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Como aproximar os extremos

terça-feira, 16 de outubro de 2018

Atualizado em 15 de outubro de 2018 11:28

A desigualdade social coloca turbinas
no populismo e na radicalização política
.

É muito difícil fazer especulações ou afirmações, do ponto de vista sociológico, histórico ou antropológico, a respeito de "traços ou denominadores comuns" de determinada sociedade, do ponto de vista de sua infra e superestrutura cultural e política. Mesmo teses e conceitos consagrados, tais como, no âmbito do pensamento brasileiro, o "homem cordial", o "patrimonialismo", o nosso "capitalismo tardio" estão sujeitos às lacunas e limites naturais da análise científica ou para fins de mera confecção de ensaio ou artigo.

Feita a ressalva do parágrafo precedente, arrisco-me a afirmar (e a errar) que o maior traço comum de nossa tradição populista é a utilização sem mensuras razoáveis da desigualdade social como meio de troca para obtenção de apoio eleitoral. Assim, os protagonistas da cena política abusam da retórica nas campanhas eleitorais para conquistar votos e, ao assumirem o poder, jactam-se junto ao povo em função de medidas populistas que justificam um todo sofrível de políticas sociais e econômicas. Em menos palavras, muito se promete e pouco se faz. A nossa democracia, com efeito, se fragiliza e, vez por outra, nos momentos de crise, vem os "salvadores da pátria" com suas novas e velhas promessas.

A novidade da atual eleição presidencial é que a utilização da desigualdade social como alavanca de votos se faz em campo cada vez mais distante do "centro político". Desde a redemocratização em 1985 vivemos dois momentos distintos de maior agudeza da manifestação populista na política. Com Fernando Collor a pregação imagética do "caçador de marajás" resultou em engodo pantagruélico, logo depois de sua posse, quando os ativos financeiros foram congelados como meio (grotesco) de consecução da política fiscal. Note-se que, em certo momento da corrida eleitoral de 1989, houve adesão sistemática das denominadas elites políticas na direção do ex-governador de Alagoas. O "candidato original" das elites, na primeira eleição pós-regime militar de 1964 era Mário Covas. Ele encarnava o centro político, capaz de propulsionar políticas de maior igualdade social ao tempo em que propunha um "choque de capitalismo" no sentido do aumento da produção e superação de nosso subdesenvolvimento.

Em poucos meses de campanha elitoral, o "caçador de marajás" acabou sendo entronizado na cadeira de apóstolo das esperanças do povo e, aí, as elites caíram em seus braços. De outro lado, o projeto do PT, juntamente com o já decadente Leonel Brizola, encarnavam a denúncia social, a injustiça gritante, a desigualdade regional e de renda pessoal, dentre outros temas. Venceu, em segundo turno memorável, Collor de Mello.

Depois de sua vitória, Collor encomendou seu discurso de posse junto ao Congresso Nacional ao saudoso e brilhante social-liberal, o diplomata José Guilherme Merquior. O discurso não decepcionou, mas, na manhã seguinte, já se via todos os liberais e ultra-liberais, incluso Merquior, boquiabertos com a enorme intervenção do governo sobre o dinheiro do povo e das empresas. Depois desse choque, viu-se Collor e seu populismo sucumbirem à realidade: construiu um ministério liberal moderado e tentou um pacto de centro. Tropeçou na sua própria lama, a corrupção, que o levou ao impeachment.

O segundo momento de populismo pós-regime militar foi registrado nos dois governos de Lula. O experiente sindicalista, já moderado pela famosa "Carta aos Brasileiros", exerceu políticas de amplo e consistente favorecimento dos interesses das elites que tanto combateu, mas implementou medidas de limitado poder de transformação social, tal qual o programa bolsa-família (originalmente um projeto liberal). Adicionalmente, criou políticas afirmativas consideradas avançadas, mas sem organicidade capaz de sustentar mudanças efetivas. Nesse campo, a título de mera ilustração, destacaria a política de quotas nas universidades, duvidosas do ponto de vista de transformação qualitativa em função da desesperadora situação do ensino básico e médio.

