuição dos recursos públicos entre os entes federados. Não que a mera existência de mais recursos destinados aos entes subnacionais necessariamente implica em uma maior eficácia alocativa; mas trata-se de distorção a ser corrigida. É que também as determinações jurídicas de uma sociedade possuem fortes influências sobre as transformações sociais e econômicas que ali se passam, determinações dentre as quais se incluem as teorias e políticas de tributação adotadas por uma nação e as consequências dessas escolhas na formação de sua matriz tributária. Ao se primar por escolhas que conduzem a uma maior centralização dos recursos públicos e da determinação das políticas públicas, perde-se a oportunidade de privilegiar iniciativas locais que poderiam ser úteis não só a problemas decorrentes das peculiaridades regionais (já que não se pode conferir tratamento igual a problemas e realidades diferentes), mas que também poderiam funcionar como verdadeiros laboratórios democrático-institucionais de soluções possivelmente servíveis aos problemas nacionais. Nesse sentido, colaciona-se a lição de Daniel Sarmento e Cláudio Pereira de Souza Neto: "Ao invés de assumir os riscos envolvidos nas grandes apostas de reforma global das instituições nacionais, como tem sido feito, talvez seja melhor experimentá-las no plano local de governo. A aplicação de novas ideias ou arranjos políticos em algum estado ou município precursor pode servir como teste. É claro que muitas experiências podem dar errado, mas os riscos para a sociedade são menores do que quando se pretende realizar reformar nacionais de um só golpe. Não por outra razão, o Juiz Louis Brandeis, da Suprema Corte norteamericana, chamou os governos estaduais de 'laboratórios da democracia': 'É um dos felizes incidentes do sistema federal que um único e corajoso Estado possa, se os seus cidadãos escolherem, servir de laboratório; e tentar experimentos econômicos e sociais sem risco para o resto do país'." É preciso, portanto, revistar a estruturação das vertentes fiscais e financeiras do pacto federativo, buscando conferir maior descentralização à percepção de recursos públicos, privilegiando os entes subnacionais e o pluralismo político, erigido como fundamento da República Federativa do Brasil (art. 1º, V, da CRFB/88). É necessário voltar o pêndulo federalista em direção aos entes subnacionais, de forma a possibilitar o exercício direto, autônomo e efetivamente independente de sua autonomia, sob pena de subversão do próprio modelo federalista. Trata-se de mais uma distorção enunciada na matriz tributária brasileira, sobre a qual pretende-se ter lançado alguma luz. __________ 1 GASSEN, Valcir. Matriz tributária brasileira: uma perspectiva para pensar o Estado, a Constituição e a Tributação no Brasil. In: GASSEN, Valcir (org.). Equidade e Eficiência da Matriz Tributária Brasileira: Diálogos sobre Estado, Constituição e Direito Tributário. Brasília: Consulex, 2012, p. 32. 2 ARABI, Abhner Youssif Mota. Desdobramentos Financeiros do Federalismo Fiscal: participação no resultado da exploração de petróleo e o bônus de assinatura. In: GOMES, Marcus Lívio; ALVES, Raquel de Andrade Vieira; ARABI, Abhner Youssif Mota. Direito Financeiro e Jurisdição Constitucional. Curitiba: Juruá, 2016, pp. 13/14. 3 FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. O estado federal brasileiro. In: Revista da Faculdade de Direito (USP), v. LXXVII, p. 1, 1982. 4 HOLMES, Stephen; SUNSTEIN, Cass. The cost of rights: why liberty depends on taxes. New York/London: W. W. Norton & Company, 1999. __________ Abhner Youssif Mota Arabi é assessor de ministro do STF. Autor do livro: "A Tensão Institucional entre Judiciário e Legislativo: controle de constitucionalidade, diálogo e a legitimidade da atuação do Supremo Tribunal Federal"; coordenador da obra "Direito Financeiro e Jurisdição Constitucional" e autor de diversos capítulos de livro e artigos jurídicos.
Júlio César Marques Conquanto o Legislativo e o Executivo sejam poderes diretamente encarregados das principais funções tributárias, dado que são responsáveis pela elaboração de leis e políticas de alocação e redistribuição de recursos públicos e estão investidos nas atribuições arrecadatórias, também o Judiciário apresenta relevante peso na configuração da ordem tributária, particularmente pelo papel que desempenha no controle de constitucionalidade das leis. Na realidade brasileira, em que a tributação é exaustivamente disciplinada na Constituição Federal, não raro o Supremo Tribunal Federal (STF), órgão de cúpula do Poder Judiciário, é chamado a se posicionar sobre questões tributárias e, nessa posição, ocasionalmente chancela injustiças e apresenta entraves à equalização igualitária do sistema que repercutem na própria cidadania fiscal. Por certo, tanto quanto um mecanismo para angariar recursos econômicos necessários ao fornecimento de bens e serviços públicos, a tributação é também um instrumento político e um meio de pôr em prática um modelo de Estado e de Justiça em uma democracia1. A legitimidade e a Justiça da atuação fiscal perpassam necessariamente por considerações acerca da equidade e da eficiência da matriz tributária adotada2, do adequado e isonômico tratamento reservado aos contribuintes, do respeito da dimensão da liberdade individual, da reflexão sobre o tipo de sociedade, democracia e instituições que se pretende ter3. Nesse caminho, uma matriz tributária politicamente comprometida com os ideais republicanos e democráticos se afina tanto com a contenção do ímpeto estatal e com a garantia de direitos fundamentais, quanto se engaja com a qualidade da arrecadação e com os efeitos sociais da tributação e das ações governamentais empreendidas por meio e com os recursos arrecadados (alocação, redistribuição e incentivos econômicos positivos ou negativos). Tomadas essas concepções, verifica-se a incongruência da atividade fiscal do estado brasileiro (pelo viés da arrecadação e também dos gastos públicos) com os objetivos de justiça social e o ideal igualitário declarados na própria Constituição de 1988, bem como o descompasso em relação aos princípios constitucionais estruturantes da função tributária (capacidade contributiva, legalidade, segurança jurídica, transparência). O fenômeno tributário é amplo, mas uma breve avaliação da capacidade contributiva e do modo de concretização do princípio pelas instituições de estado, entre as quais o STF, exemplificam o ponto. Com efeito, a capacidade contributiva é um postulado de igualdade que orienta a tributação segundo a capacidade econômica e a possibilidade individual de arcar com o encargo tributário em função dos recursos que a pessoa manifesta. Desdobra-se em um aspecto objetivo e outro subjetivo4: de um lado, determina que a tributação ocorra apenas diante de situações que revelem e denotem de forma objetiva algum tipo de riqueza apta a suportar o encargo tributário por quem realiza um ato ou se encontra em determinada situação; na segunda perspectiva, estabelece que a tributação se realize de acordo com a possiblidade econômica pessoal de cada um concorrer com a manutenção da coisa pública, inclusive de modo progressivamente maior em função da maior capacidade econômica/maior expressão da riqueza pessoal. Com fundamento na aproximação objetiva da capacidade contributiva, a Constituição Federal de 1988, de modo a conferir a cada unidade da federação meios de obter recursos financeiros próprios, discriminou a competência tributária da União, estados e municípios e autorizou-os a instituir e cobrar impostos sobre renda, consumo e patrimônio5. De outra parte, com base na aproximação subjetiva, determinou modulação da carga individual, sempre que possível, segundo a capacidade individual do contribuinte. Mas, apesar da amplitude de bases econômicas sujeitas a tributação, o estado brasileiro confere primazia à arrecadação sobre consumo (indireta), em detrimento da tributação (inclusive progressiva) do patrimônio e da renda (em princípio direta e mais alinhada com a capacidade contributiva subjetiva). Dessa forma, determina um comportamento regressivo da carga tributária global, dado que onera proporcionalmente mais a parcela da população com menos recursos econômicos6. Inclusive, a medida vai na contramão da capacidade contributiva subjetiva desses contribuintes e de um sistema mais igualitário, colaborando ainda para um verdadeiro ciclo de concentração de renda, que estigmatiza e põe em xeque a matriz fiscal brasileira. Nesse particular, o Poder Judiciário, notadamente o Supremo Tribunal Federal, acaba por colaborar com o quadro de regressividade da nossa matriz tributária. Assim, por exemplo, por longo tempo, o STF, a partir de debates nascidos de impostos incidentes sobre a propriedade imobiliária (IPTU e ITBI7), foi refratário ao reconhecimento da progressividade de impostos incidentes sobre o patrimônio com fundamento em questionável dogmática que distingue os tributos em reais e pessoais8. Para tanto, seguia entendimento de que os tributos reais, enquanto tomam por parâmetro coisas e não pessoas, não poderiam ser progressivamente majorados, sem que para tanto houvesse maior reflexão e aprofundamento sobre o alcance da ideia de capacidade contributiva subjetiva. Em 2013, porém, o STF guinou no sentido da aceitação da constitucionalidade da progressividade de tributos de natureza real, prestigiando o princípio da capacidade contributiva, em julgamento acerca do imposto sobre heranças e doações (ITCMD) do estado do Rio Grande do Sul9. Outra situação emblemática é a proibição da tributação de embarcações e aeronaves pelo imposto estadual sobre veículos automotores (IPVA), reavivada recentemente pelo Ministério Público Federal na Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) n. 5654, fundamentada em precedentes do STF10 que praticam uma interpretação que limita o sentindo da expressão "veículo automotor" a veículos de circulação terrestre, embasada em uma vinculação do atual IPVA à antiga Taxa Rodoviária Única (TRU, instituída nos idos de 1969) e na submissão da competência tributária constitucional (art. 155, III) à lei ordinária, no caso, ao Código de Trânsito Brasileiro (CTB). Nesse caso, interpretação dessa ordem afronta a força normativa da Constituição em múltiplos aspectos: ignora que a competência é outorgada segundo fatos indicadores de capacidade econômica (capacidade contributiva objetiva), de modo que "veículo automotor" remete a "veículo que circula pelos seus próprios meios", como, por exemplo, motor a propulsão; vincula a ordem constitucional atual às leis ordinárias do passado; e subordina a competência constitucional à lei ordinária (CTB), em inescapável inversão normativa. Mas, ao passo que imuniza o patrimônio, o STF não apresenta maior preocupação com a tributação sobre o consumo, como ocorreu, por exemplo, com o cálculo por dentro do ICMS, mecanismo que permite que o imposto integre a sua própria base de cálculo, em verdadeira tributação em cascata que gera uma distorção pouco transparente entre a carga fiscal nominal e a efetivamente paga, em prejuízo a fornecedores e consumidores de bens de consumo, chancelada em diversas ocasiões pela Corte e reiterada em julgamento de repercussão geral em 201111. Esses exemplos são tópicos. Mas, apesar da complexidade do fenômeno tributário, lançam luzes sobre o papel que o Poder Judiciário desempenha no comportamento da carga tributária no Brasil, e, reflexamente, nos quadros de desigualdade e de concentração de riqueza que refletem estruturalmente na sociedade, na política e na economia. Certamente, uma multiplicidade de atores, fatores e causas concorrem para a injustiça da tributação no país, mas, ainda que incipientemente, a reflexão sobre a interferência e controle exercidos pela atividade jurisdicional e o grau de profundidade com que a instituição trabalha o princípio da capacidade contributiva colaboram no esclarecimento sobre a inequidade e ineficiência da matriz tributária brasileira. __________ 1 MURPHY, Liam; NAGEL, Thomas. O mito da propriedade: os impostos e a justiça. Trad. Marcelo Brandão Cipolla. São Paulo: Martins Fontes, 2005 2 GASSEN, Valcir. Matriz tributária brasileira: uma perspectiva para pensar o estado, a constituição e a tributação no Brasil. In: GASSEN, Valcir (org.). Equidade e eficiência da matriz tributária brasileira: diálogos sobre estado, constituição e direito tributário. Brasília: Consulex, 2012, p. 27-50 3 A propósito, vide DWORKIN, Ronald. Is democracy possible here? Principles for a new political debate. Princeton-Oxford: Princeton University Press, 2006, p. 90-126 4 COSTA, Regina Helena. Princípio da capacidade contributiva. 2. ed. São Paulo: Malheiros Editores, 1995 5 E o fez por meio da descrição de situações econômicas que manifestam o montante de recursos que a pessoa percebe com o exercício de seu ofício ou a exploração de seus bens, os bens e serviços que consome e o conjunto de bens e direitos que acumula e titulariza. A respeito, vide LAGEMANN, Eugenio. Tributação: seu universo, condicionantes, objetivos, funções e princípios. In GASSEN, Valcir (organizador). Equidade e Eficiência da Matriz Tributária Brasileira - Diálogos sobre Estado, Constituição e Direito Tributário. Brasília: Editora Consulex, 2012, p. 51-70 6 BRASIL. Presidência da república, Observatório da Equidade. Indicadores de Iniquidade do Sistema Tributário Nacional. Brasília: Presidência da República, Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social - CDES, 2.ed. 2011 7 Vide súmulas 589, 656 e 668/STF 8 Classificam-se os impostos em pessoais ou reais em razão da predominância de características subjetivas ou objetivas do fato gerador, "se o tributo leva em consideração aspectos pessoais do contribuinte (nível de renda, estado civil, família etc.), ele se diz pessoal; real será o tributo que ignorar esses aspectos" (AMARO, Luciano. Direito Tributário Brasileiro. 17. ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 111). Tem-se ainda que impostos pessoais referir-se-iam a pessoas, e impostos reais a coisas (CARRAZA, Roque Antonio. Curso de Direito Constitucional Tributário. 26. ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2010, p. 542). 9 RE 562045 10 RE 134509 e RE 379572 11 RE 582461 _________ *Júlio César Marques é bacharel em Direito pela UnB. Advogado. Membro do Grupo de Pesquisa Estado, Constituição e Tributação da Faculdade de Direito da UnB (GETRIB - FD/UnB).
