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ABC do CDC

Direito do Consumidor no dia a dia.

Rizzatto Nunes
Continuo a análise dos direitos básicos dos consumidores. Hoje com a primeira parte da análise dos princípios gerais da atividade econômica, fixados na Constituição Federal e que afetam diretamente as relações de consumo e o direito do consumidor.  Desde logo, é importante lembrar que os princípios e as normas constitucionais têm de ser interpretados de forma harmônica, ou seja, é necessário definir parâmetros para que um não exclua o outro e, simultaneamente, não se autoexcluam.  Isso, todavia, não impede que um princípio ou uma norma limite a abrangência de outro princípio ou norma. Assim, por exemplo, deve parecer evidente ao intérprete que "dignidade da pessoa humana" é um princípio excludente de qualquer outro que possa atingi-lo. E, também, essa constatação não elimina outros princípios e normas; apenas os delimita nos exatos termos em que devem ser interpretados.  Realcemos, então, alguns princípios estampados na Carta Magna para contrapô-los a outros que interessam diretamente à questão das relações de consumo. Guardemos em mente a garantia absoluta da "dignidade da pessoa humana", depois a dos "valores sociais do trabalho e valores sociais da livre iniciativa"; a da construção de "uma sociedade livre, justa e solidária"; a da erradicação da "pobreza e da marginalização e da redução das desigualdades sociais e regionais"; a da promoção do "bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação", e ainda a da igualdade de todos "perante a lei, sem distinção de qualquer natureza", com a garantia da "inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade".  Agora, remetamo-nos diretamente aos princípios gerais da atividade econômica, capítulo importante do título que cuida da ordem econômica e financeira. Vejamos o art. 170, seus incisos e parágrafo único - que terá de ser examinado à luz dos princípios acima mencionados (e em consonância com eles).  Dispõe o art. 170, in verbis: "Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios: I - soberania nacional; II - propriedade privada; III - função social da propriedade; IV - livre concorrência; V - defesa do consumidor; VI - defesa do meio ambiente; VII - redução das desigualdades regionais e sociais; VIII - busca do pleno emprego; IX - tratamento favorecido para as empresas de pequeno porte constituídas sob as leis brasileiras e que tenham sua sede e administração no País. Parágrafo único. É assegurado a todos o livre exercício de qualquer atividade econômica, independentemente de autorização de órgãos públicos, salvo nos casos previstos em lei".  O art. 170, como um todo, estabelece princípios gerais para a atividade econômica. Estes têm de ser interpretados, também, como já o dissemos, de modo a permitir uma harmonização de seus ditames. Acontece que não basta examinar os princípios estampados nos nove incisos dessa norma apenas entre si mesmos. É necessário adequá-los àqueles outros aos quais chamamos a atenção.  O caput do art. 170 está já em harmonia com aqueles outros princípios. Dos nove princípios instituídos nos incisos, quatro nos interessam em nosso exame. São eles: propriedade privada; função social da propriedade; livre concorrência; defesa do consumidor, e a possibilidade de exploração da atividade econômica - com seu natural risco - prevista no parágrafo único do art. 170. Ora, a Constituição Federal garante a livre iniciativa? Sim. Estabelece garantia à propriedade privada? Sim. Significa isso que, sendo proprietário, qualquer um pode ir ao mercado de consumo praticar a "iniciativa privada" sem nenhuma preocupação de ordem ética no sentido da responsabilidade social? Pode qualquer um dispor de seus bens de forma destrutiva para si e para os demais partícipes do mercado? A resposta a essas duas questões é não.  Os demais princípios e normas colocam limites - aliás, bastante claros - à exploração do mercado. É verdade que a livre iniciativa está garantida. Porém, a leitura do texto constitucional define que: a) o mercado de consumo aberto à exploração não pertence ao explorador; ele é da sociedade e em função dela, de seu benefício, é que se permite sua exploração; b) como decorrência disso, o explorador tem responsabilidades a saldar no ato exploratório; tal ato não pode ser espoliativo; c) se lucro é uma decorrência lógica e natural da exploração permitida, não pode ser ilimitado; encontrará resistência e terá de ser refreado toda vez que puder causar dano ao mercado e à sociedade; d) excetuando os casos de monopólio do Estado (p. ex., do art. 177), o monopólio, o oligopólio e quaisquer outras práticas tendentes à dominação do mercado estão proibidos; e) o lucro é legítimo, mas o risco é exclusivamente do empreendedor. Ele escolheu arriscar-se: não pode repassar esse ônus para o consumidor.  Essas considerações são decorrentes da interpretação dos princípios já expostos e que devem ser harmonizados.  *** Continua na próxima semana.
Continuo a análise dos direitos básicos dos consumidores. Hoje com a terceira parte da questão da informação.  Lembro que a informação, ou melhor, o direito de informação, na Constituição Federal pode ser contemplado sob três espécies: a) o direito de informar; b) o direito de se informar; c) o direito de ser informado1.  O direito de se informar cuidei na semana passada e de informar na semana anterior. Falta cuidar do direito de ser informado.  O direito de ser informado No âmbito constitucional o direito de ser informado é menos amplo do que no sistema infraconstitucional de defesa do consumidor. O direito de ser informado nasce, sempre, do dever que alguém tem de informar.  Basicamente, o texto magno estabelece o dever de informar que têm os órgãos públicos. No que tange ao dever de informar das pessoas em geral e das pessoas jurídicas com natureza jurídica privada, é o Código de Defesa do Consumidor que estabelece tal obrigatoriedade ao fornecedor. Tendo em vista que a Lei n. 8.078/90 nasce das determinações constitucionais que obrigam a que seja feita a defesa do consumidor, implantada em meio a uma série de princípios, todos interpretados e aplicáveis de forma harmônica, não resta dúvida de que o dever de informar só podia ser imposto ao fornecedor.  A Carta Magna regra o dever dos órgãos públicos. Essa obrigação nasce do estabelecido no inciso XXXIII do art. 5º, em consonância com o princípio da publicidade do caput do art. 37.  Com efeito, dispõem tais normas: "Art. 5º (...) XXXIII - todos têm direito a receber dos órgãos públicos informações de seu interesse particular, ou de interesse coletivo em geral, que serão prestadas no prazo da lei, sob pena de responsabilidade, ressalvadas aquelas cujo sigilo seja imprescindível à segurança da sociedade e do Estado". "Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte:" (grifamos).  Vê-se, pela leitura dos dois dispositivos, que os órgãos públicos têm não só a obrigação de prestar informações como a de praticar seus atos de forma transparente, atendendo ao princípio da publicidade. A exceção fica por conta das hipóteses em que o sigilo seja necessário para o resguardo da segurança da sociedade e do Estado, como acontece nos casos em que a informação possa causar pânico.  A publicidade prevista no caput do art. 37 impõe ao Poder Público, nos seus atos regulares, que aja aberta e transparentemente. O Superior Tribunal de Justiça já se manifestou a esse respeito, dizendo que tal princípio impede que a Administração avalie, mediante procedimento secreto, os antecedentes e a conduta de candidato em concurso público, para alijá-lo da disputa2.  Dessa maneira, no sistema constitucional, o dever de informar - donde decorre o direito de ser informado - está dirigido aos órgãos públicos.  Além disso, como a informação está ligada ao princípio da moralidade, é de extrair daí o conteúdo ético necessário que deve pautar a informação fornecida. E ele é o valor ético fundamental da verdade.  A informação não pode faltar com a verdade daquilo que informa de maneira alguma, quer seja por afirmação, quer por omissão. Nem mesmo manipulando frases, sons e imagens para, de maneira confusa ou ambígua, iludir o destinatário da informação. __________ 1 Cf. Vidal Serrano Nunes Júnior, A proteção constitucional da informação e o direito à crítica jornalística,  São Paulo: FTD, 1997. p. 31 e s. 2 RDA 184/124.
Continuo a análise dos direitos básicos dos consumidores. Hoje com a segunda parte da questão da informação. Lembro que a informação, ou melhor, o direito de informação, na Constituição Federal pode ser contemplado sob três espécies: o direito de informar; o direito de se informar; o direito de ser informado1. O direito de informar cuidei na semana passada. Falta cuidar do direito de se informar e do direito de ser informado. O direito de se informar O direito de se informar é uma prerrogativa concedida às pessoas. Decorre do fato da existência da informação. O texto constitucional, no inciso XIV do art. 5º, assegura primeiramente esse direito no que respeita à informação em geral, mas garante o sigilo da fonte, quando necessário ao exercício profissional. Esse é um limite. Mas há outros: o do inciso X, já estudado (no artigo anterior) e o do inciso XXXIII, que ainda examinaremos. Quando se trata de informação relativa à própria pessoa, a Constituição Federal garante-lhe inclusive um remédio processual específico: o habeas data, tratado no inciso LXXII do art. 5º. Mas vejamos cada um desses dispositivos. Inciso XIV: "é assegurado a todos o acesso à informação e resguardado o sigilo da fonte, quando necessário ao exercício profissional". Sabe-se que o exercício de um direito subjetivo significa a possibilidade da exigência de alguém. Isto é, a prerrogativa de um corresponde à obrigação de outro. Assim, quando a Constituição garante a todos o acesso à informação, tem-se de entender que essa informação deve estar com alguém que terá a obrigação de fornecê-la. Já falamos do direito de informar no artigo anterior. Trata-se de uma garantia de comunicação social (com os limites também já abordados). Uma vez produzida, essa informação torna-se pública, social, pertencendo a toda a coletividade. É desse caráter difuso da informação que decorre o direito de todos receberem-na - e exigirem-na -, previsto no inciso em comento. O acesso à informação, todavia, não é absoluto: encontra limites no próprio inciso XIV e no inciso X, já comentado. Com efeito, é possível exigir a informação de quem a detém, desde que sejam respeitadas a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, da maneira como se deve entender tais outras garantias. Quanto ao sigilo profissional, dois aspectos devem ser abordados: de um lado, a efetiva garantia do sigilo nos casos em que profissionalmente ela seja necessária ou signifique a garantia de outros direitos. Por exemplo, no caso do sigilo de fonte do jornalista, ela é necessária; na hipótese do psicanalista e seu cliente, ela é necessária e representa também a garantia do direito à intimidade; de outro lado, o sigilo da fonte não pode significar o acobertamento de violações a garantias constitucionais, especialmente aquelas entendidas como princípios fundamentais ou supranormas, tais como a garantia do direito à vida e à dignidade da pessoa humana. Dizendo em outros termos, ainda que o sigilo profissional esteja previsto como possibilidade de garantia, é necessário compreender sua correlação com as garantias constitucionais primeiras. *** Continua na próxima semana ____________________  1 Cf. Vidal Serrano Nunes Júnior, A proteção constitucional da informação e o direito à crítica jornalística,  São Paulo: FTD, 1997. p. 31 e s.
Continuo a análise dos direitos básicos dos consumidores. Hoje analiso a questão da informação.  Com efeito, a informação, ou melhor, o direito de informação, na Constituição Federal pode ser contemplado sob três espécies: a) o direito de informar; b) o direito de se informar; c) o direito de ser informado1.  O direito de informar é basicamente uma prerrogativa conferida pela Carta Magna; os outros dois são obrigações e bastante relevantes para a questão do consumidor. Examinemos cada um deles. O direito de informar  O direito de informar é uma prerrogativa constitucional (uma permissão) concedida às pessoas físicas e jurídicas. Vale ler o texto magno. É o dispositivo do caput do art. 220 que dispõe, in verbis: "A manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo não sofrerão qualquer restrição, observado o disposto nesta Constituição".  Essa norma é solidificada por outra pétrea das garantias fundamentais. A do inciso IX do art. 5º, que dispõe, in verbis: "é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença".  Esses dispositivos, todavia, não são absolutos, uma vez que o direito de informar encontra limites no próprio texto constitucional.  É no mesmo art. 5º que esses limites aparecem. Inicie-se pelo inciso X. Lembremos sua dicção: "são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação".  "São invioláveis", diz o texto. Logo, o direito de informar não pode transpor os limites estabelecidos nessa norma. Não pode violar a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas.  Como decorrência do direito de informar, a norma fundamental deixou garantido o direito da informação jornalística, e já nesse aspecto até mesmo declarou certos limites. Leia-se a propósito o § 1º do citado art. 220, que dispõe: "§ 1º Nenhuma lei conterá dispositivo que possa constituir embaraço à plena liberdade de informação jornalística em qualquer veículo de comunicação social, observado o disposto no art. 5º, IV, V, X, XIII e XIV".  O inciso X acabamos de comentar. De fato ele é um limite à informação em geral e à informação jornalística em particular.  Todavia, gostaríamos de recolocar nossa tese a respeito da informação jornalística e do interesse público que a norma envolve.  O direito de informação jornalística é, com efeito, simultaneamente um direito de receber informação jornalística. É o interesse público que está em jogo. Como a norma constitucional do direito de informar aparece com uma prerrogativa, isto é, está posta com o modal deôntico da permissão, tem-se uma espécie de paradoxo: permissão dos dois lados. O direito de informar tem relação com o direito de ser informado.  Dois direitos, nenhum dever. O ciclo normativo mandar-obedecer não se completa.  Todavia, é exatamente esse outro direito de ser informado que vai permitir, em nossa opinião, a construção da teoria capaz de fazer com que, também, os limites estabelecidos no inciso X do art. 5º não sejam absolutos.  Se há direito de se informar há, portanto, interesse público e é este que definirá a possibilidade de ser transmitida a informação jornalística. __________ 1 Cf. Vidal Serrano Nunes Júnior, A proteção constitucional da informação e o direito à crítica jornalística, São Paulo: FTD, 1997. p. 31 e s. 
Amanhã, 15 de março, é comemorado o dia mundial do consumidor. Famoso, porque foi nesse dia, há mais de sessenta anos (1962), que o então Presidente dos Estados Unidos da América, John Kennedy, enviou uma mensagem ao Congresso Americano tratando da proteção dos interesses e dos direitos dos consumidores. Foi um marco fundamental do nascimento dos chamados direitos dos consumidores e que causou grande impacto nos EUA e no resto do mundo. Na mensagem foram estabelecidos quatro pontos básicos de garantia aos consumidores: a) o do direito à segurança ou proteção contra a comercialização de produtos perigosos à saúde e à vida; b) o do direito à informação, incluindo os aspectos gerais da propaganda e o da obrigatoriedade do fornecimento de informações sobre os produtos e sua utilização; c) o do direito à opção, no combate aos monopólios e oligopólios e na defesa da concorrência e da competitividade como fatores favoráveis ao consumidor; d) e o do direito a ser ouvido na elaboração das políticas públicas que sejam de seu interesse. O Dia Mundial dos Direitos do Consumidor foi instituído no dia 15 de março em homenagem ao Presidente Kennedy; inicialmente foi comemorado em 15 de março de 1983; em 1985 a Assembléia Geral das Nações Unidas (ONU) adotou os Direitos do Consumidor como Diretrizes das Nações Unidas, o que lhe deu legitimidade e reconhecimento internacional. Não resta dúvida que, de 1962 para cá houve um avanço na proteção ao consumidor em várias partes do mundo, inclusive no Brasil. No nosso caso, a verdadeira proteção surgiu com a promulgação do Código de Defesa do Consumidor  (CDC) em 11-9-1990 (e que entrou em vigor em 11-3-1991).   É mesmo importante que se comemore esta data. Mas, falta ainda muito para que a batalha pelos direitos dos consumidores esteja ganha. Aproveitemos, então, este dia para fazer uma reflexão a partir de certos fatos. Sempre que me deparo com abusos perpetrado pelas empresas, me vem à mente não só a imagem do empresário aproveitador, mas também a do funcionário que executa suas ordens. Esse mesmo empregado, que sabe muito bem que está abusando de alguém, ele próprio é também consumidor e certamente será enganado em algum lugar: numa loja, pelo serviço de transporte ou telefônico, por um gerente de um banco etc. É, podemos dizer, uma falta de consciência de que todos somos consumidores. É essa falta de consciência que faz com que no telemarketing ativo o atendente viole a tranquilidade do consumidor em seu lar e, muitas vezes, o engane com ofertas miraculosas; ou no telemarketing passivo, quando o atendente se nega a fazer o cancelamento solicitado etc. A ironia é que neste mercado que só conhece o lucro, todos esses "pequenos infratores" a mando de seus patrões violam o direito de outras pessoas no horário de seu trabalho, mas assim que vão às compras são também enganados e violados É por essas e outras que os consumeristas têm defendido que o mercado de consumo precisa ser mais diretamente controlado pelo Estado, posto que se deixado à própria sorte os abusos contra os consumidores existirão sempre em grandes quantidades. Para ficarmos apenas com um exemplo: o da crise financeira internacional de 2008. Ficou demonstrado como é perigoso para toda a sociedade (mundial!) deixar que os próprios operadores criem as regras de trabalho. O capitalismo contemporâneo exige vigilância sobre os procedimentos e observância estrita do cumprimento das normas já existentes.                                  Não é possível mais acreditar que o mercado de consumo resolve suas questões por conta própria, como se houvesse uma espécie de "lei" natural que fosse capaz de corrigir os excessos e as faltas. A verdadeira lei de mercado é aquela que aparece estampada nos jornais de negócios e nas manchetes dos grandes jornais e revistas: o empresário moderno e as grandes corporações que ele dirige quer, cada vez mais e sempre, faturar mais alto, nem que para isso ele tenha que eliminar postos de trabalho, baixar salários, eliminar benefícios e piorar a qualidade de seus produtos e serviços. Há esperança? Já comentei por aqui, que vejo com bons olhos os empresários que se preocupam com a questão ambiental, com o impacto que seus produtos e serviços tem na sociedade, que se envolvem em projetos sociais etc. Tudo isso é bem-vindo, mas penso que para melhorar mais é necessário que o consumidor possa e saiba escolher os produtos e serviços que adquire e que o Estado tenha regras rígidas de controle do sistema de produção capitalista, fazendo com que a lei seja cumprida.
