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Precisamos falar sobre ICOs

Quanto mais transparentes, claras e objetivas as informações, mais qualidade o Brasil terá em seu mercado, seja ele o tradicional "mercado de capitais", seja este novo leque que se abre com as criptomoedas/criptoativos e os ICOs.

terça-feira, 17 de julho de 2018

Atualizado em 24 de setembro de 2019 18:34

A sigla ICO foi inspirada na expressão inglesa "IPO". No significado original, IPO (do inglês Initial Public Offering) é utilizado para indicar a estreia de uma companhia em determinada bolsa de valores - ou a primeira vez que as ações emitidas pela companhia são disponibilizadas para negociação junto ao público. No caso de ICOs (Initial Coin Offering), a expressão descreve ofertas para captação de recursos visando o financiamento de novos empreendimentos relacionados a criptomoedas (ou criptoativos).

O primeiro ICO de que se tem notícia foi realizado em 2013. Na época, o empreendedor J.R. Willet (conhecido por ter escrito o aclamado "segundo White Paper sobre Bitcoin"), disponibilizou o endereço de sua carteira de Bitcoins no site Bitcoin Talk para captar recursos a fim de financiar o protocolo Mastercoin (atual OMNI), que adiciona novas funcionalidades à Blockchain (o "livro caixa" do Bitcoin). A captação foi expressiva: Willet captou 5.100 Bitcoins, que então valiam cerca de 500 mil Dólares.

O caso Mastercoin foi o pontapé de um fenômeno sem precedentes, que cresceu de forma surpreendente nos anos recentes: os ICOs. Para se ter ideia do volume que tais transações representam, somente em 2018 foram realizados mais de 540 ICOs mundialmente, com captação superior a 12 bilhões de Dólares (fonte: Site CoinSchedule, 4 de julho de 2018).

Existe uma ampla diversidade de formas e características que um ICO pode ter, mas geralmente são ofertados 3 tipos de tokens:

(i) Equity tokens, quando são ofertados tokens semelhantes a ações de uma companhia, dando aos investidores o direito de participar de resultados da empresa emissora (daí o uso da expressão "equity" ou a "parte que cada acionista tem de uma empresa", em tradução livre).

(ii) Securities tokens, que se assemelham ao que a legislação pátria batizou de "contratos de investimento coletivo" (espécie de valores mobiliários, conforme Art. 2º, IX da lei 6.385/76). Este nome decorre justamente do fato destes tokens darem aos investidores direito a determinada rentabilidade sobre os valores investidos, como ocorre com valores mobiliários.

(iii) Utility tokens. Diferentemente dos outros 2 tipos, estes tokens dão ao investidor acesso a um produto ou serviço, sem envolver participação nos lucros ou qualquer rentabilidade. Um exemplo é o ICO da Filecoin, que captou 257 milhões de Dólares para investir em uma plataforma de armazenamento de dados em nuvem. Neste caso, a contrapartida pelo investimento é o recebimento de tokens que podem ser utilizados para adquirir espaço de armazenamento de dados.

O termo "token", a propósito, possui acepção extremamente ampla, podendo representar desde objetos físicos em si (como, por exemplo, os tokens físicos para armazenamento de criptomoedas, que se assemelham a pen drives), ou um código ou endereço web fornecido pelo ofertante.

Diante de tantas características diversas, é necessário que se faça uma profunda análise antes do potencial investidor decidir se irá aplicar suas economias em um ICO.

Por exemplo, a depender das características, as ofertas dos 2 primeiros tipos de token acima citados podem caracterizar "oferta pública de valores mobiliários". Isso porque nos 2 casos há esforço de venda junto ao público, estando presentes características previstas do Art. 2º da lei 6.385/76. Assim, há que se atentar para a necessidade de se obter o competente registro (ou dispensa de registro) de oferta pública de valores mobiliários, conforme normas da Comissão de Valores Mobiliários (CVM).

Dentre outras normas, há que se atentar para o disposto na Instrução CVM 400/03, que prevê hipóteses e requisitos para registro de uma oferta, ou condições para dispensa de registro ou de requisitos.

Como a CVM vem se manifestando em diversas ocasiões, o fato de ainda não haver uma deliberação ou instrução específica para criptomoedas e/ou ICOs não implica afastamento das regras aplicáveis existentes, que devem ser observadas e seguidas.

Daí a necessidade de ICOs serem sempre analisados de forma profunda, tanto do ponto de vista jurídico como econômico: os whitepapers, documentos básicos de tais modalidades de captação de recursos, devem ser lidos com cautela, e é importante atentar para o histórico da empresa, dos seus executivos, e fatores de risco, além dos usos e aplicações de tal token, criptomoeda/criptoativo.

Do ponto de vista dos empreendedores, é importante, além das normas pátrias, que se atentem para a questão da territorialidade: os ICOs, por sua natureza digital e inovadora, podem ser realizados em diversos países simultaneamente, sem que haja uma bolsa de valores ou local centralizado onde os negócios são realizados. Portanto, um ICO pode atrair a competência de entidades reguladoras de países diversos, sendo necessário, em tese, o registro de tais ofertas nas mais diversas jurisdições onde são realizadas.

Dentre outros motivos, tais fatos justificam a cada vez maior atenção que a CVM vem dispensando ao tema: desde 2017, cresceu o número de alertas, eventos e entrevistas com diretores, gerentes e funcionários da Autarquia tratando do assunto.

A CVM chegou a estimar que divulgaria em maio de 2018 novo material relativo a investimentos indiretos em criptomoeda. Passado o mês de junho, o mercado ainda aguarda manifestação oficial da Autarquia.

Como ocorreu na época das ofertas dos condo-hotéis, é necessário que a CVM analise diversos casos antes de divulgar material mais detalhado sobre o assunto, o que reforça a importância de que agentes deste mercado compareçam à CVM e aos diversos eventos que vêm sendo realizados para debater o tema e auxiliar a Autarquia a formar entendimento sobre a matéria.

Mais do que isso, tais atitudes ajudam a dotar investidores de mais conhecimento, contribuindo para a formação de um mercado mais maduro e transparente, o que, por sua vez, permite maior qualificação dos investidores.

Pelo exposto, fica claro que o tema dos ICOs ainda carece de muito debate e estudo, tanto no Brasil quanto no exterior. Para melhor compreensão do tema, é imprescindível que as entidades e agentes envolvidos, inclusive empresas ofertantes, tratem o tema de forma aberta, com participação da sociedade, investidores e órgãos reguladores aplicáveis.

Para que haja avanços, é imprescindível uma participação efetiva dos agentes de mercado, seja mediante publicação de materiais esclarecedores, cooperação com órgãos reguladores, e a realização de debates e eventos visando a educação de potenciais investidores sobre o tema.

Quanto mais transparentes, claras e objetivas as informações, mais qualidade o Brasil terá em seu mercado, seja ele o tradicional "mercado de capitais", seja este novo leque que se abre com as criptomoedas/criptoativos e os ICOs.

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*Leonardo Ugatti Peres é sócio de Azeredo Santos & Ugatti Peres - Sociedade de Advogados, escritório com atuação nas áreas de mercado de capitais e direito societário.

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