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Responsabilidade civil do Estado em face das barbáries praticadas no Hospital Colônia no século XX

Trata-se de um artigo que tem como escopo demonstrar a responsabilidade civil do Estado frente às violações dos direitos humanos cometidos contra os pacientes do Hospital Colônia, situado na cidade de Barbacena/MG.

quarta-feira, 25 de abril de 2018

Atualizado às 07:10

1. Introdução

No ano de 1615 o escritor espanhol Miguel de Cervantes publicou sua maior obra-prima, o livro "El ingeniosohidalgo Don Quixote de la Mancha.", no qual escreveu: "A história é émula do tempo, repositório dos factos, testemunha do passado, exemplo do presente, advertência do futuro" (CERVANTES, 1615). Mesmo após 400 anos de existência dessa frase, ela ainda é atemporal, no qual Cervantes denota a importância da história como um instrumento de advertência à humanidade para que não se pratique as mesmas atrocidades praticadas em outrora.

É com base nesse entendimento que se justifica a importância da criação desse artigo, tendo em vista que tragédias como que ocorreu no Hospital Colônia nunca sejam esquecidas, tanto para que as vítimas e seus familiares tenham assegurados o direito de serem reparadas pelos danos sofridos quanto para que não se ocorra jamais episódios parecidos.

Além do objetivo de tornar as barbáries cometidas no Hospital Colônia conhecidas pelo maior número de pessoas, para que tenham a ciência de que dentro do Brasil, durante 50 anos, foram praticadas as piores formas de violação aos direitos humanos sob a tutela estatal, o artigo tem o intuito maior de analisar e demonstrar a responsabilidade que o Estado tem para com as vítimas e seus familiares pelas torturas, abusos e mortes praticados dentro de um recinto sob custódia daquele, que, em tese, deveria resguardar a segurança, dignidade e saúde dos pacientes do hospital.

Para se chegar ao objetivo principal foi necessária uma análise histórica sobre o que ocorria, quem praticava e quem ordenava a realização das sessões de torturas e mortes a pretexto da cura dos doentes mentais, que, muitas vezes, não apresentava nenhum transtorno psiquiátrico. Além disso, será realizado um demonstrativo dos principais direitos humanos violados, durante meio século de total desprezo a figura humana, entre os pavilhões que compunha o hospital.

Utilizando-se de pesquisas bibliográficas, tendo como o livro primordial para a desenvoltura do trabalho a obra: "Holocausto Brasileiro: Genocídio: 60 mil mortos no maior hospício do Brasil" escrito pela jornalista Daniela Arbex, bem como outros artigo científicos, análise da legislação brasileira e documentários, o trabalho que será exposto a seguir tem como escopo responder a problemática de que se o Estado tem responsabilidade e qual seria frente as atrocidades cometidas no Hospital Colônia, e como resolveria a questão da prescrição.

2. Holocausto brasileiro: História de uma das maiores tragédias institucionalizadas do Brasil

O termo "Holocausto Brasileiro" foi consolidado pela jornalista Daniela Arbex em seu livro de mesmo nome no qual ressuscita esse momento trágico da história brasileira que teve pouquíssima notoriedade. Este termo é designado diretamente ao Hospital Colônia que funcionou na cidade de Barbacena, em Minas Gerais, no qual era destinado, em tese, para tratamento de pessoas com deficiências mentais e psiquiátricos.

No ano de 1903 foi criado o primeiro hospital psiquiátrico de Minas Gerais, na cidade de Barbacena, que funcionava como um sanatório particular para tratamento de tuberculose. Poucos anos depois, em virtude da sua falência, instalou-se o Hospício de Barbacena, conhecido mais tarde como Hospital Colônia de Barbacena. O estabelecimento de tratamento psiquiátrico fica vinculado à Secretaria de Estado de Saúde do Estado de Minas Gerais (SES) pouco tempo depois de seu funcionamento, sendo, portanto, de natureza pública. Isto é, o Estado era responsável pela manutenção e funcionamento do hospital, tendo inclusive, a maioria dos funcionários ingressados através de concurso público e outros contratados diretamente pelo Estado, como os médicos em geral.