quinta-feira, 7 de março de 2024

A imagem do consumidor pessoa jurídica

Continuo a análise dos direitos básicos dos consumidores. Hoje analiso a imagem da pessoa jurídica como consumidora. Como se sabe, a pessoa jurídica é também considerada consumidora (caput do art. 2º do Código de Defesa do Consumidor) Inicialmente, anoto que a pessoa jurídica não sofre dano estético, nem pode ser violada em sua honra. O primeiro por compor o aspecto físico, mecânico e fisionômico do corpo humano e a segunda por dizer respeito a valor que só pode ser atribuído ao indivíduo1. Não sofre também, propriamente, dano moral, uma vez que sentir dor é uma exclusividade humana. Nem tem intimidade, essa esfera mais concêntrica dentro da órbita privada. A pessoa jurídica, porém, goza de privacidade e tem imagem. Privacidade, que, oposta à publicidade, garante-lhe o direito a segredos comerciais, fórmulas e métodos que lhe pertencem reservadamente. Esses elementos compõem a esfera privada da pessoa jurídica. De resto, a característica básica de atuação da pessoa jurídica é sempre pública, independentemente de sua natureza jurídica (pública, privada, sociedade civil, comercial etc.). Isto porque a ação da pessoa jurídica sempre se dá no meio social: no mercado ou na ação política governamental. Ela é, por isso, essencialmente pública. A pessoa jurídica tem, também, imagem. Apesar da discussão que já se fez a respeito, atualmente não resta dúvida de que a pessoa jurídica tem imagem, e, como visto, protegida constitucionalmente. A imagem da pessoa jurídica pode ser classificada nos moldes da imagem da pessoa física. Ela tem imagem-retrato, representada por seu nome, sua marca, seu logotipo, seus produtos, seus serviços, enfim, por tipos, sinais, letras e símbolos que a representem. É claro que, ao colocarmos aqui a pessoa jurídica como possuidora de uma imagem-retrato, o estamos fazendo de forma figurativa, por analogia ao conceito de imagem-retrato da pessoa física. Todavia, o tipo "imagem-retrato" encaixa-se como uma luva quando se quer entender o que está ocorrendo no uso sem autorização de uma marca ou na violação de um logotipo ou mesmo de um produto ou serviço. Percebe-se que no caso do produto há várias circunstâncias que envolvem não só o nome do produto mas também sua embalagem, seu conteúdo, a ligação de tudo isso ao nome do fabricante e sua respectiva imagem etc. A pessoa jurídica tem, ainda, imagem-atributo. E é aqui que residirá certa confusão, no caso, não só para admitir a outra, a imagem-retrato, como para entender a distinção entre os dois tipos. Com efeito, a imagem-atributo é construída pelo meio social. Ela é, pode-se dizer, mais o que os outros reconhecem na pessoa jurídica do que sua própria designação ou construção. Seria uma espécie de "reputação" da pessoa jurídica. É por isso que, embora a imagem-retrato guarde em alguns casos relação com a imagem-atributo, com ela não se confunde: é que a imagem-retrato é criada pela própria pessoa jurídica tão logo ela passe a existir. Por exemplo, o nome. Mas a imagem-atributo dependerá da atuação dessa pessoa jurídica - desse nome - no meio social. Quando se disser que esse nome ou essa marca tem alta credibilidade, estar-se-á diante da imagem-atributo. E o texto constitucional protege a ambas: a) a imagem-retrato de uma simples e inócua empresa de contabilidade, conhecida apenas por seu único cliente ou que ainda não tenha nenhum. Ninguém pode usar aquele nome sem autorização; b) a imagem-atributo daquela mesma empresa, que formou a maior auditoria do País, com notável reputação ou credibilidade. Ninguém poderá usar seu nome sem autorização, nem poderá denegrir sua imagem e reputação. Não nos esqueçamos de dizer, que a Constituição não faz distinção de pessoa jurídica: pode esta ser nacional ou estrangeira, pública ou privada, sociedade comercial ou civil, fundação, associação sem fins lucrativos, enfim, qualquer figura reconhecida como pessoa jurídica. Por extensão, garante-se a imagem do ente despersonalizado, como a "massa falida". __________ 1 Quando se fala em honra de uma instituição, tal conceito aparece em sentido meramente figurativo: estar-se-á referindo tecnicamente à imagem. É, na verdade, reputação, garantida constitucionalmente pela imagem-atributo, como se verá.
quinta-feira, 29 de fevereiro de 2024

As compras compulsivas se alastram

O aumento do consumo, especialmente, de produtos, nem sempre é bom. Se tiver fundamento na necessidade dos consumidores, tudo bem. Mas, o que ocorre quanto a ampliação do consumo está relacionada ao simples ato (e prazer) de consumir?  Volto, pois, ao tema do vício das compras.    O vício, como se sabe, é uma doença de há muito detectada e tratada terapeuticamente. E  que pode atingir qualquer pessoa, independentemente de classe social, condição econômica e formação intelectual. E um dos vícios marcantes da sociedade de consumo em que vivemos é a chamada oneomania (também se escreve oniomania). A palavra significa, ao pé da letra, "mania de comprar" e também é utilizada para identificar os compradores compulsivos. Se uma pessoa tem essa doença, age como viciada.  A pessoa compradora compulsiva é aquela que se satisfaz não com o objeto da compra, mas com o ato de comprar. Por isso, ela pode literalmente adquirir qualquer coisa que lhe surja na frente. O ápice de sua satisfação se dá no momento da aquisição. Depois, quando chega em casa, os objetos podem ser abandonados porque não têm mais utilidade. Só a próxima compra a satisfará.  O problema para identificar a doença está em que, naturalmente, esse tipo de pessoa é uma consumidora típica e, portanto, frequenta os mesmos lugares que as demais. Daí, ela acaba comprando imoderadamente, mas os produtoso são aqueles que todos compram, inclusive ela mesmo quando não tinha a crise. Gasta em roupas, sapatos, bolsas, canetas, artigos de luxo etc. e com isso, às vezes, nem ela nem as demais que estão à sua volta percebem o problema. Parece apenas que ela é exagerada ou uma espécie de colecionadora.  O estímulo para a compra de produtos e serviços é feito pelo sistema de marketing, com propagandas em profusão e todos os outros meios de indução. Crescemos comprando e não conseguimos imaginar-nos vivendo sem fazê-lo.  E, como se sabe, a partir da segunda metade do século XX houve um brutal incremento do sistema de créditos e de facilitação para as compras. A expansão do sistema financeiro internacional e o largo acesso ao crédito tem como base o aumento da produção industrial, pois se assim não fosse seria impossível vender o que se fabrica.                                 Na atualidade, com a espetacular utilização da web/internet/redes sociais, não só as compras tornaram-se instantâneas e feitas de dentro do lar, como os pagamentos também. As transferências bancárias on line (ted e pix), os pagamentos com cartões de crédito e débito, os pagamentos automáticos de contas e faturas de todos os tipos, desde serviços essenciais como gás, água e energia elétrica, até aluguéis de tevê à cabo, compras parceladas etc., tudo é feito rápida e imperceptivelmente. Nos débitos automáticos, o consumidor nem precisa mais participar: é o sistema que age por ele.  Tudo isso vai alienando o consumidor do que realmente ocorre. Ele não se dá conta do gasto efetivo de suas economias nem de seu endividamento constante. Logo, pode-se dizer que o mercado insufla os "vírus" da doença que pode atingir qualquer pessoa mais ou menos avisada, já que as armadilhas estão muito bem engendradas.  Assim, como em qualquer tipo de vício, impõem-se a necessidade de instituição de vigilância. É importante, por exemplo, que as pessoas de uma família prestem atenção à atitude de compra e endividamento das demais, para tentar detectar a doença.  Um sintoma frequente está, de fato, ligado ao endividamento. O comprador compulsivo ou a compradora compulsiva adquire produtos sem parar e vai se endividando para pagar por coisas que ele ou ela não precisa. Muitas vezes já as tem em excesso, mas continua comprando. Essa pessoa gasta todo seu salário, estoura o limite do cartão de crédito e do limite de crédito em conta, e até faz empréstimos apenas para continuar adquirindo o que não lhe faz falta.  É claro que, se o comprador ou a compradora com oneomania for uma pessoa de posses e puder gastar muito dinheiro, será mais difícil identificar a doença, pois ela acumulará produtos e mais produtos ainda que nunca os utilize. Assim, um outro modo  de  identificação da doença está em verificar o excesso da compra de bens, que jamais são usados.                                   Como já fiz antes neste espaço, encerro dizendo que, para quem estiver passando por esse tipo de problema ou que tenha algum familiar com a doença, é bom saber que existem em algumas cidades brasileiras os grupos de autoajuda intitulado "Devedores Anônimos", que funcionam nos mesmos moldes dos "Alcoólatras Anônimos", que acolhem os doentes pessoalmente ou virtualmente (on line). Basta uma consulta à internet para ter acesso a essas associações. O tratamento com psicoterapia é também recomendado.
Os consumidores estão sendo violados na Europa.  No artigo de 4 de janeiro deste ano, eu já havia mostrado uma violação feita pelo sistema bancário em Portugal.  E há mais violações em outros países. Vejamos.  Meu amigo Outrem Ego foi, recentemente, passar férias na Europa. E, para sua decepção, viu que o consumidor por lá não está sendo respeitado como devia e numa questão básica: a forma de pagamento.  Centenas de estabelecimentos comerciais só aceitam pagamento com cartão de crédito ou débito. E não só fornecedores privados, locais públicos também.  Por exemplo, no Museu Van Gogh, em Amsterdam, se a pessoa quiser comprar uma garrafa de água e pagar com moeda corrente não pode. Lá só se compra algo pagando com cartão. No Aeroporto de Barcelona, dá-se o mesmo: pagamento só com cartão.  Não dá para entender o que  está acontecendo. Sempre foi direito básico do consumidor, em qualquer lugar do mundo, poder pagar suas compras com moeda corrente. E, do outro lado, sempre foi obrigação receber nessa forma de pagamento.  A violação é flagrante, pois pode muito bem acontecer de alguma pessoa (por motivos que não interessam) não possuir cartão de crédito ou débito e precisar (ou querer) comprar algo, pagando em moeda corrente. Digamos que ela esteja com sede dentro do Museu em Amsterdam ou no Aeroporto em Barcelona, não poderá comprar uma garrafa de água?  Por aqui, temos leis que cuidam do tema.  No Código de Defesa do Consumidor, há a regra do inciso V do artigo 39, nesses termos: "Art. 39. É vedado ao fornecedor de produtos ou serviços, dentre outras práticas abusivas:             (...) V - exigir do consumidor vantagem manifestamente excessiva;"  E a Lei das Contravenções Penais (decreto-lei 3.699, de 3-10-1941), apesar de desatualizada,  é expressa nesse sentido:  "Art. 43. Recusar-se a receber, pelo seu valor, moeda de curso legal no país: Pena - multa, de duzentos mil réis a dois contos de réis."  O que está acontecendo na Europa é, realmente, lamentável.  Espero que o modelo não se alastre.
Hoje começo a analisar as garantias constitucionais previstas no inciso X do art. 5º da Constituição Federal e que são relevantes para uma reflexão sobre os direitos do consumidor, eis que, na realidade há violações que a norma magna pretende evitar. Vejamos o conteúdo expresso do inciso X: "Art. 5º (...) X - são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação". Como se observa, a Constituição Federal pretende dar guarida absoluta ("são invioláveis") à intimidade, à vida privada, à honra e à imagem. Tomemos cada um desses conceitos para compreender a extensão do preceito normativo. Primeiramente, a intimidade e a vida privada. Os dois termos não podem ser dissociados, uma vez que, obviamente, o valor semântico de um lembra o outro. Porém, como a norma constitucional utiliza os dois, é preciso esclarecê-los. Aliás, de pronto, surge a indagação: são os dois conceitos designativos do mesmo sentido? A doutrina que já analisou a questão respondeu que não, apesar da necessária imbricação de ambos1. Para entender o exato significado dos conceitos, tem-se de lembrar certos aspectos da vida social na qual estão presentes as pessoas, naquilo que diz respeito a sua individualidade na relação com o coletivo. É preciso distinguir o âmbito público do âmbito privado. Com efeito, o público é sempre aquilo que, como o nome diz, aponta para a participação aberta a todos ou para a possibilidade de participação de todos. É o que pertence ao povo ou à coletividade; ou mesmo apenas os atos vivenciados por poucas testemunhas, mas, assim, com caráter público. É ainda o formato real e abstrato dos atos do governo2. O privado é o oposto do público, e, embora o conceito seja da Antiguidade, ainda guarda o sentido de privus, "ser privado de", isto é, ser privado do público. É o que ocorre no domínio do lar, na órbita pessoal, no restrito âmbito doméstico. Dessa maneira, pode-se perceber que todo indivíduo tem uma esfera privada de direitos e interesses. Mas nem todos têm uma atuação no âmbito público. As pessoas, em geral, podem, é verdade, ter uma aparição ou reconhecimento público, quando, por exemplo, agem, ainda que esporadicamente, de forma pública: participando de um programa de televisão, cometendo um delito numa praça, enganando consumidores na venda de produtos falsificados. A distinção entre as duas esferas pode ser feita a partir da hipótese do papel social, conforme estudado pela sociologia jurídica3. O surgimento dos papéis está ligado ao crescimento da sociedade, de maneira que o conceito atualmente utilizado é o de complexidade, ou melhor, alta complexidade social. O sentido de complexidade social está relacionado ao dado concreto e real das ações possíveis do indivíduo. Ou, melhor dizendo, o mundo real se apresenta ao indivíduo oferecendo latentemente ações que ele pode realizar. Mas a quantidade de ações é tão grande que, de fato, real e historicamente, o mundo apresenta sempre muito mais possibilidades do que aquelas que o indivíduo vai realizar em toda a sua vida. O indivíduo está, assim, fadado a escolher. Desde que entra no mundo, vai agindo a partir de escolhas; não há alternativa. A essas escolhas se dá o nome de seletividade. Esta é uma operação de seleção para optar diante da complexidade de ações possíveis. A cada ato, a cada passo, o indivíduo age por seleção e vai compondo o quadro de seu destino. A inexorabilidade da seleção tem como função reduzir a complexidade do mundo: a cada escolha que a pessoa faz, opera-se a seleção e reduz-se a complexidade - escolheu algo entre muitos4. Mas, simultaneamente, enquanto se opera a seleção, vai-se produzindo um enorme contingente que ficou de lado: escolheu ser advogado; em compensação, não será juiz, promotor de justiça, procurador, delegado etc. Continuo na próxima semana. __________ 1 Acompanho aqui os Professores David Araujo e Vidal Serrano Nunes Júnior (Curso de direito constitucional, São Paulo: Saraiva,  1998. Item 2.1.1). 2 Ressalvem-se os chamados "segredos de Estado", justificáveis apenas na exata medida em que são segredos para preservar o bem público: segurança, paz etc. 3 Assim, por exemplo e pelos demais: Niklas Luhmann, Legitimação pelo procedimento.,Brasília: Ed UNB, 1980. Especialmente, p. 71 e s. 4 A escolha gera um alívio ao indivíduo. Como o mundo se apresenta com alta complexidade e milhões de possibilidades, isso por si só é fator gerador de angústia. A seleção a diminui.
