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Fim de união estável constitui quebra da base do negócio em doação

terça-feira, 22 de outubro de 2019

Atualizado às 09:00

O caso

A filha de um casal vivia em união estável desde 2002 com um rapaz. Em 2011, ela e o companheiro resolveram adquirir um imóvel residencial. Os pais dela doaram, então, cerca de 100 mil euros para ajudar no financiamento do imóvel do jovem casal.

Mas no final de 2013 os dois se separaram. Os pais da mulher entraram, in continenti, com uma ação contra o ex-companheiro pedindo de volta a metade do valor doado alegando que teria sido um empréstimo. O réu, contudo, demonstrara ter sido doação gratuita.

O processo

O casal obteve êxito no juízo de primeira instância de Potsdam. O Tribunal de Justiça de Brandenburg, em recurso de apelação, confirmou a sentença, em decisão de 26/10/2016.

Acatando a tese do réu, de que houve, de fato, doação gratuita, entendeu, contudo, que restou caracterizada a quebra da base do negócio com a separação do casal.

Com o fim da união estável, houve, segundo o Oberlandsgericht Brandenburg, uma considerável alteração das circunstâncias das quais partiram os doadores, pois na base da doação estava a ideia de que o relacionamento do casal duraria a vida inteira.

Com a separação em tão pouco tempo depois da doação, quebrou-se a base do negócio, de forma que não seria razoável permitir que os autores (doadores) permanecessem amarrados à doação feita.

Entretanto, como a filha morou no imóvel comum, o fim perseguido com a doação acabou sendo parcialmente concretizado, disse o OLG Brandeburg.

Para apurar o valor a ser restituído pelo réu, o Tribunal, então, partiu do princípio de que "o alcance do fim da doação teria que estar de acordo com a duração esperada da comunhão de vida" e, a par desse cálculo, condenou o ex-companheiro a devolver 91,6% de sua parte (metade do valor recebido) na doação, o que correspondia a cerca de 47 mil euros.

A decisão do Bundesgerichtshof

A revisão (Revision) interposta pelo réu foi admitida e o caso subiu ao Bundesgerichtshof. Trata-se do processo BGH X ZR 107/16, julgado em 18.6.2019.

O 10o Senado da Corte, especializado em direito de doação, confirmou parcialmente a decisão do Tribunal a quo.

Segundo o BGH, como em qualquer contrato, também nos contratos de doação podem existir representações de uma das partes ou expectativas de ambas acerca da permanência - ou da futura ocorrência - de determinadas circunstâncias, as quais, embora não integrando o conteúdo do contrato, serviram de base para a formação da vontade negocial.

A profunda alteração dessas circunstâncias, que formam a base da vontade negocial, pode exigir uma adaptação ou desfazimento do contrato, nos termos do § 313 do BGB, que reza:

"§ 313. Perturbação na base do negócio

(1) Se as circunstâncias, que formaram a base do contrato, alterarem-se consideravelmente após a conclusão do contrato e as partes, prevendo essas alterações, não tivessem concluído o contrato ou o tivessem concluído com outro conteúdo, pode-se exigir a adaptação do contrato enquanto, considerando todas as circunstâncias do caso individual, especialmente a repartição contratual ou legal de riscos, não for razoável a manutenção do contrato de uma parte.

(2) Uma alteração das circunstâncias ocorre ainda quando representações essenciais, que formaram a base do contrato, revelam-se falsas.

(3) Se uma adaptação do contrato não for possível ou irrazoável para uma das partes, a parte prejudicada pode desfazer o contrato. No lugar do direito de rescisão, surge nas relações obrigacionais duradouras o direito de resilição"1.

Assim, disse a Corte que: "Como em qualquer contrato, também no contrato de doação as representações de uma ou de ambas as partes contratantes podem ter por base a existência ou a ocorrência futura de determinadas circunstâncias, as quais não fazem parte do contrato, mas sobre as quais a vontade negocial foi construída. A alteração substancial dessas circunstâncias pode exigir, por isso, em razão da quebra da base do negócio, uma adaptação ou até mesmo o direito, de uma ou das duas partes, de desfazer do contrato (§ 313, inc. 1 BGB)"2.

Impõe-se, então, saber o que pode ser considerado, no caso concreto, como base do negócio nos contratos de doação.