As práticas desumanas dos tratamentos médicos, as condições degradantes em que os pacientes viviam e o total desrespeito à dignidade da pessoa humana que dominou o hospital em seu auge, entre os anos de 1930 a 1980, deixou um saldo de 60 mil mortos e milhares de vidas interrompidas por décadas, com marcas de torturas, abusos sexuais e de traumas irreversíveis que impediram das vítimas voltarem a vida normal. E é acerca do que aconteceu dentro dos muros do Hospital Colônia de Barbacena o que discorrerá a seguir.

2.1 "Trem dos Loucos" e o perfil das vítimas

Em 1962, o escritor Guimarães Rosa lançou seu livro "Primeiras Estórias" composto por vários contos, entre eles "Sorôco, sua mãe, sua filha", no qual ele utilizou a expressão "trem de loucos" para representar os inúmeros trens que partiam de todo Brasil destinados a Barbacena e seu famoso hospital psiquiátrico.

Na verdade, o trem utilizado para transportar os supostos "loucos" era uma das maneiras que tinha à época de chegar até o hospital. Entretanto, o que revelava, verdadeiramente, era o início do sofrimento daquelas pessoas que foram obrigadas a adentrar no trem.

Quando a locomotiva desacelerava, já nos fundos do Hospital Colônia, os passageiros se agitavam. Acuados e famintos, esperavam a ordem dos guardas para descer, seguindo em fila indiana na direção do desconhecido. Muitos nem sequer sabiam em que cidade tinham desembarcado ou mesmo o motivo pelo qual foram despachados para aquele lugar.

Eles abarrotavam os vagões de carga de maneira idêntica aos judeus levados, durante a Segunda Guerra Mundial, para os campos de concentração nazista de Auschwitz. (ARBEX, 2017, p. 27)

O fim da viagem era a estação Bias Fortes, próximo ao hospital, que dava início a uma série de violações de direitos humanos, pois "ao receberem o passaporte para o hospital, os passageiros tinham sua humanidade confiscada" (ARBEX, 2017, p. 28). Logo na chegada, a triagem feita pelos servidores do hospital, separando os homens das mulheres, era constrangedor, despindo todos presentes, representando, para as mulheres à época, uma violação irreparável, além de os homens terem seus cabelos raspados. A identidade da maioria, ao entrar no hospital, inexistia, ganhando nomes dados pelos funcionários, devendo todos vestir uma farda azul que os rotulavam como loucos, confeccionado de um tecido fino, causando a morte de milhares de pacientes em virtude das baixas temperaturas do local, localizado na Serra da Mantiqueira, atingindo, não raramente, 8° celsius.

O Hospital Colônia era o destino dos "loucos" da época. Entretanto esse conceito não está nada relacionado aos transtornos mentais ou psíquicos que os pacientes possuíam. Uma vez que, cerca de 70% dos pacientes do Hospital Colônia não tinha nenhuma doença mental diagnosticada, mas sim, eram alcoolistas, prostitutas, homossexuais, epiléticos, ou pessoas que se rebelavam contra os conceitos morais da época e eram tidas como ameaças à ordem pública. Entretanto, o que faz, principalmente, o Hospital Colônia ser comparado as mazelas ocorridas na Segunda Guerra Mundial pelos nazistas são os outros tipos de pacientes que chegaram até o hospital para serem torturados e, a maioria, mortos.

Negros, mendigos, pessoas sem documentos, militantes políticos, desafetos ou rebeldes que incomodavam os coronéis que dominavam a política brasileira no início do século XX tinham como destino o hospital. Além disso, mães solteiras, meninas grávidas vítimas de estupros cometidos pelos seus patrões, filhas dos fazendeiros ricos que perdiam a virgindade antes do casamento, esposas que eram confinadas para que o marido pudesse viver com a amante, e, até mesmo, pessoas que apresentavam o "estado clínico" de tristeza tinham como semelhança o mesmo desfecho: serem internadas no Hospital Colônia.

