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A tutela dos animais no xenotransplante, Eudes Quintino

A tutela dos animais no xenotransplante

Os animais são criaturas que podem colaborar com a saúde e até mesmo com a sobrevivência do homem, porém há necessidade de se estabelecer parâmetros éticos para a realização do xenotransplante.

domingo, 14 de janeiro de 2018

Atualizado em 11 de janeiro de 2018 15:46

A biotecnologia vem se desenvolvendo de forma espantosa e a cada dia cria novos mecanismos, instrumentos e medicamentos para que o homem possa viver melhor, com uma qualidade de vida referendada pela boa saúde e plenas condições para desenvolver seus projetos social, profissional e familiar. Os passos dados são tamanhos que, dentre as várias áreas, a medicina de transplante vem se destacando e assumindo com sucesso a realização de transplantes de órgãos, tecidos e partes do corpo humano.

Ocorre que é inevitável o problema da escassez de órgãos humanos, fazendo com que muitos pacientes, em estado delicado de saúde, fiquem aguardando durante muito tempo nas filas dos transplantes a oferta de algum órgão que seja compatível. Isto também se deve porque não há, no Brasil, uma política de divulgação eficaz e penetrante em todas as camadas sociais para que os cidadãos saibam que a doação de órgãos poderá ser comunicada em vida aos familiares e, após sua morte, a autorização somente será ofertada pelo cônjuge ou parente maior de idade, obedecida a linha sucessória reta ou colateral, até o segundo grau, inclusive, de acordo com o artigo 4º da lei 9.434/97.

Daí que, diante desta restrição, o homem, usufruindo de toda a tecnologia até então conquistada, iniciou pesquisas envolvendo animais como doadores de órgãos para receptores humanos, em razão da possibilidade da preparação e manipulação prévia dos órgãos para evitar uma possível rejeição após o procedimento.

É o chamado xenotransplante, que na precisa definição de Marcelo Coelho é "o transplante de um órgão, ou tecido, ou células de um animal a outro de espécie distinta e é uma das grandes promessas da medicina para suprir as necessidades de órgãos, tecidos e células transplantáveis".1

Mas, para a realização do xenotransplante prevê-se a modificação genética do animal com a introdução de um ou vários genes humanos justamente para que não ocorra a rejeição futura de órgãos, transformando-o em animal transgênico. Indaga-se, então, se tamanha mutação encontra respaldo ético ou até mesmo legal, observando-se que, pela engenharia genética, com a finalidade específica de fins médicos, ocorre a desconfiguração da natureza do animal que, embora mantenha as mesmas características, os genes introduzidos irão carregar informações que irão diferenciá-lo, criando uma hibridagem diferenciada.

A legislação brasileira a respeito da experimentação animal permite a utilização de animais, desde que não sofram dor e que os resultados pretendidos e obtidos tragam ganho à vida e à saúde humana e animal. A lei 11.794/08 estabelece o procedimento para o uso científico dos animais, inclusive, quando for necessária, a morte por meios humanitários, com o mínimo sofrimento físico ou mental, com o rigoroso controle das Comissões de Ética no Uso de Animais (CEUAs).

Animal transgênico é aquele que experimentou mudança em seu patrimônio genético, em consequência da inoculação de um ou vários genes humanos com a finalidade de compatibilização na realização de transplantes. Tal prática hoje já é uma realidade no meio científico, principalmente com a utilização de porcos transgênicos, cuja anatomia de órgãos é bem semelhante à dos humanos. Não se trata de criação de quimeras da mitologia grega, representada pela cabeça de leão, corpo de cabra e rabo de serpente e sim de experimentos científicos voltados para proporcionar benefícios de saúde para o ser humano.

Não se pode olvidar, no entanto, que, se de um lado, ocorre a alteração no genoma do animal, configurando uma possível "humanização de animais", de outro, quando da realização do transplante, possivelmente também ocorrerá o impacto na estrutura e identidade do ser humano, com prováveis danos para ele e sua futura prole.

Em sentido contrário, discordando do procedimento, o Nuffield Council da Grã-Bretanha, em citação feita por Baestschi, assim se manifestou: "Certas pessoas consideram a produção de animais transgênicos um ato não natural que tenta alterar a natureza dos animais e viola a fronteira entre as espécies. De acordo com essa concepção, os genes têm um significado particular porque contêm a informação que determina o essencial da espécie. Deslocar esses genes é, portanto, destruir a integridade da espécie e criar hibridagens não naturais".2

É certo que os animais fazem parte do universo como criaturas que podem colaborar com a saúde e até mesmo com a sobrevivência do homem, porém há necessidade de se estabelecer parâmetros éticos para a realização do xenotransplante, que compreende uma complexa implicação científica, pois irá de certa forma modificar suas células, inclusive as germinativas, cuja transmissão irá atingir seus descendentes, fomentando uma verdadeira hibridação de homens e animais, sem falar ainda dos riscos de transmissão de doenças para os humanos, não só na geração presente, como também nas futuras.

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1 Marcelo Coelho, Mario. Xenotransplante - ética e teologia. São Paulo: Edições Loyola, 2004, p. 56.

2 Baertschi, Bernard. Ensaio filosófico sobre a dignidade. Tradução de Paula Silvia Rodrigues Coelho da Silva. São Paulo: Edições Loyola, 2009, p. 299.

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*Eudes Quintino de Oliveira Júnior é promotor de justiça aposentado/SP, mestre em Direito Público, pós-doutorado em ciências da saúde, advogado, reitor da Unorp e membro ad hoc da CONEP/CNS/MS.

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