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Os desafios para criação do mercado de carros elétricos no Brasil sob uma perspectiva jurídica

Como qualquer tecnologia inovadora, o ingresso massivo dos carros elétricos no mercado brasileiro promoverá alterações importantes na realidade e trará novos desafios. O direito, como mecanismo de regulação das condutas humanas, terá que lidar com essas mudanças, seja por meio das leis e regulamentos já existentes, seja pela edição de outros atos normativos quando os atuais se mostrarem insuficientes.

quinta-feira, 21 de setembro de 2017

Atualizado às 09:33

Na semana passada, teve início a 67ª edição do Salão do Automóvel de Frankfurt. Considerado o maior e mais importante do gênero, esse evento tradicionalmente indica as novidades e tendências do mercado automotivo. Neste ano, assim como no anterior, quem brilhou com mais intensidade foram os veículos elétricos1, indicando que a transição para um mercado em que eles passarão de coadjuvantes a protagonistas é uma questão de tempo.

Como qualquer tecnologia inovadora, o ingresso massivo dos carros elétricos no mercado brasileiro promoverá alterações importantes na realidade e trará novos desafios. O direito, como mecanismo de regulação das condutas humanas, terá que lidar com essas mudanças, seja por meio das leis e regulamentos já existentes, seja pela edição de outros atos normativos quando os atuais se mostrarem insuficientes. O presente artigo pretende tratar de alguns dos impactos dessa revolução.

Convencionou-se chamar de carros elétricos os veículos automotores que utilizam pelo menos um motor elétrico para acionamento da (s) roda(s)2. Não estão incluídos nesse conceito veículos que funcionam sob trilhos, tais como trens e metrôs, que também são movidos por eletricidade, mas não rodam com pneus. É fácil entender o porquê dessa convenção. Os carros elétricos são vistos como um substituto dos chamados carros tradicionais, movidos com motores de combustão interna. Assim, restringir o conceito apenas a esse tipo de veículo permite uma comparação adequada entre eles, o que não seria possível se abarcasse também meios de transporte totalmente distintos.

Antes tidos como um sonho distante, os carros elétricos começam a se tornar realidade ao redor do mundo. Segundo a Agência Internacional de Energia3, em 2016, foram vendidos 750 mil veículos plug-in, o que permitiu que o número carros desse tipo em circulação alcançasse 2 milhões de unidades. Esse número inclui veículos puramente elétricos, conhecidos como BEVs, e também os plug-in híbridos (ou PHEVs), que são movidos a eletricidade, mas também possuem motor de combustão interna. Não estão incluídos os veículos puramente híbridos, que não admitem recarga externa da bateria. O maior mercado em termos de número de veículos vendidos segue sendo a China, seguida pela Europa e pelos Estados Unidos, ao passo que a Noruega lidera em termos de participação desses veículos em market share, que já alcança 29%.

No Brasil, os números ainda são tímidos. Segundo a Associação Brasileira de Veículos Elétricos (ABEV), a frota alcançava apenas 3 mil unidades em 2015. Apesar disso, é inevitável que o país embarque na onda global. As maiores montadoras, muitas delas com operação no país, já anunciaram sua transição para esse novo conceito. A Honda, por exemplo, anunciou recentemente que 2/3 de seus carros serão elétricos em 20304. Diante disso, as previsões atuais indicam que em oito anos os veículos elétricos serão tão baratos como os movidos a motores de combustão interna e espera-se que em 2038 a venda de carros elétricos ultrapasse a de veículos tradicionais5.

Um pouco de história: a morte e o renascimento dos carros elétricos

Por mais que tenham voltado a tomar conta do noticiário apenas recentemente, os carros elétricos estão longe de ser uma novidade. Na verdade, eles são mais antigos do que os atuais carros com motores de combustão interna, que dominam um mercado que coloca nas ruas e estradas nada menos do que 84 milhões veículos apenas nos 52 grandes mercados usados como referência para pesquisas globais6.

O carro elétrico nasceu há mais de 100 anos. O primeiro modelo com quatro rodas remonta 1890, tendo sido construído pelo americano William Morrison. Posteriormente, alguns modelos foram sendo aperfeiçoados em termos de autonomia e potência e, em 1899, a barreira dos 100 km/h foi rompida por um veículo inventado por Camille Jenatzy. Até então, o carro elétrico reinava triunfante e não via os veículos de combustão interna como concorrentes relevantes. Contudo, essa equação começaria a se inverter em ritmo acelerado com o desenvolvimento gradativo desses motores, que se tornariam comuns em 1890.