Percebe-se, portanto, que além de ser um local para castigar ou vingar alguém que pusesse em risco a reputação ou a imagem daquele que detinha algum poder, seja político, social ou familiar, o hospital servia como um "desinfetante" social que retirava da rua as pessoas consideradas pela sociedade como vadios e corruptas dos costumes sociais. "A teoria eugenista, que sustentava a ideia de limpeza social, fortalecia o hospital e justificava seus abusos. Livrar a sociedade da escória, desfazendo-se dela, de preferência, em local que a vista não pudesse alcançar" (ARBEX, 2017, p. 26).

A consequência imediata da "limpeza social" foi a superlotação, que em trinta anos, passou a ocupar cinco mil pacientes onde era projetado caber duzentos. A partir disso, iniciou-se as torturas desenfreadas, os tratamentos com choque desmedidos e o extermínio.

2.2 Os horrores entre os pavilhões da Colônia

O Hospital Colônia era formado por dezesseis pavilhões independentes, no qual cada um abrigava um tipo de pacientes. Porém, em todos, a condição de viver era degradante e desumana, morrendo milhares de pacientes pelo ambiente insalubre que viviam, pelo frio que deviam suportar nas noites da Serra da Mantiqueira e de fome e sede no qual eram mal supridas. A escritora Daniela Arbex descreve como era a tentativa dos pacientes de se esquentarem, que quase sempre, no outro dia, haviam mortos:

Observou quando dois homens de jaleco branco embrulharam o morto num lençol, o décimo naquele dia, embora muitos outros agonizassem. Na tentativa de se aquecerem durante a noite, os pacientes dormiam empilhados, sendo comum que os debaixo fossem encontrados mortos, como naquele dia 7. (ARBEX, 2017, p. 23)

Alimentação pobre em nutrientes e escassez de água levava a muitos pacientes a desenvolverem problemas de saúde. A imagem dos pacientes bebendo água que corria pelos esgotos era comum, bem como os ratos e outros animais dessa natureza serem consumidos pelos moradores do hospital. "Fome e sede eram sensações permanentes no local onde esgoto que cortava os pavilhões era fonte de água. Nem todos tinham estômagos para se alimentar de bichos, mas os anos no Colônia consumiam os últimos vestígios de humanidade" (ARBEX, 2017, p. 47).

Além das péssimas condições de moradia que os pacientes tinham, eles eram submetidos à sucessivas sessões de eletrochoques como forma de tratamento médico para reverter o quadro clínico dos "loucos". Entretanto, o que parecia ser tratamento médico - admitido na medicina psiquiátrica - configurou-se como tortura, haja vista as inúmeras vezes no qual os pacientes passavam por essa situação, muitas vezes provada a desnecessidade, além da intensidade no qual era feita, sem tomada as devidas orientações necessárias para a sua realização por parte dos mandantes médicos, que, mesmo contra a vontade, os servidores do hospital eram obrigados a fazer o procedimento. Isto porque, participar dessas sessões de torturas serviam como promoção aos funcionários que almejavam melhorar sua situação dentro do hospício. Observa-se como ocorria, segundo a narração da escritora Daniela Arberx, após entrevista com os funcionários que trabalharam no hospital:

Recordava-se sempre do início das sessões, quando era segurado pelas mãos e pelos pés para que fosse amarrado ao leito. Os gritos de medo eram calados pela borracha colocada à força entre os lábios, única maneira de garantir que não tivesse a língua cortada durante as descargas elétricas. [...]

Para conseguir crescer profissionalmente dentro do hospital, os interessados precisavam passar por todas as etapas de atendimento na área de saúde, desde a aplicação de injeção até a realização de curativo e do temido eletrochoque. [...]

A colega Maria do Carmo, que também era da cozinha, foi a primeira a tentar. Contou mentalmente, um, dois, três e aproximou os eletrodos das têmporas de sua cobaia, sem nenhuma anestesia. Ligou a engenhoca na voltagem 110 e, após nova contagem, 120 de carga. O coração da vítima não resistiu. O paciente morreu ali mesmo, de parada cardíaca, na frente de todos. [...]