Yuri Assen Não há dúvida de que o Direito Tributário brasileiro é matéria dotada de enorme complexidade por conta de sua hipertrofia legislativa, frequentes alterações de regras e regimes tributários, reviravoltas jurisprudenciais e outros tantos fatores impulsionados por momentos de crise fiscal. É em virtude dessa realidade tormentosa e de baixa segurança jurídica que Alfredo Augusto Becker descreveu este nosso sistema tributário nacional como "manicômio fiscal" e "carnaval tributário" (BECKER, 1999). Tamanha é a complexidade da tributação brasileira que ocupamos posição preocupante em rankings internacionais que tratam da eficiência na declaração de tributos1, além de estarmos submetidos a uma regressividade inaceitável para o desenvolvimento de um país em desenvolvimento2. Confrontar as normas tributárias com a realidade econômica ou até mesmo com a prática forense nos leva à conclusão de que não existe uma coerência nas formulações fiscais do Poder Público3. As opções jurídicas, políticas e econômicas feitas na seara da tributação carecem de sinergia e são conflituosas ao ordenar um sistema que deveria ser pautado pela eficiência e justiça simultaneamente4. Há muito a ideia de sistema tributário não tem sido satisfatória para descrever a tributação, pois é insuficiente para expor a sua real ligação com o Estado democrático de direito, como afirma Valcir Gassen (2013). É preciso criar um novo acordo semântico que dê conta de apresentar toda a complexidade que envolve a tributação em seus mais diversos aspectos. Um novo conceito que ressalte a importância de reconhecer que a incidência de tributos não é mera consequência binomial (incidente ou não-incidente), mas sim uma construção histórica influenciada por decisões de caráter econômico com repercussões sociológicas que revelam muito mais do contrato social brasileiro5. Nesse sentido, assim como Gassen (2013), repiso a importância de abandonarmos a ideia de "sistema tributário" para abraçarmos o conceito de "matriz tributária", assim entendida como as escolhas feitas em um determinado momento histórico no campo da ação social, no que diz respeito ao fenômeno tributário, pois é somente a partir desta premissa que se pode entender parcela significativa das reais finalidades da tributação que são mascaradas pelas formas jurídicas. Não há como questionar a importância de se estudar a matriz tributária brasileira enquanto meio para expor, criticar e reverter as iniquidades da tributação no Brasil. Entretanto, muitos juristas ainda se perguntariam: qual a relevância deste estudo para o direito tributário? Primeiramente, esse tipo de pergunta tem como pressuposto a ideia de que o direito é um reles instrumento de aplicação normativa, negando o seu papel na transformação da sociedade e na elaboração de institutos que permitiram desde o avanço nas relações de comércio até a emancipação de direitos de personalidade. Ao invés de demonstrar toda a formação jurídica brasileira que nos aprisionou neste raciocínio bacharelesco que se vincula à rigidez das formas e ao cientificismo jurídico6, proponho-me a demonstrar a proximidade deste assunto e da advocacia tributária com o objetivo claro de expor o poder deste estudo na transformação de nossa realidade jurídica. Parcela relevante das discussões tributárias dos últimos anos tem revelado um verdadeiro maniqueísmo que põe contribuintes e Fisco em lados opostos de uma batalha. A cada nova jurisprudência é ventilada uma hipótese de que o direito tributário seria, na verdade, meio que confere aos contribuintes um direito de resistir às expectativas arrecadatórias do Estado e nada mais. Infelizmente este é o resumo atual do direito tributário que nega um objetivo final para a tributação em alinhamento com os objetivos da República (art. 3° da Constituição Federal). A ciência econômica nos ensina que a tributação tem funções que vão muito além do seu viés arrecadatório. Para os economistas americanos Richard e Peggy Musgrave (1989, pp. 3-14) são três as principais funções da economia: alocação, distribuição e estabilização. A função alocativa diz respeito à obtenção de recursos pelo Poder Público a fim de viabilizar o fornecimento de bens e serviços para toda a população, uma vez que esses bens não estariam acessíveis sem a atuação do Estado. A função distributiva da tributação está associada aos ideais de igualdade e justiça - que nem sempre são compartilhados pela própria sociedade - com o intuito de superar as desigualdades inerentes ao sistema econômico. Por fim, a função estabilizadora utiliza-se da tributação para criar incentivos ou desincentivos à atividade econômica, guiando-a ao caminho desejado como a manutenção do emprego, controle da inflação ou fluxo de capitais. Lamentavelmente, no Brasil temos uma sobrecarga na função alocativa. Em que pese a arrecadação ser sobremaneira importante para dar continuidade à prestação de serviços públicos e outras atividades do Estado, fato é que visualizar a tributação unicamente como meio arrecadatório resultou em graves consequências ao contexto sócio-econômico brasileiro7. Não bastasse o dano civilizatório resultante da regressividade, o poder tributário apresenta-se como reflexo de uma "sujeição fiscal" ao invés de uma relação de ganho mútuo entre setor público e privado. Isso porque, segundo Marco Aurélio Greco (2009), nos primórdios do Estado brasileiro foram absorvidas concepções contraditórias pelo nosso ordenamento jurídico resultando em uma relação conflituosa entre o pagador de impostos e o Fisco que nada contribui para um sentimento civilizatório de contribuição para o contexto social. Enquanto afirma-se a supremacia do interesse público, do outro lado, pela absorção do constitucionalismo americano, exalta-se o indivíduo como base da disciplina estatal. Como consequência, tem-se uma "dupla personalidade" do Direito Público brasileiro que prestigia o plano individual de liberdades e fortalece a autoridade administrativa. O poder tributário aproxima-se, portanto, de um autoritarismo fiscal em favor de um objetivo distorcido de tributação preocupado exclusivamente com a arrecadação. Trata-se de uma verdadeira contradição resultante da formação jurídica brasileira. A militância da advocacia tributária se vê diante de vários momentos em que o poder tributário é, na verdade, expressão de puro autoritarismo fiscal. Cito aqui alguns exemplos: as práticas coercitivas da Fazenda Pública para recuperação de crédito tributário como a inclusão do sócio da empresa na Certidão de Dívida Ativa para fins de integração do polo passivo da execução fiscal sem que haja a verificação de um dos requisitos do art. 135 e seguintes do CTN; a existência e aplicação de multas exorbitantes que superam o próprio valor do tributo; a negação do planejamento tributário enquanto meio lícito para elidir tributos; as consequências para os contribuintes e para a economia resultantes da guerra fiscal e a glosa indevida de benefícios fiscais; a incidência "por dentro" do ICMS; a inclusão de tributos na base de cálculo de outros tributos; etc. São vários os exemplos em que o poder de tributar está desvinculado da realidade econômica com um objetivo exclusivo de arrecadar sem, ao menos, entender o papel da tributação em uma economia capitalista. Como proposição, a fim de revistar as premissas que envolvem a relação entre contribuinte e Fisco, deveríamos tratar da função tributária e não do poder de tributar, como afirma Greco (2009, pp. 174-176). Poder tributário, a seu entender, reflete a autoridade estatal, já a função tributária esforça-se em legitimar-se por meio da eficiência na arrecadação e utilização dos recursos do Estado em sintonia com as políticas públicas estatais. Ainda nas lições de Greco, a tributação deve se alinhar aos objetivos do estado, devendo o controle constitucional afetar a substância (valores) e função (objetivos) das normas tributárias e não somente em seu aspecto formal e material. Nessa esteira, o interesse arrecadatório8 não deve se sobrepor a um interesse maior de emancipação da sociedade por intermédio da tributação, devendo o debate fiscal ser mais que uma discussão técnica, mas sim um debate cívico. A partir do pensamento aqui exposto, cabe ao Direito Tributário reavaliar suas próprias bases de estudo com o intuito de reverter problemas que afetam não somente a advocacia, mas a todo um contexto social afetado pela tributação. Dos problemas acima apresentados, como abusos das autuações fiscais, nenhum deles será solucionado pelo mero contingenciamento pontual de soluções. É preciso atacar a origem das causas que dão força ao uso exacerbado do poder tributário e à falta de coerência na tributação brasileira. Assim como um dia o direito penal se curvou às ideias da criminologia, cabe ao direito tributário utilizar-se de outras disciplinas a fim de criticar seus próprios institutos para atender a uma função maior da tributação. Assim sendo, aponto para a sociologia fiscal como um dos campos de estudo possíveis para confrontar o papel do fenômeno tributário com a sua aplicação. Mas o que seria a Sociologia Fiscal? Alguns autores como Juergen Backhaus (2006) Isaac Martin, Ajay Mehrotra e Monica Prasad (2009) e John Campbell (1993) apontam a existência de um vazio no estudo da tributação que não foi preenchido nem pelos estudos da sociologia e muito menos pela economia. Trata-se de uma verdadeira confusão nas distribuições de competências disciplinares que levou à não compreensão da tributação enquanto um fenômeno mais complexo. Aconteceu que a economia não se preocupou em estabelecer as raízes históricas, institucionais e sociais da tributação, pois imaginou que esse estudo seria de competência das demais ciências sociais. No outro lado, as demais ciências sociais (direito, sociologia, ciência política, história) sempre delegaram o estudo da tributação e seus efeitos à economia9. Nesse contexto, a Sociologia Fiscal surgiu como segmento interdisciplinar de estudo com a finalidade de compreender o fenômeno tributário, transcendendo à economia e utilizando-se de outras ciências sociais para garantir respostas satisfatórias às necessidades de uma reforma do sistema fiscal sustentável nos âmbitos político, fiscal e econômico. Foi Joseph Schumpeter (1954, p. 101) quem propôs este campo de estudo ao verificar que a história fiscal revela algo muito além do que a mera observação de fatos isolados. Contribui, isto sim, para uma visão em perspectiva da relação entre Estado e contribuinte. Campbell (1993, p. 2) expõe que a sociologia fiscal difere-se de outras abordagens, pois foca explicitamente na complexidade das interações sociais e institucionais e contextos históricos que unem Estado e sociedade de maneiras que moldam políticas fiscais e seus efeitos. Martin, Mehrotra e Prasad (2009, p. 6) indicam os três principais pontos de estudo do que chamam de "Nova Sociologia Fiscal": (1) as fontes da tributação; (2) o consentimento do pagador de impostos; e (3) as implicações da tributação. Para esses autores a sociologia fiscal é a demonstração e racionalização das cláusulas que compõem o contrato social celebrado entre contribuintes e Estado. No campo da relação jurídica é preciso apoiar-se nestes estudos para concretizar e valorar devidamente os princípios constitucionais que norteiam o sistema tributário. O princípio da capacidade contributiva, presente no art. 145, §1°, da Constituição Federal, é sem dúvida a maior expressão normativa da justiça fiscal (TIPKE, YAMASHITA, pp. 51-53), porém este nunca será efetivado enquanto não entendermos o seu peso. Não adiantaria expor os contornos do conteúdo jurídico deste instituto sem que houvesse uma definição pré-jurídica do real valor econômico, social e político da reconstrução desta relação entre contribuinte e Estado. A introjeção destes conceitos no estudo do direito tributário representaria um passo para a compreensão deste fenômeno como um algo mais complexo e relevante socialmente do que a simples arrecadação em benefício do Estado. O aprimoramento de uma relação dialógica entre o pagador de impostos e o Fisco somente atuaria em favor da reconstrução desta relação conflituosa. Outras tantas consequências para o próprio contexto democrático seriam evidentes como um maior respeito à transparência e à cidadania fiscal, além de maior segurança jurídica. Isso pode se manifestar de várias formas, permitindo, inclusive, a migração de um sistema regressivo para um sistema cada vez mais justo e inclusivo de modo a ampliar os ganhos sociais e transpor os abismos criados pela desigualdade social. Como consequência imediata, toda esta evolução democrática e emancipadora trabalharia em proveito da relação entre contribuinte e Estado retirando, por conseguinte, a sobrecarga da função alocativa e buscando uma função tributária valorada em torno de objetivos que atuem para desconstruir o autoritarismo fiscal. A afirmação de uma nova matriz tributária que traga soluções para problemas estruturais passa não somente pela atribuição de alíquotas mais justas, simplificação das técnicas de tributação e racionalização dos tributos, mas, também, pela concepção de novas motivações para aplicação dos tributos no Brasil. É essencial que a relação entre contribuinte e Estado seja direcionada a ressignificar o real motivo do pagamento de tributos: a contribuição para manutenção dos objetivos do Estado em prol do desenvolvimento social (MARTIN, MEHROTRA, PRASAD, 2009. pp. 18-22) e a garantia da manutenção de direitos do próprio homem que prescindem da tutela estatal (HOLMES, SUNSTEIN, 1999). Referências BACKHAUS, Juergen. Fiscal Sociology: What for? in American Journal of Economics and Sociology, 61, 2002, pp. 55-77. Disponível em: Acesso em: 03 dez. 2016 BECKER, Alfredo Augusto. Carnaval tributário. 2ª ed. - São Paulo: Lejus. 1999 BRASIL, IPEA. Comunicados do IPEA nº 92: Equidade fiscal no Brasil: Impactos distributivos da tributação e do gasto social. 2011. CAMPBELL, John. The State and Fiscal Sociology in Annual Review of Sociology, 19(1), 1993, pp.163-185. Disponível em: Acesso em: 03 dez. 2016 D'ARAÚJO, Pedro Júlio Sales. A regressividade da matriz tributária brasileira: debatendo a tributação a partir de nossa realidade econômica, política e social. 2015. 166 f.. Dissertação (Mestrado em Direito) - Faculdade de Direito, Universidade de Brasília, Brasília, 2015. COUTINHO, Diogo R. Direito, desigualdade e desenvolvimento. São Paulo: Saraiva, 2013. COUTINHO, Diogo R. O direito nas políticas públicas in Política Pública Como Campo Disciplinar. 1ª Edição. São Paulo: Editora UNESP, 2013 GASSEN, Valcir. Matriz Tributária: uma perspectiva para pensar o Estado, a Constituição e a tributação no Brasil. Revista dos Tribunais. São Paulo. v. 935, p 243-266, 2013. GRECO, Marco Aurélio. Do Poder à Função Tributária. In FERRAZ, Roberto (Org.) Princípios e Limites da Tributação 2: Os princípios da Ordem Econômica e a Tributação. São Paulo: Quartier Latin. 2009. pp. 167-176. HOLANDA, Sérgio Buarque. Raízes do Brasil. 27ª Edição. São Paulo. Companhia das Letras, 2014. HOLMES, Stephen; SUNSTEIN, Cass. 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A crítica da razão indolente: contra o desperdício da experiência. 4ª Edição. São Paulo: Cortez. 2000. TIPKE, Klaus; YAMASHITA, Douglas. Justiça Fiscal e o princípio da capacidade contributiva. São Paulo: Malheiros. 2002. __________ 1 Segundo Relatório Doing Business 2016, no Brasil são gastas 2.600 horas apenas para declarar tributos. Cfr. BANCO MUNDIAL. Relatório Doing Business 2016. 2016. Disponível em: Acesso em: 26 set. 2016. 2 Sobre a regressividade da tributação no Brasil e como esta repercute no desenvolvimento social, confira: BANCO MUNDIAL. LAC Poverty and Labor Brief, February 2014 Social Gains in the Balance - A Fiscal Policy Challenge for Latin America and the Caribbean. Washington, D.C: The World Bank, 2015. 3 Se por um momento concebermos que o agravamento da concentração de renda, um das consequências da regressividade tributária brasileira, seja um dos objetivos implícitos da tributação, talvez esta falta de coerência seja uma mera impressão. 4 Para Liam Murphy e Thomas Nagel (2005, pp. 16-18) um das tarefas difíceis daqueles que formulam um sistema tributário é estabelecer uma ideia de justiça que seja aplicável e economicamente eficiente. 5 Para Martin, Mehrotra e Prasad (2009, p. 1), no mundo moderno a tributação é a manifestação expressa do contrato social que define a relação entre contribuinte e Estado. 6 Os conceitos resultantes do "bacharelismo liberal" (KOZIMA, 2006, pp 311-330), distante do liberalismo europeu, foram utilizados como forma de dominação a partir do direito num contexto em que a elite econômica e intelectual do Brasil estaria à frente das decisões do país. Esta espécie de "liberalismo à brasileira", marcado pela manutenção do patrimonialismo, vincula-se ao cientificismo e formalismo típicos do positivismo jurídico sem exercer uma crítica à realidade consequente da aplicação de suas formas (HOLANDA, 2014, p 183-200). Daí criou-se um distanciamento entre a teoria jurídica e a realidade. Boaventura de Sousa Santos (2000, pp. 164-165) sustenta que "o direito desenvolveu um autoconhecimento especializado e profissionalizado, que se define como científico (ciência jurídica), dando assim origem à uma ideologia disciplinar própria despreocupada com seus efeitos sociais. Ocorre que mesmo no século XXI ainda não superamos este marco bacharelesco. Não é hábito da doutrina legal brasileira entender o direito enquanto elemento para a consecução de políticas públicas, ou no caso do direito tributário, como expressão de uma política de justiça econômica (MURPHY, NAGEL; 2005, pp. 6-11). Tal convicção se dá por esta herança bacharelesca, que dominou - e ainda domina - as formações jurídicas, desde as faculdades até os tribunais. Note-se que o ensino jurídico no Brasil não ultrapassa a teoria distanciando da prática, formando bacharéis, autoridades públicas e não se preocupou em formar profissionais do direito preparados para estruturar, operar e aprimorar políticas públicas e programas de ação governamental" (COUTINHO, 2013). 7 Muitos não sabem, mas em 2011 a parcela mais pobre da população brasileira contribuiu com 32% de sua renda, enquanto a parte mais rica contribui com apenas 21% pela insistência na tributação indireta no Brasil (BRASIL, IPEA, 2011). Esse dado por si já mostra o tamanho distorção gerada pela tributação brasileira já que o senso comum nos diria que é a parcela mais rica que contribui mais. Essa distorção na arrecadação cria uma representatividade deturpada já que a maioria dos tributos são mantidos encobertos nos preços dos produtos adquiridos, contribuindo para deslocar a atenção do real pagador de impostos. Como Pedro Júlio Sales D'Araújo expõe no artigo anterior desta mesma coluna, "o financiamento estatal se mostra claramente anestesiante, uma vez que os encargos são transferidos através do sistema de preço, sendo suportados pelos consumidores de maneira despercebida, os quais, na maior parte das vezes, adquirem bens e serviços sem saber o encargo tributário que compõe aquele valor pago". 8 Para explicar melhor o que quis dizer Marco Aurélio Greco, pode-se tomar emprestado o conceito de interesse público de Celso Antônio Bandeira de Mello. Mello (2009, pp. 65-69) entende como interesse público primário aquele referente aos objetivos do Estado enquanto permanência, já o interesse público secundário, o interesse de Governo, é aquele decorrente das vontades do Governo em exercício que não necessariamente refletem um ganho perene para a coletividade. 9 A fragmentação no estudo da sociologia fiscal evidencia os motivos de o contexto acadêmico ter ignorado por tanto tempo esse ramo de estudo (Cfr. MARTIN, MEHROTRA, PRASAD, 2009, pp. 6-11) __________ Yuri Assen é advogado tributarista no escritório Santiago Meneses, Moreira & Oliveira Advogados. Bacharel em Direito pela Universidade de Brasília. Pesquisador no Grupo de Pesquisa Estado, Constituição e Tributação (Getrib UnB). Pesquisador no Centro de Direito, Internet e Sociedade - CEDIS/IDP do Instituto Brasiliense de Direito Público.