Aqui, o BGH salientou que não se pode perder de vista que a doação não é um contrato comutativo, no qual há troca de prestação (Leistung) e contraprestação (Gegenleistung).

Trata-se, ao contrário, de um contrato caracterizado pela promessa de doação unilateral e gratuita - salvo os casos de doação condicional, modal ou com cláusula de reversão - através da qual o doador se desfaz de objeto em favor do donatário, que pode dele dispor livremente.

O donatário não se obriga a nenhuma prestação. Ele só "deve" ao doador um agradecimento pela doação, vez que o doador pode pedir de volta o bem doado quando o donatário falta, em considerável medida, com devida a gratidão, comportando-se de forma grosseiramente ingrata perante o doador (§ 530, inc. 1 do BGB).

Nos casos de doação de imóvel ou de valor para sua aquisição, feita ao próprio filho e seu parceiro, o doador tem normalmente a expectativa de que o imóvel será utilizado conjuntamente pelos donatários/beneficiados, no mínimo, por um tempo razoável.

Isso, contudo, não permite concluir - como fez a Corte de Brandenburg - que a base jurídica da doação sedimenta-se na expectativa de que uso comum do imóvel só findará com a morte de um dos parceiros.

Ao contrário, diz o BGH: os doadores precisam contar com um eventual fracasso do relacionamento amoroso, de modo que o uso e disposição do bem doado faz parte do risco assumido com a generosa doação, o que legitima o donatário a retê-lo em sua esfera jurídica.

Na verdade, ponderou a Corte, a afirmação do OLG Brandenburg - de que a doação fora feita na expectativa de que o relacionamento do casal fosse duradouro e que o imóvel a ser adquirido seria a base "espacial" para uma longa vida em comum - resulta possivelmente da "valoração jurídica" do contexto fático, trazido pelas partes.

Para a Corte de Karlsruhe, a base jurídica do negócio não foi rompida, porque o relacionamento não durou a vida toda, mas sim, porque o casal se separou pouco tempo - em menos de dois anos - depois da doação.

Dessa forma, mostrou-se equivocada a expectativa dos doadores de que o casal não iria por fim à vida em comum em tão pouco tempo, expectativa que foi elemento constitutivo da base do negócio de doação do dinheiro, conhecida e não questionada pelo companheiro beneficiário.

Nesse caso, é plausível aceitar-se que a doação não teria ocorrido se os doadores tivessem percebido o fim próximo da vida em comum do casal. Dito em outras palavras: os pais jamais teriam doado a quantia se tivessem percebido que a união iria durar pouco.

Não é, portanto, razoável deixar os doadores vinculado à doação. Mais razoável é exigir que o donatário devolva o recebido, exceto se houverem circunstâncias excepcionais a justificar a retenção.

Como é irrazoável supor que o doador teria doado um valor menor se tivesse previsto a (curta) duração da união estável, não faz sentido calcular o valor a ser devolvido (pretensão de restituição dos doadores) de acordo com uma determinada quota, como fez o Tribunal a quo.

Aqui vale a regra do tudo ou nada: ou se devolve tudo ou nada. Dessa forma, o ex-companheiro teve que devolver metade do valor recebido dos pais da ex-companheira, a titulo de doação, com base na teoria da quebra da base do negócio jurídico, atualmente positivada no § 313 do BGB.

A inovação da decisão

Essa decisão do Bundesgerichtshof é importante sobretudo por dois motivos.

Primeiro, aplica a teoria da alteração posterior das circunstâncias a negócio jurídico unilateral (doação), solucionando um caso, a princípio, sem solução no direito brasileiro - pelo menos, sem solução amparada na dogmática atual dos contratos de doação. A menos, claro, que se recorra à varinha de condão da dignidade humana, da função social ou de outro valor ou princípio constitucional.

Segundo, porque nos faz refletir sobre um tema pouco explorado no direito brasileiro, que esquizofrenicamente só parece permitir uma adaptação do contrato por quebra da base do negócio jurídico nos contratos de consumo, a teor do art. 6, inc. V do CDC.

Nas relações entre particulares, ao contrário, incidiria apenas o art. 478 CC2002, mais rígido até que a teoria imprevisão francesa, pois só se refere a contratos de execução continuada ou diferida, deixando de lado o restante dos negócios jurídicos, e exige, cumulativamente à excessiva onerosidade do devedor, "extrema vantagem" ao credor em virtude dos acontecimentos "extraordinários e imprevisíveis".