Em matéria de violação ao direito dos consumidores, quando pensamos que já vimos de tudo, sempre aparece alguma novidade estranha.  Veja isso caro leitor e cara leitora: o sistema bancário de Portugal, a partir deste mês de janeiro, passou a violar flagrantemente o direito dos consumidores. Trata-se de uma operação casada inacreditável e claramente abusiva. A partir de agora, para que o consumidor possa efetuar o pagamento de alguma conta, boleto, imposto etc. online, pela internet, em seu Banco, ele tem que possuir um cartão de crédito ou débito do próprio banco. A medida, além de abusiva, é sem sentido. Os clientes dos bancos em Portugal fazem os pagamentos online, regularmente, possuindo ou não algum cartão do banco. E há muitos clientes residentes fora do país,  que fazem esses pagamentos regularmente. Seria o mesmo que obrigar os clientes de bancos brasileiros a possuírem um cartão para poderem acessar sua conta bancária via internet e assim fazerem pagamento de boletos, contas de serviços públicos, Darfs etc. Por aqui, esse tipo de exigência está vedada por expressa disposição do Código de Defesa do Consumidor, que proíbe as chamadas operações casadas ou vendas casadas. É o que dispõe o inciso do artigo 39 do CDC: "Art. 39. É vedado ao fornecedor de produtos ou serviços, dentre outras práticas abusivas:             I - condicionar o fornecimento de produto ou de serviço ao fornecimento de outro produto ou serviço, bem como, sem justa causa, a limites quantitativos;" De minha parte, aguardo que as Associações de Defesa do Consumidor portuguesas e até o Ministério Público local tomem medidas contra essa estipulação incrível.
Hoje analiso o princípio da igualdade como uma das bases das relações jurídicas de consumo. E, naturalmente, o faço a partir da norma do caput do art. 5º da Constituição Federal. Com efeito, dispõe o art. 5º, caput: "Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabi­lidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:" É fato conhecido que: a) o princípio da igualdade ou isonomia é dirigido ao legislador e ao aplicador; b) a interpretação adequada de tal princípio é tão antiga quanto Aristóteles, que já explicava que seu resultado adequado advinha da fórmula: dar tratamento igual aos iguais e desigual aos desiguais, na medida dessa desigualdade; c) essa fórmula, que em abstrato é bastante adequada, é difícil de ser aplicada concretamente: a medida da desigualdade não surge tão facilmente. Mas, ainda assim, é determinação obrigatória ao intérprete e ao aplicador, que devem seguir todos os esforços possíveis a fim de obter a igualdade como resultado prático de seu mister. Uma das funções da lei é discriminar situações, e isso não fere, por si só, o princípio da igualdade. Assim, é plenamente constitucional a lei dizer que a maioridade penal se inicia aos 18 anos. Nenhum menor pode dizer que foi discriminado, uma vez que se trata de uma das funções da lei. A constatação da existência de discriminações, portanto, não é suficiente para definir se o princípio constitucional de isonomia está ou não sendo respeitado, pois, como visto, em determinadas situações a discriminação empreendida está em consonância com o preceito constitucional. Ao contrário, é exatamente da discriminação que nasce o princípio. Mas para aferição da adequação ao princípio da igualdade é necessário levar em conta outros aspectos. Todos eles têm de ser avaliados de maneira harmônica: se adotado o critério discriminatório, este tem de estar conectado logicamente com o tratamento jurídico atribuído em face da desigualdade apontada. Além disso, há que existir afinidade entre essa correlação lógica e os valores protegidos pelo ordenamento constitucional. Ou seja, nenhum elemento, isoladamente, poderá ser tido como válido ou inválido para verificação da isonomia. É o conjunto que poderá designar o cumprimento ou não da violação da norma constitucional. Assim, resumidamente, afere-se a adequação ou não ao princípio da isonomia verificando-se a harmonização dos seguintes elementos: a) discriminação; b) correlação lógica da discriminação com o tratamento jurídico atribuído em face da desigualdade; c) afinidade entre essa correlação e os valores protegidos no ordenamento constitucional. Na questão do consumidor existem várias práticas que violam o princípio constitucional. Veja-se, por exemplo, um caso antigo e típico de discriminação ao consumidor: o sucesso do filme "Titanic", ganhador de vários Oscars, levou, durante semanas, milhares de pessoas (consumidores do serviço de diversão) às salas de cinema. A procura era tamanha que o público tinha de chegar mais de três horas antes do início de cada sessão (sendo que o próprio filme tem mais de três horas de exibição). Era um enorme esforço. Mas, ao que tudo indica, os consumidores não se importavam. Acontece que os exibidores firmaram um contrato com os administradores do cartão de crédito Diners Club, que permitia que seus usuários pudessem adquirir os ingressos para assistir ao filme sem pegar fila. Foi um verdadeiro "fura-fila". Esses consumidores privilegiados passaram a gozar de um direito não oferecido aos demais. Isso porque somente podiam comprar pelo telefone os portadores do indigitado cartão de crédito. Não resta dúvida de que aquela prática era ilegal, na medida em que feria o princípio de isonomia previsto na Carta Magna1. Com efeito, utilizando-se dos critérios acima elencados, percebe-se que a discriminação do exibidor não poderia ser efetuada, uma vez que não tem correspondência lógica com o tratamento jurídico oferecido de maneira diferenciada (o que os portadores do cartão têm para serem mais bem tratados que os demais que ficam na fila?), bem como não há afinidade dessa correlação com os valores protegidos pelo ordenamento constitucional (só se justifica o tratamento diferenciado em questões de consumo desse tipo quando o consumidor protegido merecer o tratamento favorável: p. ex., atendimento privilegiado para idosos e mulheres grávidas). O fato de alguns consumidores, dentre muitos, serem portadores de um cartão de crédito específico não pode ser motivo legitimador da discriminação. Diga-se, também, que o poder constituinte, ao elaborar o texto magno, desde aquele instante tratou de deixar estabelecidos certos grupos de pessoas e certos indivíduos que merecem a proteção constitucional, isto é, a Constituição Federal reconhece de plano a vulnerabilidade de certas pessoas, que devem, então, ser tratadas pelo intérprete, pelo aplicador e pelo legislador infraconstitucional de maneira diferenciada, visando a busca de uma igualdade material. É o caso, por exemplo, da reserva de cargos e empregos públicos para as pessoas portadoras de deficiência (art. 37, VIII). Da mesma forma é de observar que a Constituição reconhece a vulnerabilidade do consumidor2. Isso porque, nas oportunidades em que a Carta Magna manda que o Estado regule as relações de consumo ou quando põe limites e parâmetros para a atividade econômica, não fala simplesmente em consumidor ou relações de consumo. O texto constitucional refere-se à "defesa do consumidor", o que pressupõe que este necessita mesmo de proteção. Assim está no art. 48 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias ("O Congresso Nacional, dentro de cento e vinte dias da promulgação da Constituição, elaborará código de defesa do consumidor" - grifamos), no art. 5º, XXXII ("O Estado promoverá, na forma da lei, a defesa do consumidor" - grifamos); e assim está no art. 170, V ("A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios: (...) V - defesa do consumidor" - grifamos). Lembre-se, também, que entre os objetivos da República está a promoção do bem de todos "sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação" (inciso IV do art. 3º). __________ 1 E que está reproduzido no inciso II do art. 6º do CDC. 2 E o CDC o faz expressamente (arts. 4º, I, e 6º, VIII).
quinta-feira, 21 de dezembro de 2023

Por uma sociedade solidária

Para falar dos fundamentos básicos das relações jurídicas de consumo, lembro, mais uma vez, que o art. 3º, I, da Constituição Federal estabelece ser objetivo fundamental da República Federativa do Brasil a construção de uma sociedade livre, justa e solidária.  Anoto, também, que nossa Carta Magna estabelece, no inciso III do art. 3º, outro objetivo fundamental da República brasileira: o da erradicação da pobreza.  Em matéria de Direito do Consumidor esse aspecto é importantíssimo: é a própria Constituição Federal - de maneira inteligente - que reconhece algo real, o de que a população brasileira é pobre!  A pobreza é elemento a ser levado em conta para a análise do sistema jurídico nacional, sempre visando encontrar alternativas para suplantá-la.  E o texto maior é tão cioso deste problema que ao designar um piso vital mínimo de cidadania - conforme tratei em outro artigo ("O princípio constitucional da Dignidade da Pessoa Humana", dia 30/11/23)  - estabelece que a assistência aos desamparados é direito social fundamental1.  Logo, quando se vai estudar o Código de Defesa do Consumidor, tem-se que levar em consideração esse dado real e fundamento constitucional: a população é pobre; o consumidor é pobre.  Estudar a lei 8.078/90 não é, portanto, avaliar aspectos jurídicos de uma comunidade rica, mas ao contrário é compreendê-la na sua incidência num mercado constituído de pessoas pobres, para perceber por que é que a proteção deve ser bastante ampla.  Além disso e, também, como decorrência do estabelecido no inciso I do art. 3º do texto constitucional, a República brasileira tem como objetivo a construção de uma sociedade solidária.  O sentido de solidariedade se pode extrair de dois tipos de concepções sistêmicas: mecânicas e orgânicas. As primeiras relacionando o funcionamento das partes ao todo e o deste àquelas, bem como das partes entre si para o próprio funcionamento do sistema total. E as segundas apontando para uma divisão do trabalho a indicar funções diversas a cada parte, mas que devido a sua solidariedade faz o todo funcionar.  São exemplos desses sistemas o mecanismo do relógio, do corpo humano etc. Mas interessa-nos a aplicação da solidariedade ao sistema social, formado da somatória dos indivíduos.  E, como é da forma organizada do grupamento social que se trata, e esta é composta de pessoas, cuja dignidade se garante e que têm para dirigi-las, orientá-las, norteá-las em suas condutas, é de acrescer àqueles elementos sistêmicos - tidos como de fato - outro, ligado ao sistema social concretamente em funcionamento, elevado a uma categoria moral. Trata-se de um dever ético que se impõe a todos os membros da sociedade, de assistência entre seus membros, na medida em que compõem um único todo social.  Dessa maneira, podemos definir solidariedade com uma dupla condição, que designa: a) relações concretamente concebidas, díspares nas condições reais de cada participante, mas ligadas por solidariedade entre si, com o todo; b) situações individuais, relações entre essas situações e suas ligações com o todo e deste com cada uma, geridas por um dever maior, como norma que imputa solidariedade a todos. __________ 1 "Art. 6º São direitos sociais a educação, a saúde, o trabalho, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição."
Hoje cuido da justiça e de sua capacidade de funcionar como fundamento para as relações jurídicas de consumo. Lembre-se que o art. 3º, I, da Constituição Federal estabelece ser objetivo fundamental da República Federativa do Brasil a construção de uma sociedade livre, justa e solidária. O conceito de justiça espelhado no texto maior é aquele dirigido à realidade social concreta. Não se trata de uma abstração da norma máxima, mas sim de um objetivo a ser alcançado realmente no contexto histórico atual pela República. Isso dará ao intérprete, tanto das regras constitucionais quanto das infraconstitucionais e, naturalmente, nas do Código de Defesa do Consumidor, alternativas de resolução de problemas não só a partir dos princípios regulares da justiça, como daqueles tradicionalmente conhecidos como equidade na aplicação de cada caso concreto. Com efeito, dada a "natureza social" do ser humano, sua vivência em grupos fez com que certos conflitos nascessem da natural relação surgida nesse agrupamento social. O ajuntamento gerava conflitos interpessoais em função das capacidades, possibilidades e exigências próprias de cada indivíduo, como, também, por sua vez, necessidades próprias à sociedade que surgia, quer em relação a seus componentes, quer em relação a outras sociedades. Em função da complexidade das relações nascentes, tornou-se necessário, então, que se estabelecessem normas para que, atendendo-as, os indivíduos e a própria sociedade pudessem caminhar rumo àquilo a que se haviam proposto: busca de harmonia e paz social. Esse aspecto de normas sociais válidas, visando encontrar harmonia e paz social, impõe-se, na verdade, a qualquer sociedade, desde uma pequena sociedade comercial até a sociedade de consumo contemporânea, ainda que o objetivo da primeira seja apenas econômico ou financeiro. Assim, numa sociedade comercial, o objetivo pretendido é, naturalmente, a obtenção do lucro, mediante o cumprimento de determinados requisitos preestabelecidos. Acreditam os componentes dessa sociedade que, cumpridas as normas fixadas, satisfeitas suas exigências, o objetivo será alcançado. Essas normas, por sua vez, podem e devem ir-se modificando na medida em que a sociedade se aproxime ou se afaste de sua finalidade, pois é próprio a qualquer sociedade o movimento contínuo, uniforme ou não, com a modificação de suas normas, visando ao atingimento do fim estabelecido. Numa macrossociedade moderna, como as atuais, esses conceitos se aplicam da mesma forma. É sabido que o objetivo da sociedade, entendida como uma nação ou comunidade, é a busca da paz e harmonia social. As normas jurídicas são o instrumento para que tal fim seja atingido. E esse objetivo só será alcançado numa sociedade justa. Pode-se aqui, a título de ilustração, apresentar uma dentre as várias posições doutrinárias que pretendem construir uma teoria da justiça, capaz de explicitar seu funcionamento. Vejam-se, por exemplo, os dois princípios da justiça na teoria de John Raws1. Diz o autor, desenvolvendo sua estratégia contratualista, que as partes, estando numa posição original do contrato, perguntar-se-iam o que iriam escolher. A resposta estaria coberta por um véu de ignorância que as impediria de ver os próprios interesses. E, assim, dentre várias concepções de justiça postas à sua disposição, as partes nessa posição original escolheriam os seguintes princípios de justiça: a) cada pessoa deve ter um direito igual ao mais amplo sistema total de liberdades básicas iguais, que seja compatível com um sistema semelhante de liberdade para todos; b) as desigualdades econômicas e sociais devem ser distribuídas de forma que, simultaneamente: b.1) redundem nos maiores benefícios possíveis para os menos beneficiados, de forma compatível com o princípio da poupança justa; b.2) sejam a consequência do exercício de cargos e funções abertos a todos, em circunstâncias de igualdade de oportunidades. Não resta dúvida de que tais princípios abstratos são interessantes, mas necessitam de toda uma história real para se realizar, pois a justiça se faz concretamente, e é isso que espera o texto constitucional: realização social real e justa. A justiça soma-se ao princípio da intangibilidade da dignidade humana, como fundamento de todas as normas jurídicas, na medida em que qualquer pretensão jurídica deve ter como base uma ordem justa. Valem aqui as conhecidas palavras de Eduardo Couture no seu Os mandamentos dos advogados: "Teu dever é lutar pelo direito, mas no dia em que encontrares o direito em conflito com a Justiça, luta pela justiça"2. A justiça é, assim, o objetivo da República e fundamento da ordem jurídica, como condição de sua possibilidade de realização histórica. Por isso, na aplicação das normas jurídicas aos casos concretos, muitas vezes tem-se de atenuar os rigores do texto normado, mitigando seu apelo formal: é necessário agir com equidade. Cícero, tratando dessa questão, citou o adágio summum jus, summa injuria: supremo direito, suprema injustiça. Mas a equidade já aparecia antes em Aristóteles3. Ele diz que o equitativo é justo, mas é uma correção da justiça legal. A razão disso, diz o filósofo, é que a lei é universal, mas, relativamente a certas coisas, não é possível fazer uma afirmação universal que seja correta. Dessa forma, quando é necessário falar de modo universal, não sendo possível fazê-lo corretamente, a lei considera o caso mais usual, sem ignorar a possibilidade de erro. Logo, quando surge um caso que não é abrangido pela declaração universal da lei, é justo corrigir a omissão. A essa correção dá-se o nome de equidade. A equidade supre o erro proveniente do caráter absoluto da disposição legal. Ela é, portanto, a justiça levada a cabo no caso concreto. __________ 1 Uma teoria da justiça, p. 27 e s. Lisboa: Presença, 1993. 2 4º Mandamento: "Lucha. - Tu deber es luchar por el derecho; pero el día que encuentres en conflicto el derecho con la justicia, lucha por la justicia" (Los mandamientos del abogado - traduzi). 3 Ética a Nicômaco, Livro V, 10.