Igor Ascarelli Castro de Andrade Uma representação comum da realidade brasileira veiculada aqui no Brasil é a de que o País ocupa uma posição elevada no ranking das economias mundiais. O Fundo Monetário Internacional classificou o Brasil, em 2015, como a 9.ª economia do mundo em termos de Produto Interno Bruto nominal a preços correntes em dólares1. Embora importante para situar os países com maior capacidade produtiva, esse dado não é um indicador suficiente para que possamos nos representar a nós mesmos como país. Três indicadores ajudam a retratar melhor a realidade brasileira. Um é o Produto Interno Bruto per capita nominal anual a preços correntes em dólares (PIB per capita); outro é o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) e ainda há o Índice de Gini. Quando falamos na repartição do PIB por cada habitante, o Brasil ocupa a 70ª posição de um total de 184 países segundo dados do Fundo Monetário Internacional2. Quando levamos em conta dados como renda, educação e saúde, o Brasil passa a ocupar a 75ª posição de um total de 188 países, segundo dados do IDH da Organização das Nações Unidas de 20153. Para complementar nossa representação de nós mesmos, devemos levar em conta o Índice de Gini do Banco Mundial, que mede o grau de concentração de renda. Precedido de Camarões, África do Sul, Namíbia, Haiti, Botsuana, República Centro Africana, Zâmbia, Lesoto, Honduras, Colômbia e Belize, o Brasil ocupa a 12ª posição entre países com maior desigualdade de renda no mundo4. A razão entre a renda média dos 10% mais ricos e os 10% mais pobres da população no Brasil é de 40.6. Essa razão nos Estados Unidos é de 15.9, no Reino Unido de 13.8, no Canadá de 9,4, na França de 9,1, na Suíça de 9,0, na Áustria e na Alemanha de 6,9, na Suécia de 6,2 e no Japão de 4,55. Para completar uma visão mais acurada do Brasil, segundo a Associação Brasileira de Empresas de Pesquisa6, a classe D/E, de renda média familiar mensal de R$ 639,78, representa 26,6% da população brasileira ou 53,3 milhões de pessoas; a classe C2, de renda familiar média mensal de R$ 1.446,24, representa 24,6% da população brasileira ou 49,3 milhões de pessoas e a classe C1, de renda familiar média mensal de R$ 2.409,01, representa 25,0% da população brasileira ou 50,1 milhões de pessoas. As classes D/E, C2 e C1 compõem a maior parte da população, 74,1% do total. Os dados em conjunto revelam um país de forte capacidade produtiva cujo produto é repartido entre os poucos que ganham muito e os muitos que ganham pouco ou quase nada. Um tema a ser enfrentado é o do papel das instituições na formação da pobreza e da riqueza. Se o Brasil está entre os dez países que mais produzem no mundo, uma pergunta que se põe é a respeito do papel do sistema de regras e princípios na alocação de recursos originariamente realizada pelo mercado. É preciso pensar não só a elaboração das regras e princípios em si mesmos, mas sua interpretação e aplicação pelos órgãos do Estado tanto em sua função administrativa quanto em sua função judicial. Para usar os termos da teoria da justiça de John Rawls, a questão é saber qual o papel da estrutura básica da sociedade na formação de um mínimo social e na consequente distribuição da renda e riqueza entre os indivíduos7. Em outras palavras, qual o papel que nossas instituições têm na configuração de uma sociedade de tantos pobres e miseráveis? Essa é uma indagação que precisamos fazer a nós mesmos como cidadãos e, eventualmente, como profissionais do direito e como agentes do Estado. Trata-se de uma questão fundamental que precisamos colocar, se pretendemos fazer de nossa sociedade uma sociedade livre, justa e solidária, sem pobreza, como almeja nossa Constituição Federal8. Um dos aspectos jurídicos que importam na reflexão sobre pobreza e instituições é a tributação. Como sabemos, a tributação é uma dimensão da cidadania. Ela é indispensável para a construção e manutenção do Estado, essa entidade que viabiliza a coexistência de indivíduos em sociedades complexas. O pagamento de tributos é uma expressão dos ganhos que auferimos da vida em sociedade. Quanto mais nós ganhamos com a cooperação social, mais devemos ser chamados a contribuir para viabilizar a própria cooperação. Isso pressupõe que o Estado seja concebido pelos cidadãos como meio de realização de uma concepção de justiça legitimada pela própria cidadania. Desse modo, respaldada em instituições justas, a tributação financia a possibilidade de exercermos nossa liberdade e nossa igualdade de modo pleno, de acordo com uma base social sólida que permita a cada um fruir de sua concepção individual do bem-viver. Há, no Brasil, um hiato de grandes proporções entre o ser e o dever ser das instituições estatais, bem como entre o ser e o dever ser da tributação. No Brasil, os mais pobres pagam, em termos relativos, mais tributos do que os mais ricos. É o que Valcir Gassen chama de matriz tributária9 regressiva. Isso acontece por causa dos tributos indiretos cobrados sobre o consumo das famílias. Segundo estudo da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo10, os tributos sobre consumo de bens e serviços consomem 46% da renda familiar das famílias que ganham até 2 salários mínimos, ao passo que esses mesmos tributos consomem 18% da renda familiar das famílias que ganham mais de 25 salários mínimos. Ao tributar mais os mais pobres e menos os mais ricos, o Estado brasileiro diminui a renda líquida dos que ganham menos e aumenta a renda líquida dos que ganham mais, dificultando, assim, a saída da maior parte de nossa população da situação de pobreza. Um dos programas do Estado direcionados à erradicação da pobreza foi instituído pela Lei no 10.836/0411, regulamentada pelo Decreto no 5.209/0412. Trata-se do programa de transferência de renda com condicionalidades, conhecido como programa Bolsa Família. Por lei, os beneficiários desse programa são unidades familiares que se encontram em situação de pobreza e extrema pobreza. Segundo o Decreto nº 8.794/1613, que altera o Decreto nº 5.209/04, unidades familiares pobres são as que possuem renda familiar mensal per capita de até R$ 170,00 e extremamente pobres são as que possuem renda familiar mensal per capita de até R$ 85,00. As famílias recebem benefícios de acordo com sua composição. Assim, pelo programa, uma família extremamente pobre composta pelos pais e por dois filhos pequenos recebe um benefício básico de R$ 85,00 mais R$ 39,00 por cada filho14, perfazendo R$ 163,00. Acontece que, no Brasil, uma família extremamente pobre compromete aproximadamente 46% de sua renda familiar com tributos sobre consumo de bens e serviços, como vimos15. Desse modo, a família de nosso exemplo, cuja renda mensal familiar per capita seja de R$ 85,00, ganha, no total, sem os benefícios, R$ 340,00 mensais. O valor que ela paga de tributos corresponde a R$ 156,40. Na relação de crédito e débito que ela mantém com o Estado, ela só recebe, na verdade, R$ 6,60, que é a diferença entre o que ela recebe do Estado (R$ 163,00) e o que ela paga de volta ao Estado (R$ 156,40) em tributos. Se supusermos, agora, que essa família seja pobre e sua renda familiar mensal per capita seja de R$ 170,00, ela possui uma renda familiar mensal total de R$ 680,00, sem os benefícios. Desse valor, ela paga R$ 312,80 de tributos sobre consumo de bens e serviços. Como se trata de uma família classificada como pobre, ela recebe do Estado R$ 39,00 por cada filho, perfazendo R$ 78,00 . Nesse caso a família não recebe nada do Estado em termos líquidos, uma vez que ela recebe os R$ 78,00 do Estado, mas lhe paga de volta R$ 312,80. Na verdade, houve apenas um abatimento no ônus tributário, que, descontado o valor do benefício, passa a ser de R$ 234,80. Os casos analisados aqui são de famílias que estão no teto da situação de pobreza e de extrema pobreza, isto é, de famílias que estão numa situação "melhor" que as de famílias de sua classe. Além disso, os casos trazidos aqui são de famílias com pequeno número de filhos. Dos exemplos vistos acima, é possível dizer que praticamente todo o esforço do Estado para retirar uma família da pobreza ou da extrema pobreza é anulado pelo próprio Estado mediante sua forma indireta de tributação. O Estado fornece à família o valor ou uma parte do valor que deverá custear a tributação. O que os pobres e extremamente pobres recebem do Estado acaba voltando para o próprio Estado. Embora esse vai-e-vem de recursos aumente a renda disponível das famílias, essa ação consiste mais numa isenção tributária do que numa transferência mais efetiva de renda. Um programa que se destina a transferir renda, ainda que com condicionalidades, na prática, apenas confere uma forma de isenção tributária, às vezes insignificante, sobre os produtos e serviços consumidos pelas famílias necessitadas. Seria necessário fazer um estudo mais abrangente para avaliar a relação entre tributação indireta e transferência de renda no Brasil. No entanto, para os dois casos ilustrados, pode-se sugerir a existência de uma eficiência ainda muito incipiente de nossas políticas de transferência de renda. Diante dessa situação, algumas medidas podem ser discutidas. Uma possibilidade é o cadastramento do CPF da/o beneficiária/o num sistema de concessão de créditos de impostos sobre consumo, à semelhança do programa Nota Legal, adotado pela Secretaria de Fazenda do Distrito Federal. Cada vez que consumir, a/o beneficiária/o do programa de transferência de renda tem registrado o valor do imposto sobre consumo na nota fiscal. Um banco de dados do Estado registra esse valor e o restitui integralmente às famílias pobres e extremamente pobres periodicamente, digamos, mensalmente, somando-o ao valor do benefício. Desse modo, a transferência de renda dar-se-ia efetivamente, sem a retomada de recursos dos pobres e extremamente pobres pelo Estado. A institucionalização de uma medida como essa pode requerer medidas adicionais, como a majoração de alíquotas de impostos sobre consumo de bens de luxo, para compensar a perda de arrecadação. Pode-se ainda compensar a perda de arrecadação com a instituição de uma maior progressividade do imposto sobre a renda. Várias soluções podem ser pensadas. O importante é garantir que a efetividade da transferência de renda aos pobres e extremamente pobres não seja comprometida pela tributação. Como foi dito antes, uma representação mais acurada do Brasil mostra que, embora estejamos entre as dez maiores economias do mundo, estamos também entre os doze países mais desiguais do mundo, sendo que a razão entre a renda média dos mais ricos e dos mais pobres da população está muito longe da razão que encontramos nos países desenvolvidos. Há algum tempo, vem sendo feito um esforço para tentar erradicar a pobreza de nosso país, mas esse esforço ainda é insuficiente. Enquanto não tivermos revista a nossa política tributária para os mais pobres, a começar pela tributação sobre o consumo que incide sobre eles, continuaremos tendo um déficit de cidadania, de liberdade e de igualdade em nossas instituições. Se tomarmos esses exemplos e uma teoria liberal como a de Rawls17, logo veremos que as instituições que compõem a estrutura básica da sociedade no Brasil ainda não podem ser chamadas de justas. Um esforço para corrigir essa situação pode começar com a revisão da política tributária para as famílias pobres e extremamente pobres de nosso país. __________________ 1 International Monetary Fund, 2016. 2 Id., ibid. 3 United Nations Development Program, 2015, p. 235. 4 Id., 2009, p. 195-196. 5 Id., ibid., p. 195-196. 6 Associação Brasileira de Empresas de Pesquisa, 2015. 7 John Rawls, 1971. 8 Brasil, 2016a. Art. 3.º, CF. 9 Valcir Gassen, 2012, p. 27-50. 10 Federação das Indústrias do Estado de São Paulo, 2015. 11 Brasil, 2004a. 12 Brasil, 2004b. 13 Brasil, 2016b. 14 Brasil, 2016b. 15 Federação das Indústrias do Estado de São Paulo, 2015. 16 Brasil, 2016b. 17 John Rawls, 1971. __________________ Referências ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE EMPRESAS DE PESQUISA. Critério de classificação econômica: Brasil. [S.l]: [s.n.], 2015. Disponível em: . Acesso em: 06 jul. 2016. BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília: [s.n.], 2016a. Texto atualizado até a emenda constitucional no 92, de 12 de julho de 2016. Disponível em: . Acesso em: 03 ago. 2016.BRASIL. Decreto no 5.209, de 17 de setembro de 2004. Brasília: [s.n.], 2004b. Disponível em: . Acesso em: 03 ago. 2016. BRASIL. Decreto no 8.794, de 29 de junho de 2016. Brasília: [s.n.], 2016b. Disponível em: . Acesso em: 03 ago. 2016. BRASIL. Lei no 10.836, de 9 de janeiro de 2004. Brasília: [s.n.], 2004a. Disponível em: . Acesso em: 03 ago. 2016. FEDERAÇÃO DAS INDÚSTRIAS DO ESTADO DE SÃO PAULO (FIESP/DECOMTEC). A carga tributária no Brasil: repercussões na indústria de transformação. São Paulo: [s.n.], 2015. Disponível em: . Acesso em: 12 jul. 2016. GASSEN, Valcir. Matriz tributária brasileira: uma perspectiva para pensar o estado, a constituição e a tributação no Brasil. 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É membro do Grupo de Pesquisa Estado, Constituição e Tributação (GETRIB) da Faculdade de Direito da UnB.