Seria injusto tratar Collor ou Lula como "populistas" na essência da palavra, apesar das tentações que registraram em relação ao conceito. O que os segurou, então?

Creio que é possível traçar muitos argumentos, mas destaco um: foram capazes de operar dentro de uma distância razoável do centro político e democrático. Seus arroubos populistas obedeceram aos limites expressos e não-expressos da Constituição de 1988.

O cenário atual parece ter sido capaz de reavivar a mesma dinâmica populista do período pós-redemocratização. A desigualdade social permanece como "pano de fundo" dos discursos políticos de ambas as candidaturas e as tentações populistas se explicitam nas proposições de mais igualdade social do PT de Fernando Haddad e na adoção (ainda não totalmente incorporada) de ideias radicais-conservadoras da parte de Jair Messias Bolsonaro.

Ocorre que ambos os projetos de poder se distanciaram perigosamente do centro político, ao contrário do que ocorreu com Collor e Lula nos momentos distintos em que flertaram com o populismo. Há várias razões para que isso tenha ocorrido, mas creio que, no caso do PT, isso se deveu ao papel nada moderador de Lula, a partir de seu cárcere e pela propagação da tese "anti-golpista" em relação ao impeachment de Dilma Rousseff. O discurso virou ação para ganhar votos e afastou camadas substanciais da sociedade em função da elevada corrupção impregnada pelo PT em seus anos de poder e sobre a qual nunca houve retratação política.

Já no caso de Bolsonaro a desestruturada e radical pregação em favor da segurança pública (o armamento da população, e.g.) ou dos costumes "conservadores" (afirmações nefastas contra os gays e mulheres, e.g.) acabou desembocando no sentimento disseminado de antipetismo - o primeiro turno mostrou que isso é mais de 50% dos votos dos brasileiros. Isso tudo se juntou ao liberalismo econômico mais notável desde o final da Primeira República, pelas mãos do guru do candidato.

No sentido do que está acima descrito, para voltar ao centro, o PT terá de mudar o discurso, mas restará a desconfiança sobre suas práticas políticas. Difícil superar essa realidade e nem creio que o establishment petista estaria disposto a abrir mão de seus poderes intestinos de partido de esquerda para dirimir desconfianças sociais.

Já Bolsonaro para ir ao centro político terá de entender que não existe liberalismo econômico que seja suportado por radicalismo político. Água e óleo, verdade seja dita. Nem mesmo o progresso justifica os atentados contra direitos básicos e regras pétreas das liberdades humanas. Ademais, o capitão parece disposto a deixar claro que, em relação ao PT e aos seus outros opositores, a mera existência do "outro lado" é atentado contra a democracia. Aqui, a violência verbal pode passar dos limites do razoável.

Ao que parece, a escapadela desse processo político que cria distância do centro de ação dependerá muito mais da sociedade encarnar, nesses poucos dias de campanha e a partir da consagração do eleito, o papel moderador tão necessário ao Brasil. Isso está sendo levado a cabo pela mídia, para citar exemplo mais notório, mas também poderá ser realizado pelos segmentos mais organizados da sociedade, à esquerda e à direita. Sem isso, o progressão do debate político irá na direção dos extremos.

Há, ainda, outro modo de fazer a convergência: reconhecer que a desigualdade social coloca turbinas no populismo e na radicalização política. Prometer publicamente que será retirado esse traço comum da sublevação populista que volta e meia se alastra entre nós!

Para que isso não fique num plano teórico, algo mais tangível pode ser engendrado: os dois espectros políticos poderiam fazer um pacto, antes ou depois das eleições, em prol da educação. Um projeto de Estado e não de governo maior instrumento de transformação social simbolizaria que os extremos podem se aproximar de forma construtiva. O capitão e o professor aceitariam algo assim?