Hoje cuido da liberdade, não no amplo sentido de liberdade garantido na Carta Magna, mas tão somente naquilo que interessa para compreender sua existência como suporte aos princípios e normas do Código de Defesa do Consumidor (CDC). Trato da liberdade de ação: dos consumidores de agirem e escolherem e dos fornecedores de empreenderem. Com efeito, a liberdade aparece estampada no texto constitucional como princípio, logo no art. 1º (inciso IV) e no art. 3º (inciso I), e é garantia fundamental do caput do art. 5º, especificando-se em alguns dos incisos lá elencados na forma de liberdade de manifestação do pensamento (inciso IV), liberdade de consciência e de crença (inciso VI), liberdade de expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação (inciso IX) etc., e está espalhada em várias outras normas (inclusive como garantia processual do devido processo legal - inciso LIV do art. 5º - e do habeas corpus - inciso LXVIII do mesmo artigo), e, em particular, aparece como princípio da atividade econômica (art. 170). Como antecipei, o princípio da liberdade garantido constitucionalmente que aqui interessa é o que aponta para uma condição material - real - de ação. E, basicamente, para essa hipótese, podemos ficar com as regras dos arts. 1º e 3º citados. Com efeito, dispõem o inciso IV do art. 1º e o inciso I do art. 3º: "Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: (...) IV - os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa"; "Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: I - construir uma sociedade livre, justa e solidária". A liberdade de iniciativa é conferida a todos aqueles que decidam, sponte propria, tomando seus bens e constituindo-os em capital, ir ao mercado empreender alguma atividade - qualquer atividade permitida e/ou regulada constitucional e infraconstitucionalmente. O sentido de "livre" iniciativa aí, então, significa o direito de escolher correr o risco do empreendimento. A pessoa tem, portanto, o direito garantido de, caso queira, empreender um negócio. Em relação a pessoa consumidora, a liberdade que o texto lhe garante é objetivo da República, ou seja, o Estado brasileiro tem entre seus objetivos o de assegurar que a sociedade seja livre. Isso significa que, concretamente, no meio social, dentre as várias ações possíveis, a da pessoa designada como consumidora deve ser livre. A consequência disso é que o Estado deverá intervir quer na produção, quer na distribuição de produtos e serviços, não só para garantir essa liberdade mas, também, para regular aqueles bens que, essenciais às pessoas, estas não possam adquirir por falta da capacidade de escolha. Explico. Primeiramente, como disse, o sentido de liberdade da pessoa consumidora, aqui, é o de "ação livre". Essa ação é livre sempre que a pessoa consegue acionar duas virtudes: querer + poder. Quando a pessoa quer e pode, diz-se, ela é livre; sua ação é livre. Assim, a regra básica será a da escolha com possibilidade de aquisição: a pessoa quer algo, tem dinheiro ou crédito para adquiri-lo, então é livre para fazê-lo. Contudo, haverá casos em que, justamente por não poder escolher, a ação da pessoa não será livre. E nessa hipótese a solução tem de ser outra. Estou me referindo à necessidade. O conceito é clássico: liberdade é o oposto de necessidade. Nesta não se pode ser livre: ninguém tem ação livre para não comer, não beber, para sair voando etc. Aplicado o conceito à realidade social, o que se tem é o fato de que o objetivo constitucional da construção de uma sociedade livre significa que, sendo a situação real de necessidade, o Estado pode e deve intervir para garantir a dignidade humana. Isso justifica, por exemplo, o controle pelo Estado da distribuição de produtos essenciais, do controle de seus preços, da garantia de acesso a hospitais e demais serviços públicos etc., bem como se verifica a obrigação do Estado em garantir esses mesmos direitos à pessoa. Ou, em outros termos, no estado de necessidade, a própria pessoa pode exigir do Estado essa conduta de garantia a seus direitos. Além disso, o tema da liberdade envolve a da possível opção da pessoa consumidora para adquirir produtos e serviços. Acontece que, em larga medida, é impróprio falar que essa pessoa age com "liberdade de escolha". Isso porque, como ela não tem acesso aos meios de produção, não é ela quem determina o quê nem como algo será produzido e levado ao mercado. As chamadas "escolhas" da pessoa consumidora, por isso, estão limitadas àquilo que é oferecido. São restritíssimas as chances dela optar: pode, quando muito, escolher o preço mais barato, as melhores condições de pagamento etc., mas a restrição é dada pela própria condição material do mercado. Examinemos um exemplo, com uma analogia, ainda que imperfeita, mas que permite a elucidação desse problema. Tomemos um desempregado, dentre as dezenas de milhares do Estado de São Paulo. Suponhamos que, em um final de semana, esse desempregado, procurando emprego em sites de ofertas, tenha tido a sorte de encontrar duas interessantes. Vamos supor que as tais duas ofertas de emprego estejam localizadas em indústrias perto de sua residência: uma à esquerda de sua casa, no quarteirão próximo, e outra à direita, também no quarteirão próximo: estão à mesma distância, em direções opostas. Duas alternativas para trabalhar. Na segunda-feira cedo ele procura a da esquerda, faz um teste e é aprovado: oferecem-lhe emprego com oito horas de trabalho por dia, décimo terceiro e décimo quarto salários mais os direitos legais, e sábados livres, pagando um salário de R$2.000,00 por mês. À tarde procura a da direita, faz um teste e é aprovado: oferecem-lhe emprego com oito horas de trabalho por dia, décimo terceiro e décimo quarto salários mais os direitos legais, e sábados livres, pagando um salário de R$3.000,00 por mês. Agora, pergunta-se: qual dos dois empregos ele vai aceitar? Duas ofertas de emprego idênticas; a única diferença é o salário. Obviamente, ele vai escolher a que paga salário de R$3.000,00 por mês. É o máximo que ele tem de "opção", porque, aliás, o desempregado é não só vulnerável, como prisioneiro da impossibilidade de não trabalhar: ele não tem opção; tem de arrumar emprego e aceitar aquilo que lhe oferecem. Com a pessoa consumidora acontece algo similar. Ela vai ao mercado procurar e adquirir produtos e serviços dos quais precisa. Se existir um fornecedor único (monopólio) ela já está perdendo; o mesmo ocorrerá se se tratar de oligopólio; se existir mais de um fornecedor, ela pode escolher, mas, claro, a escolha é sempre limitada pela oferta. Ela não tem como inventar, criar oferta; só pode escolher dentro do que lhe oferecem. A pessoa consumidora é sempre atraída pela oferta, às vezes de preços e pagamentos menores, de prestações menores. E mesmo a pessoa consumidora com mais poder aquisitivo é vulnerável, pois não tem acesso nem determina o ciclo de produção.
Começo neste artigo a examinar os princípios constitucionais que influenciam as normas e princípios do CDC. Inicio pelo princípio da Dignidade da Pessoa Humana. Com efeito, as constituições federais do ocidente são documentos históricos políticos ideológicos que refletem o andamento do pensamento jurídico da humanidade. Tanto é verdade, que a primeira Constituição do pós-guerra, da Segunda Grande Guerra, a Constituição alemã, traz exatamente, por força desse movimento, desse pensamento jurídico humanitário, no seu art. 1º, que a dignidade da pessoa humana é um bem intangível. Foi a experiência com o nazismo da Segunda Guerra Mundial que fez com que as nações produzissem textos constitucionais reconhecendo esse elemento da história. Existem autores que entendem que é a isonomia a principal garantia constitucional1, e explicam como, efetivamente, ela é importante. Contudo, no atual diploma constitucional, pensamos que o principal direito constitucionalmente garantido é o da dignidade da pessoa humana. É ela, a dignidade, o último arcabouço da guarida dos direitos individuais e o primeiro fundamento de todo o sistema constitucional. A isonomia (como demonstrarei em outro artigo), servirá para gerar equilíbrio real, visando concretizar o direito à dignidade. Mas, antes, há que se fazer uma avaliação do sentido de dignidade. Coloque-se, então, desde já, que, após a soberania, aparece no texto constitucional a dignidade como fundamento da República brasileira. Leiamos o art. 1º: "Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indis­solúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: I - a soberania; II - a cidadania; III - a dignidade da pessoa humana". E esse fundamento funciona como princípio maior para a interpretação de todos os direitos e garantias conferidos às pessoas no texto constitucional2. Lembro, agora, da expressão "mínimo vital", utilizada pelo Professor Celso Antonio Pacheco Fiorillo3. Diz ele que, para se começar a respeitar a dignidade da pessoa humana, tem-se de assegurar concretamente os direitos sociais previstos no art. 6º da Carta Magna, que por sua vez está atrelado ao caput do art. 225. Tais normas dispõem, verbis: "Art. 6º São direitos sociais a educação, a saúde, o trabalho, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição". "Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações". De fato, não há como falar em dignidade se esse mínimo não estiver garantido e implementado concretamente na vida das pessoas. Como é que se poderia imaginar que qualquer pessoa teria sua dignidade garantida se não lhe fosse assegurada saúde e educação? Se não lhe fosse garantida sadia qualidade de vida, como é que se poderia afirmar sua dignidade? A dignidade humana é um valor já preenchido a priori, isto é, todo ser humano tem dignidade só pelo fato já de ser pessoa. Se - como se diz - é difícil a fixação semântica do sentido de dignidade, isso não implica que ela possa ser violada. Como dito, ela é a primeira garantia das pessoas e a última instância de guarida dos direitos fundamentais. Ainda que não seja definida, é visível sua violação, quando ocorre. Ou, em outros termos, se não se define a dignidade, isso não impede que na prática social se possam apontar as violações reais que contra ela se realizem4. __________ 1 Por exemplo, José Souto Maior Borges, Sobre a atualização de créditos do sujeito passivo contra o Fisco, Revista Dialética de Direito Tributário, n. 32, p. 45. 2 O § 7º do art. 226 da CF também se refere expressamente à dignidade: "Art. 226. A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado. (...) § 7º Fundado nos princípios da dignidade da pessoa humana e da paternidade responsável, o planejamento familiar é livre decisão do casal, competindo ao Estado propiciar recursos educacionais e científicos para o exercício desse direito, vedada qualquer forma coercitiva por parte de instituições oficiais ou privadas". 3 O direito de antena em face do direito ambiental no Brasil, passim. São Paulo: Saraiva, 2000. 4 Para uma completa análise do sentido de dignidade como garantia constitucional consulte-se o nosso O princípio constitucional da dignidade humana. São Paulo: Saraiva, 2002.
No que respeita às normas constitucionais que tratam da questão dos direitos e garantias do consumidor, elas são várias, algumas explícitas, outras implícitas. A rigor, como a figura do consumidor, em larga medida, equipara-se à do cidadão, todos os princípios e normas constitucionais de salvaguarda dos direitos do cidadão são também, simultaneamente, extensivos ao consumidor pessoa física. Dessarte, por exemplo, os princípios fundamentais instituídos no art. 5º da Constituição Federal são, no que forem compatíveis com a figura do consumidor na relação de consumo, aplicáveis como comando normativo constitucional. Lembre-se, que o motivo que deve levar todo estudioso de qualquer sistema dogmático infraconstitucional à análise, em primeiro lugar, dos princípios e normas da Constituição aplicáveis ao setor jurídico escolhido é simplesmente o fato irretorquível da hierarquia do sistema jurídico. Como se sabe, o sistema jurídico brasileiro (como de resto os demais sistemas constitucionais contemporâneos) é interpretável a partir da ideia de sistema hierarquicamente organizado, no qual se tem no topo da hierarquia a Constituição Federal. Qualquer exame de norma jurídica infraconstitucional deve ser iniciado, portanto, da norma máxima, daquela que irá iluminar todo o sistema normativo. A análise e o raciocínio do intérprete se dão, assim, dedutivamente, de cima para baixo. A partir disso o intérprete poderá ir verificando a adequação e constitucionalidade das normas infraconstitucionais que pretende estudar.  A inconstitucionalidade ele resolverá, como o próprio nome diz, apontando o vício fatal na norma infraconstitucional. A adequação será norteadora para o esclarecimento, ampliação e delimitação do texto escrito da norma infraconstitucional, bem como para a apresentação precisa de seus próprios princípios. É a Constituição Federal, repita-se, o órgão diretor. É um grave erro interpretativo iniciar a análise dos textos a partir da norma infraconstitucional, subindo até o topo normativo e principiológico magno. Ainda que a norma infraconstitucional em análise seja bastante antiga, aceita e praticada, e mesmo diante do fato de que o texto constitucional seja muito novo, não se inicia de baixo. Em primeiro lugar vem o texto constitucional. Com efeito, o ato interpretativo está ligado diretamente à noção de sistema jurídico. Na verdade, é da noção de sistema que depende grandemente o sucesso do ato interpretativo. A maneira pela qual o sistema jurídico é encarado, suas qualidades, suas características, são fundamentais para a elaboração do trabalho de interpretação. A ideia de sistema está presente em todo o pensamento jurídico dogmático, nos princípios e valores dos quais ele parte e na gênese do processo interpretativo, quer o argumento da utilização do sistema seja apresentado, quer não. Sua influência é tão profunda e constante que muitas vezes não aparece explicitamente no trabalho do operador do direito - qualquer que seja o trabalho e o operador -, mas está, pelo menos, sempre subentendido. Diríamos também, aqui, que a noção de sistema é uma condição a priori do trabalho intelectual do operador do direito. O sistema não é um dado real, concreto, encontrado na realidade empírica. É uma construção científica que tem como função explicar a realidade a que se refere. Além de ser um objeto construído, o sistema é um objeto-modelo que funciona como intermediário entre o intérprete e o objeto científico que pertence à sua área de investigação. É uma espécie de tipo ideal, para usar da expressão cunhada por Max Weber1. O tipo ideal é construído a partir da concepção de sentido, como sendo aquilo que "faz sentido", como se, de repente, todas as conexões causais fossem uma totalidade. Não surge o sentido como significação de acontecimentos particulares, mas como algo percebido em bloco: unidades que não se articulam são captadas em conjunto. O tipo ideal é um produto racional que seleciona as conexões causais, removendo o que há de alheio. É uma espécie de modelo; o que não se encaixa não serve e é deixado de lado. Construído o modelo, capta-se o sentido. Como produto, tipo-ideal, objeto-modelo, o sistema é uma espécie de mapa, que reduz a complexidade do mundo real, à qual se refere, mas é o objeto por meio do qual se pode compreender a realidade. No sistema jurídico os elementos são as normas jurídicas, e sua estrutura é formada pela hierarquia, pela coesão e pela unidade. A hierarquia vai permitir que a norma jurídica fundamental (a Constituição Federal) determine a validade de todas as demais normas jurídicas de hierarquia inferior. A coesão demonstra a união íntima dos elementos (normas jurídicas) com o todo (o sistema jurídico), apontando, por exemplo, para ampla harmonia e importando em coerência. A unidade dá um fechamento ao sistema jurídico como um todo que não pode ser dividido: qualquer elemento interno (norma jurídica) é sempre conhecido por referência ao todo unitário (o sistema jurídico). Mas a construção do sistema jurídico, como objeto-modelo que possibilite a compreensão do ordenamento jurídico e seu funcionamento, ainda não está completa (na verdade, a história mostra que o objeto-modelo "sistema jurídico" está sempre sendo aperfeiçoado pelo pensamento jurídico como um todo). Por isso se fala em completude, cuja definição remete ao conceito de lacuna. Esta, por sua vez, pressupõe ausência de norma, que se colmata pelo princípio da integração executada pelo intérprete2 e que, no sistema jurídico brasileiro, tem regra de solução expressa: a do art. 4º da Lei de Introdução às Normas do Direito Civil Brasileiro3. ____________ 1 Economía y sociedad, p. 706 e 1057. 2 Sobre o tema da completude e das lacunas ver o nosso Manual de introdução ao estudo do direito, Capítulo 6, subitem 6.7. 3 "Art. 4º Quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito.