Pedro Júlio Sales D'Araújo Na atualidade, diversos autores tem lançado luzes acerca da regressividade1 de nossa matriz tributária2 sob o ponto de vista material, levando em consideração a distribuição do ônus econômico entre as diversas camadas de nossa sociedade. Ao ter sido estruturada desta forma, nossa matriz tributária acaba por retirar o financiamento do Estado das camadas mais pobres de nossa população, contribuindo, assim, para a forte tendência em se concentrar renda e patrimônio em nossa sociedade. Todavia, se esta é a realidade apresentada, como é possível ainda hoje ela passar despercebida por aqueles que são chamados a contribuir? O que leva a essa má compreensão da estrutura como um todo, na qual se propaga que os reais responsáveis por sustentar a arrecadação ano após ano são as classes mais abastadas? Como vimos, tais discursos parecem ir de encontro à realidade social brasileira e o papel do fenômeno tributário em sua estruturação. Mas, então, como eles ainda sobrevivem, permitindo a estruturação de um fenômeno tributário tão regressivo em uma sociedade tida por democrática? As respostas a tais perguntas iniciam-se na própria análise de como se estrutura a matriz tributária brasileira, a partir da relação existente entre a tributação indireta e a direta. A formatação de nosso fenômeno tributário passou por escolhas históricas que acabaram por resultar em uma matriz que se fundamenta na tributação do consumo, em detrimento das outras bases econômicas de incidência. Tal escolha acaba por produzir resultados interessantes para o Estado que a adota. Ainda que possivelmente regressiva, uma tributação geral sobre o consumo possibilita uma massificação da incidência tributária na sociedade, transformando todos os consumidores de bens e serviços em verdadeiras fontes de recursos aos cofres públicos. Também há a vantagem de que tal escolha permite um aprimoramento das formas de fiscalização, dificultando, portanto, possíveis evasões fiscais. Todavia, tal opção se dá com um custo oneroso em termos de cidadania3. Ao se estruturar desta maneira, o financiamento estatal se mostra claramente anestesiante, uma vez que os encargos são transferidos através do sistema de preço, sendo suportados pelos consumidores de maneira despercebida, os quais, na maior parte das vezes, adquirem bens e serviços sem saber o encargo tributário que compõe aquele valor pago4. Por outro lado, a tributação direta, ainda que corresponda a menos de 30% da arrecadação, acaba por ser sentida por aqueles que auferem renda e possuem patrimônio, criando-se a falsa sensação de ser essa faixa da população a responsável por arcar com os tributos no Brasil. Em nosso país, a faixa populacional a qual apresenta tais manifestações de riqueza acaba por se encontrar no topo da pirâmide social, tendo em vista que, em função da imensa desigualdade existente, a grande maioria da sociedade não possui patrimônio tributável ou se encontra na zona de isenção quando tratamos da tributação da renda. Esta impressão distorcida da realidade é corroborada ainda pela falsa percepção de se dar o recolhimento dos tributos indiretos, arcados pela sociedade, aos custos dos empresários e comerciantes, os quais, quando muito, exercem apenas o papel de "atravessadores" dos encargos, os quais são suportados pelos consumidores de bens e serviços e repassados pelos contribuintes de direito ao ente tributante. Ou seja, temos um largo rol de pessoas contribuindo "sem sentir", justamente por estarem submetidas à tributação indireta. E, ainda por cima, tal faixa populacional é levada a acreditar ser o financiamento do país extraído das classes média e alta do Brasil, as quais por estarem "à mercê" da tributação direta, são os que "visivelmente" recolhem. Todavia, tal parcela da receita configura-se apenas como a ponta do iceberg, pois a grande massa de arrecadação está abaixo desse oceano. A regressividade de nossa matriz tributária, assim, é um fato fora do horizonte de compreensão da população de nosso país. Esse é o retrato mal-feito e cruel da tributação Brasil, a qual, além de onerar mais quem menos pode pagar, contribui para essa má-formação da cidadania dos membros de nossa sociedade, que não possuem as condições mínimas de compreender as formas de financiamento das políticas estatais e reivindicar uma reordenação dos elementos estruturantes de nossa matriz tributária a fins de torná-la mais condizente com um ideal de justiça social. Assim, a formatação de nossa matriz a partir de tributos indiretos, aliada e diversas outras ilusões fiscais5 presentes em nosso ordenamento, possibilita a criação daquilo que denominamos como sendo uma regressividade cognitiva. Tal constatação, por si só, não explicaria a má compreensão observada em torno do fenômeno tributário. A construção desta visão equivocada da realidade se dá em muito pela interpretação comumente realizada da experiência tributária pelos nossos juristas, na qual se observa tal atividade estatal apenas sob a perspectiva legal. Essa perspectiva reducionista acaba afastando o real contribuinte da compreensão da matriz tributária, justamente por se acreditar não ser necessário apreender os aspectos sociais, econômicos ou políticos da tributação. Ao jurista, enquanto estudioso da ciência do direito, caberia apenas o estudo do sistema tributário em si (BECKER, 2010, p. 21), objeto este que, conforme vimos no capítulo inicial do presente trabalho, é compreendido como o conjunto de normas jurídicas que regulam a relação existente entre Estado e contribuinte. Toda e qualquer preocupação existente com a análise do fenômeno tributário que envolva a compreensão de seus efeitos perante a sociedade não ficaria a cargo do jurista, tendo em vista que tais perspectivas deveriam ser consideradas pré ou pós-jurídicas (BECKER, 2010, p. 22). O intérprete do direito passaria a se preocupar, portanto, tão somente com a norma posta e seus enunciados, ou com aquilo que Luis Alberto Warat denomina como sendo o senso comum teórico dos juristas. Segundo esse autor devemos compreender o senso comum teórico como sendo o conjunto de condições implícitas de produção, circulação e consumo das verdades nas diversas práticas que envolvem o saber jurídico, sejam elas teóricas, práticas ou acadêmicas (WARAT, 1994, p. 13). O senso comum surge então como um vasto arcabouço de conceitos, representações, imagens, ficções e crenças que são colocados à disposição do jurista para que este possa, a partir de tal ponto, compreender o fenômeno jurídico e poder elaborar enunciados a respeito (WARAT, 1994, p. 14). Podemos compreendê-lo, portanto, sob uma perspectiva da intertextualidade, como sendo os próprios elementos que permitem o discurso jurídico, moldando-o e conferindo-lhe significado. Todavia, ao mesmo tempo em que representa uma espécie de signo necessário para o desenvolvimento da técnica, permitindo a operacionalização do Direito, o senso comum teórico guarda também uma mística de racionalidade em seu discurso que pretende respaldar a relação de poder que existe por trás da norma jurídica (WARAT, 2002, p. 58). Assim, este discurso acaba por se traduzir na utilização de um saber fechado, restrito àqueles que passaram por um processo de formação para "dominá-lo", o que exclui o restante da sociedade que não compreende o uso de tal linguagem. Esta linguagem seleta confere um caráter de legitimidade científica ao discurso, que se mostra imune à crítica. Reduz-se o discurso jurídico assim a uma técnica fechada, sendo esta a responsável pela produção da verdade através de enunciados tidos como inquestionáveis. E é ai que surge o risco da imunização pretendida por uma cientificidade centrada na norma jurídica. Conforme bem afirma WARAT (2002, p. 57), "respaldado na funcionalidade de suas próprias ficções e fetiches, a ciência do direito nos massifica, deslocando permanentemente os conflitos sociais para o lugar instituído da lei, tornando-os, assim, menos visíveis". Cria-se, portanto, uma realidade simbólica a partir desse senso comum teórico. Simbólica porque não condiz com a realidade histórica, concreta, uma vez que esta se mostra excluída do campo de apreensão do intérprete do direito6. Passa-se a analisar os aspectos da tributação descolados de qualquer preocupação com os efeitos práticos que tais escolhas acarretam. Passa-se a interpretar a tributação completamente descolada de nossa realidade social, como se aquela existisse independentemente da existência desta. Assim, ao mesmo tempo em que o senso comum teórico dos juristas se apresenta como condição implícita para o desenvolvimento do direito em nossos dias, ele é caracterizado por uma série de efeitos dissimuladores. Observa-se, assim, um discurso alienante ao redor do fenômeno tributário, que tenta apartá-lo da realidade que o sustenta, impossibilitando que o real financiador do Estado tenha conhecimento de seu papel como tal. Uma série de figuras ideologizadas é construída, as quais deturpam a compreensão da regressividade do fenômeno, escondendo os efeitos sociais das medidas adotadas através de argumentos técnicos que acabam por afastar o cidadão da compreensão de nossa matriz. Nas palavras do próprio Warat (1994, p. 15): Os juristas contam com um emaranhado de costumes intelectuais que são aceitos como verdades de princípios para ocultar o componente político da investigação de verdades. Por conseguinte se canonizam certas imagens e crenças para preservar o segredo que escondem as verdades. O senso comum teórico dos juristas é o lugar do secreto. As representações que o integram pulverizam nossa compreensão do fato de que a história das verdades jurídicas é inseparável (até o momento) da história do poder. Como é possível observar de tal constatação, a linguagem jurídica, que se faz pretensamente pura, mascara uma relação de poder que necessariamente existe enquanto seu próprio pressuposto7. Relação esta que permanece ocultada e, portanto, fora do alcance da apreensão do cidadão comum, que vê na norma jurídica um elemento de organização social neutro e legítimo. Deste modo, o conteúdo da norma surge como algo apartado das condições materiais de realização, algo naturalizado, fruto da apreensão da racionalidade do teórico que se encontra, via de regra, desvinculado da produção material8. É nesse contexto que surge o caráter ideológico de dominação da relação de poder preexistente à norma jurídica. Segundo Chauí (2008, p. 86), em uma sociedade cindida, para que uma classe perpetue seus privilégios, é necessário que ela utilize instrumentos para dominar politicamente os demais integrantes daquela comunidade. Em nossos tempos, esses instrumentos seriam, segundo a autora, o Estado e a ideologia. O Estado seria responsável pela estruturação de um aparato de coerção e repressão social, que submeteria todos os membros da sociedade às suas regras políticas. Para tanto, o Estado se valeria de um sistema normativo próprio, responsável por moldar o comportamento dos cidadãos de uma maneira pretensamente não violenta. Esse sistema normativo estatal é o próprio direito posto, que conferiria, segundo a autora, um pretenso ar de legalidade à dominação, facilitando sua aceitação pelos demais integrantes da sociedade. Entretanto, mostra-se evidente que, enquanto instrumento de dominação, o direito posto só seria eficiente a partir do momento em que as classes dominadas não notassem a violência existente por trás da norma. E é aqui que se apresentaria a ideologia enquanto instrumento complementar desta dominação. Ela seria responsável por conferir um caráter de legitimidade à norma posta, por meio de uma substituição da realidade concreta por uma representação ideal dessa mesma realidade, geralmente de acordo com a projeção das ideias dos próprios grupos dominantes (CHAUÍ, 2008, p. 87). Dessa forma, o ideário das elites passaria a ser incorporado como o ideário da sociedade como um todo, sendo a ideologia, portanto, a estruturação de uma dominação do plano espiritual. Para que tal estrutura funcione, Chauí (2008, p. 89) defende que (i) ainda que a sociedade seja fracionada em classes e que cada classe tenha seu ideário, a dominação de uma classe sobre a outra faz com que só seja considerado válido o conjunto de ideias da classe dominante; (ii) e para que isso aconteça, se mostra necessário que a população como um todo se veja enquanto integrante de uma mesma sociedade, coesa e uniforme, compartilhando de um mesmo destino e sem ser dividida em estamentos sociais diversos; (iii) para tanto, é necessário que a classe dominante difunda seu ideário por toda a sociedade, fazendo com que esse seja incorporado pelas diferentes classes sociais; (iv) e, por fim, tendo em vista que este conjunto de ideias não representa a verdadeira realidade social, mas apenas uma aparência social desenvolvida pela classe dominante, é possível que ele seja considerado independente da própria realidade, existindo abstratamente como uma projeção de algo que não se realiza no mundo real. A ideologia estaria ligada, assim, a uma concepção mental que não corresponderia de maneira rigorosa à realidade do objeto analisado, o que acabaria deformando-o (CHAUÍ, 2008, p. 7). Ela seria um pressuposto adotado que constituiria o único ponto de partida possível de todo o pensamento. Seria, portanto, indiscutível, pois ao representar uma base de todo raciocínio, é dada como algo certo e aceita intuitivamente. Assim, transferindo a percepção de Chauí para o fenômeno tributário, é possível entender como se dá a má-compreensão quanto à distribuição do encargo econômico de nossa matriz. Ao analisarmos a tributação brasileira apenas sob o viés arrecadatório, adotando discursos generalizantes quanto à incidência da carga tributária em nossa sociedade, ignoramos a forma como se divide tal encargo, dando a falsa impressão de que todos nós suportamos o mesmo ônus, quando na verdade a estrutura se faz extremamente "seletiva". Esse processo de alienação faz com que a grande parcela da população não entenda a realidade fiscal brasileira (FARIAS, SIQUEIRA, 2012, p. 37), deixando de compreender-se a si mesmo, portanto, como contribuinte. Segundo Chauí (2008, p. 65): A forma inicial da consciência é, portanto, a alienação, pois os homens não se percebem como produtores da sociedade, transformadores da natureza e inventores da religião, mas julgam que há um alienus, um Outro (deus, natureza, chefes) que definiu e decidiu suas vidas e a forma social em que vivem. Submetem-se ao poder que conferem a esse Outro e não se reconhecem como criadores dele. E porque a alienação é a manifestação inicial da consciência, a ideologia será possível: as ideias serão tomadas como anteriores à práxis, como superiores e exteriores a ela, como um poder espiritual autônomo que comanda a ação material dos homens. Esconde-se, portanto, o próprio aspecto ideológico por trás da norma. As opções realizadas no campo do fenômeno tributário, quando optamos por criar uma estrutura altamente regressiva, se relacionam com uma realidade que é excluída do discurso comum. Ela reflete uma opção ideológica daqueles responsáveis por estruturar a matriz tributária do país, que tomam tais decisões unilateralmente, sem problematizar a tributação diante de nossa realidade social. Pois, se no plano ideal as decisões deveriam ser tomadas em um ambiente democrático, no qual todos os cidadãos estariam cientes de seus papéis enquanto contribuintes, a bem da verdade observa-se que em nosso país a opção escolhida se dá em favor da exclusão social da grande maioria da população, em total desacordo aos objetivos previstos em nossa Constituição. É por esta razão que defendemos aqui que a matriz brasileira não é regressiva apenas sob a perspectiva econômica, ou seja, aquela que aborda a desigual distribuição de sua carga. Entendemos ser tal estrutura duplamente regressiva, pois, além de se mostrar regressiva sob o olhar econômico, ela também o é sob um viés cognitivo do sujeito responsável por arcar o ônus, tendo em vista que a grande maioria de sua arrecadação se faz de maneira sub-reptícia, por meio de uma tributação indireta que em nada contribui para a formação de um Estado que se afirma democrático. Ao optar por se financiar de tal forma, nossa comunidade política acaba por moldar uma estrutura alienante, que deturpa a percepção que o cidadão comum possui da realidade, criando verdadeiras estruturas ilusórias que retiram qualquer capacidade de que os verdadeiros responsáveis por custear o Estado possam cobrar a correta destinação de tais recursos, em completo desatendimento aos diversos preceitos constitucionais já abordados no presente trabalho e que deveriam balizar o agir fiscal em nosso país (SCAFF, 2007, p. 5). Deste modo, além de retirar a pouca riqueza da grande maioria dos brasileiros, nossa matriz tributária ainda nega-lhes cidadania - para que possam se posicionar criticamente em oposição a uma estrutura desigual9. É negado, dessa forma, a consciência necessária quanto à distribuição do ônus justamente àqueles que mais pesadamente são chamados a contribuir. É negada cidadania à parcela da população que mais necessita dela, essa mesma parcela que, subincluída no sistema jurídico pátrio, vê cotidianamente seus direitos fundamentais sendo negados. A mesmíssima parcela da população que cotidianamente é taxada como um fardo para o "restante" da sociedade, o qual supostamente financiaria as políticas assistenciais desenvolvidas pelo Estado. Essa mesma parcela que, de cidadã, passa a ser "mero" contribuinte - sem ao menos ter noção de tal realidade. Bibliografia: BECKER, Alfredo Augusto. Teoria Geral do Direito Tributário. 5. ed. São Paulo: Noeses, 2010. BRASIL, Indicadores de Iniquidade do Sistema Tributário Nacional: Relatório de Observação nº 2. Brasília: Presidência da República, Conselho de Desenvolvimento Ecônômico e Social - CDES, 2ª Edição, 2011. CARVALHO, José Murilo de. Cidadania no Brasil: o longo caminho. 16 ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2013. CHAUÍ, Marilena. O que é ideologia. 2. ed. São Paulo: Brasiliense, 2008. FARIAS, Fátima Gondim; SIQUEIRA, Marcelo Lettieri. Bases Tributáveis Brasileiras: penalizando os pobres e beneficiando os rentistas. In: CATTANI, Antônio David, OLIVEIRA, Marcelo Ramos (org). A sociedade justa e seus inimigos. Porto Alegre: Tomo Editorial. 2012 GASSEN, Valcir. Tributação na origem e destino: tributos sobre o consumo e processos de integração econômica. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2013. GASSEN, Valcir. Equidade e eficiência da matriz tributária brasileira: Diálogos sobre Estado, Constituição e Direito Tributário. Brasília: Consulex, 2012. SCAFF, Fernando Facury. 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Possui graduação em Direito pela UnB e é membro do Grupo de Pesquisa Estado, Constituição e Tributação (GETRIB - FD/UnB) pela UnB. __________ 1 A elaboração de tal expressão, criação do autor, foi pensada a partir da própria definição de cognição trazida pelo Dicionário Michaelis enquanto ato de adquirir um conhecimento. Pretende-se, assim, representar a ideia de que a regressividade que se opera em tal perspectiva acaba por extrair a maior parte de seus recursos de maneira sub-reptícia, sem que aqueles chamados a contribuir possam ter noção de seu papel enquanto financiadores da atividade estatal. E a utilização do termo regressividade se explica no nosso caso pelo fato de que, ao extrair tais recursos de forma anestesiante dos extratos com menor capacidade econômica, o Estado brasileiro vem negando cidadania para as parcelas da população que historicamente já se mostram subincluídas, para utilizar a definição elaborada por Marcelo Neves (1994). Assim, em um uma alegoria que aqui tomamos liberdade de expor, a matriz tributária brasileira negaria cidadania para aquelas parcelas que menos tem. 2 Passamos a adotar o conceito de matriz tributária para caracterizar esse conjunto de opções que refletem a estrutura da própria comunidade política e ajudam a moldá-la como tal. Esta expressão representa as escolhas feitas em um determinado momento histórico no campo da ação social, no que diz respeito ao fenômeno tributário. Incorpora, portanto, a noção de matriz tributária não só o conjunto de normas jurídicas regulando as relações entre o ente tributante e o contribuinte, não só a escolha feita das bases de incidência (renda, patrimônio e consumo) e sua consequente participação no total da arrecadação; não só as questões dogmáticas pertinentes à obrigação tributária; não só as opções que se faz no plano político de atendimento de determinados direitos fundamentais; não só a estrutura do Estado a partir das suas condições materiais de existência, no caso, das condições de financiamento do Estado ofertadas pela arrecadação de tributos. (GASSEN, 2012, p. 32). 3 Ao se debruçar sobre a definição de cidadania, José Murilo de Carvalho (2013, p. 9) defende que a construção deste conceito é parte de um fenômeno complexo e historicamente definido, que envolveria três dimensões fundamentais de direitos, direitos civis, políticos e sociais, que nem sempre se mostram presentes contemporaneamente. Assim, "o exercício de certos direitos, como a liberdade de pensamento e o voto, não gera automaticamente o gozo de outros, como a segurança e o emprego. O exercício do voto não garante a existência de governos atentos aos problemas básicos da população. Dito de outra maneira: a liberdade e a participação não levam automaticamente, ou rapidamente, à resolução de problemas sociais. Isto quer dizer que a cidadania inclui várias dimensões e que algumas podem estar presentes sem as outras. Uma cidadania plena, que combine liberdade, participação e igualdade para todos, é um ideal desenvolvido no Ocidente e talvez inatingível. Mas ele tem servido de parâmetro para o julgamento da qualidade da cidadania em cada país e em cada momento histórico." 