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Sincretismo governamental

quarta-feira, 9 de janeiro de 2019

Atualizado às 10:31

É possível avançar no crescimento e regredir nos valores democráticos

O dualismo vigente desde a ascensão meteórica e espetacular de Jair Messias Bolsonaro à presidência da República é perfeitamente possível a despeito da contra argumentação: o ultraliberalismo propalado por Guedes e seus blue caps se restringe à economia e o conservadorismo "tipo Trump" habita as fronteiras do terreno do moralismo brasileiro ideologizada por nada menos do que Olavo de Carvalho.

O sincretismo é fenômeno bem brasileiro pelo qual há abandono da análise racional das premissas, doutrinas, conceitos e fatos pela absorção simplista de caminhos e crenças que se contradizem interna e externamente. Somente a aceitação dessa premissa permite que consideremos a seguinte hipótese: é possível regredir estruturalmente na construção de uma sociedade mais aberta, solidária e sem preconceitos e paradoxalmente progredir nas bordas da economia. Os efeitos dessa estranha conjunção serão muito relevantes nos próximos meses, quiçá, anos.

Do ponto de vista da economia o governo acerta em cheio a variável a ser perseguida que é o ajuste fiscal. Vejo, até mesmo, sinais de que essa mudança seja feita não somente em termos quantitativos (digamos, a relação entre despesas e PIB), mas também qualitativos, ou seja, melhor gasto em melhores destinações. Nesse último item, há de se reconhecer que nem o funcionalismo público corporativista e nem os legisladores priorizam e operam adequadamente as demandas do país. Creio, que por força da essência dual do governo, a melhora qualitativa deve se limitar, se acontecer de fato, às áreas mais econômicas.

Se o governo acertar na Previdência Social e contar com o apoio do Legislativo, haverá de fato melhora substantiva nas expectativas tipicamente fiscais. A oposição, ao ignorar a problemática do déficit previdenciário, comete erro grosseiro e estratégico. Deixará sem alternativa a análise da proposta governamental e ficará ainda mais escassa a confiabilidade na denominada esquerda brasileira. Depois de mergulhar na corrupção e no populismo de esquerda, PT e seus asseclas, demonstrarão a sua incapacidade de aggiornamento da agenda que propõe para o Brasil.

Na área monetária o ajuste será muito mais de "alinhamento" da política aos ajustes monetários lá fora e à evolução dos ajustes de natureza fiscal por aqui. É possível (e recomendável) que a taxa básica de juros seja mantida como está a despeito da elevação dos juros primários nos EUA e outros países centrais. Afinal de contas, com melhores perspectivas fiscais não há razão para manter positiva a taxa de juros overnight. Esta precisa ter identidade matemática com a inflação. E nada mais. É assim no mundo inteiro.

Se somarmos melhores perspectivas e fatos fiscais e monetários às reformas estruturais, aí o Brasil pode crescer 3%-4% nos próximos anos. Refiro-me particularmente ao processo de privatização e aqui cabe substantiva ressalva. Quando escrevo "privatização" refiro-me ao processo racional de seleção de ativos que devem ser passados para a iniciativa privada porque essa tem melhores condições de tocar em frente tais ativos e empresas. Isso não se comunica com a análise meramente ideológica do tema. Sabe-se que o funcionamento pleno do mercado é muito melhor do que as alternativas. Todavia, essa premissa ideológica e factual somente pode ser examinada face às premissas que a sustentam dentre as quais que somente há perfeita troca de bens entre os agentes se estes tiverem as mesmas informações e condições de participar dessas trocas. Mercados também podem ser imperfeitos e isso é muito relevante, por exemplo, quando se decide se é melhor manter um ativo nas mãos do Estado ou não. O que se vê, por enquanto nesse governo, é uma "religião ideológica do mercado" cujo dogma é que tudo que é privado é melhor. Fosse assim, ao longo da história tantas instituições (capitalistas, diga-se) não teriam sido construídas para "controlar" certos segmentos do mercado. Cabe, portanto, debate transparente sobre o tema, muito embora já esteja claro que concessões de aeroportos, estradas, muitas das estatais e outros ativos devam ser transferidos para o setor privado, pois as imperfeições do mercado nessas áreas já estão "controladas" e há de se prevalecer a eficiência (custo versus retorno).

Reformas estruturais aumentarão a produtividade dos fatores econômicos e o PIB pode crescer. Ademais, temos de considerar que a atual baixa atividade da economia favorece a que o processo de retomada seja construído pela ocupação da ociosidade existente. Isso ajuda muito a que o cenário inicial não seja inflacionário.

As variáveis acima analisadas não são "um cenário ou previsão". Não há, com efeito, otimismo ou pessimismo embutido na descrição das variáveis. Apenas devemos reconhecer que (i) a área econômica de Bolsonaro acerta no diagnóstico e caminha para uma ação correta e (ii) as condições gerais da economia brasileira permitem melhoras no seu desempenho. Simples assim. Pode atrapalhar esse cenário o evidente slowdown das principais economias mundiais. Os mercados de ativos (ações, títulos de renda fixa, etc.) já sinalizam que haverá menos crédito e crescimento ao redor do mundo. O Brasil é parte (pouco relevante) da economia global, mas terá que conviver com isso.

A outra perna do dualismo do governo Bolsonaro evidencia que a coisa vai de mal a pior. Ninguém de boa-fé deve aceitar a premissa de que a corrupção ou malfeitos sejam bons para o país. Com efeito, combater o mau uso de recursos (públicos e privados) é tarefa legítima do ponto de vista da ordem jurídica e social e necessária do ponto de vista econômico. Todavia, esse combate não pode legitimar um ambiente de "caça às bruxas" ou de "moralismo" generalizado. O governo parece tentar informar a sociedade que há um complô generalizado armado dentro do Estado para assaltar os bens públicos. O que houve por certo, foram assaltos bem organizados e grandiosos por parte de uns grupelhos de empresários, políticos, funcionários públicos e assim por diante. Cabe puni-los dentro da lei. Há, ainda, que se guardar certa "reserva institucional" e não ficar espalhando pela mídia notícias de perseguição de natureza política, bem como, difamando pessoas de bem que, eventualmente, não pensam como os bolsonaristas. O PT já encabeçou esse tipo de perseguição, não precisaria o governo imitá-lo.

Há também obscuras provocações absolutamente irresponsáveis nas áreas de meio-ambiente, educação, políticas sociais e direitos humanos. Aqui, parece que o governo prefere ficar com a doutrina e abandonar o exemplo, parafraseando o padre Antônio Vieira. Não cabe aqui relacionar as bobagens nada infantis praguejadas pelos ideólogos do governo. Vale dizer que essa prática não é "conservadorismo", é fascismo no sentido provocativo que deu a ex-secretária de Estado dos EUA Madeleine Albright: forma de manter o poder pela construção de ideias excludentes. Independe, portanto, da natureza política de determinado governo. Há os de esquerda e há os de direita. O discurso atual do governo mexe nas raízes do Estado Democrático de Direito.

Na área internacional a destruição é substancial. Do alinhamento automático aos EUA ao abandono de compromissos de Estado já assumidos estão ruindo todas os pilares da política externa do Brasil. A atuação de nosso chanceler envergonha o Brasil.