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A hermenêutica da escravidão: Mais de cem anos depois, algo mudou?

segunda-feira, 20 de novembro de 2017

Atualizado às 12:15

Hoje, muitas cidades do Brasil celebram o Dia da Consciência Negra. Honrando a data, a coluna divide com os leitores a obra "Raízes do conservadorismo brasileiro: a abolição na imprensa e no imaginário social", de Juremir Machado da Silva, recentemente publicada pela Civilização Brasileira.

A obra é necessária para entendermos melhor como a interpretação da Constituição e das leis é responsável pela manutenção da situação indigna dos negros no Brasil, um país pelo qual eles deram não apenas a vida, mas a morte.

Sempre que alguém disser que a vida do negro é boa, que não há preconceito e que se faz muito barulho por nada, devemos recordar quais eram as impressões de uma elite privilegiada que, sustentando o seu ócio, se enriquecia com a escravidão.

"O escravo é entre nós um verdadeiro fidalgo proletário", disse Andrade Figueira, deputado do Partido Conservador. "A escravidão é conveniente mesmo em bem do escravo", anotou Cansanção do Sinimbu, senador do Partido Liberal. "Amo mais a minha pátria do que ao negro", registrou o Conselheiro José Antônio Saraiva, um "liberal à brasileira". "O fazendeiro deve merecer mais cuidados dos poderes públicos do que os escravos", encerrou Martim Francisco Ribeiro de Andrada, deputado do Partido Liberal. Pouca coisa mudou.

A libertação negra não foi fruto da caridade branca. Rui Barbosa apontou para a coragem dos escravos como causa da conquista emancipatória: "Essa desobediência bendita, essa indisciplina salvadora, selou a emancipação do povo negro", disse.

Tentou-se, ao tempo, dar-se uma solução constitucional para a escravidão, banindo-a. Perdigão Malheiro, presidente do Instituto dos Advogados - e filho do presidente do Supremo Tribunal de Justiça - destacou que o projeto de Constituição Imperial, abortado em 1823, previa, no art. 253, a emancipação lenta dos negros. "Mas na Constituição de 1824 coisa alguma se disse sobre escravos, nem no Ato Adicional de 1834 que extinguiu os Conselhos Gerais da Província e substituiu pelas Assembleias Provinciais, nem na lei de sua interpretação de 1840", anotou Malheiro.

De fato, em 1823, durante os trabalhos da primeira constituinte, José Bonifácio de Andrada e Silva preparou um projeto de abolição contundente, ainda que gradualista. A Assembleia Geral Constituinte Legislativa do Império do Brasil acabou dissolvida por Dom Pedro I. Bonifácio foi preso e deportado.

Para José Bonifácio, "como poderá haver uma Constituição liberal e duradoura em um país continuamente habitado por uma multidão imensa de escravos brutais e inimigos?". Daí ele ter deixado a imortal exortação: "É tempo, pois, e mais que tempo, que acabemos com um tráfico tão bárbaro e carniceiro; é tempo também que vamos acabando gradualmente até os últimos vestígios da escravidão entre nós, para que venhamos a formar em poucas gerações uma Nação homogênea, sem o que nunca seremos verdadeiramente livres, respeitáveis e felizes".

Antes da abolição, quando da votação da Lei do Ventre Livre, não tardou para que os liberais à brasileira, esses empreendedores tropicais, passassem a requerer do Estado algum dinheiro para apagar o rastro deixado pela sua maldade.

Para Alencar Araripe, que chegou a ser ministro do Supremo Tribunal Federal, "a decretação da liberdade do ventre, sem prévia indenização, viola a propriedade (...), logo, o proprietário do fruto procedente do ventre servil não pode ser privado de sua propriedade sem prévia indenização, conforme o preceito constitucional".

O senador Paulino de Sousa, com a sua linguagem bacharelesca, também justificou: "o escravo é objeto de propriedade, e, portanto, equiparado à coisa. (...) como atestam a jurisprudência de todos os tempos neste país, a doutrina dos jurisconsultos, os julgados dos tribunais. Se não são escravos, por que os libertais? Se são, liberta-os embora, estancai a fonte, como dizeis; mas reconhecei o direito, desapropriai, e idenizai. É o que permite a Constituição".