4 Em relatório no qual se discute os indicadores de iniquidade do sistema tributário brasileiro, o CDES expõe que "Cidadania tributária significa a conscientização do cidadão para o fato de que a necessária arrecadação de tributos deve reverter-se em benefícios que cumpram o papel de atender às necessidades da coletividade, reduzindo distâncias sociais. Transparência, tanto no que diz respeito às fontes quanto aos usos dos recursos públicos é palavra-chave e primeiro requisito para o exercício da cidadania tributária. Dentre as injustiças do sistema tributário nacional, talvez o aspecto menos debatido seja a falta de cidadania tributária que, de um lado, afasta os brasileiros do pleno exercício do controle social e, de outro, do entusiasmo no compartilhamento do financiamento do Estado. A cidadania não é exercida no cotidiano da vida civil nem transparece na construção das instituições públicas. Os contribuintes brasileiros não se percebem como parte ativa e interessada no processo orçamentário, não estabelecem relações claras e diretas entre o pagamento de tributos, a aplicação dos recursos e a qualidade dos serviços públicos, e tampouco exigem informações acessíveis, transparentes e simples sobre o funcionamento do sistema tributário. Nesse sentido, é plausível considerar que a falta de cidadania se apresenta como causa e também como consequência das distorções verificadas no nosso sistema de arrecadação." (2011, p.34) 5 Um exemplo claro das diversas opções que impactam diretamente na compreensão de nossa sociedade acerca da carga tributária incidente sobre o consumo pode ser extraído do chamado cálculo por dentro do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS). Ao analisarmos a base de cálculo do ICMS prevista hoje no art. 13, § 1º, I da LC 87/96, é possível observar que incluímos na mesma, entre outros valores, o próprio montante do imposto, naquilo que ficou convencionado, de forma eufemística, de "cálculo por dentro". Assim, a inclusão do ICMS em sua própria base de cálculo representa um artifício legal que determina que, no momento da apuração do quantum debeatur a ser recolhido pela imposição deste tributo, deve o contribuinte, para fins de apuração, considerar que o próprio imposto integra a sua base de cálculo. Tal mecanismo contábil cria uma exacerbação da alíquota realmente aplicável, que, em efeitos práticos, acaba por ser superior à alíquota legalmente prevista. Este subterfúgio fiscal contribui severamente para a má formação dos membros de nossa comunidade política enquanto cidadãos conscientes de seu papel no produto da arrecadação do Estado, representando, assim, uma grave violação ao princípio da transparência fiscal. Tal constatação é facilmente verificável, uma vez que em um sistema complexo e extremamente excludente como é o nosso sistema tributário são poucas as pessoas que teriam a capacidade necessária para compreender como se opera uma fórmula matemática que permite a uma alíquota nominal de 25% equivaler, por exemplo, em termos reais a 33,33% do valor do produto consumido. Permitir que um tributo seja calculado de tal forma é desacreditar todo o objetivo do Estado de se pautar por uma conduta ética e equânime para com os seus cidadãos, e esquecer o compromisso assumido de combater as desigualdades sociais, combate este que passa, necessariamente, pela formação de cidadãos conscientes que possam ser verdadeiros membros de um processo democrático de tomada de decisões. Entretanto, em que pese tais constatações, tal fórmula de cálculo é avalisada pelo Supremo Tribunal Federal, que em diversas oportunidades já declarou a constitucionalidade de referido dispositivo legal, sendo o mais emblemático o julgamento do RE 582.461/SP, decidido sob regime da repercussão geral. 6 Para tanto, importante contribuição nos é fornecida pelo próprio Warat (2002, 58), que expõe: "a força comunicacional da ciência jurídica passa vitalmente por um jogo de significados ilusórios; um território encantador onde todos fazem de conta que o Direito, em suas práticas concretas, funciona a imagem e semelhança do discurso que dele fala. Desta maneira, a montagem mítica que impregna o discurso jurídico ocidental gera uma relação imaginária entre o saber e as práticas do direito. Isto produz um capo simbólico (um eco de representações e ideias) que serve para dissimular conflitos e antagonismos que se desenvolvem fora da cena linguística. Eles existem na história e são negados por um conhecimento convertido em uma potência independente, abstrata, que se levanta por sobre os homens. As chamadas 'ciências jurídicas' aparecem, assim, como um conjunto de técnicas de 'fazer crer' com as quais se integra com significados tranquilizadores, representações que tem como efeito impedir uma ampla reflexão sobre nossa experiência sócio-política. Ideias dispersas e efeitos fabuladores que contem omissões intencionais sobre o saber jurídico, a lei e o poder. Neste sentido a linguagem oficial do direito determina uma multiplicidade de efeitos dissimuladores". 7 De acordo com Chauí (2008, p. 24) "sociedades divididas em classes (e também em castas), nas quais uma das classes explora e domina as outras, essas explicações ou essas ideias e representações serão produzidas e difundidas pela classe dominante para legitimar e assegurar seu poder econômico, social e político. Por esse motivo, essas ideias ou representações tenderão a esconder dos homens o modo rela como suas relações sociais foram produzidas e a origem das formas sociais de exploração econômica e de dominação política." 8 Chauí (2008, p. 65) desenvolve tal argumento demonstrando que esse processo de naturalização surge quando o resultado da divisão social do trabalho se completa, com a cisão total entre o trabalho material e o espiritual. A partir de então, "a consciência pode realmente imaginar ser diferente da consciência da práxis existente, representar realmente algo, sem representar algo real. Desde esse instante, a consciência está em condições de emancipar-se do mundo e entregar-se à construção da teoria, da teologia, da filosofia, da moral etc. puras". 9 "Esse caráter indiscutível, no entanto, duraria apenas enquanto as distorções provocadas pela ideologia não se tornassem gritantes aos olhos das pessoas. Assim, elas não representariam um determinante para o comportamento humano, o que nos prenderia a um destino inquestionável. Elas corresponderiam mais a um condicionante passível de ser superado a partir do momento em que suas contradições se tornam insustentáveis, por meio de uma crise paradigmática. Assim, as ideologias podem ser usadas como meio de dominação e perpetuação de uma classe no poder, cristalizando uma série de crenças no imaginário do homem, deformando seu raciocínio e concretizando a dominação, perdurando enquanto não houver o surgimento de uma crise que as questione". (CHAUÍ, 2008, p. 24)
Vívian Cintra Athanazio Conforme já adiantado pelos textos anteriormente publicados na coluna, além das concepções doutrinárias mais tradicionais e menos abrangentes, matriz tributária pode ser entendida como o conjunto de fundamentos e alicerces que determinam a configuração do próprio sistema tributário. Tal concepção surgiu da necessidade de uma análise que aproximasse o fenômeno da tributação da realidade brasileira. Por isso, foi proposta, além do mero exame do sistema tributário brasileiro1, consubstanciado nas normas atinentes à atividade arrecadatória do Estado, a investigação da matriz tributária, a fim de se adentrar na análise das escolhas e das opções previamente estabelecidas no âmbito da tributação, para a fixação dos limites do Estado e da própria Constituição2. O desenvolvimento dessa concepção de matriz tributária não ocorreu pela imprestabilidade da análise da tributação sob o enfoque do sistema tributário. Pelo contrário, se deu em decorrência de sua limitação aos aspectos internos da tributação - sistema normativo - e de sua reduzida capacidade de ser considerado quando da análise do fenômeno tributário sob o viés social e econômico, necessário para o pensamento e a crítica da realidade, a fim de, inclusive, desenvolver as ferramentas necessárias para a redução de desigualdades e de disparidades3. Assim, entende-se que o desenvolvimento da ideia da matriz tributária possibilita a identificação e a consideração das características econômicas, sociais e políticas que permeiam o processo de escolhas, que, por sua vez, culminam nas consequências geradas pela manutenção do sistema tributário e financeiro nas suas atuais conjunturas. A Receita Federal do Brasil monitora a carga tributária, divulgando, anualmente, relatórios importantes para a identificação e análise das características da nossa matriz tributária. De acordo com o relatório recentemente divulgado, relativo ao ano de 2015, a carga tributária bruta atingiu o patamar de 32,66% do Produto Interno Bruto (PIB)4. O referido relatório divide o total da carga tributária em seis bases de incidência: renda, folha de salários, propriedade, bens e serviços, transações financeiras e outros. Verifica-se que 49,68% de toda a arrecadação de 2015, que equivale a 16,22% do PIB, decorreu da tributação sobre bens e serviços, ou seja, sobre o consumo. A renda representou 18,27% de toda a arrecadação, alcançando 5,97% do PIB. Por sua vez, a propriedade contribuiu com 4,44% do total arrecadado, correspondendo a 1,45% do PIB5. A partir desses dados, percebe-se que a conformação da tributação brasileira onera excessivamente o consumo, em detrimento das outras bases econômicas, como o patrimônio e a renda, existindo, ainda, a nítida preferência pelos tributos indiretos. Essas características contribuem para um aumento desenfreado da regressividade, com a imposição de severos reflexos para os cidadãos com menor capacidade contributiva. Não por outra razão, Benedito Ferreira, ao tratar das consequências nefastas da tributação excessiva do consumo, afirmou que acaba-se por onerar "[...] até mesmo os que vivem da caridade pública, quando, usando o dinheiro que recebem das esmolas, eles compram para uso ou consumo qualquer mercadoria ou produto"6. Tal realidade, por óbvio, gera distorções desastrosas para a consecução de objetivos preciosos, como a redução das desigualdades e o desenvolvimento social. Afinal, uma tributação equitativa necessariamente depende da observância da capacidade contributiva, para que escolhas que privilegiem uma tributação mais justa, no sentido de arrecadar mais recursos dos contribuintes que têm mais condições, seja efetivamente alcançada, quando menos idealizada ou almejada7. Quando há preferência da tributação sobre o consumo, em detrimento da renda e do patrimônio, privilegia-se base econômica que torna difícil, até mesmo sob o viés técnico, a consecução da observância da capacidade contributiva8. Essa conclusão é de fácil constatação. Por exemplo, o preço de determinado produto nas prateleiras dos supermercados não varia de acordo com a renda auferida pelo consumidor que efetuará o pagamento no caixa. O cidadão que ganha apenas um salário-mínimo, pagará, ao final, o mesmo preço que um outro individuo, por sua vez, milionário, suportará. Tal situação não tende a ser replicada quando há tributação da renda e do patrimônio. Em razão dessas bases econômicas variarem sensivelmente para cada contribuinte, é possível a determinação de critérios objetivos mínimos que culminem, pelo menos, na tentativa da observância da capacidade contributiva individual, imprimindo características como a progressividade. Não está aqui a se dizer ou afirmar que a tributação da renda e do patrimônio não ocorre. Contudo, o olhar crítico da atual matriz tributária leva à conclusão de que a incidência sobre o consumo, que, em regra, extrai recursos de todos os contribuintes sem levar em conta os fatores individuais, ainda prevalece como a principal fonte de arrecadação do Estado e essa não é, pelas consequências supramencionadas, a decisão que mais privilegia a justiça fiscal e social. Além dos prejuízos impostos ao alcance da tributação equitativa, da escolha pela tributação excessiva do consumo também decorre outro problema: a falta de transparência fiscal, entendida em acepção ampla, envolvendo tanto a transparência na arrecadação, como nos gastos públicos e no processo de escolha dessas despesas. A necessidade imediata da transparência fiscal decorre não só do fato de a atividade estatal arrecadatória impactar diretamente na esfera patrimonial do cidadão. Além do nítido impacto patrimonial e econômico, há que se concordar com o entendimento esposado, por exemplo, por Benedito Ferreira, já citado, que afirma a moral como o maior fundamento e alicerce do tributo, em razão das suas finalidades e consequências9. Em razão disso, é grave ainda enfrentarmos dificuldades homéricas para identificar o que e quanto pagamos a título de tributo ou qual parcela do preço efetivamente se refere à carga tributária. Tais entraves, extraídos, por exemplo, da enorme quantidade de normas que regem o sistema tributário, por certo, decorrem de fatores que só poderão ser sanados por meio da esperada Reforma Tributária, uma vez que dependem de revisões legislativas e políticas extremamente sensíveis. Ocorre que as apontadas dificuldades, enfrentadas até mesmo por quem atua diariamente na área fiscal, explicam, em termos, a resistência do contribuinte ao pagamento dos tributos, em razão do grau da resignação também variar de acordo com a transparência na arrecadação e aplicação dos recursos, bem como em função do grau de consciência e educação da sociedade, dentre outros fatores10, que envolvem, por exemplo, as escolhas e a eficiência nos gastos públicos. Por isso, são louváveis as iniciativas políticas e legislativas que implementem técnicas que objetivam melhorias na identificação, pela sociedade em geral, da distribuição e incidência da carga tributária. Nesse sentido, merece destaque o advento da Lei 12.741/12, batizada de "Lei da Transparência Fiscal", "Lei da Nota Fiscal", "Lei de Olho no Imposto" ou "Lei do Imposto na Nota", que instituiu a obrigação de "[...] constar, dos documentos fiscais ou equivalentes, a informação do valor aproximado correspondente à totalidade dos tributos federais, estaduais e municipais, cuja incidência influi na formação dos respectivos preços de venda"11. Talvez ainda seja cedo para avaliar os impactos da adoção de tal medida na consciência do cidadão acerca da distribuição da carga tributária e, consequentemente, na cobrança de mudanças no sistema, de forma a permitir a melhor distribuição dos ônus perante a sociedade. Contudo, aliado a outros instrumentos, que inclusive trazem benefícios diretamente perceptíveis aos contribuintes, como a devolução de créditos tributários, exposta no artigo CPF na nota?, anteriormente publicado na Coluna, as exigências e inovações previstas pela lei 12.741/12, bem como pelo seu regulamento, o decreto 8.264/14, já são um avanço significativo para que, um dia, se alcance efetivos avanços na transparência fiscal, mormente porque decorreu de iniciativa popular, a partir da colheita de assinaturas pela campanha nacional De Olho no Imposto, conduzida pela Associação Comercial de São Paulo. Diante do exposto, conclui-se que a consecução de uma tributação mais justa e equânime perpassa, necessariamente, pela revisão das escolhas de bases econômicas de incidência. Ademais, também é imprescindível o desenvolvimento das ferramentas à disposição do legislador para a utilização dos tributos não só nos seus efeitos meramente arrecadatórios (fiscais), mas, inclusive, nos seus efeitos de mudanças das conjecturas econômicas e sociais, ou seja, considerar e utilizar o caráter da extrafiscalidade dos tributos, a favor dos avanços na redistribuição de renda e na redução das desigualdades sociais e econômicas, que há tanto tempo assolam a sociedade brasileira. Da mesma maneira, não se pode ignorar a importância da melhoria e do desenvolvimento dos instrumentos de transparência fiscal, principalmente na condução e demonstração dos gastos públicos e na aplicação dos recursos advindos da tributação, até mesmo para fins de conformação social quando do desembolso de quantias para fazer frente às despesas estatais. Por isso, medidas que aumentem o controle social e a responsabilização dos gestores e representantes pelos gastos públicos devem ser cada vez mais defendidas e estimuladas. Tais conclusões decorrem do fato de que uma população mais consciente da origem e do destino dos recursos aplicados pelo Estado tende a ser menos resistente ao pagamento de tributos12, principalmente quando é possível perceber, usufruir e participar do processo de escolha da definição das contraprestações, que os recursos advindos da tributação colocam à disposição da sociedade no aparelhamento público (saúde, educação, alimentação, moradia etc). Referências bibliográficas BALTHAZAR, Ubaldo Cesar; ALVES, André Zampieri. A resistência ao pagamento de tributos no Brasil: uma breve análise histórica e humanística. In: BALTHAZAR, Ubaldo Cesar (org.). Estudos de Direito Tributário. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2004, pp. 171-186. FERREIRA, Benedito. A História da Tributação no Brasil - Causas e Efeitos. Brasília: 1986. GASSEN, Valcir. Matriz tributária brasileira: uma perspectiva para pensar o Estado, a Constituição e a Tributação no Brasil. In: GASSEN, Valcir (org.). Equidade e Eficiência da Matriz Tributária Brasileira: Diálogos sobre Estado, Constituição e Direito Tributário. Brasília: Consulex, 2012, pp. 27-50. _____________. Tributação na origem e destino: tributos sobre o consumo e processos de integração econômica. 2 ed. rev. e mod. São Paulo: Saraiva, 2013. Receita Federal do Brasil. Estudos Tributários. Carga Tributária no Brasil - 2015 (Análise por Tributo e Bases de Incidência). Acessado em 22/9/2016. Vívian Cintra Athanazio é bacharel em Direito pela UnB. Membro do Grupo de Pesquisas Estado, Constituição e Direito Tributário, da Faculdade de Direito da UnB. Advogada. __________ 1 Ao tratar da concepção de sistema tributário, GASSEN (2012, p. 29) afirma que "[...] é um conjunto composto por normas jurídicas que regulam a atividade tributária no campo das relações jurídicas entre o contribuinte e o ente tributante". O autor complementa, explicando que também englobam a concepção de sistema tributário as normas que tratam dos princípios e das imunidades, da competência tributária e das espécies de tributos. 2 GASSEN (idem), ao apresentar a obra Equidade e Eficiência da Matriz Tributária Brasileira: Diálogos sobre Estado, Constituição e Direito Tributário (ob. cit.), afirma que "[...] quando se faz referência ao Estado ou à Constituição, v.g., ao Estado de Bem-Estar Social, ao Estado Democrático de Direito, ao Estado Constitucional, ao Estado Social, à Constituição Cidadã, entende-se que é necessária uma compreensão adequada do Direito Tributário, em especial da matriz tributária brasileira. Esta entendida como as opções feitas de antemão, no âmbito da tributação, que estabelecem, no horizonte de sentido, os limites do Estado e da Constituição". 3 "[...] outra dificuldade do emprego da expressão sistema tributário é que por intermédio dela não se tem contemplado a discussão em relação a carga tributária, o montante e como essa é dividida entre os contribuintes (pessoas físicas e jurídicas) e sua respectiva capacidade contributiva". (GASSEN, 2012, p. 31) 4 Tabela 1, constante a p. 6 do Relatório de 2015. Acessado em 22/9/2016. 5 Tabela 9, constante a p. 13 do Relatório de 2015. Idem. 6 FERREIRA, 1986, p. 171. 7 Para FERREIRA (1986, p. 177), equidade é "[...] o repartir dos gravames de maneira justa, proporcionalmente à capacidade de cada um, observando, assim, a chamada 'igualdade natural'". 8 Nesse sentido, GASSEN (2013, p. 100) observou que "O sucesso da implantação dos tributos especiais sobre o consumo, assente na ideia de gravar bens de amplo consumo, firma o princípio da regressividade no sentido de onerar de forma mais gravosa a população que detiver uma menor renda". 9 "Sabemos que o alicerce do tributo é, essencialmente, de conteúdo ético. A moral é seu maior fundamento, tendo-se em vista as suas finalidades e aplicações. Constitui o imposto um dever de todos, e, na medida de sua compreensão, à luz da justa exação e correta aplicação dos seus resultados, passa o mesmo a ser encarado como um direito fundamental do cidadão". (FERREIRA, 1986, p. 176) 10 BALTHAZAR; ALVES, 2004, p. 176 11 Art. 1º da lei 12.741/12. 12 Nesse sentido, pertinente a citação aos "efeitos anestesiantes e irritantes" dos tributos indiretos e diretos, respectivamente: Cabe notar que este efeito de "anestesia fiscal" é bastante perceptível nos tributos indiretos em que a regra é a repercussão econômica dos tributos, e esta é a que lhes confere a espécie. Nos tributos diretos, pela ausência de repercussão, cada contribuinte tem como aferir de pronto o montante de tributo que está pagando. Desta percepção decorre que os tributos indiretos são denominados muitas vezes de tributos "anestesiantes" e os diretos "irritantes".(GASSEN, 2013, p. 104)