Imediatamente, os atendentes do hospital embrulharam o coitado num lençol, como se aquele não fosse cadáver. [...]

A segunda candidata se aproximou de outra cama e, trêmula iniciou a prova. O paciente escolhido era mais novo que o primeiro. Apresentava ter menos de vinte anos. [...] Não resistiu. Era a segunda morte da noite, e as aulas estavam só começando. (ARBEX, 2017, p.35-37)

Os usos dos eletrochoques eram tão desproporcionais que moradores da cidade de Barbacena e funcionários do hospital relataram que "a energia elétrica da cidade não era suficiente para aguentar a carga. Muitos morriam, outros sofriam fraturas graves." (ARBEX, 2017, p. 36). Além disso, os entrevistados ressaltaram a forma do procedimento, que era feito a seco, forçado, estando o paciente amarrado, sem poder esboçar nenhuma reação, assemelhando-se bastante a prática de tortura.

Sem mais se estender quanto a narrativa dos fatos que se sucederam no Hospital Colônia, é necessário frisar que muitos dos pacientes eram forçados a trabalhar nas plantações de milho, batata-doce, feijão, também nos consertos de vias públicas, limpeza de pastos, preparação de doce. Há registros que no ano de 1916, a metade da receita do hospital foi garantida pelo trabalho dos pacientes, que não contava com nenhum tipo de segurança na realização das atividades e muito menos remuneração. "Não pareciam doentes, mas escravos, embora a escravatura no Brasil tivesse terminado havia quase trinta anos" (ARBEX, 2017, p. 61).

No auge do hospital, entre 1930 a 1980, o período de maior lotação, não era raro a morte de pelo menos dezesseis pessoas por dia, pelos motivos variados já expostos nesse subtítulo. Os cadáveres geravam lucros, sendo vendidos para universidades de medicina de todo Brasil, sem nenhuma instituição de ensinou ou outro setor da sociedade questionar a sua procedência. Estipulam-se que cerca de 1.853 corpos foram comercializados entre 1969 a 1980. Ao final desses 50 anos de atrocidades cometidos pelo Hospital Colônia, que cessou quando as mídias e psiquiatras denunciaram o que ocorria entre os pavilhões do hospício, já se contabilizavam 60 mil mortes. Atualmente restam cerca de 200 sobreviventes do Holocausto Brasileiro.

3. Direitos humanos transgredidos no Hospital Colônia

O intuito desse tópico será restritamente de listar alguns direitos fundamentais que foram violados no decorrer dos anos de funcionamento do Hospital Colônia, levando em consideração, principalmente, a Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH), no qual, mesmo não vinculando diretamente os países, os direitos proclamados foram concebidos como inerentes à pessoa humana, devendo o Estado respeitar e salvaguardar os direitos humanos, independente da sua vinculação social e/ou ideológico que possui, não se esgotando os direitos na atuação deste, devendo ser utilizados instrumentos internacionais que podem ser acionados para assegurar a todos a eficácia dos diretos humanos (TRINDADE apud TOLENTINO, OLIVEIRA, 2009).

O Brasil assinou a DUDH no dia da realização da Assembleia da ONU que criou o respectivo documento, tornando-se um dos signatários da Declaração, assumindo a responsabilidade de assegurar todos os direitos individuais e sociais previstos perante a sociedade brasileira. O efeito jurídico da Declaração só teve repercussão no Brasil a partir da promulgação da Constituição Brasileira de 1988, no qual os direitos escritos foram tratados como direito fundamental a todos os brasileiros, protegidos com status de clausula pétrea. Entretanto, é importante afirmar que a dignidade da pessoa humana, encarada como princípio máximo do ordenamento jurídico brasileiro, independe da criação de norma que o legitime, assim como explica Wallace Feijó Costa, ao afirmar que "[...] a dignidade da pessoa humana não é criação da Lei Maior de 1988, ainda que tutelada por ela. Pelo Contrário, trata-se de um direito inato ao ser humano, independente de qualquer formalização para fins de seu reconhecimento [...]" (FEIJÓ, 2014, p. 296).