Há os que conseguiam descer ainda mais. "O fruto do ventre escravo pertence ao senhor deste tão legalmente como a cria de qualquer animal do seu domínio. (...) Há, sem dúvida, um direito adquirido a esse fruto, tão rigoroso como o do proprietário da árvore aos frutos que ela pode produzir; há perfeita identidade de condições", defendia o deputado Barros Cobra.

A Constituição, no art. 179, garantia a inviolabilidade da propriedade e que só previamente indenizado do seu valor poderia o cidadão ser privado do seu uso e emprego (parágrafo 22 do citado artigo). Logo, o raciocínio era simples: "A Constituição só permite desapropriação mediante indenização".

Coube a Rui Barbosa desarmar essa armadilha indecente: "Quanto à Constituição do Império, esta não contém no seu texto uma palavra que pressuponha o cativeiro. Logo, se mais de uma vez se alude a libertos, parece claro que, longe de estender-se ao futuro, não se referia senão aos preexistentes".

Em 1871, o deputado Andrade Figueira considerava que tudo no projeto que resultou na Lei do Ventre Livre era inconstitucional. Para ele, até para receber doações os escravos precisavam ser autorizados por seus donos. Postulava que, como em 1850, as discussões da matéria fossem secretas.

Não tardou para um contraponto digno chegar. O parecer especial da Câmara dos Deputados, de 30 de julho de 1871, dizia: "O que a nossa Constituição assegura, em toda a sua plenitude, é o direito de propriedade, mas da real, da verdadeira, da natural; é o que recai sobre coisas; pois não é propriedade o que recai sobre pessoas. Instituição puramente de direito civil, manifestamente viciosa, privilégio que tem uma raça de conservar outra no cativeiro, não se chama propriedade".

O senador Sales Torres Homem, em discurso em 28 de setembro de 1871, depois de aprovado a Lei do Ventre Livre, afirmou: "Criaturas inteligentes, dotadas, como nós, de nobres atributos e os mesmos destinos, não podem ser equiparadas, no ponto de vista da propriedade, ao potro e ao novilho".

Talvez a visão mais repulsiva tenha vindo deste que foi jurista e escritor de destaque, José de Alencar. Para ele, "a escravidão caduca, mas ainda não morreu; ainda se prendem a ela graves interesses de um povo. É o quanto basta para merecer o respeito". Defendeu ainda que a escravidão "é uma forma, rude embora, do direito; uma fase do progresso; um instrumento da civilização". E foi além: "Na história do progresso representa a escravidão o primeiro impulso do homem para a vida coletiva, o elo primitivo da comunhão entre os povos. O cativeiro foi o embrião da sociedade; embrião da família no Direito Civil; embrião do estado no Direito Público". José de Alencar votou contra a Lei do Ventre Livre.

Um dos argumentos contrário à Lei é conhecido: o princípio da proteção da confiança legítima. "Não pode o Estado burlar os cidadãos, que na sua palavra depositaram crédito. Fazer isso seria uma extorsão, e um desonroso abuso de confiança. É um cidadão que se guiou por aquela prescrição constitucional, que o desobriga de fazer ou deixar de fazer alguma coisa, a não ser em virtude da lei".

Quando dos debates sobre a Lei dos Sexagenários o argumento do direito à propriedade não arrefeceu. Segundo o Visconde de Muritiba, "a libertação forçada ou sem indenização dos escravos que tiverem atingido a atingirem 60 anos é um atentado contra o direito de propriedade, uma restrição arbitrária e odiosa da propriedade servil, que deve ser tão garantida e respeitada como qualquer outra".

Quando os proprietários de escravos enxergaram na abolição uma forma de arrancar dinheiro do Estado - num liberalismo à brasileira - o senador Paulino de Sousa se explicou: "Não convinha, dizia-se, que no dia em que as mãos dos trabalhadores servis fossem livres, as mãos dos proprietários estivessem vazias".

Quanto à abolição da escravidão, Paulino de Sousa, esse senador pelo Rio de Janeiro e representante das grandes fortunas cafeeiras, representou uma retórica constitucional assombrosa. "A proposta que se vai votar é inconstitucional, antieconômica e desumana", disse ele, passando a explicar a base de sua afirmação.