No início do mês de agosto, o informativo nº 832, do Supremo Tribunal Federal1, fez referência ao julgamento das Ações Diretas de Inconstitucionalidade 4697 e 4762, da relatoria do ministro Edson Fachin, ocorrido na sessão plenária de 30/6/2016. Segundo o Informativo do STF, as citadas ADIs discutem a constitucionalidade de dispositivos da lei 12.541/2011, que disciplina a contribuição devida a determinado conselho profissional, e que o ministro relator, ao fundamentar o seu voto, teria argumentado que a progressividade tributária deveria ser observada em todas as espécies tributárias, à luz da capacidade contributiva do sujeito passivo da obrigação tributária. Além disso, que na visão do ministro Edson Fachin, a progressividade e a capacidade contributiva constituem os fundamentos normativos do Sistema Tributário Nacional. Na medida em que se lia esse informativo - que enfatizava que o ministro Edson Fachin foi acompanhado pelos ministros Roberto Barroso, Teori Zavascki, Luiz Fux, Dias Toffoli, Cármen Lúcia, Gilmar Mendes, Celso de Mello e Ricardo Lewandowski - a pergunta que surgia, ainda sem resposta, era se a crise do formalismo do Direito Tributário brasileiro estaria sendo superada na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal. O marco dessa evolução seria o reconhecimento, por nossa Corte Constitucional, de que um Estado Democrático de Direito se constrói a partir de uma Matriz Tributária, cujo fundamento jurídico, no caso brasileiro, se encontra delineado, em suma, no art. 3º da Constituição2. A propósito, a expressão Matriz Tributária foi idealizada por Valcir Gassen. Em artigo intitulado "Matriz Tributária Brasileira: uma perspectiva para pensar o Estado, a Constituição e a Tributação no Brasil", o autor aponta duas ordens de problemas que se apresentam quando da análise do fenômeno tributário, ou seja, (1) a falta de rigor dogmático da área e (2) o distanciamento da questão tributária do cotidiano, com especial destaque à falta de pesquisas que abordem o fenômeno tributário brasileiro de forma abrangente e refletida. Nesse âmbito, Valcir Gassen desenvolve um conceito de Matriz Tributária - com o propósito de fornecer um ponto de partida para se pensar o Estado, a Constituição e a Tributação no Brasil - diferenciando-o do conceito de Sistema Tributário Nacional, usualmente utilizado pela legislação e pela doutrina, que segundo o autor apresentaria limites à compreensão de todas as atividades inerentes à tributação3. Para Gassen, a forma como é concebido o conceito de Sistema Tributário Nacional no campo do senso comum teórico dos juristas - em síntese, o "conjunto composto por normas jurídicas que regulam a atividade tributária no campo das relações jurídicas entre o contribuinte e o ente tributante"4, mediante a fixação das espécies tributárias e de normas que estabelecem a competência tributária e as limitações ao poder de tributar - "limita o entendimento do fenômeno tributário e afasta, ou deixa de lado, importantes questões correlacionadas e umbilicalmente ligadas ao fenômeno tributário"5. Reflexos da limitação semântica, quanto ao uso da expressão Sistema Tributário, dizem respeito: 1) à desvinculação, inclusive acadêmica, entre os estudos da tributação, do orçamento e do sistema previdenciário: "é como se existissem despesas estatais previstas no orçamento atendendo alguns direitos sem a contraface do pagamento de determinado tributo ou, de forma mais ampla, da estipulação de determinada carga tributária a ser suportada pelos contribuintes"6; 2) a dificuldade de, por meio do termo sistema tributário, se contemplar a discussão atinente à carga tributária total e sua distribuição de acordo com a capacidade contributiva das pessoas físicas e jurídicas7; e 3) a inviabilidade da expressão para abarcar a relação entre o direito tributário e o direito constitucional, quando se vislumbra o modelo de Estado delineado pela Constituição de 1988. A tributação é um tema de extrema relevância para o Estado Democrático de Direito e pode ser concebida como um mecanismo de transferência de parte da riqueza produzida pela sociedade para investimento em políticas públicas aptas a reduzir a desigualdade de acesso a bens jurídicos fundamentais, além do fornecimento de recursos ao aparato institucional responsável pela garantia efetiva dos direitos. Nesse sentido, a tributação é concebida como um instrumento de definição dos direitos de propriedade, pois nem toda a riqueza produzida permanece com a fonte produtiva. A progressividade da tributação e dos gastos públicos, nesse contexto, tem extrema relevância. A complexidade da tributação decorre necessariamente daquilo que ela envolve: o poder, o entendimento e o dinheiro. A justiça na tributação, nesse contexto, vai além da avaliação da justiça das cargas tributárias e daqueles que devem pagar os tributos. O modo como a arrecadação é aplicada é também um elemento de importância extrema quando se tem por objetivo a redução da desigualdade social. Os reflexos decorrentes da tributação e do gasto público, no âmbito da justiça social, foram alvo de pesquisas no Brasil e no exterior. Com base em estudos realizados entre 1998 e 2013, Thomas Piketty demonstrou, a partir da equação r > g, que a taxa de remuneração do capital ("r") é superior à taxa de crescimento ("g"). No decorrer do tempo, segundo o autor, a tendência é que os ricos fiquem mais ricos e que a pobreza também aumente. Para mitigar os efeitos dessa equação, Piketty destacou a importância da tributação progressiva sobre a renda e sobre as heranças8. Economistas do Fundo Monetário Internacional também constataram que quando a fatia de renda dos 20% mais ricos cresce 1%, o Produto Interno Bruto fica 0,08% menor nos cinco anos seguintes, o que sugere que os benefícios não chegam aos mais pobres. O relatório deixa claro que a redução da desigualdade social, para economias como a brasileira, passa por uma política de tributação progressiva e por outros fatores atrelados ao gasto público9. Ao avaliarem o nível de redistribuição da política tributária brasileira, a partir de dados da Pesquisa de Orçamentos Familiares e da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios, pesquisadores constataram que o Brasil, em comparação com outros países da América Latina, tem uma maior carga tributária como também um maior gasto social. Porém, grande parte das transferências realizadas pelo Estado brasileiro são regressivas porque atingem quem não deveria receber esses benefícios. Além disso, a redução da desigualdade e da pobreza é muito baixa em relação ao tamanho do gasto público no Brasil. Uma das constatações dessa pesquisa é que os benefícios recebidos pelos pobres são menores que a sua despesa com tributos incidentes sobre o consumo10. Segundo o Observatório da Equidade, do Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social, a injustiça do sistema tributário brasileiro envolve a sua regressividade e o baixo retorno social da tributação no Brasil. A alta carga tributária sobre o consumo e sobre a renda dos assalariados, sem critérios justos de progressividade, faz com que o ônus tributário sufoque a base e o meio da hierarquia das rendas, enquanto que o topo segue livre de uma tributação mais severa11. Estudos publicados pelo Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas, acerca da progressividade da tributação, demonstram que o IPTU onera proporcionalmente mais as famílias da classe mais pobre do que as famílias da classe mais rica e serve de exemplo de imposto direto com baixo aproveitamento da progressividade. Ademais, que os impostos sobre o consumo são os mais regressivos, de modo que no Brasil a população pobre é que arca com a maior carga tributária global. Um estudo daquele instituto também demonstra como o Estado contribui para grande parte da desigualdade no Brasil, tendo, proporcionalmente, uma contribuição superior à do setor privado12. Um sistema tributário como o brasileiro, que dentre outros fatores privilegia a tributação do consumo, em detrimento da tributação da renda e do patrimônio, contribui para que o Brasil seja um dos países mais desiguais do mundo. A baixa progressividade da tributação ainda tem o condão de aumentar a desigualdade social. A discussão, acerca da Matriz Tributária, envolve essa questão fundamental para o Estado: a tributação e seu papel no âmbito da justiça social, sob o prisma da progressividade do sistema tributário como um todo e dos impostos individualmente. Sob esse prisma, a possibilidade de nossa Corte Constitucional estar dando a relevância que o princípio da progressividade tributária merece, conforme decorre do Informativo 832, traz esperança quanto à superação da crise do formalismo no direito tributário brasileiro nesse aspecto. Saliente-se que o Supremo Tribunal Federal, por muito tempo, fundamentou a inviabilidade do uso da tributação progressiva para os chamados impostos reais, justamente porque esses tributos - a exemplo do IPTU, do ITCMD e do ITBI - não levariam em consideração as características pessoais do contribuinte. A partir do julgamento do RE 562.045, o Supremo Tribunal Federal reconheceu que o legislador ordinário poderia estabelecer a progressividade de um imposto real sem expressa autorização da Constituição, ou seja, sem um preceito literal, formalmente previsto, que admitisse a progressividade de um imposto caracterizado como real. Os Ministros, que votaram pelo provimento do RE 562.045, entenderam que, diferentemente do que ocorria com o IPTU, no âmbito do ITCMD não havia a necessidade de emenda constitucional para que o imposto fosse progressivo. A referência ao IPTU, no julgamento sobre a constitucionalidade das alíquotas progressivas do ITCMD, ocorreu porque, no entendimento do Supremo Tribunal Federal, o IPTU, em razão de sua natureza de imposto real, não poderia ser progressivo antes do advento da EC nº 29, de 2000, que estabeleceu expressamente que o imposto sobre a propriedade territorial urbana poderia ter alíquotas progressivas em razão do valor, do uso ou da localização do imóvel, ou seja, que o IPTU, além da já admitida progressividade extrafiscal, também poderia ter progressividade fiscal. A distinção entre impostos reais e pessoais já gerou muita polêmica, no que tange aos seus pretensos efeitos sobre a forma de se interpretar o princípio da capacidade contributiva. Até o julgamento do RE 562.045, o STF entendia que a progressividade fiscal não decorria da capacidade contributiva em relação aos impostos reais, uma vez que nesse tipo de imposto seria impossível observar as condições pessoais do contribuinte que caracterizariam manifestação de capacidade contributiva. Dentre os argumentos utilizados para sustentar a inconstitucionalidade do IPTU e do ITBI progressivos, no RE 153.771 e no RE 234.105, destaca-se o de que o art. 145, §1º, da Constituição de 1988, veicula norma de caráter genérico, enquanto que o art. 156 é taxativo, de caráter específico, de forma que a lei municipal teria ofendido o princípio da legalidade estrita, ao fixar a progressividade do IPTU e do ITBI. A Constituição, nesse sentido, teria enumerado taxativamente os impostos que devem ou podem ser exigidos de forma progressiva. A partir da discussão, no Supremo Tribunal Federal, quanto à inconstitucionalidade/constitucionalidade das alíquotas progressivas do IPTU, do ITBI e do ITCMD, observa-se a utilização de argumentos quanto à impossibilidade jurídica de se aplicar a capacidade contributiva aos impostos reais e de que a progressividade somente poderia ser utilizada nos casos expressamente previstos na Constituição ou, ainda, que a utilização de alíquotas progressivas seria contrária ao princípio da capacidade contributiva. Os argumentos contrários à progressividade, utilizados nesses casos enfrentados pelo STF, refletem aquilo que Marco Aurélio Greco denominou de "crise do formalismo no direito tributário brasileiro"13, para realçar o fato de o direito tributário, no Brasil, ter assumido um viés eminentemente formalista, avesso ao que chama de questões de ordem substancial. A efetividade de alguns princípios constitucionais tributários, a exemplo do princípio da capacidade contributiva e da progressividade tributária, no contexto referido por Marco Aurélio Greco, não teriam, portanto, a mesma força normativa que o princípio da reserva legal, por exemplo, o que gerou reflexos na própria forma de se interpretar a lei tributária, a partir da visão de que a cobrança de tributos pelo Estado fosse algo contrário a direitos fundamentais do contribuinte, sobretudo à liberdade e à propriedade. Essa concepção tem grande influência na forma de aplicar o direito tributário no Brasil. Esses conceitos são aprendidos nas faculdades de direito, nos cursos de especialização em direito tributário e a partir da leitura da jurisprudência dos tribunais. Com base nessa concepção se aprende a construir os chamados conceitos constitucionais de renda, de propriedade, de receita, de operação de crédito, como também a se trabalhar com a hierarquia das normas, o que no direito tributário tem grande força em razão da importância dada à lei complementar, que fixa as normas gerais de direito tributário. Essa é uma concepção útil e necessária, sobretudo para a definição da matéria tributável e da aplicação das regras de competência tributária, mas, ao mesmo tempo, altamente conceitualista/formalista, servindo por vezes para impedir mudanças necessárias na forma de se interpretar a lei tributária, transformando o operador do direito tributário num caçador de inconstitucionalidades, a exemplo do que ocorreu nos casos em que o STF proibiu a progressividade de impostos, de forma, a nosso ver, socialmente inconsistente e juridicamente inadequada. É que muitas vezes se adotam concepções libertárias para afastar a progressividade da tributação. Essas concepções partem de um falso critério de equidade, que somente faz sentido se tomado com base em uma doutrina liberal clássica, que não foi recepcionada pela Constituição de 1988. A ideia de capacidade contributiva, como princípio de igualdade de sacrifícios, por exemplo, adota por pressuposto uma teoria libertária da justiça, que não condiz com a Constituição de 1988, que é muito mais voltada para uma teoria redistributiva da justiça, haja vista o seu art. 3º. Liam Murphy e Thomas Nagel14 desenvolvem a tese de que o direito de propriedade é convencional e que só pode ser considerado em um contexto pós-tributação. O direito brasileiro endosse essa ideia, quando se observa que a propriedade imóvel, como também algumas espécies de propriedade móvel, se adquire, por seu modo mais comum, após o pagamento do ITBI, do ITCMD ou do IPVA. A sistemática de retenção na fonte, do imposto de renda, também pode ser utilizada como um bom exemplo para os assalariados, que mensalmente percebem a diferença entre o rendimento bruto e o rendimento líquido decorrente do seu trabalho, como também para os investidores, nas hipóteses de retenção da fonte de rendimentos e ganhos de capital. Em que pese a constatação de que a propriedade é um direito a ser considerado em um contexto pós-tributação, existem algumas formas de concepção do direito tributário que não seguem essa lógica, pois são contaminadas pelo "libertarismo vulgar"15, consistente na ideia de que o bem-estar geral existiria independentemente do Estado, que é financiado pelos impostos desde o declínio do feudalismo16. A análise tributária em geral e o direito tributário brasileiro em particular deve se afastar do libertarismo vulgar. Não que as pessoas não possam reivindicar para si a renda que obtém por qualquer meio legítimo, seja pelo trabalho, seja pela sorte, seja pelo investimento, seja pela herança ou pelas doações. Com certeza as pessoas podem e devem reivindicar a sua propriedade legítima. Mas não se pode olvidar que "o sistema tributário é um elemento essencial do quadro estrutural que cria as expectativas legítimas nascidas dos contratos de emprego e outras transações econômicas; não é algo que se intromete a posteriori nesse quadro"17. Sob essa ótica, observa-se que a Constituição de 1988 já definiu juridicamente qual o fundamento de sua Matriz Tributária e é por isso que sustentamos que a Matriz Tributária brasileira é o fundamento de um sistema tributário progressivo. É nesse contexto que se procura fazer a distinção entre a regra constitucional da progressividade e o princípio constitucional da progressividade, extraído do art. 3º da Constituição de 1988 e que serve de fundamento à Matriz Tributária brasileira, para justificar a possibilidade de o legislador infraconstitucional estabelecer a progressividade para impostos, ainda que sem expressa previsão constitucional, ou seja, sem uma regra constitucional de progressividade. Esse modo de interpretar a progressividade na tributação, com base na Matriz Tributária brasileira, é que se espera que o Supremo Tribunal Federal tenha endossado e que venha a se consolidar. Cristiano Kinchescki é doutor em Direito, Estado e Constituição pela UnB. Mestre em Direito pela UFSC. Membro do Grupo de Pesquisas Estado, Constituição e Direito Tributário, da Faculdade de Direito da UnB. Advogado e parecerista. __________ 1 Cf. BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Informativo de Jurisprudência nº 832/STF, p. 4-5. Disponível em: . Acesso em: 01 ago. 2016. 2 Cf. KINCHESCKI, Cristiano. A Matriz Tributária Brasileira: fundamento de um sistema tributário progressivo. Brasília: UnB, 2016. 216 p. Tese (Doutorado) - Programa de Pós-Graduação em Direito, Estado e Constituição, Universidade de Brasília, Brasília, 2016. 3 Cf. GASSEN, Valcir. Matriz tributária brasileira: uma perspectiva para pensar o Estado, a Constituição e a tributação no Brasil. In: GASSEN, Valcir (Org). Equidade e eficiência da matriz tributária brasileira: diálogos sobre Estado, Constituição e Direito Tributário. Brasília: Consulex, 2012, p. 21-22. 4 GASSEN, Valcir. Matriz tributária brasileira: uma perspectiva para pensar o Estado, a Constituição e a tributação no Brasil. In: GASSEN, Valcir (Org). Equidade e eficiência da matriz tributária brasileira: diálogos sobre Estado, Constituição e Direito Tributário. Brasília: Consulex, 2012, p. 23. 5 GASSEN, Valcir. Matriz tributária brasileira: uma perspectiva para pensar o Estado, a Constituição e a tributação no Brasil. In: GASSEN, Valcir (Org). Equidade e eficiência da matriz tributária brasileira: diálogos sobre Estado, Constituição e Direito Tributário. Brasília: Consulex, 2012, p. 24. 6 GASSEN, Valcir. Matriz tributária brasileira: uma perspectiva para pensar o Estado, a Constituição e a tributação no Brasil. In: GASSEN, Valcir (Org). Equidade e eficiência da matriz tributária brasileira: diálogos sobre Estado, Constituição e Direito Tributário. Brasília: Consulex, 2012, p. 24. 7 Cf. GASSEN, Valcir. Matriz tributária brasileira: uma perspectiva para pensar o Estado, a Constituição e a tributação no Brasil. In: GASSEN, Valcir (Org). Equidade e eficiência da matriz tributária brasileira: diálogos sobre Estado, Constituição e Direito Tributário. Brasília: Consulex, 2012, p. 25. 8 Cf. PIKETTY, Thomas. O capital no século XXI. Tradução de Monica Baugarten de Bolle. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2014, p. 484. 9 Cf. DABLA-NORRIS, Era; KOCHHAR, Kalpana; RICKA, Frantisek; SUPHAPHIPHAT, Nujin; TSOUNTA, Evridiki. Causes and consequences of income inequality: a global perspective. IMF staff discussion note. International Monetary Fund Strategy, Policy, and Review Department, jun. 2015, p. 4. 10 HIGGINS, Sean. Pereira, Claudiney. The effects of Brazil's high taxation and social spending on the distribution of household income. Handbook, Commitment to Equity Assessment (CEQ) Working Paper N. 7. Tulane University, Jan. 2013. 11 Cf. BRASIL. Presidência da República, Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social. Observatório da Equidade. Indicadores de Iniquidade do Sistema Tributário Nacional: relatório de observação. 2.ed. Brasília: Presidência da República, Observatório da Equidade, 2011, p. 17. 12 MEDEIROS, Marcelo. SOUZA, Pedro. Gasto público, tributos e desigualdade de renda no Brasil. Texto para discussão 1844. Brasília: Ipea, jun. 2013, p.29. 13 GRECO, Marco Aurélio. Crise do formalismo no direito tributário brasileiro. Revista da PGFN. Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional, Brasília, v. 1, n.1, jan./jun. 2011, p. 9-18. 14 MURPHY, Liam; NAGEL, Thomas. O mito da propriedade: os impostos e a justiça. São Paulo: Martins Fontes, 2005. MURPHY, Liam; NAGEL, Thomas. The myth of ownership: taxes and justice. New York: Oxford University Press, 2002. 15 No original Everyday Libertarianism. Cf. MURPHY, Liam; NAGEL, Thomas. O mito da propriedade: os impostos e a justiça. São Paulo: Martins Fontes, 2005, p. 44. MURPHY, Liam; NAGEL, Thomas. The myth of ownership : taxes and justice. New York: Oxford University Press, 2002, p.31. 16 Cf. MUSGRAVE, R.A. A brief history of fiscal doctrine. Handbook of public economics. North-Holand: Elsevier Science Publishers, 1985, v I, p. 2. 17 MURPHY, Liam; NAGEL, Thomas. O mito da propriedade: os impostos e a justiça. São Paulo: Martins Fontes, 2005, p. 51.