Assim, independente de estar previsto nas Constituições em vigor na época em que ocorreu as transgressões aos direitos humanos, o Estado Brasileiro tinha o total dever de assegurar a todos os cidadãos os seus direitos.

O direito de maior importância violado pelo Hospital Colônia foi o presente no art. 3°, do DUDH: o direito à vida, tendo sido o local responsável pela morte de 60 mil pessoas. Ele está diretamente relacionamento ao princípio da dignidade humana e a outros direitos violados, no qual preserva-se não somente o direito de sobreviver, mas o de viver bem, com integridade física, moral e mental respeitada. Porém, no Hospital Colônia não houve um mínimo de respeito à vida e os outros direitos que partem dele, como liberdade, saúde e segurança, estando os pacientes expostos a todos os tipos de torturas, abusos e restrições de sua liberdade. Nesse sentindo, Wallace Feijó explica:

Não havia qualquer respeito à vida naquele local. Como consequência inevitável, também não haveria que se falar em direito à vida. Os seres humanos internados no Colônia foram totalmente despidos de seu caráter humano. Eram tratados como objetos a mercê das vontades daqueles que exerciam uma função pública e representava o Estado. Difícil argumentar que se tratava apenas da aplicação dos métodos de tratamento disponíveis na época, e não de tortura e homicídio realizado sob o manto do Poder Público. (FEIJÓ, 2017, p. 299)

Concomitantemente a violação do direito à vida, no qual decorre muitos outros a partir dele, deve-se ressaltar que o art. 4°, do DUDH foi também desrespeitado, uma vez que os pacientes trabalhavam de forma escrava, sem remuneração ou condição digna para exercer a atividade no qual eram obrigados; o art. 9°, do mesmo dispositivo, que proíbe a prisão, exílio ou detenção injusta, foi totalmente contrariado, pois a maioria dos pacientes foram internados de forma inexplicável e sem apresentar nenhum transtorno mental, apenas no ímpeto de saciar a vontade de algum terceiro que marginalizava tal pessoa; além desses, pode-se citar quase todos os 30 artigos da DUDH como violados, demonstrando, portanto, a perversidade no qual funcionou o Hospital Colônia, sem nenhuma demonstração, em mais de 50 anos de práticas contrárias aos direitos humanos, de respeito para com o ser humano e a seus direitos inerentes.

Portanto, se listar todos os direitos violados, à luz da Declaração Universal dos Direitos Humanos e da Constituição Federal em vigor, fugiria do tema proposto por esse artigo. Entretanto, o tópico tem o intuito de demonstrar que, direitos básicos assegurados à todos desde 1948, quando foi assinado a Declaração, não foram respeitado, mesmo após 30 anos de sua feitura, tendo o Estado ciência dos acontecimentos e conhecimento do seu dever.

4. Responsabilidade civil do Estado pelos atos cometidos no Hospital Colônia

A responsabilidade civil do Estado, ou seja, o dever de indenizar por algum ato praticado pelos agentes estatais, no exercício do seu dever, que lese o direito de um cidadão é discutido desde a era dos Estados absolutistas, quando, na época vigorava a irresponsabilidade do Estado, em que este não seria jamais responsabilizado pelos seus atos, tendo em vista que detinha o poder absoluto advindo de um poder divino.

Entretanto, a concepção de irresponsabilidade do Estado com o surgimento dos pensamentos iluministas e ideias republicanas invalidaram tal posicionamento. É importante frisar que "o mecanismo de responsabilidade civil visa, essencialmente, à recomposição do equilíbrio econômico desfeito ou alterado pelo dano " (AGUIAR DIAS apud BRAGA NETTO, 2017, p. 35). Logo, qualquer ente ou pessoa que cause algum dano ao patrimônio, à moral, à estética de outrem deve ter o dever de reparar. E seguindo esse entendimento, surgiu a responsabilidade subjetiva, explicado por Felipe Braga Netto:

É a responsabilidade clássica, tradicional, amplamente conhecida. A responsabilidade civil subjetiva, de índole clássica, atualmente regida pelo art. 186 do Código Civil, tem quatro pressupostos: a) ação ou omissão; b) dano; c) nexo causal; d) culpa. Quando falamos em culpa, em responsabilidade subjetiva, estamos nos referindo tanto a dolo quanto à culpa em sentido estrito (negligência, imperícia e imprudência). (BRAGA NETTO, 2017, p. 109).