Apesar de populares, os veículos elétricos tinham três grandes problemas: custo, alcance e recarga. Os novos veículos a combustão interna desenvolvidos no início do século XX superavam esses obstáculos e ainda tinham uma grande vantagem: utilizariam como combustível a gasolina, um derivado do petróleo. Esse fator se mostrou especialmente relevante, pois a indústria petroleira ensaiava uma crise com a gradativa substituição do querosene de iluminação, então principal uso do petróleo, pela eletricidade, o que significaria enorme perda de mercado. A venda de veículos de combustão interna, alimentados a gasolina, era a solução ideal. Por volta da década de 1920 não só esses novos automóveis tinham dominado o mercado, decretando o fim dos carros elétricos, como já havia sido desenvolvida uma enorme rede de abastecimento, eliminando o problema da recarga.

No início dos anos 90, após um grande período de reinado absoluto dos veículos movidos com motores de combustão interna, tudo indicava que os veículos elétricos renasceriam. Um conjunto de medidas tomadas pelo Conselho de Qualidade de Ar da Califórnia (CARB) incentivava o desenvolvimento de veículos limpos, exigindo que os fabricantes colocassem no mercado modelos com emissão zero. Essas medidas foram motivadas pela péssima qualidade de ar naquele que era o maior mercado de automóveis entre os estados americanos. Foi nesse contexto que nasceu, em 1996, o EV1, da GM, que pode ser considerado o primeiro modelo de veículo elétrico moderno e comercial. A história do EV1, porém, seria curta e uma combinação de fatores levaria a montadora a tirar o carro do mercado em 1999.

Contudo, alguns anos depois, o carro elétrico encontraria novamente o ambiente ideal para seu novo renascimento. Motivadas especialmente pelo combate ao aquecimento global, uma série de políticas começaria a ser adotada mundialmente para viabilizar o investimento em veículos que emitam menos CO2 na atmosfera. Nesse cenário, começaram a surgir desde iniciativas absolutamente inovadoras, como as da empresa Tesla, que se propõe a dedicar-se integralmente à produção de veículos elétricos, até outras vindas de montadoras que atuavam no mercado tradicional de veículos com motores de combustão interna. Atualmente, é difícil - se não impossível - encontrar um fabricante relevante que não tenha desenvolvido pelo menos um modelo de veículo elétrico, como demonstrou o Salão de Frankfurt realizado neste ano.

As iniciativas do Poder Público para criar e regular o mercado de carros elétricos no Brasil

O Congresso Nacional vem se movimentando nos últimos cinco anos na tentativa de criar um ambiente adequado para o desenvolvimento do mercado de carros elétricos. Há pelo menos cinco projetos tratando do tema em tramitação, sendo dois deles de iniciativa da Câmara dos Deputados (PLs 4751/12 e 3895/12) e três do Senado Federal (PLs 174/14, 415/12 e 304/17).

O projeto de lei 4751/12 tem como foco a criação de pontos de recarga de bateria para os veículos elétricos. Seu objetivo é obrigar as concessionárias de serviço público de distribuição de energia a instalarem esses pontos junto às vagas de estacionamentos públicos que venham a ser disponibilizadas para tal fim pelas autoridades locais. Além disso, pretende determinar ao Poder Executivo que fixe parâmetros para esses pontos de recarga. Seu texto já foi aprovado pela Câmara e atualmente está em discussão no Senado Federal. De todos os projetos em debate, esse é o que está em estágio mais avançado de tramitação.

O PL 3895/12 pretende criar e regular a figura da revenda varejista de eletricidade para abastecimento de veículo automotor elétrico ou elétrico híbrido, estabelecendo que ela poderá ser exercida por concessionária ou permissionária do serviço público de distribuição de energia elétrica ou por revendedor varejista de eletricidade registrado na Aneel. A ideia é ampliar o número de entidades que possa fornecer eletricidade para esses veículos, fomentando a competição e o desenvolvimento de infraestrutura de recarga.