"É desumana porque deixa expostos à miséria e à morte os inválidos, os enfermos, os velhos, os órfãos e crianças abandonadas da raça que se quer proteger, até hoje nas fazendas a cargo dos proprietários, que hoje arruinados e abandonados pelos trabalhadores válidos, não poderão manter aqueles infelizes por maiores que sejam os impulsos de uma caridade que é conhecida e admirada por todos os que frequentam o interior do país", justificou.

"É antieconômica porque desorganiza o trabalho, dando aos operários uma condição nova, que exige novo regime agrícola; e isto, senhor presidente, ao começar-se uma grande colheita, que aliás poderia, quando feita, preencher apenas os desfalques das falhas dos anos anteriores. Ficam, é certo, os trabalhadores atuais; mas a questão não é de número, nem de indivíduos, e sim de organização, da qual depende principalmente a efetividade do trabalho, e com ela a produção da riqueza", afirmou.

Quanto à acusação de ser "antieconômica", a obra de Juremir Machado da Silva mostra como eram fortes e influentes, no imaginário dos escravagistas, as interpretações econômicas, consequencialistas, que tentavam justificar a manutenção da escravidão com base em análises econômicas da situação: "Precisamos pensar na estabilidade e nas consequências econômicas da libertação dos escravos", diziam.

Isso fazia com que o senador Rodolfo Dantas se indignasse na tribuna do Senado: "Que maldito interesse é esse, que, mesmo diante de tantas atrocidades ainda se mantém empedernido, dizendo que, apesar de tudo, da instituição servil é que vem a nossa felicidade? Vem a nossa desgraça; virá felicidade para aqueles que entendem que é preciso ter muito café, muito açúcar, muito algodão à custa do suor e do sangue do escravo! Pois desapareça metade desse açúcar, desse café, desse algodão, e sejam todos livres, porque daí a pouco recuperaremos pelo trabalho livre aquilo que por um pequeno lapso de tempo tenhamos a perder", discursava.

O Barão de Cotegipe, todavia, não queria saber. "O proprietário que hipotecou a fazenda com escravos, porque a lei assim o permitia, delibera de seu modo próprio alforriá-los, o que pela nossa lei constitui um crime, e é por isso remunerado! Os bancos, os particulares adiantaram somas imensas para o desenvolvimento da lavoura, das fazendas. Que percam! Enfim, senhores, decreta-se que este país não ha propriedade, que tudo pode ser destruído por meio de uma lei, sem atenção nem a direitos adquiridos, nem a inconvenientes futuros!", retrucava.

Pondo fim à sua explicação, o senador Paulino de Sousa arrematou: "É inconstitucional porque ataca de frente, destrói e aniquila para sempre uma propriedade legal, garantida, como todo direito de propriedade, pela lei fundamental do Império entre os direitos civis de cidadão brasileiro, que dela não pode ser privado, senão mediante prévia indenização do seu valor". Uma vergonha.

Mas essa imundície retórica não ficou sem resposta. Rui Barbosa objetou: "É fútil, pois não tolera o mínimo exame, a objeção de inconstitucionalidade, explorada contra as medidas emancipadoras, ou abolicionistas, por mais adiantadas que sejam".

Quando se adensou o movimento em favor da Lei da Abolição, José de Alencar apontou para a falta de dados. É o conservadorismo bajulando o status quo. "No Brasil não se levantou ainda, que eu saiba, qualquer estatística acerca deste objeto. Pretende-se legislar sobre o desconhecido, absurdo semelhante ao de construir no ar, sem base nem apoio", dizia. José de Alencar chegou a afirmar o seguinte: "Pode-se afirmar que não temos já a verdadeira escravidão, porém um simples usufruto da liberdade, ou talvez uma locação de serviços contatados implicitamente entre o senhor e o Estado como tutor do incapaz".

Contrapondo os escravagistas, José Bonifácio fazia uma defesa intransigente da igualdade e da empatia: "Se os negros são homens como nós e não formam uma espécie de brutos animais; se sentem e pensam como nós, que quadro de dor e de miséria não apresentam eles à imaginação de qualquer homem sensível e cristão? Se os gemidos de um bruto não condoem, é impossível que deixemos de sentir também certa dor simpática com as desgraças e misérias dos escravos".