sexta-feira, 15 de julho de 2016

CPF na nota?

Na maior parte dos Estados e no Distrito Federal foram implantados os programas de "concessão de créditos para adquirentes de mercadorias ou tomadores de serviços". Trata-se de modalidade de incentivo fiscal aos consumidores que, para obterem o benefício, deverão auxiliar na fiscalização da arrecadação do ICMS de competência dos Estados. Considerando que o Distrito Federal também possui competência para instituir os impostos municipais, o programa atinge também o ISS, imposto exigido do setor de serviços. Os programas consistem na concessão de créditos que poderão ser utilizados como abatimento da base de cálculo de impostos de competência desses entes federados. Às vezes, o crédito poderá ser pago em dinheiro, mas constitui uma pequena parcela do imposto pago no consumo. Dito de outro modo, não se trata de restituição integral do imposto ao consumidor, o que, evidentemente, não faria nenhum sentido. No caso das deduções, por exemplo, o contribuinte do IPTU ou do IPVA, na condição de consumidor, poderá acumular determinado montante de créditos que fica registrado nos cadastros da Fazenda Pública. Na oportunidade dos lançamentos de tais impostos, o valor dos créditos é deduzido da base de cálculo do IPTU ou do IPVA, resultando em um valor menor de imposto a pagar. Para fazer jus aos créditos, o consumidor deverá exigir, em contrapartida, nota fiscal com anotação do seu CPF nas compras ou recebimento de serviços que realiza perante os estabelecimentos credenciados. Ao exigir a nota fiscal, o consumidor auxilia na fiscalização dos impostos incidentes sobre o consumo (ICMS e ISS), pois o fornecedor é obrigado a registrar a saída da mercadoria ou a prestação do serviço, o que constitui fato gerador dos mencionados impostos. A anotação do CPF na nota fiscal é importantíssima, pois sem isso não há como a Fazenda anotar o crédito do consumidor para as futuras devoluções ou deduções. Daí a pergunta mais frequente do comércio hoje em dia: "CPF na nota"? Nos anos oitenta, no Estado de São Paulo, houve iniciativa pioneira até onde eu sei. Tratava-se do "Programa Paulistinha". Resumidamente, o programa consistia na exigência de nota fiscal no comércio varejista pelo consumidor final. Para cada conjunto de notas até determinado valor, o consumidor poderia trocar as notas fiscais por um álbum de figurinhas do personagem "paulistinha". Claro que o programa tinha um fiscal eficientíssimo, que era a garotada, ávida por preencher o álbum ou por acumular figurinhas para rodas de troca ou brincar de "bafo". Diz a lenda que o Estado nunca arrecadou tanto ICMS como naqueles idos. E olha que, na ocasião, não existiam máquinas de caixa computadorizadas e nem sistemas on line para lançamento de CPF (que, na época, se chamava CIC). Mas isso faz parte do passado. No presente, os programas conseguem assegurar, pelo CPF, alguma pessoalidade em relação ao consumidor. No limite, poderiam até cruzar dados entre a Receita Federal e a estadual para saber o perfil de renda do consumidor, com base no artigo 199 do CTN1. Embora com esses sistemas a Fazenda estadual ou distrital possa arrecadar menos IPTU ou ICMS, não há dúvidas de que tais programas contribuem para a eficiência da arrecadação, caso contrário teriam sido extintos. Em tempos de crise financeira no setor público, não perder receita em razão da sonegação fiscal é um imperativo de que nenhum governo pode abrir mão. A confirmação dessa hipótese de eficiência arrecadatória vem acompanhada do próprio sistema legal de gestão fiscal a que os entes federados estão obrigatoriamente vinculados. O artigo 14, da Lei Complementar 101, de 2000 (Lei de Responsabilidade Fiscal), estabelece uma série de exigências para a concessão de incentivos fiscais que se resumem na ideia de que não pode haver perda de arrecadação. Assim, se por um lado cai a receita de IPTU e de IPVA, por outro, aumenta a arrecadação de ICMS e ISS. Chega a ser intuitiva a vantagem da Fazenda com tais programas: enquanto que, para cada cem habitantes podem existir vinte proprietários de imóveis ou de veículos, cem por cento dos habitantes são consumidores. Daí por que os programas em questão significaram um avanço em matéria de eficiência de arrecadação dos tributos sobre o consumo, facilitados pela tecnologia. A pergunta "CPF na nota"?, na verdade, é a comprovação de que o consumidor portador do CPF atuou como fiscal dos impostos sobre o consumo e por essa atuação será recompensado com créditos ou descontos em outros impostos. Ao mesmo tempo em que, como consumidor, sofre a repercussão de maior eficiência arrecadatória, nessa mesma qualidade também é agraciado com incentivos e descontos de tributos sobre a propriedade. É exatamente essa relação que pretendo trazer à tona para algumas reflexões, tendo como pano de fundo a ideia de Justiça tributária, com foco na equidade ou igualdade material entre os consumidores. Na teoria econômica, dois princípios norteiam a tributação: princípio do benefício e princípio do sacrifício igual ou sacrifício comum. No primeiro caso, imita-se a lógica do mercado para justificar a tributação. Assim, o contribuinte somente seria obrigado a pagar determinado tributo se recebesse algum benefício direto do poder público. No mercado esse é o princípio: somente se paga o preço do produto mediante o recebimento da mercadoria. Tal princípio prevaleceu entre os séculos XVII e XVIII, mas logo se percebeu que não daria respaldo às complexidades das relações econômicas que avançavam rapidamente nesse período. O outro princípio foi concebido para dar respostas às insuficiências do princípio do benefício. No sacrifício comum, todos serão obrigados a custear a burocracia estatal com o pagamento de tributos, especialmente os impostos que tradicionalmente se destinam a manter o estado. As razões que motivaram a formulação de tal princípio desde Adam Smith, e que ganharam força com os escritos de John Stuart Mill, fundavam-se no entendimento de que, no estado tipicamente liberal e abstencionista da época, a aristocracia era mais beneficiada com as proteções do estado à liberdade e à propriedade do que a plebe. Não era difícil intuir que a burguesia rica teria que contribuir com mais tributos em relação aos pobres. A questão controvertida à época era saber qual o parâmetro para essa contribuição. Logo se percebeu que os ganhos auferidos seriam a melhor base para uma tributação que levasse a cabo o princípio do sacrifício igual. Quanto maiores fossem os ganhos, maior seria a parcela de contribuição. Até hoje a tributação não foge muito dessa lógica. Quando se trata de tributar a renda, a legislação estabelece alguns critérios que visam a individualizar o imposto, embora não se consiga um nível absoluto de precisão nessa individualização. A adoção de alíquotas progressivas no imposto de renda, procura discriminar as capacidades contributivas das pessoas, tributando-se com alíquotas mais altas os contribuintes de maior renda. O problema da falta de individualização e de inaplicabilidade da capacidade contributiva subsiste nos impostos sobre o consumo, porquanto no ato da compra não há como se aferir a renda individual do consumidor. Assim, ricos e pobres são tributados igualmente sobre o consumo por questões de dificuldade prática, mas não exatamente por algum óbice teórico. Esse modelo tem levado a distorções espantosas. As estatísticas apontam que as pessoas com renda de até dois salários mínimos comprometem 53,9% de sua renda com pagamento de tributos, certamente os que incidem sobre o consumo, porque com uma renda de dois salários é difícil supor aquisição de imóvel ou de veículos. Quem ganha mais de trinta salários mínimos, compromete de sua renda somente 29%, incluindo nesse cálculo a tributação sobre consumo, renda e patrimônio. O que isso tem a ver com os programas de concessão de crédito? A resposta decorre do modelo de tributação prevalecente no Brasil em toda sua história, em que as parcelas economicamente mais favorecidas da população são sempre mais beneficiadas com a política tributária. Note-se que quem tem mais capacidade contributiva para transferir sua renda ao consumo, logicamente, terá mais créditos para serem restituídos ou abatidos do IPTU ou do IPVA. Os consumidores de baixa renda, além de quase não terem créditos a restituir em tais programas, normalmente não têm imóvel próprio ou veículos para abater do pagamento de tais impostos. Percebe-se, portanto, que o princípio do sacrifício igual penaliza os mais pobres pelo simples fato de consumir (em geral, produtos básicos para a existência) e suaviza os efeitos econômicos da tributação do consumo em favor dos mais ricos. Além de serem proporcionalmente menos onerados em sua renda total, as pessoas de elevado poder aquisitivo ainda podem restituir mais créditos da renda empregada no consumo, ou reduzir o montante de impostos sobre a propriedade, tudo isso em função do "CPF na nota". Não me oponho aos programas de concessão de incentivos, mas não concordo com uma política tributária que agrida as ideias de Justiça, equidade e igualdade na tributação a pretexto de aumentar a eficiência arrecadatória. O modelo em vigor amplia a abissal desigualdade econômica do país e dá seu discreto incentivo à concentração de renda. Se for para se manter tais programas, medidas protetivas da renda empregada no consumo dos mais pobres também deveriam ser implantadas. Quem sabe aproveitar os cadastros fazendários para conceder isenções totais ou parciais para o consumo de gêneros básicos? Tal medida deveria favorecer quem ganhasse abaixo da faixa de isenção do IR ou outro valor a ser estudado. Não se trata de isenção para todos, mas para quem compromete quase metade de sua renda com pagamento de tributos, para compensar a desvantagem em face de quem compromete menos de um terço de sua renda com tributação. Em tempos de tanta tecnologia utilizada em favor da eficiência arrecadatória, talvez fosse oportuno pedir o "CPF na nota" para criar um sistema que contribua com a ideia de uma tributação mais justa e igualitária. Se não der ou se não há interesse político em se lutar por Justiça tributária (o que eu, sinceramente, não acredito, é que às vezes quem faz a lei esquece desse pequeno detalhe), talvez seja melhor voltar ao modelo da "paulistinha", que se não dava descontos no IPTU ou no IPVA da classe média e alta, ao menos servia para entreter a molecada, numa época sem internet, computadores, sistemas on line e "CPF na nota". Cleucio Santos Nunes é doutorando e mestre em Direito. Professor e advogado. __________ 1 CTN: Art. 199. A Fazenda Pública da União e as dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios prestar-se-ão mutuamente assistência para a fiscalização dos tributos respectivos e permuta de informações, na forma estabelecida, em caráter geral ou específico, por lei ou convênio.