Já os projetos de lei 415/12 e 174/14, do Senado Federal, focam na criação de benefícios fiscais, isentando do Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI) a fabricação de automóveis equipados com motor acionado a energia fornecida por baterias recarregáveis na rede elétrica. A ideia nesse caso é viabilizar a redução do preço desses veículos, hoje muito mais caros do que os tradicionais, e com isso incentivar a criação de um mercado. Medidas desse tipo foram adotadas por países como a Alemanha, que instituiu um bônus ambiental para fomentar a compra de automóveis elétricos.

Ainda no âmbito do Senado Federal, há o recente PLS 304/2017, apresentado em 30 de agosto de 2017. Esse projeto pretende impedir a comercialização de veículos movidos a motor de combustão interna no país a partir de 2030, salvo se esses forem abastecidos exclusivamente com biocombustíveis. Propõe, ainda, que a partir de 2040 a circulação desses veículos seja proibida, salvo em situações muito específicas (coleções, carros oficiais, representações diplomáticas etc.).

Além dessas iniciativas de âmbito nacional, há também medidas sendo adotadas no âmbito local. Exemplos são os decretos editados pelo Município de São Paulo que isentam do rodízio municipal de veículos os carros elétricos e híbridos e que dão desconto de 50% no Imposto sobre a Propriedade de Veículos Automotores (IPVA) que incidem sobre esses bens. Esse percentual corresponde à totalidade da parcela do imposto estadual em questão que cabe ao Município.

Outra iniciativa digna de nota é a recente audiência pública feita pela Agência Nacional de Energia Elétrica com o objetivo de colher contribuições para a elaboração de uma resolução específica sobre a recarga de veículos. O objetivo dessa proposta de normativa é estabelecer as condições em que esse serviço poderá ser prestado, seja pelo distribuidor de energia da região ou terceiro, e estabelecer mecanismos que permitam que a Agência tenha informações sobre a evolução desse mercado.

Outros desafios a serem enfrentados

Além das questões acima indicadas, que já estão de alguma maneira sendo endereçadas pelo Legislativo e pelo Executivo, outros desafios jurídicos precisarão ser enfrentados para viabilizar a implementação e adequado funcionamento do mercado de carros elétricos no Brasil. Para tanto, diversos ramos do direito serão chamados a atuar conjuntamente para superara-los.

O direito ambiental deverá ser chamado para tratar do licenciamento ambiental dos pontos de recarga. Os órgãos ambientais precisarão se posicionar e criar regras claras sobre a dispensa ou necessidade de licenciamento das estações de recarga (normais ou rápidas), que farão as vezes dos atuais postos de combustível. Optando-se pelo último caminho, os requisitos necessários para obtenção das licenças devem ser fixados para permitir o adequado planejamento dos empreendedores.

Outra questão relacionada ao direito ambiental diz respeito à destinação final dos resíduos que serão gerados por essa nova modalidade de veículo. Os carros elétricos são essencialmente movidos por energia armazenada em baterias de íons de lítio. Logo, sua popularização aumentará e muito o volume desses equipamentos colocados no mercado e que deverão ser destinados adequadamente após sua exaustão. Assim, questões relacionadas à responsabilidade do consumidor e dos fabricantes por esses descartes precisarão ser bem delimitadas.

Ainda nessa seara, um aspecto adicional a ser discutido é possibilidade de criação de regras que limitem a emissão de CO2 para preservar o meio ambiente e fomentar o mercado de veículos elétricos. Um exemplo de iniciativa desse tipo é o que foi feito pela CARB, na Califórnia. Essa entidade passou a exigir que os fabricantes gerem ou adquiram um determinado volume de créditos obtidos por meio da venda de automóveis com zero ou reduzida emissão de CO2. A exigência é que o percentual de vendas seja de 4.5 do total em 2018 e 22 em 2025. Nada impede que uma medida semelhante a essa ou uma derivação seja utilizada no País.

O direito tributário possivelmente será chamado a atuar em questões relacionadas à criação de subsídios ou incentivos. Como visto, já há iniciativas no Congresso relacionadas à isenção de IPI para os veículos elétricos fabricados no País e para os equipamentos voltados para sua recarga. Discussões semelhantes poderão ser lançadas em relação a outros tributos para incentivar a criação de um mercado de carros elétricos ou desincentivar a comercialização de veículos de combustão interna, em marcada manifestação da extrafiscalidade.