Dessa forma, o Código Civil de 1916 adotou a responsabilidade civil subjetiva - também denominado culpa civilista - como teoria que regeria os atos comissivos praticados pelo Estado que causaria dano a outrem. Logo, para alguém, que houve um direito lesado pelo Estado, conseguisse indenização, deveria provar que aquela atitude estatal possuía culpa, sendo bastante difícil de ocorrer na prática.

Por fim, houve a criação da responsabilidade civil objetiva, no qual, diferentemente do que se exige na responsabilidade subjetiva, naquela não necessita comprovação de culpa para que o Estado possa indenizar. Carlos Roberto Gonçalves explica que:

Não se exige, pois, comportamento culposo do funcionário. Basta que haja o dano, causado por agente do serviço público agindo nessa qualidade, para que decorra o dever do Estado de indenizar. [...]

Essa responsabilidade abrange as autarquias e as pessoas jurídicas de direito privado que exerçam funções delegadas do Poder público, como as permissionárias e concessionárias do serviço público. (GONGALVES, 2017, p. 156)

O Código Civil de 2002 consolidou tanta a responsabilidade subjetiva quanto objetiva, estando as duas em vigor atualmente, porém sendo utilizadas em determinados tipo de casos. Entretanto, quanto a responsabilidade do Estado, o Código Civil consolida como sendo objetiva, conforme em seu art. 43, verbis:

As pessoas jurídicas de direito público interno são civilmente responsáveis por atos dos seus agentes que nessa qualidade causem danos a terceiros, ressalvado direito regressivo contra os causadores do dano, se houver, por parte destes, culpa ou dolo.

Além disso, a Constituição Federal de 1988, transcreve em ser art. 37, §6°, o texto do artigo citado acima, porém acrescenta que a responsabilidade objetiva do Estado é fundamentada na Teoria do Risco Administrativo, no qual afasta a obrigação de reparar, desde que se configure as excludentes de culpa exclusiva da vítima, fato de terceiro e caso fortuito ou força maior.

Portanto, sabido que a responsabilidade do Estado é objetiva, à luz do Código Civil e Constituição Federal, inicia-se a abordagem do tema sobre os atos cometidos pelos funcionários públicos no Hospital Colônia, buscando compreender qual a responsabilidade do Estado sobre as vítimas.

4.1 Reparação quanto aos atos comissivos e omissivos do Estado

É necessário que haja a divisão para que se melhor entenda a responsabilidade do Estado em cada caso que ocorreu no Hospital Colônia. Quanto aos atos comissivos praticado pelo Estado, este muitas vezes, em sua defesa alega que não havia conhecimento sobre as atrocidades que ocorria dentro do hospital, devendo não ser responsabilizado. Entretanto, esse argumento é totalmente refutável quando se observa que muitos dos pacientes que foram torturados e mortos no hospício foram levados pelas próprias autoridades - servidores e representantes do Estado -, como delegados que exigiram a ida de vadios, mendigos e pobres ao hospital, fundamentado na interpretação conturbada da Lei das Contravenções Penais.

Ademais, a ação do Estado também é notável nas práticas, cometidos pelos seus agentes públicos, de tratamentos cruéis, como o uso discriminado de eletrochoques, a prática de estupro recorrente contra as pacientes mulheres, agressões físicas, entre outros abusos que levaram a morte de 60 mil pessoas.