O Código de Defesa do Consumidor é, ele próprio, formado por princípios que hão de ser respeitados pelo intérprete, como, num futuro artigo eu demonstrarei. Mas, antes de ingressar no exame do arcabouço dogmático do CDC, é necessário que conheçamos as normas constitucionais às quais ele está ligado e que, portanto, devem dirigi-lo. Além disso, é forçoso que se reconheça, da mesma forma, os princípios constitucionais que conduzam à interpretação não só do próprio texto magno como também do CDC. A Constituição, como se sabe, no Estado de Direito Democrático, é a lei máxima, que submete todas as pessoas, bem como os próprios Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário. As normas constitucionais, além de ocuparem o ápice da "pirâmide jurídica", caracterizam-se pela imperatividade de seus comandos, que obrigam não só as pessoas físicas ou jurídicas, de direito público ou de direito privado, como o próprio Estado. A Carta Magna exprime um conjunto de normas supremas, que demandam incondicional observância, inclusive pelo legislador infraconstitucional. Não é por outro motivo que se diz que a Constituição é a lei fundamental do Estado. Logo, não há como duvidar que as normas jurídicas mais importantes encontram-se na Constituição. É ela que indica quem detém os poderes estatais, quais são esses poderes, como devem ser exercidos e quais os direitos e garantias que as pessoas têm em relação a eles. Mas mesmo na Constituição existem normas mais relevantes que outras. Essas, mais importantes, são as que veiculam princípios, verdadeiras diretrizes do ordenamento jurídico. É deles que me ocuparei. Os princípios constitucionais são verdadeiras vigas mestras, alicerces sobre os quais se constrói o sistema jurídico. Eles dão estrutura e coesão ao edifício jurídico. Assim, devem ser estritamente obedecidos, sob pena de todo o ordenamento jurídico se corromper. O princípio jurídico é um enunciado lógico, implícito ou explícito, que, por sua grande generalidade, ocupa posição de preeminência nos horizontes do sistema jurídico e, por isso mesmo, vincula, de modo inexorável, o entendimento e a aplicação das normas jurídicas que com ele se conectam. O princípio jurídico influi na interpretação até mesmo das próprias normas magnas. Se um mandamento constitucional tiver pluralidade de sentidos, a interpretação deverá ser feita com vistas a fixar o sentido que possibilitar uma sintonia com o princípio que lhe for mais próximo. Da mesma maneira, se surgir uma aparente antinomia entre os textos normativos da Constituição, ela será resolvida pela aplicação do princípio mais relevante no contexto. Na realidade o princípio funciona como um vetor para o intérprete. E o jurista, na análise de qualquer problema jurídico, por mais trivial que este possa ser, deve, preliminarmente, alçar-se ao nível dos grandes princípios, a fim de verificar em que direção eles apontam. Nenhuma interpretação será havida por jurídica se atritar com um princípio constitucional. Percebe-se, assim, que os princípios exercem uma função importantíssima dentro do ordenamento jurídico-positivo, já que orientam, condicionam e iluminam a interpretação das normas jurídicas em geral. Por serem normas qualificadas, os princípios dão coesão ao sistema jurídico, exercendo excepcional fator aglutinante. Embora os princípios e as normas tenham a mesma estrutura lógica, aqueles têm maior pujança axiológica do que estas. São, pois, normas qualificadas, que ocupam posição de destaque no mundo jurídico, orientando e condicionando a aplicação de todas as demais normas. Pode-se dizer, portanto, que os princípios são regras-mestras dentro do sistema positivo, cabendo ao intérprete buscar identificar as estruturas básicas, os fundamentos, os alicerces do sistema em análise. Se se tratar da Constituição, falar-se-á em princípios constitucionais; se se referir ao CDC ou ao Código de Processo Civil, serão princípios legais daqueles sistemas normativos, de natureza infraconstitucional. Assim, a partir dessas considerações, percebe-se que os princípios funcionam como verdadeiras supranormas, isto é, uma vez identificados, agem como regras hierarquicamente superiores às próprias normas positivadas no conjunto das proposições escritas.
Hoje continuo a cuidar de mais alguns aspectos históricos para uma boa compreensão do Código de Defesa do Consumidor. Falo da importância da Constituição Federal para o funcionamento do regime capitalista no Brasil. Com efeito, as constituições federais do ocidente são documentos históricos políticos ideológicos que refletem o andamento do pensamento jurídico da humanidade. Tanto é verdade, que a primeira Constituição do pós-guerra, da Segunda Grande Guerra, a Constituição alemã, traz exatamente, por força desse movimento, desse pensamento jurídico humanitário, no seu art. 1º, que a dignidade da pessoa humana é um bem intangível. Foi a experiência com o nazismo da Segunda Guerra Mundial que fez com que as nações produzissem textos constitucionais reconhecendo esse elemento da história. No caso brasileiro, a Constituição Federal de 1988 também o fez no art. 1º, III: a dignidade da pessoa humana é um bem intangível. Quando examinamos o texto da Constituição Federal brasileira de 1988, percebemos que ela, inteligentemente, aprendeu com a história e também com o modelo de produção industrial que relatei nos dois artigos anteriores. Podemos perceber que os fundamentos da República Federativa do Brasil são de um regime capitalista, mas de um tipo definido pela Carta Magna. Esta, em seu art. 1º, diz que a República Federativa é formada com alguns fundamentos, dentre eles a cidadania, a dignidade da pessoa humana e, como elencados no inc. IV do art. 1º, os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa1. E sobre esse último aspecto, deve-se fazer um comentário específico. Tem-se dito, de forma equivocada, que esse fundamento da livre iniciativa na República Federativa do Brasil é o de uma livre iniciativa ampla, total e irrestrita. Na verdade, trata-se de uma interpretação errônea do texto. O inciso IV do art. 1º é composto de duas proposições ligadas por uma conjuntiva "e": "os valores sociais do trabalho 'e' da livre iniciativa". Para interpretar o texto adequadamente basta lançar mão do primeiro critério de interpretação, qual seja, o gramatical. Ora, essas duas proposições ligadas pela conjuntiva fazem surgir duas dicotomias: trata-se dos valores sociais do trabalho "e" dos valores sociais da livre iniciativa. Logo, a interpretação somente pode ser que a República Federativa do Brasil está fundada nos valores sociais do trabalho e nos valores sociais da livre iniciativa, isto é, quando se fala em regime capitalista brasileiro, a livre iniciativa sempre gera responsabilidade social. Ela não é ilimitada. Ou seja, o regime é capitalista. Logo há livre iniciativa, ela é possível, e aquele que tem patrimônio e/ou que tem condições de adquirir crédito no mercado pode, caso queira, empreender algum negócio. Mas, há de respeitar os limites impostos pelos princípios constitucionais. Assim, quando se chega ao art. 170 da Constituição Federal, que trata dos princípios gerais da atividade econômica, com seus nove princípios, esses elementos iniciais têm de ser levados em conta. ___________ 1. "Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: I - a soberania; II - a cidadania; III - a dignidade da pessoa humana; IV - os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa; V - o pluralismo político. Parágrafo único. Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição."
Hoje continuo a cuidar de mais alguns aspectos históricos para uma boa compreensão do Código de Defesa do Consumidor (CDC). No artigo anterior, mostrei que partir do período pós-Revolução Industrial, com o crescimento populacional nas metrópoles, que gerava aumento de demanda e, portanto, uma possibilidade de aumento da oferta, a indústria em geral passou a querer produzir mais, para vender para mais pessoas (o que era e é legítimo). Passou-se então a pensar num modelo capaz de entregar, para um maior número de pessoas, mais produtos e mais serviços. Para isso, criou-se a chamada produção em série, a "standartização" da produção, a homogeneização da produção. Pois bem. Este é o modo de produção, de oferta de produtos e serviços de massa do século XX. Só que, no caso brasileiro, nós aplicamos até 10 de março de 1991, o Código Civil às relações jurídicas de consumo, e isto gerou problemas sérios para a compreensão da própria sociedade. Passamos a interpretar as relações jurídicas de consumo e os contratos com base na lei civil, inadequada para tanto e, como isso se deu durante quase todo o século XX, tivemos dificuldade para entender e aplicar o CDC em todos os seus aspectos por muito tempo. Dou um exemplo: na questão contratual, nossa memória privatista pressupunha que, quando vemos o contrato, assistimos ao aforismo que diz pacta sunt servanda, posto que no direito civil essa é uma das características contratuais, com fundamento na autonomia da vontade. Ora, nas relações contratuais no direito civil, no direito privado, durante todo o século XX havia o pressuposto de que aqueles que querem contratar, sentam-se à mesa em igualdade de condições e transmitem o elemento subjetivo volitivo de dentro para fora, transformado em dado objetivo: proposições que, organizadas em forma de cláusulas impressas num pedaço de papel, faziam surgir o contrato escrito. Era a tentativa de delineamento objetivo de uma vontade, portanto elemento subjetivo. Era a escrita - o tipo de contrato - que o direito civil tradicional pretendia controlar1. Então, quando nos referíamos às relações contratuais privatistas, o que se fazia era uma interpretação objetiva de um pedaço de papel com palavras organizadas em proposições inteligíveis e que deveriam representar a vontade subjetiva das partes que estavam lá, na época do ato da contratação, transmitindo o elemento subjetivo para aquele mesmo pedaço de papel. E uma vez que tal foi feito, pacta sunt servanda, isto é, os pactos devem ser respeitados. Acontece que isto não servia para as relações de consumo. Esse esquema legal privatista para interpretar contratos de consumo é completamente equivocado, porque o consumidor não se senta à mesa para negociar cláusulas contratuais. Na verdade, o consumidor vai ao mercado e recebe produtos e serviços postos e ofertados em contratos de adesão, verbais ou escritos, elaborados unilateralmente pelos fornecedores. Tais elementos, o CDC pretendeu controlar, e de forma inteligente. O problema foi que, a aplicação da lei civil, assim como a memória dos operadores do direito, geraram uma série de equívocos. Até a oferta, para ilustrarmos com mais um exemplo, é diferente nos dois regimes: no direito privado é um convite à oferta; no direito do consumidor, é uma oferta que vincula o ofertante. Enfim, essa foi uma situação que, por um bom tempo, acabou afetando o entendimento da lei. __________ 1 Claro que não estamos esquecendo o contrato verbal, pois ele tem a mesma característica de tentativa de objetividade; só não foi escrito.
O Código de Defesa do Consumidor (CDC), como sabemos, foi editado em 11 de setembro de 1990; é, portanto, uma lei muito atrasada de proteção ao consumidor. Por exemplo, passamos quase o século XX inteiro aplicando às relações de consumo o Código Civil, lei que entrou em vigor em 1917, fundada na tradição do direito civil europeu do século anterior. Pensemos num ponto de realce importante: em relação ao direito civil, pressupõe-se uma série de condições para contratar, que não vigem para relações de consumo. No entanto, durante todo aquele tempo, no Brasil, acabamos aplicando às relações de consumo a lei civil para resolver os problemas que surgiram e, por isso, o fizemos de forma equivocada. Esses equívocos remanesceram na nossa formação jurídica, ficaram na nossa memória influindo na maneira como enxergávamos as relações de consumo, e, demoramos bastante para fazer uma limpeza dessa influência. E,  em algumas situações, ainda temos dificuldades para interpretar e compreender um texto que é bastante enxuto, curto, que diz respeito a um novo corte feito no sistema jurídico, e que regula especificamente as relações que envolvem os consumidores e os fornecedores. No entanto, apesar de atrasado no tempo, o CDC acabou tendo resultados altamente positivos, porque o legislador, isto é, aqueles que pensaram na sua elaboração - os professores que geraram o texto do anteprojeto que acabou virando a Lei n. 8.078 (a partir do projeto apresentado pelo, na época, Deputado Geraldo Alckmin) -, pensaram e trouxeram para o sistema legislativo brasileiro aquilo que existia e existe de mais moderno na proteção do consumidor. O resultado foi tão positivo que a lei brasileira já inspirou a lei de proteção ao consumidor na Argentina, reformas no Paraguai e no Uruguai e projetos em países da Europa. Olhemos, então, um pouco para o passado. Uma lei de proteção ao consumidor pressupõe entender a sociedade a que nós pertencemos. E essa sociedade tem uma origem bastante remota que precisamos pontuar, especialmente naquilo que nos interessa, para entendermos a chamada sociedade de massa, com sua produção em série, na sociedade capitalista contemporânea. Vamos partir do período pós-Revolução Industrial. Com o crescimento populacional nas metrópoles, que gerava aumento de demanda e, portanto, uma possibilidade de aumento da oferta, a indústria em geral passou a querer produzir mais, para vender para mais pessoas (o que era e é legítimo). Passou-se então a pensar num modelo capaz de entregar, para um maior número de pessoas, mais produtos e mais serviços. Para isso, criou-se a chamada produção em série, a "standartização" da produção, a homogeneização da produção. Essa produção homogeneizada, "standartizada", em série, possibilitou uma diminuição profunda dos custos e um aumento enorme da oferta, indo atingir, então, uma mais larga camada de pessoas. Este modelo de produção é um modelo que deu certo; veio crescendo na passagem do século XIX para o século XX; a partir da Primeira Guerra Mundial houve um incremento na produção, que se solidificou e cresceu em níveis extraordiná­rios a partir da Segunda Guerra Mundial com o surgimento da tecnologia de ponta, do fortalecimento da informática, do incremento das telecomunicações etc. A partir da segunda metade do século XX, esse sistema passa a avançar sobre todo o globo terrestre, de tal modo que permitiu que nos últimos anos do século passado se pudesse implementar a ideia de globalização. Temos, assim, a sociedade de massa. Dentre as várias características desse modelo destaca-se uma que interessa: nele a produção é planejada unilateralmente pelo fabricante no seu gabinete, isto é, o produtor pensa e decide fazer uma larga oferta de produtos e serviços para serem adquiridos pelo maior número possível de pessoas. A ideia é ter um custo inicial para fabricar um único produto, e depois reproduzi-lo em série. Assim, por exemplo, planeja-se uma caneta esferográfica única e a partir desta reproduzem-se milhares, milhões de vezes em série. Quando a montadora resolve produzir um automóvel, gasta uma quantia X de dinheiro na criação de um único modelo e, depois, o reproduz milhares de vezes, o que baixa o custo final de cada veículo, permitindo que o preço de varejo possa ser acessível a um maior número de pessoas. Esse modelo de produção industrial, que é o da sociedade capitalista contemporânea, pressupõe planejamento estratégico unilateral do fornecedor, do fabricante, do produtor, do prestador do serviço etc. Ora, esse planejamento unilateral tinha de vir acompanhado de um modelo contratual. E este acabou por ter as mesmas características da produção. Aliás, já no começo do século XX, o contrato era planejado da mesma forma que a produção. Não tinha sentido fazer um automóvel, reproduzi-lo vinte mil vezes, e depois fazer vinte mil contratos diferentes para os vinte mil compradores. Na verdade quem faz um produto e o reproduz vinte mil vezes também faz um único contrato e o reproduz vinte mil vezes. Ou, no exemplo das instituições financeiras, milhões de vezes. Quem planeja a oferta de um serviço ou um produto qualquer, por exemplo, financeiro, bancário, para ser reproduzido milhões de vezes, também planeja um único contrato e o imprime e distribui milhões de vezes. Esse padrão é, então, o de um modelo contratual que supõe que aquele que produz um produto ou um serviço de massa planeja um contrato de massa que veio a ser chamado pela lei 8.078 de contrato de adesão. Lembre-se, por isso, que a primeira lei brasileira que tratou da questão foi exatamente o Código de Defesa do Consumidor: no seu art. 54 está regulado o contrato de adesão. E por que o contrato é de adesão? Ele é de adesão por uma característica evidente e lógica: o consumidor só pode aderir. Ele não discute cláusula alguma. Para comprar produtos e serviços o consumidor só pode examinar as condições previamente estabelecidas pelo fornecedor, e pagar o preço exigido, dentro das formas de pagamento também prefixadas. __________ Continuarei na próxima semana.