Em 1823, Bonifácio já dizia que a acumulação primitiva do capital no Brasil ostentava um superávit de cadáveres jamais visto em outro lugar. "O luxo e a corrupção nasceram entre nós antes da civilização e da indústria; e qual será a causa principal de um fenômeno tão espantoso? A escravidão, senhores, a escravidão, porque o homem, que conta com os jornais de seus escravos, vive na indolência, e a indolência traz todos os vícios", sustentava, com coragem.

Ele prosseguia com a contundência dos justos. "Riquezas e mais riquezas gritam os nossos pseudoestadistas; os nossos compradores e vendedores de carne humana; os nossos sabujos eclesiásticos; os nossos magistrados, se é que se pode dar um tão honroso título a almas, pela maior parte, venais, que só empurram a vara da Justiça para oprimir desgraçados, que não podem satisfazer à cobiça, ou melhorar a sua sorte". Não havia concessões com a miséria da escravidão.

Joaquim Nabuco também se manifestou: "Tudo o que significa luta do homem com a natureza, conquista do solo para habitação e cultura, estradas e edifícios, canaviais e cafezais, a casa do senhor e a senzala dos escravos, igrejas e escolas, alfândegas e correios, telégrafos e caminhos de ferro, academias e hospitais, tudo, absolutamente tudo que existe no país, como resultado do trabalho manual, como emprego de capital, como acumulação de riqueza, não passa de uma doação gratuita da raça que trabalha a que faz trabalhar".

Para Nabuco, "o nosso caráter, o nosso temperamento, a nossa organização toda, física, intelectual e moral, acha-se terrivelmente afetada pelas influências com que a escravidão passou trezentos anos a permear o Brasil".

Era como se a escravidão fosse um pecado original do qual jamais nos livraríamos enquanto não expuséssemos as vísceras desse cadáver moral pelo qual forjamos a nossa sociedade. Mas vale indagar: já fizemos essa exumação?

Rui Barbosa falava sobre a possibilidade de uma geração, privilegiada pelo roubo praticado pela geração anterior, ter de vir a prestar contas desse malfeito, abrindo mão dos privilégios que lhes foram indevidamente concedidos. "Dizem que a geração de hoje está inocente: trata-se apenas de um legado dos seus amores, cuja origem ela não conspurcou as mãos. Mas o esbulho, perpetrado pelos ascendentes, lava-se do seu vilipendio nas mais dos filhos, interessados em explorá-los?".

A obra de Juremir Machado da Silva mostra que a escravidão foi juridicamente justificada pelo respeito à legalidade. Isso, sem se considerar que eram leis feitas por algozes. Instrumentos jurídicos formulados por brancos contra negros, por opressores contra oprimidos, por proprietários contra escravos. Segundo o autor, "não era um parlamento livre e representativo de toda a nação, mas a casa que geria os interesses dos cafeicultores escravistas do sudeste".

A este respeito, José Bonifácio se mantinha altivo: "As leis civis, que consentem estes crimes, são não só culpadas de todas as misérias que sofre esta porção da nossa espécie, e de todas as mortes e delitos que cometem os escravos, mas igualmente o são de todos os horrores, que em poucos anos devem produzir uma multidão imensa de homens desesperados, que já vão sentidos o peso insuportável da injustiça, que os condena a uma vileza e miséria sem fim".

Do outro lado da história estava ele, José de Alencar. "Toda lei é justa, útil, moral, quando realiza um melhoramento na sociedade e apresenta uma nova situação, embora imperfeita da humanidade. Neste caso está a escravidão". Para ele, "quem fere moralmente uma lei derrama sangue, como se apunhalara um homem".

José de Alencar gozava da companhia do Barão de Cotegipe, para quem "a propriedade sobre o escravo, como sobre os objetos inanimados, é uma criação do direito civil. A Constituição do Império, as leis civis, as eleitorais, as leis da fazenda, os impostos, etc..., tudo reconhece como propriedade e matéria tributável o escravo, assim como a terra". A lei 3.270, de 28 de setembro de 1885, de fato reconheceu o direito de propriedade, taxando o valor dos escravos segundo suas idades e sexos, e elevando por meio de novos impostos de emancipação, para desta forma ainda mais apressar a extinção da escravidão. Um efeito extrafiscal.