Portanto, quanto a essas práticas, é claro afirmar que o Estado tem dever de indenizar, com base na responsabilidade objetiva, aos familiares das vítimas mortas e as vítimas sobreviventes, devendo reparar todos os danos morais, estéticos que sofreram. Além disso, o Estado é provável devedor de indenização por perda de uma chance, uma vez que se configura que, a maioria dos pacientes, tiveram as suas vidas perdidas, planos que estavam próximo a se concretizarem foram desfeitos. Dessa forma, pessoas que passaram 15, 20, 30 anos aprisionados no Hospital sem nenhuma justificativa, no qual desses muitos possuíam empregos e perspectivas de vida, fazem jus a receberem, além de indenização por danos morais, estéticos, as indenizações por perda de uma chance.

Entretanto, quando se discorre sobre os atos omissivos do Estado, nasce uma grande polêmica quanto a sua responsabilidade, se objetiva ou subjetiva. Isso ocorre porque, conforme a doutrina e jurisprudência majoritária, em alguns casos de omissão estatal, como a omissão genérica, que é aquela que o Estado tem o dever de agir, mas se ausenta (poder de polícia e fiscalização) a responsabilidade deve ser subjetiva, logo deve-se provar a culpa para que ocorra a indenização.

Porém, o caso do Hospital Colônia é diferente, uma vez que o Estado tinha o dever de salvaguardar aqueles pacientes que estavam sob sua custódia, através do poder de guarda, e não o fez. A ausência de condições mínimas de sobrevivência, como vestimentas adequadas para o clima local, alimentos básicos e água potável, condições de higiene retrata o total abandono daqueles pacientes que estavam sob a guarda e proteção do Estado. E é nesse sentido que surge a figura da omissão específica, no qual, nesses casos de total desprezo do Estado sobre seus assistidos, a responsabilidade é objetiva, independendo de culpa para gerar o dever indenizatório, como explica Felipe Braga Netto:

A pergunta fundamental nos parece esta: sem omissão estatal o dano teria ocorrido? Não precisa ser culposa a omissão; de omissão culposa, como de indenização, trata o artigo 186 do Código Civil, em cláusula geral da ilicitude culposa. O estado responde sem culpa, agindo ou se omitindo, desde que configurado o nexo causal entre o dano e sua atividade (BRAGA NETTO, 2008, p. 248)

Nesse sentido, a jurisprudência se declina para condenar o Estado a pagar indenização, independe de sua culpa, nos casos em que ocorre algum dano às pessoas que estavam sob sua tutela, como, por exemplo, na morte de presos dentro dos presídios.

O Agravo Regimental no Agravo Instrumental n°. 1393002/RJ, no caso de morte de uma mulher em um hospital psiquiátrico, a União foi condenada a pagar 1.962.000,00 de reais a mãe da vítima. O acórdão demonstra a responsabilidade que o Estado possui em resguardar o paciente, dando-o segurança e condições básicas de sobrevivência e higiene. E, caso isso não ocorra, ou venha o paciente a morrer, deve ser totalmente responsável por eventuais indenizações. Abaixo está um trecho do acórdão:

Os elementos carreados aos autos não deixam dúvidas de que houve falha na prestação do serviço hospitalar prestado à paciente, eis que a Administração Pública deixou de tomar as precauções que lhe competiam, falhando claramente em seu dever de vigilância. Ao receber um paciente para tratá-lo, a Administração está obrigada a preservar sua integridade física, a atendê-la com diligência e prudência, devendo, para isso, empregar todos os meios necessários. Descumprida a obrigação, que não se dissocia do dever de vigilância e proteção da equipe de médicos e funcionários do hospital, exsurge o dever de indenizar.

Dessa forma, é evidente que o Estado, independente de provar sua culpa, tem o dever de indenizar, tanto pelos atos comissivos praticados contra os pacientes quanto pelos atos omissivos que degradaram a integridade física e levaram até a morte desses. Observando-se os fatos, não há que se fala em nenhum tipo de excludente para afastar a obrigação de reparar os eventuais danos.