O direito urbanístico também sofrerá impactos da revolução provocada pelos carros elétricos. Atualmente, as regras e padrões relacionados à construção de casas e edifícios não pensaram as garagens como autênticas estações de recarga. Assim, especialmente neste último caso, é comum que o proprietário de um veículo não tenha possibilidade carregá-lo em casa por falta de infraestrutura. Novas regras possivelmente precisarão ser adotadas para que essa realidade se altere no futuro mais rapidamente, mas já há registros de iniciativas voluntárias de construtoras quem vêm lançando empreendimentos preparados para a recarga desses novos veículos7.

Também os espaços públicos ou privados de uso público precisarão olhar para essas questões. Ainda que possam utilizar suas residências para carregar os veículos, os consumidores podem simplesmente não ter essa possibilidade por não possuir garagem, o que é comum em algumas cidades, o que os obrigará a se valer de outras estruturas. A segurança sobre a autonomia e possibilidade de recarga é um fator crucial para o desenvolvimento desse mercado.

Aspectos relacionados ao direito de energia também se colocarão. Na própria documentação da ANEEL que justificou a realização de uma audiência para discutir a resolução acima indicada, que tratará das estações de recarga, sinalizou-se a existência de dúvida quanto à qualificação dessa atividade, especialmente se ela poderia ser considerada comercialização de energia. Se fosse esse o caso, ela estaria, em princípio, adstrita à distribuidora de energia de determinada região. Um encaminhamento em tal sentido limitaria drasticamente a concorrência e o incentivo de se ter novos players estabelecendo a infraestrutura necessária para viabilizar as estações de recarga. Por ora, o entendimento sinalizado pela agência foi o de permitir que esse serviço seja prestado com ampla liberdade, mas o assunto ainda não foi definido.

As relações contratuais entre o consumidor e as montadoras também serão influenciadas, assim como aquelas hoje existentes entre essas e seus fornecedores. No primeiro caso, o foco possivelmente será os novos modelos contratuais associados à disponibilização desses carros para uso do consumidor, hoje habituados à pura e simples compra e venda. Modelos que envolvem o compartilhamento ou o simples aluguel já vêm sendo testados pelo mundo e podem ser muito úteis especialmente enquanto os custos para fabricação ainda forem elevados. Do lado do fornecimento de peças, tudo indica que haverá uma concentração entre os fornecedores, uma vez que o número de peças necessárias para a montagem de um veículo elétrico é significativamente menor. A reduzida exigência de manutenção possivelmente também afetará serviços atualmente prestados pelas concessionárias.

O direito do consumidor igualmente terá que se adaptar para regular essas novas relações estabelecidas entre consumidores e fabricantes. Além disso, questões novas, como aquelas associadas segurança desses veículos, podem se colocar, já que um mundo totalmente diferente se descortinará. Nada indica até o presente momento que os veículos elétricos são menos seguros do que os tradicionais movidos a motores de combustão interna, mas é certo que apenas o experimento de alguns anos permitirá uma resposta mais consistente a essa questão.

Como se vê, a implementação efetiva de um mercado de carros elétricos no Brasil e no mundo trará novos e palpitantes desafios para o direito. Assim como ocorre em toda revolução tecnológica, caberá aos profissionais da área jurídica, em conjunto com todos os outros que trabalharão na construção dessas mudanças, a missão de conceber soluções adequadas que permitam sua realização sem descuidar da tutela adequada de todos os interesses envolvidos.

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1 Montadoras ampliam investimentos para carros elétricos. Acesso em 19 set. 2017.

2 Essa é a definição apresentada pela Associação Brasileira do Veículo Elétrico (ABVE). Disponível em: clique aqui. Acesso em: 19 set. 2017.

3 Tracking Progress: Electric Vehicles. Disponível em: clique aqui. Acesso em: 29 ago. 2017.

4 Honda is firing back at Tesla and other automakers by rolling out 2 electric cars by 2018. Acesso em: 31 ago. 2017.

5 The electric car revolution is accelerating. Acesso em: 2 ago. 2017.

6 A referência aqui utilizada é da consultoria global JATO Dynamics, que considera 52 grandes mercados. O número em questão se refere ao ano de 2016 e foi extraído do relatório disponível em: clique aqui. Acesso em: 2 ago. 2017.

7 Vagas para carros elétricos ganham espaço nos empreendimentos. Disponível em: Acesso em: 31 ago. 2017.

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*João Emmanuel Cordeiro Lima é sócio do escritório Nascimento e Mourão Advogados.

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