A ideologia da legalidade fez com que o Judiciário exercesse um papel importante na manutenção da escravidão. O deputado Morais Sarmiento somou às justificativas o álibi da maioria: "O tráfico era apoiado pela maioria da população".

Pela Lei Feijó, de 1831, estava proibido o tráfico de escravos. Ela fazia de todo africano que tivesse entrado no Brasil a partir daquela data um homem livre. Alguns casos paravam nos tribunais, que contrariavam a lei, jamais revogada, e decidiam a favor dos proprietários. "Juízes alegavam que a lei caíra em desuso", anota Juremir Machado da Silva. "A Justiça foi um dos maiores sustentáculos da escravidão no Brasil, mesmo quando dispunha de instrumentos legais para agir em defesa do principio da liberdade e da dignidade humana", diz o autor.

O tráfico negreiro tinha seus juristas. José de Alencar era um deles. "Eis um dos resultados benéficos do tráfico. Cumpre não esquecer, quando se trata desta questão importante, que a raça branca, embora reduzisse o africano à condição de uma mercadoria, nobilitou-o não só pelo contato, como pela transfusão do homem civilizado". Chega a ser sádico.

Joaquim Nabuco denunciou a leniência dos magistrados escravocratas: "O escândalo continua, mas pela indiferença dos poderes públicos e impotência da magistratura, composta, também, em parte de proprietários de africanos; e não por que se pretenda seriamente que a lei de 1831 fosse jamais revogada".

E havia aferições de constitucionalidade em benefício da escravidão. Em 1855, o Conselho de Estado determinou que era inconstitucional um escravo obrigar seu dono a libertá-lo mediante pagamento de seu valor de mercado. Tudo em nome do direito de propriedade.

Em 4 de fevereiro de 1888, Monteiro de Azevedo, juiz, afastou a acusação de crime o açoitamento de escravos por um padre. No mesmo ano se deu o julgamento da milionária Francisca de Castro, acusada de açoitar as escravas Eduardo e Joana até cobrir-lhes os corpos de esquimoses. Foi absolvida.

Tudo isso inspirou o acadêmico Josué Montello, em sua obra "Os tambores de São Luís", a escrever: "Um desembargador no Tribunal de Justiça que, ao saber que a abolição está chegando, exclama: 'Perdi meus pretos, perdi meus pretos'".

Apenas quando um ex-cativo, advogado de escravos ilegais, Luiz Gama, usou a interpretação das leis e da Constituição como instrumento de luta, o cenário mudou.

Em 26 de junho de 1883, o senador Silveira da Motta leu em plenário a sentença de um juiz: "Verificando-se da matrícula em original, à fl. 96, assinada pelo falecido inventariado, que o preto Galdino é natural da Costa d'África, e que nasceu em 1836, visto como tinha a idade de 36 anos em 1872, data da referida matricula; e cumprindo o decreto de 7 de novembro de 1831, que em seu art. 1o. declara livres todos os escravos que entrassem no excluído da partilha, e se lhe dê carta de liberdade, ficando livre aos interessados o direito de provar o seu estado de escravidão".

Domingos Rodrigues Guimarães, juiz da pequena Pouso Alto em Minas Gerais, interpretou a lei em favor da dignidade dos escravos. Interpretando o conceito jurídico de "filiação desconhecida", juízes concediam alforria legal a escravos cujo senhor não conseguisse provar terem nascidos em terras brasileiras. Na dúvida, cabia ao proprietário provar a naturalidade do pretendido escravo. O governo, contudo, reagiu modificando a lei de 1887. Muitos juízes foram expulsos de suas casas por proprietários de escravos injuriados com sentenças desfavoráveis.

Em 6 de agosto de 1886, o senador Sousa Dantas referiu-se longamente à morte de escravos por açoitamento. Dois escravos, depois de açoites infligidos em virtude de uma decisão judicial, morreram em caminho, na estação de Entre-Rios. Eis o telegrama do juiz de direito José Ricardo ao ministro da Justiça: "A cada um dos escravos condenados a trezentos açoites, foram aplicadas cinquenta de cada vez, nos dias em que se achavam em condições de sofrê-los sem perigo".