Jamyl de Jesus Silva Reflexões iniciais Tornou-se clássica a assertiva de que "duas coisas são certas na vida de um ser humano: morrer e pagar tributos"1. E pagar tributos é algo reconhecido como um "dever fundamental", seja pela doutrina2, seja pela jurisprudência do Supremo Tribunal Federal3 - STF. Do ponto de vista histórico, é costumeira a lembrança da passagem bíblica na qual Jesus fora cobrado pelo "imposto" de duas dracmas4. Contudo, há nesse último ponto um sério equívoco: a admissão da tributação como algo anterior à propriedade privada, isto é, algo que limitaria a propriedade. O erro, em outros termos, reside na presunção de que existiu tributação antes da cisão entre estado e propriedade5. Liam Murphy e Thomas Nagel apontam, com grande acerto, que "a propriedade privada é uma convenção jurídica definida em parte pelo sistema tributário; logo, o sistema tributário não pode ser avaliado segundo seus efeitos sobre a propriedade privada, concebida como algo dotado de existência e validade independentes"6. E o que se depreende dessa premissa inicial? Que a avaliação da justiça em um sistema tributário não parte do tributo em si, mas do sistema de direito de propriedade viabilizado pela tributação. Apenas parece óbvio. Nascemos e somos criados, no Brasil, em um contexto de diferenças econômicas e sociais (assim como a acumulação seletiva e ilimitada de propriedade por poucos) vistas como "naturais", algo que seria inerente à existência humana. Mas não se engane: a perpetuação desse sistema de desigualdade histórica e aparentemente intransponível não seria possível sem um sistema de tributação que, ao tempo em que extrai mais dos que menos podem - e também por isso - viabiliza aos mais favorecidos a acumulação de capital, transmitido às gerações futuras7. É justamente por essa razão que se mostra necessário compreender a tributação como um fenômeno complexo. Pensar a tributação no estado contemporâneo parece exigir algo mais do que a prática diária vem consagrando, com um restrito corte 'epistemológico' (ou pragmático?) que afasta do debate questões cruciais, notadamente sua necessária vinculação com a justiça social. Nesse sentido, oferece-se à reflexão o conceito de Matriz Tributária, definida como "as escolhas feitas em um determinado momento histórico no campo da ação social8, no que diz respeito ao fenômeno tributário"9. São essas escolhas políticas, de hoje e de ontem, que fizeram o Brasil acontecer assim, tão desigual e injusto, e que o fazem permanecer do mesmo modo, o que é ainda mais grave. Afirmar que a Matriz Tributária, enquanto escolha política, é regressiva, caso do Brasil, significa dizer que ela viabiliza um sistema que cobra mais tributos de quem menos pode contribuir, isto é, dos mais pobres. Dados do IPEA apontam que a carga tributária total suportada por quem aufere renda de até dois salários mínimos é de 53,9 %, que corresponde a 197 dias do ano destinados ao pagamento de tributos; já a carga total imposta aos que possuem renda superior a 30 salários mínimos é de 29%, correspondentes a 106 dias do ano10. Vê-se, portanto, que o discurso político é ideologicamente direcionado ao engodo: o problema fundamental não é o tamanho da carga tributária11, mas de quem ela é cobrada, isto é, quem paga o custo do Brasil. E como essa situação tão injusta fez-se possível? Alguns dados ajudam na resposta. Há diversas formas de alocar a tributação (de se fazer escolhas políticas tributárias). No Brasil, tributa-se essencialmente o consumo, ao invés da renda, ao contrário do que acontece com os países mais ricos, membros da OCDE12. Um exemplo concreto: aqui, 44% da carga total incide sobre o consumo, enquanto 21% incidem sobre a renda; no Canadá, apenas 18% incidem sobre o consumo e 47% sobre a renda; nos Estados Unidos, essa proporção consumo-renda é de 18-44%, respectivamente13. E tudo isso sem contar que no Brasil várias contribuições especiais14 são, tecnicamente, impostos sobre o consumo, o que elevaria para cerca de 70% da carga total sobre essa base de incidência. Na prática, isso provoca efeitos nefastos. Uma família com renda de até dois salários mínimos gasta praticamente toda a sua renda com o consumo elementar e, assim, sofre uma tributação total (consumo e demais fontes alocativas) de 53,9 %, algo muito diferente do que ocorre com as famílias abastadas (a rigor, como já apontado, os mais pobres pagam o dobro de tributos, se comparados com a classe mais abastada brasileira). Assim, ao longo da vida, famílias pobres permanecem pobres, enquanto as ricas acumulam mais riqueza, a ser transmitida - quase sem tributação - aos sucessores, que, da mesma forma, acumularão e transmitirão riqueza, num ciclo histórico interminável. É o Brasil de fato... O confisco tributário Poucos temas foram objeto de tamanhos embate jurisprudencial e atenção doutrinária como a proibição do efeito confiscatório na tributação. E nem por isso essa questão navega em águas calmas. Segundo o dicionário, confiscar é "apreender em proveito do fisco"15. Esse conceito não é desconhecido do ordenamento jurídico pátrio, como apontamos em estudo anterior16. A Constituição prevê a perda da propriedade, em favor do estado, nos casos de cultivo de psicotrópicos, perda de bens produzidos pelo crime etc. sem qualquer mácula de antijuridicidade. No caso dos tributos, prevê o art. 150, IV, a garantia de que o estado não pode promover um efeito confiscatório pela via da tributação. Veja-se que o alcance aqui é amplo: não se veda apenas o confisco; veda-se o efeito de confisco, isto é, interditam-se tanto o confisco em si, quanto eventuais atos que produzam efeito confiscatório, por via indireta. Pois bem. Muito se debate a proibição ao confisco, mas pouco se reflete sobre a necessidade de fazer valer a capacidade contributiva, outro princípio constitucional tributário. A rigor, respeitada a capacidade contributiva - o que inclui cobrar tributos na proporção das possibilidades de cada contribuinte - não há espaço à discussão sobre efeito confiscatório, cuja proibição decorre justamente da exigência de respeito à capacidade contributiva. No caso brasileiro, a capacidade contributiva é manifesta e sistematicamente violada, em desprestigio à Constituição Federal de 1988, exatamente porque nossas escolhas políticas em sede de tributação (que definem nossa Matriz Tributária) direcionam-se - conscientemente - para que o custo do Brasil seja suportado pelos estratos sociais patrimonial e politicamente desprestigiados. Tributa-se, portanto, em desrespeito ao mínimo existencial. É nesse contexto, portanto, que se deve pensar o alegado efeito confiscatório. Tributar 53,9% dos ganhos de quem sobrevive com até dois salários mínimos mensais configuraria confisco, ao impedir a acumulação de patrimônio? Ou confiscatória seria somente a tributação que alcança o patrimônio já acumulado? Essa indagação, embora incomum, parece fundamental. Feitas essas considerações, resta saber se são aplicáveis às multas os vetores da capacidade contributiva e do não confisco. As multas tributárias e sua relação com o confisco: Há diversos tipos de multa tributária, marcadas por incontáveis peculiaridades e critérios17. Contudo, para atender a simplicidade e clareza exigidas pela proposta deste texto - e cientes de que toda multa é punitiva - nos ateremos a uma classificação trinária18: Multa moratória - imposta ao contribuinte em razão da impontualidade no pagamento do tributo; Multa punitiva isolada- imposta ao contribuinte que descumpre obrigação acessória (deveres instrumentais que não repercutem diretamente no valor devido); Multa punitiva seguida de lançamento de ofício - penalidade ao contribuinte que descumprem obrigação tributária nos tributos sujeitos a lançamento por homologação e que, por consequente, deixa de recolher o tributo, dando ensejo à penalidade e ao respectivo lançamento de ofício. A análise dos conceitos acima apontados revela, de plano, que há uma gradação na gravidade das condutas ensejadoras de cada espécie de multa tributária. É manifesto que o contribuinte que simplesmente atrasa o pagamento de um tributo (obrigação principal) - seja porque não dispõe de dinheiro suficiente, seja porque optou por atrasar - não pratica conduta com a mesma gravidade daquele que, deliberadamente, "esconde" a ocorrência do fato gerador para, com isso, livrar-se do pagamento do respectivo tributo. O primeiro grande debate instaurado nessa seara reside na incidência, ou não, da vedação ao confisco quanto à aplicação de multas tributárias. A doutrina majoritária defende a aplicabilidade de referida limitação constitucional, compreensão que prevaleceu no STF19. No âmbito da Corte Suprema, decidiu-se que a multa tributária moratória não pode ser superior a 20% do tributo devido; e que as outras multas punitivas não podem ultrapassar 100% do valor da obrigação tributária principal a que se referem. Tudo isso com base na proibição do efeito confiscatório e sem considerar a carga tributária total suportada pelo contribuinte, segundo seu perfil de renda e patrimônio. Entretanto, essa compreensão não parece ser a mais acertada, especialmente quanto à multa punitiva seguida do lançamento de ofício. Em primeiro lugar, é sabido que a conduta de descumprir obrigação acessória que implique a supressão de tributos constitui crime e, como tal, sancionada com pena de prisão de dois a cinco anos20. No contexto de uma Carta Constitucional como a brasileira, soa incoerente a tese de que o Estado pode tomar a liberdade do contribuinte (pena de prisão), mas não pode sancioná-lo com a perda patrimonial. Defende Vitório Cassone, então, que a multa tributária não pode ser limitada com base na vedação ao confisco, pois a conduta que a justifica destoa dos princípios postos em relevo pelos arts. 1º e 3º da CF/8821. Isso não quer dizer, contudo, que não existam limites à atuação sancionatória do Estado, mas apenas que eles devem ser balizados por outro critério, que não o da proibição ao confisco: a proporcionalidade e a razoabilidade (algo muito próximo do que baliza as sanções criminais, que - desde os avanços iluministas22 - não podem ser desproporcionais à gravidade da conduta imposta). Essa perspectiva ostenta muitas vantagens. Em primeiro lugar, deixa de fixar um limite objetivo (como fez o STF23), para dar lugar à análise complexa, que deve levar em conta, por exemplo, critérios como natureza do tributo envolvido (se tributo direto ou indireto, p. ex), montante envolvido etc. Veja-se que não se trata de deixar o contribuinte ao desabrigo de qualquer proteção. Trata-se, isso sim, de firmar posição consentânea com a integridade do direito, tendo-se em conta, inclusive, que tributo pode ser muita coisa, menos sanção por ato ilícito (CTN, art. 3º24), justamente a essência do que é a multa tributária. Essa resposta, para além de juridicamente mais adequada, abre-se ao alcance de algo mais importante: um correto conceito de confisco, na perspectiva do caso concreto, que respeite a capacidade contributiva e, por consequência, não aceite a atual ordem e tranquilidade das coisas25. Na retórica do STF, a proibição do confisco representa a interdição "de qualquer pretensão governamental que possa conduzir, no campo da fiscalidade (...) à injusta apropriação estatal, no todo ou em parte, do patrimônio ou dos rendimentos dos contribuintes, comprometendo-lhes, pela insuportabilidade da carga tributária, o exercício do direito a uma existência digna, a prática de atividade profissional lícita e a regular satisfação de suas necessidades vitais (educação, saúde e habitação, por exemplo)"26. Contudo, na prática do direito brasileiro, não constitui confisco a tributação de 53,9% dos ganhos dos desafortunados, justamente aqueles que - sobretudo por conta dessa escolha política tributária (e aqui é importante ter em conta que a responsabilidade é também do Legislativo e do Executivo) - não têm acesso à educação, saúde e habitação. Se é verdade que continua difícil definir limites ao efeito confiscatório, parece fácil perceber que a regressividade da tributação no Brasil, onde se cobra menos de quem mais pode (violando-se a capacidade contributiva), confisca as possibilidades de cidadania da imensa maioria, violando até a proteção ao mínimo existencial. E isso é preciso ser percebido e combatido, porque a inércia e o silêncio estarão sempre ombreados à injustiça. Jamyl de Jesus Silva é estre em Direito Público pela UnB; especialista em Direito Civil e Processual Civil; licenciado em Letras Vernáculas e Literaturas de Língua Portuguesa; professor Universitário e juiz Federal. __________ 1 Algo lembrado pelo Prof. Valcir Gassen, in GASSEN, Valcir (Org.). Equidade e eficiência da matriz tributária brasileira: Estado, Constituição e Direito Tributário. Brasília: Consulex, 2012, p. 27. 2 NABAIS, José Casalta. O dever fundamental de pagar impostos. Coimbra: Almedina, 1998. 3 RE 601.314, Re. Min. Edson Fachin, no qual decidiu o STF pela validade constitucional dos dispositivos da lei 105/2001, que permitem à Receita Federal ter acesso direto a dados dos contribuintes. 4 Mateus, capítulo 17:24-27. 5 "(...)o fenômeno tributário como conhecemos hoje não guarda qualquer relação com o observado nas comunidades anteriores às revoluções burguesas do século XVIII, mais especificamente a francesa, no campo da política, e a inglesa, no campo da economia. Ainda que a raiz semântica do termo "tributo" faça referência a uma experiência histórica, seu significado hoje se afasta do sentido existente no passado. Isso se dá pelo fato de que somente com as revoluções liberais, e o surgimento do Estado Contemporâneo, é que o fenômeno da tributação ganha a atual configuração, que viria a acompanhá-lo até os dias de hoje. A separação histórica observada entre a propriedade e o Estado, implementada pela burguesia em suas revoluções, teve como consequência a criação de um sistema legal que prevê e protege expressamente a propriedade do indivíduo frente ao próprio ente político. Assim, ainda que a tributação seja parte inalienável desse sistema jurídico, sendo necessária, portanto, para a existência da propriedade privada, o Estado passa a possuir um ônus de se legitimar perante seus súditos para poder exercer sua atividade fiscal e financiar suas atividades. (SALES D'ARAUJO, Pedro. A vedação do efeito confiscatório da tributação e seu papel na argumentação jurídica. Artigo ainda inédito)". 6 MURPHY, Liam; NAGEL, Thomas. O mito da propriedade: os impostos e a justiça. São Paulo: Martins Fontes, 2005, p. 11. 7 Sobre esse aspecto (a pífia tributação da herança no Brasil, como instrumento de manutenção patrimonial das elites históricas, cujo debate não cabe nos limites desse texto), recomenda-se a leitura do seguinte trabalho: GASSEN, Valcir; SILVA, Jamyl de Jesus. A tributação do patrimônio como instrumento de justiça social. In: GASSEN, Valcir (Org.). Equidade e eficiência da matriz tributária brasileira: Estado, Constituição e Direito Tributário. Brasília: Consulex, 2012. 8 Esclarece o autor que se vale da expressão "ação social" no sentido "weberiano de um tipo ideal, construído com a intenção de contribuir numa determinada análise", citando WEBER, Max. Conceitos sociológicos fundamentais. Trad. de Artur Morão. Covilhão: Universidade Beira Interior, 2010, p. 7. 9 GASSEN, Valcir, ob. cit., p. 32. 10 IPEA - Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada - Receita Pública: quem paga e como se gasta no Brasil. Jun./2009. - Dados relativos ao ano de 2008, disponível em, consultado em 23/5/2016, às 11h44m. 11 A carga tributária total no Brasil, também segundo o citado estudo do IPEA (dados de 2008) era de 36,2% do PIB, algo que está longe de se comparar com a carga dos países membros da OCDE que mais tributam. Dados mais recentes, extraídos de estudos da Receita Federal do Brasil, apontam que a carga tributário total no Brasil, em 2013, foi de 33,74%. 12 Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico, entidade que congrega 34 dos países mais ricos do mundo e que tem como objetivo declarado promover políticas de desenvolvimento e promoção de bem estar social à população mundial, pela busca de soluções aos problemas comuns. Mais informações aqui. 13 Dados detalhados, com gráficos explicativos, podem ser consultados aqui: coletados e sistematizados a partir de estudo da OCDE. 14 Constituição Federal, art. 149: Compete exclusivamente à união instituir contribuições sociais, de intervenção no domínio econômico e de interesse das categorias profissionais ou econômicas, como instrumento de sua atuação nas respectivas áreas, observado o disposto nos arts. 146, III, e 150, I e III, e sem prejuízo do previsto no art. 195, § 6º, relativamente às contribuições a que alude o dispositivo. 15 Dicionário Aurélio online. 16 A tributação do patrimônio como instrumento de justiça social. In: GASSEN, Valcir (Org.). Equidade e eficiência da matriz tributária brasileira: Estado, Constituição e Direito Tributário. Brasília: Consulex, 2012, p. 249-250. 17 Ilustrativamente, observe-se o art. 527 do Regulamento do IMCS do Estado de São Paulo (Decreto nº 45.490, de 30/11/2000), que prevê mais uma centena de multas, com os mais diversos critérios. 18 Recentemente utilizada pelo Min. Roberto Barroso no STF, no Agravo Regimental em Agravo de Instrumento 727.872/RS. 19 Dentre os incontáveis julgados, citam-se os mais emblemáticos: ADIs 555 e 1.075, relatores Min. Ilmar Galvão e Celso de Mello, respectivamente; e RE 582.461, Rel. Min. Gilmar Mendes. 20 Ver art. 1º da lei 8.137/90, que "define crimes contra a ordem tributária, econômica e contra as relações de consumo, e dá outras providências". 21 CASSONE, Vittorio. Confisco em matéria tributária. Repertório IOB Jurisprudência, nº 6, mar. 2000, p. 149. 22 Algo que pode ser ilustrado pela obra de CesareBeccaria, Dos delitos e das penas. Trad. Lucia Guidicini e Alessandro Berti Contessa. São Paulo: Martins Fontes, 1998. 23 Extrai-se da jurisprudência do STF a seguinte definição: limite máximo de 100% do valor do tributo devido para multas punitivas (que envolvam lançamento de ofício) - AgRg no RE 754,554/GO, Rel. Min. Celso de Mello e ADI 551, Rel. Min. Ilmar Galvão; e limite máximo de 20% para multas meramente moratórias - AI 727872 AgR, Relator(a): Min. ROBERTO BARROSO, Primeira Turma, julgado em 28/4/2015. 24 Art. 3º Tributo é toda prestação pecuniária compulsória, em moeda ou cujo valor nela se possa exprimir, que não constitua sanção de ato ilícito, instituída em lei e cobrada mediante atividade administrativa plenamente vinculada. 25 Nas palavras de Eduardo Galeano: "ordem é a diuturna humilhação das maiorias, mas sempre é uma ordem - a tranqüilidade de que a injustiça siga sendo injusta e a fome faminta". GALEANO, Eduardo. As veias abertas da América Latina. Trad. Sérgio Faraco. Porto Alegre: L&PM, 2014, p. 25. 26 Trecho do voto do Min. Celso de Mello, relator do RE 754.554/GO, julgado em 22/10/2013.