O Código de Defesa do Consumidor (CDC - lei 8078/90), em termos conceituais, estabeleceu uma confusão ao pretender, como fez, utilizar dois termos distintos: "defeito" e "vício". Os defeitos vêm sendo tratados nos arts. 12 a 14 e os vícios nos arts. 18 a 20. Para entender "defeito", é necessário antes - por motivos que adiante se saberá - conhecer o sentido de "vício". Além disso, várias passagens são mal escritas, dando margem a dúvidas e dificuldades de interpretação. Comecemos, então, fazendo a distinção - que é do CDC - entre vício e defeito.  O termo "vício" lembra vício redibitório, instituto do direito civil que tem com ele alguma semelhança na condição de vício oculto, mas com ele não se confunde. Até porque é regra própria do sistema do CDC. São consideradas vícios as características de qualidade ou quantidade que tornem os produtos ou serviços impróprios ou inadequados ao consumo a que se destinam e, também, que lhes diminuam o valor. Da mesma forma são considerados vícios os decorrentes da disparidade havida em relação às indicações constantes do recipiente, embalagem, rotulagem, oferta ou mensagem publicitária. Os vícios, portanto, são os problemas que, por exemplo: a) fazem com que o produto não funcione adequadamente, como um liquidificador que não gira; b) fazem com que o produto funcione mal, como a televisão sem som, o automóvel que "morre" toda hora etc.; c) diminuam o valor do produto, como riscos na lataria do automóvel, mancha no terno etc.; d) não estejam de acordo com informações, como o vidro de mel de 500 ml que só tem 400 ml; o saco de 5 kg de açúcar que só tem 4,8 kg; o caderno de 200 páginas que só tem 180 etc.; e) façam os serviços apresentarem características com funcionamento insuficiente ou inadequado, como o serviço de desentupimento que no dia seguinte faz com que o banheiro alague; o carpete que descola rapidamente; a parede mal pintada; o extravio de bagagem no transporte aéreo etc. Os vícios podem ser aparentes ou ocultos. Os aparentes ou de fácil constatação, como o próprio nome diz, são aqueles que aparecem no singelo uso e consumo do produto (ou serviço). Ocultos são aqueles que só aparecem algum ou muito tempo após o uso e/ou que, por estarem inacessíveis ao consumidor, não podem ser detectados na utilização ordinária. O defeito, por sua vez, pressupõe o vício. Há vício sem defeito, mas não há defeito sem vício. O vício é uma característica inerente, intrínseca do produto ou serviço em si. O defeito é o vício acrescido de um problema extra, alguma coisa extrínseca ao produto ou serviço, que causa um dano maior que simplesmente o mau funcionamento, o não funcionamento, a quantidade errada, a perda do valor pago - já que o produto ou serviço não cumpriram o fim ao qual se destinavam. O defeito causa, além desse dano do vício, outro ou outros danos ao patrimônio jurídico material e/ou moral e/ou estético e/ou à imagem do consumidor. Logo, o defeito tem ligação com o vício, mas, em termos de dano causado ao consumidor, é mais devastador. Temos, então, que o vício pertence ao próprio produto ou serviço, jamais atingindo a pessoa do consumidor ou outros bens seus. O defeito vai além do produto ou do serviço para atingir o consumidor em seu patrimônio jurídico mais amplo (seja moral, material, estético ou da imagem). Por isso, somente se fala propriamente em acidente, e, no caso, acidente de consumo, na hipótese de defeito, pois é aí que o consumidor é atingido1. Mostro, agora, dois exemplos que elucidam a diferença entre vício e defeito. 1.Dois consumidores vão à concessionária receber seu automóvel zero-quilômetro. Ambos saem dirigindo seu veículo alegremente. Os consumidores não sabem, mas o sistema de freios veio com problema de fábrica. Aquele que sai na frente passa a primeira esquina e segue viagem. No meio do quarteirão seguinte, pisa no breque e este não funciona. Vai, então, reduzindo as marchas e com sorte consegue parar o carro encostando-o numa guia. O segundo, com menos sorte, ao atingir a primeira esquina, depara com o semáforo no vermelho. Pisa no breque, mas este não funciona. O carro passa e se choca com outro veículo, causando danos em ambos os carros. O primeiro caso, como o problema está só no freio do veículo, é de vício. No segundo, como foi além do freio do veículo, causando danos não só em outras áreas do próprio automóvel como no veículo de terceiros, trata-se de defeito. 2.Um consumidor compra uma caixinha longa-vida de creme de leite. Ao chegar em casa, abre-a e vê que o produto está embolorado. É vício, pura e simplesmente. Outro compra o mesmo creme de leite. Abre a caixa em casa, mas o faz com um corte lateral. Prepara um delicioso strogonoff e serve para a família. Todos têm de ser hospitalizados, com infecção estomacal. É caso de defeito. É, portanto, pelo efeito e pelo resultado extrínseco causado pelo problema que se poderá detectar o defeito. O chamado acidente de consumo está relacionado com o defeito. __________ 1 Seria mais adequado dizer "mais atingido", porque, quando há vício, o consumidor já é afetado de alguma maneira, ainda que apenas no aspecto patrimonial do preço pago pelo produto ou serviço viciado
O Código de Defesa do Consumidor (CDC-lei 8078/90) já é uma lei bastante conhecida, mas ainda assim, de vez em quando, surgem dúvidas na intepretação de suas normas, princípios e conceitos. Para facilitar o entendimento das hipóteses envolvendo o CDC é importante levar em consideração uma questão preliminar, que deve nortear o trabalho de todos aqueles que pretendem compreendê-lo: é preciso que se estabeleça claramente o fato de que ele tem vida própria, tendo sido criado como subsistema autônomo e vigente dentro do sistema constitucional brasileiro. E os vários princípios constitucionais que o embasam são elementos vitais ao entendimento de seus ditames. Não será possível interpretar adequadamente a legislação consumerista se não se tiver em mente esse fato de que ela comporta um subsistema no ordenamento jurídico, que prevalece sobre as  demais - exceto, claro, o próprio sistema da Constituição Federal  -, sendo aplicável às outras normas de forma supletiva e complementar. Além disso, a edição do CDC inaugurou um novo modelo jurídico dentro do Sistema Constitucional Brasileiro. Em primeiro lugar, a lei 8.078/90 é Código por determinação constitucional (conforme art. 48 do ADCT/CF), o que mostra, desde logo, o primeiro elemento de ligação entre ele e a Carta Magna. Ademais, o CDC é uma lei principiológica, modelo até então inexistente no Sistema Jurídico Nacional. Como lei principiológica entende-se aquela que ingressa no sistema jurídico, fazendo, digamos assim, um corte horizontal, indo, no caso do CDC, atingir toda e qualquer relação jurídica que possa ser caracterizada como de consumo e que esteja também regrada por outra norma jurídica infraconstitucional. Assim, por exemplo, um contrato de seguro de automóvel continua regulado pelo Código Civil e pelas demais normas editadas pelos órgãos governamentais que regulamentem o setor (Susep, Instituto de Resseguros etc.), porém estão tangenciados por todos os princípios e regras da lei 8.078/90, de tal modo que, naquilo que com eles colidirem, perdem eficácia por tornarem-se nulos de pleno direito. E mais e principalmente: o caráter principiológico específico do CDC é apenas e tão somente um momento de concretização dos princípios e garantias constitucionais vigentes desde 5 de outubro de 1988 como cláusulas pétreas, não podendo, pois, ser alterados. Com efeito, o que a lei consumerista faz é tornar explícitos, para as relações de consumo, os comandos constitucionais. Dentre estes destacam-se os Princípios Fundamentais da República, que norteiam todo o regime constitucional e os direitos e garantias fundamentais. Assim, à frente de todos está o superprincípio da dignidade da pessoa humana (CF, art. 1º, III), como especial luz a imantar todos os demais princípios e normas constitucionais e apresentando-se a estes como limite intransponível e, claro, a toda e qualquer norma de hierarquia inferior. A seguir, no texto constitucional estão os demais princípios e garantias fundamentais que são reconhecidos no CDC e que aqui relembramos: o princípio da igualdade (CF, art. 5º, caput e inciso I); a garantia da imagem, da honra, da privacidade, da intimidade, da propriedade e da indenização por violação a tais direitos de modo material e também por dano moral (CF, art. 5º, V, c/c, os incisos X e XXII); ligado à dignidade e demais garantias está o piso vital mínimo insculpido como o direito à educação, à saúde, ao trabalho, ao lazer, à segurança, à previdência social, à maternidade etc. (CF, art. 6º); e unidos a todos esses direitos está o da prestação de serviços públicos essenciais com eficiência, publicidade, impessoalidade e moralidade (CF, art. 37, caput). Não se pode olvidar que é também cláusula pétrea como dever absoluto para o Estado a defesa do consumidor (CF, art. 5º, XXXII). Resta ainda lembrar que a Constituição Federal estabelece que o regime econômico brasileiro é capitalista, mas limitado (CF, art. 1º, IV, c/c arts. 170 e s.): são fundamentos da república os valores sociais do trabalho e os valores sociais da livre iniciativa (CF, art. 1º, IV), e a defesa do consumidor é princípio fundamental da ordem econômica (CF, art. 170, V). Ora, o CDC nada mais fez do que concretizar numa norma infraconstitucional esses princípios e garantias constitucionais. Assim está previsto expressamente no seu art. 1º. O respeito à dignidade, à saúde, à segurança, à proteção dos interesses econômicos, e à melhoria de qualidade de vida está também expressamente previsto no seu art. 4º, caput. A característica de vulnerabilidade do consumidor prevista no inciso I do art. 4º decorre diretamente da aplicação do princípio da igualdade do texto magno. O CDC é categórico no que respeita à prevenção e reparação dos danos patrimoniais e morais (art. 6º, VI), e o acesso à justiça e aos órgãos administrativos com vistas à prevenção e reparação de danos é também outra regra manifesta (art. 6º, VII). A adequada e eficaz prestação dos serviços públicos em geral é, da mesma forma, norma clara na lei (art. 6º, X) etc. Logo, fica patente o caráter principiológico da lei 8.078/90.
quinta-feira, 21 de setembro de 2023

A qualidade dos alimentos: dá para confiar?

Se já não bastassem os problemas com carboidratos, proteínas, gorduras, calorias etc. que atingem crianças, jovens, adolescentes, adultos, idosas e idosos, enfim, todos os consumidores e consumidoras,  a cada dia fica mais claro que, na sociedade capitalista contemporânea, que só conhece o lucro e só pensa nele, muitos produtos vendidos são falsificados, adulterados e deteriorados. E, infelizmente, não se trata apenas de "vender gato por lebre". Há muitos produtos autênticos que fazem mal por suas próprias substâncias, por falta de informação ou por informação imprecisa etc. N'outro dia,  meu amigo Outrem Ego me perguntou: "Como é que a gente pode identificar se os produtos que ingerimos são, de fato, de boa qualidade?". Realmente, é difícil fazer essa identificação. Em boa parte das vezes, o consumidor e a consumidora se servem dos olhos e do nariz: aparência e cheiro são boas alternativas para se aferir qualidade, mas nem sempre dá certo. E depois, quando experimenta, o sabor também é referência. Claro que se pode lançar mão das cautelas tradicionais como, por exemplo, quando for adquirir carnes vermelhas, verificar se elas apresentam zonas (ou manchas) escurecidas ou zonas ou pontos secos, sinais de deterioração. Ou, então, nunca comprar carne moída que já estava triturada quando se chegou no açougue ou balcão de carnes do supermercado (Deve-se sempre escolher a carne inteira e pedir para moer à vista). Também não se deve comprar carne de porco que apresente pequenas bolinhas brancas (conhecidas como "canjica"). Bem, como comecei, deixe-me lembrar das cautelas para compras de aves: a sua carne estará boa quando tiver consistência firme, cor amarelo-pálida, brilhante e com odor (cheiro) suave, e estará deteriorada quando: apresentar cor esverdeada; sua consistência não estiver firme; e/ou apresentar cheiro forte. E, quanto aos peixes, o consumidor ou a consumidora só deve adquirir os que tiverem o corpo rijo (duro), escamas firmes e os olhos salientes e brilhantes. Já os peixes secos, como o bacalhau, estarão deteriorados se apresentarem manchas úmidas ou avermelhadas. Assim, quer o consumidor e a consumidora compre os próprios alimentos para preparar quer os compre prontos, deve lembrar que o mercado está repleto de fraudes de todo tipo e também de produtos deteriorados,  que transmitem doenças nem sempre de forma rápida a se poder perceber o que causou o mal (O que gera um grande problema de prova e investigação - pessoal ou pelas autoridades). Realmente, esse mundo capitalista, às vezes, é de arrepiar e de tirar o apetite! Não é à toa que alguns bons restaurantes, desde há muito tempo, passaram a abrir suas cozinhas para que os clientes possam ver como a comida está sendo preparada ou, pelo menos, permitem que eles façam uma visita nas instalações. Porém, nem sempre isso é suficiente - lembremos das carnes preparadas, dos embutidos etc. Por isso, inclusive, os consumeristas dizem que um bom modo de conhecer a higiene do restaurante é ir, antes de mais nada, ao banheiro local. Se ele estiver asseado, é um bom começo. Mas, se nem o banheiro, que é escancarado ao olhar dos clientes, está limpo, o que se dirá do resto? Claro que, como diz meu amigo, Outrem Ego, "Dá para 'maquiar' o banheiro. Este pode estar tinindo, lindo, cheiroso e ainda assim a comida não estar no mesmo padrão. Não é fácil mesmo a vida dos consumidores e consumidoras, especialmente se estiver com fome". Essa situação de fragilidade dos consumidores e consumidoras em relação aos serviços e produtos oferecidos e adquiridos, já disse mais de uma vez aqui nesta coluna, é uma característica universal e que a nossa lei de proteção expressamente reconhece: sua vulnerabilidade, porque não só não têm acesso aos meios de produção e distribuição como é obrigado a acreditar (confiar) nas informações que se lhes dirigem. Há, é verdade, bons produtos e bons fornecedores, mas nenhuma área está isenta de fraudes e/ou problemas de qualidade. Podem ser produtos "in natura" ou industrializados.