Mas a verdade era a de que depois dos castigos um médico foi chamado para cortar nas nádegas dos escravos a carne apodrecida pela ação dos açoites, a fim de evitar a gangrena. Foram, os escravos, conduzidos da cidade a trote, acompanhando a marcha dos animais que levaram os empregados do senhor de escravos; e como estavam impossibilitados de correr, começaram a tomar chicote nas costas.

O Código Penal, no art. 60, previa a pena de açoite. Foi a deixa para o ministro da Justiça, Ribeiro da Luz, chamado pelo Parlamento a dar explicações sobre a morte dos escravos, invocar a legalidade: "Mas enquanto não houver lei modificando o Código Penal, o Poder Judiciário não pode deixar de aplicar as penas nele consignadas". Nenhum fio de água a serviço da dignidade humana a ser visto nesse oceano de barbaridade e selvageria.

Em 13 de maio de 1888, veio a Lei Áurea. "Art. 1o - É declarada extinta desde a data desta lei a escravidão no Brasil. Art. 2o - Revogam-se as disposições em contrário". Para o senador Dantas a Lei "vale por uma nova Constituição". Votaram contra: Paulino de Sousa, Cotegipe, Belisário, Pereira da Silva, Ribeiro da Luz e Diogo Velho.

Mas há sempre a distância entre o idealismo transformador operado por leis e a realidade sentida nas engrenagens da elite brasileira. Dia 14 de maio de 1888, o jornal Diário do Maranhão exibia um de seus anúncios: "Aluga-se uma mulatinha de 14 anos de idade própria para todo serviço doméstico; e aluga-se também o 1o andar da casa nº 8 na rua dos Barbeiros, próxima ao Largo do Carmo, com muitos cômodos". O negro seguia sendo coisa, desumanizado.

O jornal Diário do Maranhão passava a requerer um conjunto de medidas que marcaria, para sempre, a vida dos negros em sua própria terra: "Centenas de indivíduos sem ofício, e que terão horror ao trabalho entregando-se por isso a toda sorte de vícios, precisam ficar sob um rigoroso regime policial para assim poderem ser mais tarde aproveitados, criando-se colônias, para as quais vigore uma lei, como a que foi adotada na França, recolhendo o estabelecimentos especiais os vagabundos, sujeitando-os à aprendizagem de um ofício, ou da agronomia, para que mais tarde o país utilize bons e úteis cidadãos".

Exigia-se ainda "aumento das polícias nas províncias, leis coercitivas do vício e da ociosidade; e tribunais correcionais com processos sumários".

Era a criminalização antecipada do negro, visto como "vagabundo" por uma elite que se habituou a viver de privilégios, trabalhando pouco.

Segundo anota Juremir Machado da Silva, "o Brasil consumiu e degradou mais de quatro milhões de africanos em várias etapas". Primeiro, foi o ciclo da Guiné, que dominou o século XVI. Depois, o de Angola, no século XVII. Já no século XVIII, predominou o ciclo de Benin e Daomé. Por fim, no século XIX, já com o tráfico condenado pela Inglaterra, surgiram mercados alternativos, como Moçambique.

Hoje, no Dia da Consciência negra, importa a todos uma reflexão acerca das raízes do conservadorismo brasileiro. A obra de Juremir Machado da Silva é um bom começo de caminho, por isso a indico vivamente.

Mais de cem anos se passaram. Olhem, vocês, à sua volta. Procurem os negros nas posições de liderança, nas esferas de poder, na tomada de decisões relevantes, nos quadros pendurados nas paredes de universidades influentes do país, nas grandes companhias, nas altas rodas ou nos altares de honrarias. Vocês não os verão. Não como eles merecem. Mas eles estão aqui, entre nós. A escravidão, com o seu legado horrendo, segue invisibilizando, negligenciando e excluindo.

Como disse Joaquim Nabuco: "A escravidão permanecerá por muito tempo como a característica nacional do Brasil". Resta saber se um dia haveremos de nos levantar.