4.2. Imprescritibilidade da pretensão indenizatória pela tortura e morte

É necessário abordar sobre a provável prescrição do direito indenizatório que se pode pleitear na justiça, uma vez que, segundo art. 206, §3°, do Código Civil, prescreve em 3 anos a pretensão de reparação civil. Entretanto, o tema no qual está se abordando no artigo vai muito além do que qualquer reparação civil, uma vez que foi o próprio Estado que violou os direitos humanos e praticou milhares de mortes e torturas. Wallace Feijó discorre sobre afirmando:

Assim, não há que se falar em prazo prescricional nos casos de afronta aos direitos fundamentais, sobretudo nos casos de tortura. Deve-se analisar a questão dos pacientes mentais submetidos à tortura em consonância com o previsto para perseguidos políticos torturados durante o período de exceção no Brasil. [...]

O mesmo raciocínio, por óbvio, se aplica aos seres humanos internados e submetidos a práticas semelhantes pelos torturados políticos, sob o engodo de que estariam recebendo tratamento médico. (FEIJÓ, 2017, p. 306).

Com base nesse pensamento e em consonância com a Constituição que de forma expressa proíbe a tortura e eleva a dignidade da pessoa humana como primazia do Estado Democrático de Direito, o STJ já reconheceu a "inviabilidade da aplicação do instituto da prescrição em face de atos de tortura cometidos durante o regime de exceção (ditadura) pelo fundamento de se configurar uma violação dos diretos fundamentais, dentro os quais, a título de exemplo, o AgRg no Ag 131062/RS" (FEIJÓ, 2014).

5. Conclusão

A responsabilidade do Estado frente aos crimes e atrocidades praticados dentro do Hospital Colônia é inegável, tendo em vista que, da mesma forma como foi no período ditatorial brasileiro, em um certo lapso temporal e em um local específico foi permitido a prática de tortura e homicídio. Além disso, o Estado não cumpriu com seu dever de resguardo e proteção aos internados, deixando-os morrer de frio, fome e sede, retirando-os a dignidade no qual possuíam.

Independente da Constituição Federal de 1988 no qual consolidou todos os direitos fundamentais, os direitos humanos estão inerentes a pessoa e independe de qualquer legitimação em dispositivo normativo. Portanto, os atos praticados dentro do Colônia foram crimes institucionalizados, tendo como responsável o próprio Estado, sendo imprescritíveis em razão da gravidade e das consequências dos atos, devendo ser todos os familiares e sobreviventes do Holocausto Brasileiro reparados, pecuniariamente e com pedidos formal de desculpa do Estado, para minimizar, mas nunca apagar, esse capítulo triste da história brasileira.

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ARBEX, Daniela. Holocausto Brasileiro: Genocídio: 60 mil mortos no maior hospício do Brasil. 18° ed. São Paulo: Geração, 2017.

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado, 1988.

CERVANTES, Miguel de. Dom Quixote. 1° ed. São Paulo: Penguin, 2012.

FEIJÓ COSTA, Wallace. Responsabilidade do Estado em face de políticas públicas ofensivas aos direitos fundamentais: internação de pacientes com transtornos mentais. R. Defensoria Pública da União, Brasília, DF, n. 7, p. 291-314, jan-dez. 2014.

NETTO, Felipe P. Braga. Responsabilidade Civil. São Paulo: Saraiva, 2008.

NETTO, Felipe Braga. Manual da Responsabilidade Civil do Estado. 4° ed. Salvador: JusPodivm, 2017.

TOLENTINO, Zelda Tomaz; OLIVEIRA, Liziane Paixão Silva. Um trem de doido: O Holocausto brasileiro sob a perspectiva dos direitos humanos. Disponível em: Acesso em: 19 out. 2017.

____. Lei 10.406/2002, de 10 de janeiro de 2002. Diário Oficial da União. Disponível em: Clique aqui. Acesso em: 29 out. 2017.

GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro. 12° ed. São Paulo: Saraiva, 2017.

ONU. Declaração Universal dos Direitos Humanos. Disponível em: Clique aqui. Acesso em: 29 out. 2017

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*Wilson Seraine da Silva Neto é estudante do curso de Direito do Instituto de Ciências Jurídicas e Sociais Professor Camillo Filho (ICF).

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