Continuo a tratar a responsabilidade civil objetiva no CDC, análise que iniciei no artigo anterior. Já vimos que um fato é inevitável (e incontestável): há e sempre haverá produtos e serviços com defeito. Tendo em vista esse fato, o CDC (a lei 8.078/90)  resolveu controlar - e o fez de forma adequada -- o resultado da produção viciada/defeituosa, cuidando de garantir ao consumidor o ressarcimento pelos prejuízos sofridos. Note-se que a questão do vício/defeito envolve o produto e o serviço em si, independentemente da figura do produtor (bem como de sua vontade ou atuação). O produto e o serviço são os causadores diretos do dano ao consumidor. O fornecedor só é considerado na medida em que é o responsável pelo ressarcimento dos prejuízos. Nesse ponto tenho, então, de colocar outro aspecto relevante, justificador da responsabilidade do fornecedor, no que respeita ao dever de indenizar: o da origem do fundo capaz de pagar os prejuízos. É a receita e o patrimônio do fabricante, produtor, prestador de serviço etc. que respondem pela indenização relativa ao prejuízo sofrido pelo consumidor. O motivo, aliás, é simples: a receita e o patrimônio abarcam "todos" os produtos e serviços oferecidos. "Todos", isto é, tanto os produtos e serviços sem vício/defeito quanto aqueles que ingressaram no mercado com vício/defeito. O resultado das vendas, repita-se, advém do pagamento do preço pelo consumidor dos produtos e serviços bons e, também, dos viciados/defeituosos. Usando o mesmo cálculo que fiz e apresentei no artigo anterior: vamos supor uma produção de 100.000 liquidificadores/mês e um vício/defeito no final do ciclo de produção de apenas 0,1%. O  mercado receberá 100.000 liquidificadores e o produtor aferirá uma receita advinda de sua totalidade. Acontece que apenas 99.900 consumidores adquirirão efetivamente liquidificadores em perfeito estado de funcionamento. Os outros 100 arcarão com o ônus de ter comprado os liquidificadores com vício/defeito. Nesse ponto, é preciso inserir outro princípio legal justificador do tratamento protecionista dos consumidores que adquiriram os produtos viciados/defeituosos. É o princípio constitucional da igualdade. Não teria, nem tem cabimento, que os 100 consumidores que adquiriram os liquidificadores com vício/defeito e que pagaram por eles o mesmo preço dos demais 99.900 consumidores, não tivessem os mesmos direitos e garantias assegurados a estes últimos. Para igualá-los, é preciso que: a) recebam outro produto em condições perfeitas de funcionamento; b) aceitem o valor do preço de volta; c) ou, ainda, sejam ressarcidos de eventuais outros prejuízos sofridos. É dessa forma que se justifica a estipulação de uma responsabilidade objetiva do fornecedor. E há mais elementos que explicam por que o sistema normativo do CDC adotou a responsabilização objetiva. É o relacionado não só à dificuldade da demonstração da culpa do fornecedor, assim como ao fato de que, efetivamente, muitas vezes, ele não tem mesmo culpa de o produto ou serviço terem sido oferecidos com vício/defeito. Essa é a questão: o produto e o serviço são oferecidos com vício/defeito, mas o fornecedor não foi negligente, imprudente nem imperito. Se não tivéssemos a responsabilidade objetiva, o consumidor terminaria fatalmente lesado, sem poder ressarcir-se dos prejuízos sofridos (como era no regime anterior). Aqueles 100 consumidores que adquiriram os liquidificadores com vício/defeito, muito provavelmente, não conseguiriam demonstrar a culpa do fabricante. Explicando melhor: no regime de produção em série o fabricante, produtor, prestador de serviços etc. não podem ser considerados, à priori, negligentes, imprudentes ou imperitos. É que o produtor contemporâneo, em especial aquele que produz em série, como regra não age com culpa. Ao contrário, numa verificação de seu processo de fabricação, perceber-se-á que no ciclo de produção trabalham profissionais que avaliam a qualidade dos insumos adquiridos, técnicos que controlam cada detalhe dos componentes utilizados, engenheiros de qualidade que testam os produtos fabricados, enfim, no ciclo de produção como um todo não há, de fato, omissão (negligência), ação imprudente ou imperita. No entanto, pelas razões já expostas, haverá produtos e serviços viciados/defeituosos. Vê-se, só por isso, que, se o consumidor tivesse de demonstrar a culpa do produtor, não conseguiria. Ademais, ainda que culpa houvesse, sua prova como ônus para o consumidor levaria ao insucesso, pois o consumidor não tinha e não tem acesso ao sistema de produção e, também, a prova técnica posterior ao evento danoso teria pouca possibilidade de demonstrar a culpa. Registro, por fim, que o CDC intitula a seção que cuida do tema como "Da responsabilidade pelo fato do produto e do serviço", porque a norma, dentro do regramento da responsabilidade objetiva, é dirigida mesmo ao fato do produto ou serviço em si. É o "fato" do produto e do serviço causadores do dano o que importa. Costuma-se também falar em "acidente de consumo" para referir ao fato do produto ou do serviço. Algumas observações são necessárias a respeito disso. A expressão "acidente de consumo", muito embora largamente utilizada, pode confundir, porque haverá casos de defeito em que a palavra "acidente" não fica muito adequada. Assim, por exemplo, fazer lançamento equivocado no cadastro de devedores do Serviço de Proteção ao Crédito é defeito do serviço, gerando responsabilidade pelo pagamento de indenização por danos materiais, morais e à imagem. Porém, não se assemelha em nada a um "acidente". De outro lado, a lei fala em "fato" do produto. A palavra fato permite uma conexão com a ideia de acontecimento, o que implica, portanto, qualquer acontecimento. Lembro, de todo modo, que se tem usado tanto "fato" do produto e do serviço quanto "acidente de consumo" para definir o defeito. Porém, o mais adequado é guardar a expressão "acidente de consumo" para as hipóteses em que tenha ocorrido mesmo um acidente: queda de avião, batida do veículo por falha do freio, quebra da roda-gigante no parque de diversões etc., e deixar fato ou defeito para as demais ocorrências danosas. Em qualquer hipótese, aplica-se a lei. O estabelecimento da responsabilidade de indenizar nasce, portanto, do nexo de causalidade existente entre o consumidor (lesado), o produto e/ou serviço e o dano efetivamente ocorrente. Fica, assim, demonstrada, a teoria - e a realidade - fundante da responsabilidade civil objetiva estatuída no CDC, assim como as amplas garantias indenizatórias em favor do consumidor que sofreu o dano - ou seus familiares ou, ainda, o equiparado e seus familiares.
O Código de Defesa do Consumidor (CDC) estabeleceu a responsabilidade civil objetiva dos fornecedores pelos danos advindos dos defeitos de seus produtos e serviços (arts. 12, 13 e 14) e ofereceu poucas alternativas de desoneração (na verdade, de rompimento do nexo de causalidade) tais como a culpa exclusiva do consumidor ou de terceiro. Pela importância do tema, eu a ele retorno. E para que se possa compreender o porquê dessa ampla responsabilização, é preciso conhecer a teoria do risco do negócio ou da atividade, que é sua base e que eu examino na sequência. A Constituição Federal garante a livre iniciativa para a exploração da atividade econômica, em harmonia com uma série de princípios (CF, art. 170), iniciativa esta que é, de fato, de uma forma ou de outra, característica da sociedade capitalista contemporânea. E uma das características principais da atividade econômica é o risco. Os negócios implicam risco. Na livre iniciativa, a ação do empreendedor está aberta simultaneamente ao sucesso e ao fracasso. A boa avaliação dessas possibilidades por parte do empresário é fundamental para o investimento. Um risco mal calculado pode levar o negócio à bancarrota. De todo modo,  o risco é dele. É claro que são muitas as variáveis em jogo e que têm que ser avaliadas, tanto mais se existir uma autêntica competitividade no setor escolhido. Os insumos básicos para a produção, os meios de distribuição, a expectativa do consumidor em relação ao produto ou ao serviço a serem produzidos e oferecidos, a qualidade destes, o preço, os tributos etc. são preocupações constantes. Some-se  o desenvolvimento de todos os aspectos que envolvem o marketing e  em especial a possibilidade - e, praticamente, a necessidade - da exploração da publicidade, arma conhecida para o desenvolvimento dos negócios. O empreendedor, então,  leva (deve levar) sempre em consideração todos os elementos envolvidos. Aqui o que interessa é o aspecto do risco, que se incrementa na intrínseca relação com o custo. Esse binômio risco/custo (ao qual acrescentarei um outro: o do custo/benefício) é determinante na análise da viabilidade do negócio. A redução da margem de risco a baixos níveis (isto é, a aplicação máxima no estudo de todas as variáveis) eleva o custo a valores astronômicos, inviabilizando o projeto econômico. Em outras palavras, o custo, para ser suportável, tem de ser definido na relação com o benefício. Esse outro binômio custo/benefício tem de ser considerado. Descobrir o ponto de equilíbrio de quanto risco vale a pena correr a um menor custo possível, para aferir a maximização do benefício, é uma das chaves do negócio. Dentro dessa estratégia geral dos negócios, como fruto da teoria do risco, um item específico é o que está intimamente ligado à sistemática normativa adotada pelo CDC. É aquele voltado à avaliação da qualidade do produto e do serviço, especialmente a adequação, a finalidade, a proteção à saúde, a segurança e a durabilidade. Tudo referendado e complementado pela informação. Em realidade, a palavra "qualidade" do produto ou do serviço pode ser o aspecto determinante, na medida em que não se pode compreender qualidade sem o respeito aos direitos básicos do consumidor. E nesse ponto da busca da qualidade surge, então, nova e particularmente, o problema do risco/custo/benefício, acrescido agora de outro aspecto considerado tanto na teoria do risco quanto pelo CDC: a produção em série1. Com a explosão da revolução industrial, a aglomeração de pessoas nos grandes centros urbanos e o inexorável aumento da complexidade social, exigia-se um modelo de produção que desse conta da sociedade que começava a surgir. A necessidade de oferecer cada vez mais produtos e serviços para um número sempre maior de pessoas, fez com que a indústria passasse a produzir em grande quantidade. Mas o maior entrave para o crescimento da produção era o custo. A solução foi a produção em larga escala e em série, que, a partir de modelos previamente concebidos, permitia a diminuição dos custos. Com isso,  era possível fabricar mais bens para atingir um maior número de pessoas. O século XX inicia-se sob a égide desse modelo de produção: fabricação de produtos e oferta de serviços em série, de forma padronizada e uniforme, com um custo de produção menor de cada um dos produtos, possibilitando que fossem vendidos a menor preço individual, com o que maiores parcelas de consumidores passaram a ser beneficiadas. A partir da Segunda Guerra Mundial,  esse projeto de produção capitalista passou a crescer numa velocidade jamais imaginada, fruto do incremento dos sistemas de automação, do surgimento da robótica, da telefonia por satélites, das transações eletrônicas, da computação, da microcomputação etc. Muito bem.  Em produções massificadas, seriadas,  é impossível assegurar como resultado final que o produto ou o serviço não terá vício/defeito. Para que a produção em série conseguisse um resultado isento de vício/defeito, seria preciso que o fornecedor elevasse seu custo a níveis altíssimos, o que inviabilizaria o preço final do produto e do serviço e desqualificaria a principal característica da produção em série, que é a ampla oferta para um número enorme de consumidores. Dessa maneira, sem outra alternativa, o produtor tem que correr o risco de fabricar produtos e serviços a um custo que não prejudique o benefício. Aliado a isso está o indelével fato de que produções desse tipo envolvem dezenas, centenas ou milhares de componentes físicos e eletrônicos que se relacionam, operados por outra quantidade enorme de mãos que os manuseiam direta ou indiretamente. A falha é inexorável: por mais que o fornecedor queira, não consegue evitar que seus produtos ou serviços cheguem ao mercado sem vício/defeito. Mesmo nos setores mais desenvolvidos, em que as estatísticas apontam para vícios/defeitos de fabricação próximos de zero, o resultado final para o mercado será a distribuição de um número bastante elevado de produtos e serviços comprometidos. E isso se explica matematicamente: supondo um índice percentual de vício/defeito no final do ciclo de fabricação de apenas 0,1% (percentual raro, eis que, de fato, eles são mais elevados) aplicado sobre alta quantidade de produção, digamos, 100.000 unidades, ter-se-ia 100 produtos entregues ao mercado com vício/defeito. Logo, temos de lidar com esse fato inevitável (e incontestável): há e sempre haverá produtos e serviços com vício/defeito. __________ 1 Por causa disso, a responsabilidade objetiva tal como regulada remanesce como um grande problema, praticamente insolúvel, para aqueles que não produzem em série, especialmente  pequenos produtores, micro produtores e fabricantes pessoas físicas de produtos manufaturados e pequenos prestadores de serviços (pessoas físicas e jurídicas). A lei consumerista não abre exceção para tais fornecedores, que acabam tendo que arcar com o peso da responsabilidade objetiva, como se grandes fornecedores de produtos e serviços em série fossem.
quinta-feira, 24 de agosto de 2023

Verdade e mentira nas comunicações

Um dos temas mais debatidos nos últimos tempos tem sido o da verdade ou mentira das informações, falas, imagens, promoções, publicidade etc. E o termo fake news já foi incorporado a nosso vocabulário, com naturalidade. Mas, pergunto: essa questão da verdade ou mentira nas comunicações sociais em geral ou mesmo entre particulares é realmente nova? Ou sempre existiu? Este é um assunto recorrente para mim. Não só nas questões que envolvem consumidor e capitalismo, mas em muitas outras como análises econômicas, pesquisas científicas, discursos políticos, promessas de candidatos etc. A enganação aparece nas mensagens bem articuladas e até, muitas vezes, surge como mentira que, apesar de evidente,  algumas pessoas nela acreditam.  Para piorar o quadro, como se sabe, estamos na época da pós-verdade, o que significa que as pessoas acreditam naquilo que querem acreditar. Isso facilita muito as coisas que envolvem falácias e mentiras, enganações explícitas e outras nem tanto. Vejamos um fato histórico: o que envolve a expressão "para inglês ver". Como já tive oportunidade de mostrar anteriormente, existem várias versões para o significado dessa expressão e que remontam  à sua origem. Uma delas diz que em 1815, os portugueses e os britânicos firmaram um compromisso, no qual Portugal se comprometeu a não mais traficar escravos. Todavia, como Portugal não vinha cumprindo o compromisso, o parlamento britânico acabou aprovando uma lei que criminalizava a escravatura e concedia, unilateralmente, à frota real britânica poderes para abordar e inspecionar os navios portugueses. Como estratégia para enganar os ingleses, os portugueses carregavam a embarcação que ia à frente da frota com uma carga inofensiva para ser inspecionada, levando, depois, os escravos em outros navios, que se safavam da inspeção. Outra versão, liga ao mesmo tema, diz que, em 1831, o governo português promulgou uma lei proibindo o tráfico negreiro, mas como o sentimento geral era de que a lei não seria cumprida, começou a circular a expressão de que a lei fora feita apenas "para inglês ver". E ainda outra versão diz que, após a partida da família real portuguesa para o Brasil, Portugal passou a ser uma espécie de protetorado da Inglaterra, que assumiu o comando da máquina militar portuguesa na luta conjunta contra a França. Mas os metódicos ingleses que queriam tudo organizado e por escrito, tinham problemas com os práticos portugueses. Assim, a cada imposição organizacional inglesa, os portugueses botavam tudo por escrito, para mostrar que estava tudo em ordem. Porém,  era só no papel. Servia apenas para agradar os ingleses e dizer que estava tudo arrumado, isto é, era só para os ingleses lerem (ou verem). Na prática, as coisas eram bem diferentes.  Acontecia a mesma coisa nas visitas dos generais ingleses a certos locais, que eram preparados (maquiados, como hoje diríamos) para dar uma aparência diversa do real. Se os ingleses exigiam a construção de uma estrada, os portugueses deixavam pás, pedras e material para a construção no local da visita. Assim, diziam que já a estavam construindo. Era o que os ingleses viam. Ficou a expressão e o aprendizado. Mas, naquela época, consta que, de fato, os ingleses eram enganados. Muito bem. Ao que tudo indica, mentiras e enganações estão presentes no meio social há muito tempo. E, certamente, continuarão, ainda que de forma mais tecnológica.
Com o término efetivo da pandemia da COVID, houve um forte retorno das viagens aéreas nacionais e internacionais e, naturalmente, alguns problemas acabam se repetindo. Por exemplo, o do atraso de voos. Volto, pois, ao tema, lembrando que esse setor do transporte aéreo de passageiros é um daqueles em que o consumidor está numa situação de extrema vulnerabilidade: ele fica literalmente nas mãos do transportador que decide como será sua viagem, se adequada ou inadequada, livre de problemas ou cheia de transtornos. Qualquer pessoa que viaje entende muito bem do que eu falo: nunca se sabe se dará tudo certo. Quer seja uma viagem de negócios ou de lazer, sempre se está numa expectativa incerta. Atrasos e falta de informações são muito comuns. Ao consumidor e à consumidora só resta torcer para que tudo dê certo.  Cuido dos atrasos. Há, é verdade, atrasos honestos, tais como aqueles que envolvem eventos climáticos, acidentes ou problemas mecânicos com aeronaves ou, ainda, eventuais entraves com o tráfego aéreo envolvendo outras aeronaves. Mas não esqueçamos de que podem acontecer os atrasos programados: os que envolvem voos em que as aeronaves estão com pouca ocupação. Nesta hipótese,  um voo é cancelado para que um outro, posterior, saia lotado e para o qual os passageiros foram realocados. É verdade, que no atual período em que há grande procura pelos voos, essa prática deixa de existir. De todo modo, na questão do atraso, anoto que, independentemente do motivo, sempre que ele for superior a 4 horas, o consumidor pode pleitear indenização por danos morais. A assunto do atraso dos voos está regulamentado pela resolução nº 400 de 13-1-2016 da ANAC, que garante assistência material ao passageiro ou passageira do seguinte modo: "Art. 27. A assistência material consiste em satisfazer as necessidades do passageiro e deverá ser oferecida gratuitamente pelo transportador, conforme o tempo de espera, ainda que os passageiros estejam a bordo da aeronave com portas abertas, nos seguintes termos: I - superior a 1 (uma) hora: facilidades de comunicação; II - superior a 2 (duas) horas: alimentação, de acordo com o horário, por meio do fornecimento de refeição ou de voucher individual; e III - superior a 4 (quatro) horas: serviço de hospedagem, em caso de pernoite, e traslado de ida e volta. § 1º O transportador poderá deixar de oferecer serviço de hospedagem para o passageiro que residir na localidade do aeroporto de origem, garantido o traslado de ida e volta. § 2º No caso de Passageiro com Necessidade de Assistência Especial - PNAE e de seus acompanhantes, nos termos da resolução nº 280, de 2013, a assistência prevista no inciso III do caput deste artigo deverá ser fornecida independentemente da exigência de pernoite, salvo se puder ser substituída por acomodação em local que atenda suas necessidades e com concordância do passageiro ou acompanhante. § 3º O transportador poderá deixar de oferecer assistência material quando o passageiro optar pela reacomodação em voo próprio do transportador a ser realizado em data e horário de conveniência do passageiro ou pelo reembolso integral da passagem aérea." Em relação ao dano moral, o que interessa são os atrasos superiores a 4 horas. Neste caso, é possível pleitear indenização. Importante consignar que, nas decisões judiciais, o atraso em período menor do que 4 horas é considerado mero aborrecimento. Logo não cabe o pleito. Mas acima das 4 horas o pedido é viável. Lembro, também, que a responsabilidade das companhias aéreas é objetiva, como decorrência da incidência do Código de Defesa do Consumidor, especificamente o artigo 14 da lei. Alegações de que o atraso superior a 4 horas deu-se por problemas climáticos ou por ausência de piloto,  do copiloto ou de membros da equipe de bordo, ou, ainda, problemas mecânicos ou de segurança  da aeronave etc. não excluem a responsabilidade, pois são hipóteses de fortuito interno (previsíveis dentro da análise do risco da atividade). As exceções são as relacionadas aos fortuitos externos (e não previsíveis), tais como um terremoto ou a eclosão de um vulcão. Desse modo, na medida em que o atraso se dê por período superior a 4 horas, existe nexo de causalidade,  que pode gerar, então, a condenação ao pagamento de indenização por danos morais. Não existe, claro,  um valor definido,  mas a pesquisa jurisprudencial mostra que as indenizações variam, dependendo daquilo que o consumidor demonstrar em juízo e que envolve o dano efetivamente sofrido, o real tempo de atraso de espera após as 4 horas e as condições de atendimento oferecido pela cia aérea (as informações, a alimentação, a hospedagem, o transporte etc.). Por fim, anoto que é relevante, para o aumento do valor da indenização, e tem sido levado em conta nas decisões judiciais, a demonstração da perda de compromissos  profissionais ou familiares.
Que o prazo de validade dos produtos é algo importante, ninguém duvida. E a data de vencimento deve sempre estar claramente colocada para que o consumidor facilmente a encontre. Aliás, a data da validade deve ser observada não só no estabelecimento em que se compra o produto, mas também depois, quando ele for ser consumido. E nesse tema, há um comportamento comum de alguns fornecedores, especialmente em supermercados: são feitas promoções para venda de produtos abaixo do preço regular em função do prazo de vencimento para consumo estar se aproximando ou mesmo ser exatamente o daquele dia em que a promoção esteja anunciada. Não é algo proibido, desde que a informação quanto ao prazo esteja clara e ostensivamente colocada à vista do interessado na compra. Aliás, por isso, é sempre bom lembrar um conselho: quem for comprar esse tipo de produto não deve se empolgar com o preço e adquirir grandes quantidades que não possam ser consumidas dentro do curto prazo de validade existente.  O Código de Defesa do Consumidor (CDC) regula expressamente esse tipo de oferta no art. 31, verbis: "Art. 31. A oferta e apresentação de produtos ou serviços devem assegurar informações corretas, claras, precisas, ostensivas e em língua portuguesa sobre suas características, qualidades, quantidade, composição, preço, garantia, prazos de validade e origem, entre outros dados, bem como sobre os riscos que apresentam à saúde e segurança dos consumidores." Agora pergunto: e quanto aos medicamentos? Como fica a questão do prazo de validade na relação com a quantidade que será ou deverá ser consumida? Vale a mesma regulação do CDC com um acréscimo de força normativa em regra fixada pela ANVISA - Agência Nacional de Vigilância Sanitária. Na realidade, a farmácia somente pode vender medicamentos que estão próximos do vencimento do prazo de validade se o consumidor puder concluir o tratamento antes dessa data. Ela não pode vender o medicamento se o prazo de validade estiver próximo do vencimento e nesse período o consumidor não conseguir concluir o tratamento que lhe foi indicado.  Além da estipulação do CDC, há, como disse, uma norma específica da ANVISA. É a do artigo 51 da RDC Nº 44, DE 17 DE AGOSTO DE 2009, especialmente a do §2º. Leia-se: "Art. 51. A política da empresa em relação aos produtos com o prazo de validade próximo ao vencimento deve estar clara a todos os funcionários e descrita no Procedimento Operacional Padrão (POP) e prevista no Manual de Boas Práticas Farmacêuticas do estabelecimento. §1º O usuário deve ser alertado quando for dispensado produto com prazo de validade próximo ao seu vencimento. §2º É vedado dispensar medicamentos cuja posologia para o tratamento não possa ser concluída no prazo de validade."  Desse modo, fica aqui também outro alerta, agora na questão do medicamento: o usuário deve, naturalmente, observar o prazo de validade na relação com a necessidade e a possibilidade do consumo; e a farmácia fornecedora está proibida de vende-lo se a posologia para o tratamento não puder ser concluída dentro do prazo de validade.
quinta-feira, 3 de agosto de 2023

O exercício de propriedade do aparelho celular

Eu e muitos consumeristas brasileiros pensamos e estudamos o Direito do Consumidor há mais de 30 anos, antes mesmo da entrada em vigor do Código de Defesa do Consumidor (CDC - lei 8.078/90). Vimos muitos abusos serem praticados e foram muitas as vitórias a favor do consumidor, a começar exatamente com a edição do CDC. Muitas empresas foram obrigadas a mudar seus procedimentos para respeitar seus clientes, o que só fez bem para o mercado capitalista. Muito bem. As normas que protegem o consumidor estão em vigor e muito bem desenhadas. No entanto, às vezes aparecem coisas estranhas. No artigo de hoje, cuido de um caso em que, como penso, alguns intérpretes estão fazendo uma enorme confusão na aplicação da lei aos fatos e, com isso, acabaram violando o consumidor que muito precisa de auxílio. Vou ilustrar o que quero dizer, com uma narrativa de uma situação comum no Brasil. É só um exemplo fictício, que pode ser modificado em alguns pontos diversas vezes e que ocorre de fato, de forma similar, em vários lugares do país. Vamos lá. José da Silva, casado com dois filhos adolescentes, ficou desempregado. O salário que sua esposa ganha no emprego dela não é suficiente para cobrir todas as despesas mensais. Ele está negativado no Serviço de Proteção ao Crédito por não ter conseguido pagar as prestações do empréstimo que havia feito em seu banco. Está precisando muito de dinheiro para dar conta das despesas de produtos e serviços essenciais. Seu filho mais velho está doente e os gastos com medicamentos são altos. José da Silva não tem bens de valor para o mercado. Na verdade, ele apenas possui um aparelho celular dos mais simples. Ele precisa de dinheiro para pagar a conta de energia elétrica e da água, que estão atrasadas. Se não conseguir pagá-las, ficará sem água e sem energia elétrica em casa. Além disso, também não tem dinheiro para pagar a conta da linha telefônica. Ficará, portanto, sem poder usar seu aparelho celular. E, cara leitora, caro leitor, eu não me enganei: se José da Silva não puder pagar as contas dos serviços essenciais de água, energia elétrica e linha telefônica, terá esses fornecimentos cortados. E tudo de acordo com a lei e  com as regulações. Mas, seria diferente se ele pudesse usar o próprio aparelho celular para pedir um empréstimo. No entanto, por causa de uma Ação Civil Pública proposta em Brasília e em nome de uma suposta proteção, uma empresa que oferecia esse tipo de empréstimo está proibida de fazê-lo. O argumento é que, como o aparelho celular é bem essencial, ele não pode ser oferecido em garantia. Conclusão: José da Silva, como foi decidido judicialmente numa Ação Coletiva, tem uma proteção contra o bloqueio de seu aparelho celular. Porém, como ele não tem dinheiro para pagar a conta da linha telefônica, não vai poder utilizá-lo. Aliás, ele e seus familiares ficarão sem água para as necessidades básicas e sem energia elétrica para manter a geladeira e as luzes acesas. Ficarão na escuridão. Eu não entendi o que pretenderam fazer. Depois de tanta luta pelos direitos do consumidor, surge este caso que se diz de proteção, mas que deixa o consumidor à margem do sistema capitalista. Como é que esse consumidor, que necessita de dinheiro emprestado, vai obtê-lo? Ele está impossibilitado de utilizar um produto que lhe pertence para obter um empréstimo, o que é direito seu. Trata-se de violação ao seu direito de propriedade garantido constitucionalmente:  o direito de poder dispor de bem que lhe pertence. Simples exercício do direito de propriedade. E ele também está sendo violado em sua dignidade por não poder exercer um direito básico do sistema capitalista de solicitar em empréstimo para poder suprir suas necessidades humanas. O argumento de que o aparelho celular não pode ser entregue em garantia porque é essencial é equivocado. Se assim o fosse, então, outros produtos e serviços também não poderiam ser oferecidos em garantia. A título de comparação, cito a seguir outras hipóteses. O bem de família, por exemplo. Como se sabe, o imóvel residencial, chamado bem de família, é impenhorável por força do disposto na lei 8009/90. Trata-se de bem essencial e impenhorável. No entanto, esse imóvel pode ser oferecido em hipoteca para garantir empréstimo/dívida. E uma vez oferecido em hipoteca, ele pode ser penhorado (inciso V do art. 3º da lei 8009/90). Outro exemplo: o empréstimo consignado. A Lei nº 10.820/2003 permite que o trabalhador ofereça parte de seu sagrado salário como garantia de empréstimos, financiamentos etc., conforme definido em seu art. 1º: "Art. 1o  Os empregados regidos pela Consolidação das Leis do Trabalho - CLT, aprovada pelo decreto-lei 5.452, de 1º de maio de 1943, poderão autorizar, de forma irrevogável e irretratável, o desconto em folha de pagamento ou na sua remuneração disponível dos valores referentes ao pagamento de empréstimos, financiamentos, cartões de crédito e operações de arrendamento mercantil concedidos por instituições financeiras e sociedades de arrendamento mercantil, quando previsto nos respectivos contratos." Apenas com esses dois exemplos, percebe-se que o sistema legal não só permite como estimula que bens essenciais e fundamentais como moradia e salário possam ser oferecidos em garantia. E lembro: na hipoteca do bem de família, em caso de inadimplemento, o imóvel será levado a leilão público para venda e pagamento da dívida. Não há dúvida a esse respeito, inclusive com clara posição do Supremo Tribunal Federal1. No caso do consignado, todo mês o empregado tem já descontado de seu salário o valor da prestação, independentemente de qualquer medida administrativa ou judicial. E há mais: os serviços de fornecimento de água, de energia elétrica e de gás são bens absolutamente essenciais. No caso de inadimplência do consumidor, o fornecimento é interrompido. E o aparelho celular funciona com linha telefônica oferecida pelas empresas existentes no mercado, tais como a Claro, a Vivo e a Tim. E ainda que o aparelho seja usado pelo modo WiFi, também depende do oferecimento do sinal dessas companhias. Muito bem. O aparelho celular é um produto essencial, como do mesmo modo o sinal para seu uso o é.  No entanto, ninguém duvida que o atraso do pagamento da conta relativa ao sinal gere cancelamento do serviço. Se o consumidor não pagar uma conta mensal de alguma dessas companhias, terá o serviço suspenso após simples aviso, depois de certo prazo. (Nesse sentido, vide Resolução da ANATEL nº 632, artigos 90 e segs2).  Eis a enorme ironia: o serviço de fornecimento de linha telefônica pode ser cortado se a conta não for paga. Nesse caso, o consumidor possui um aparelho celular, mas não poderá usá-lo por falta de acesso à linha ou ao WiFi. Se pudesse pedir um empréstimo para pagar as contas atrasadas oferecendo seu aparelho celular como garantia, poderia utilizá-lo. Mas, o consumidor está sendo impedido de fazê-lo. Repito: pelo que penso, trata-se de violação ao seu direito de propriedade. No exercício do direito de propriedade, o consumidor pode doar seu celular para quem bem entender; pode vendê-lo pela metade de seu preço de mercado; pode simplesmente descartá-lo; enfim, o consumidor tem essas prerrogativas como proprietário. Mas, não pode oferecê-lo em garantia? Não vejo sentido. __________ 1 (STF - RE: 1307334 SP 2061577-47.2020.8.26.0000, Relator: ALEXANDRE DE MORAES, Data de Julgamento: 09/03/2022, Tribunal Pleno, Data de Publicação: 26/05/2022). 2 Disponível aqui.
Uma das características marcantes da sociedade de consumo em todos os tempos é a de que os consumidores em geral não tem capacidade financeira para adquirir a  maior parte dos produtos e serviços oferecidos. A partir de um certo momento na história, especialmente após o período da revolução industrial, cada vez mais os fabricantes passaram a produzir bens em grandes quantidades. O intuito, como sempre, era o lucro. Com o aumento da tecnologia de produção, passou-se a poder produzir em série, de tal modo que o produto final foi ficando cada vez mais barato. O produtor passou a ter um menor lucro por cada produto vendido, mas como vende em muito maior quantidade, fatura mais e ganha mais. A criação de novos produtos e serviços fez a quantidade de variedade crescer ao infinito. Isso me faz recordar Sócrates que, quatro séculos antes de Cristo, foi ao mercado em Atenas e disse: "Como são numerosas as coisas de que eu não preciso".  Hoje, frequentando qualquer  shopping center e observando a incrível e enorme quantidade da oferta, o famoso filósofo talvez perdesse sua natural simplicidade e sua imbatível lucidez. A verdade é que o sistema capitalista que vingou, de produção em massa de produtos necessários mas também supérfluos, inúteis, só cresceu com o passar do tempo. Mas, havia um problema: os consumidores continuavam sem dinheiro para adquirir os bens oferecidos. Isso no século XX foi resolvido com a criação do sistema de oferta de créditos em massa, dos  empréstimos pré-aprovados, dos financiamentos a longo prazo e, claro, dos cartões de crédito, a porta de entrada no paraíso das compras, que permite aquisição de produtos e serviços para o consumidor que não tem dinheiro algum. A oferta de crédito, todavia, tem seu próprio limite na capacidade de pagamento do consumidor-tomador. Não adianta oferecer crédito fácil se, do outro lado da oferta, há limites restritos de devolução. Ou, dizendo de outro modo, é preciso que o fornecedor controle a capacidade de pagamento de seus clientes (daí, em parte, a justificativa para a existência dos cadastros negativos e positivos de crédito). Na verdade, o mercado criou um modelo de financiamento para quase tudo que existe à venda.  Mas, esse é um sistema que, bem ou mal, funciona - porque os consumidores, de baixa renda, conseguem a longo prazo adquirir produtos que não conseguiriam à vista, pelo menos não frequentemente. No entanto, essa mesma fórmula aplicada à certo produtos nem sempre funciona bem. Por exemplo, no setor de veículos automotores - especialmente, automóveis - e, também, no de imóveis. Quando o consumidor adquire um automóvel pelo fato de que a prestação "cabe" na sua renda - no seu salário - e apenas por conta disso, acaba cometendo um erro, pois se esquece de considerar os demais custos ordinários e extraordinários ligados ao produto. Um automóvel gera gastos imediatos e rotineiros com manutenção (revisões, trocas de peças, óleos etc.), impostos, taxas, seguros obrigatórios e voluntários, além do consumo regular. De cara, sem recursos, o consumidor acaba não fazendo o seguro voluntário para se garantir contra acidentes e roubos. Se sofrer um, já perde tudo. E, essas circunstâncias, a longo prazo, proporcionalmente, só pioram, porque o custo da manutenção aumenta e os demais permanecem. Chega uma hora em que a prestação cabia no salário, mas todos os demais custos não. Fatalmente, o consumidor tornar-se inadimplente, sendo que os veículos retornarão aos financiadores (A inadimplência no setor de veículos financiados é enorme, como se pode ver no acúmulo desses produtos nos pátios de leilões, que estão abarrotados). Pode-se dizer o mesmo em relação à venda de imóveis, principalmente, aqueles oferecidos também aos consumidores de baixa renda, eis que não basta que a prestação caiba no salário, uma vez que, como se sabe, imóveis não só exigem manutenção como o pagamento de tributos e taxas. E essa questão do superendividamento dos consumidores - especialmente, no âmbito familiar - é, atualmente, um dos temas centrais das preocupações dos consumeristas e, também, do Estado, tanto que no âmbito Federal está sendo implantado o "desenrola Brasil", sistema que permite que o consumidor inadimplente negocie e pague suas dívidas. De fato, é preciso olhar para os milhões de consumidores que se encontram endividados e que, por causa disso, estão fora do mercado de consumo. Muitos desses consumidores estão em dificuldades para adquirir bens básicos. Eles precisam de proteção, mas também de alternativas para que não fiquem sem os produtos e serviços essenciais que garantam sua subsistência e dignidade.