Para superar essa muralha na intervenção judicial dos contratos, em respeito à consideração pelos interesses legítimos da contraparte, ínsita à ideia de boa-fé objetiva, mostra-se premente recorrer-se ao art. 422 CC2002 e se proceder a uma releitura do art. 478 CC2002 à luz da boa-fé objetiva.

Isso se dá, como mostra a história do direito alemão, por meio de processos hermenêuticos que permitam o aperfeiçoamento judicial do direito, como a redução teleológica, desde que feito considerando o sentido e o fim da norma, bem como os valores fundamentais do ordenamento3.

A teoria atual da base do negócio

A teoria da base do negócio teve em Bernard Windscheid seu primeiro grande teórico, com a teoria da pressuposição (Voraussetzungslehre), mas foi aperfeiçoada posteriormente por autores como Paul Oertmann, Karl Larenz e, mais recentemente, Wolfgang Fikentscher.

A teoria da ausência ou quebra da base do negócio (Fehlen oder Wegfall der Geschäftsgrundlage) diz que um contrato obrigacional só deve permanecer vinculante enquanto as condições existentes no momento de sua conclusão permanecerem inalteradas.

Como o § 313 BGB deixa claro, o legislador alemão consagrou a teoria mista da base do negócio, positivando tanto a base objetiva (inc. 1), como a base subjetiva (inc. 2), que a doutrina brasileira tem grande dificuldade de distinguir dos motivos - subjetivos e juridicamente irrelevantes - do negócio.

A base subjetiva do negócio são as representações de uma ou de ambas as partes que existiam no momento da conclusão do contrato, que eram conhecidas e não foram rejeitadas pela contraparte, e cuja existência ou futura ocorrência serviram de base para a formação da vontade negocial.

A base objetiva do negócio são as circunstâncias e/ou relações existentes no momento da formação do contrato, cuja existência e permanência são objetivamente necessárias para que o contrato faça sentido para ambas as partes.

Aqui enquadram-se os casos de perturbação na economia do contrato, como desequilíbrio entre a equivalência das prestações (desequilíbrio contratual) e de frustração do fim do contrato (Zweckstörung).

Em respeito à autoresponsabilidade das partes, à lealdade contratual e ao interesse na segurança de planejamento, é bom que se diga que o instituto precisa ser usado com parcimônia.

Em outras palavras: trata-se de norma excepcional, a requerer interpretação restritiva, pois restringe os princípios da autonomia privada (Privatautonomie) e da lealdade contratual (Vertragstreue)4.

A consequência jurídica da quebra da base do negócio é a necessidade de adaptação ou de rescisão do contrato.

Trata-se, enfim, de tema que merece urgente aprofundamento teórico na doutrina nacional.

__________

1 Tradução livre: "§ Störung der Geschäftsgrundlage. (1) Haben sich Umstände, die zur Grundlage des Vertrags geworden sind, nach Vertragsschluss schwerwiegend verändert und hätten die Parteien den Vertrag nicht oder mit anderem Inhalt geschlossen, wenn sie diese Veränderung vorausgesehen hätten, so kann Anpassung des Vertrags verlangt werden, soweit einem Teil unter Berücksichtigung aller Umstände des Einzelfalls, insbesondere der vertraglichen oder gesetzlichen Risikoverteilung, das Festhalten am unveränderten Vertrag nicht zugemutet werden kann. (2) Einer Veränderung der Umstände steht es gleich, wenn wesentliche Vorstellungen, die zur Grundlage des Vertrags geworden sind, sich als falsch herausstellen. (3) Ist eine Anpassung des Vertrags nicht möglich oder einem Teil nicht zumutbar, so kann der benachteiligte Teil vom Vertrag zurücktreten. An die Stelle des Rücktrittsrechts tritt für Dauerschuldverhältnisse das Recht zur Kündigung".

2 No original: "Wie bei jedem Vertrag können auch dem Schenkungsvertrag Vorstellungen eines oder beider Vertragspartner vom Bestand oder künftigen Eintritt bestimmter Umstände zugrunde liegen, die nicht Vertragsinhalt sind, auf denen der Geschäftswille jedoch gleichwohl aufbaut. Deren schwerwiegende Veränderung kann daher wegen Wegfalls der Geschäftsgrundlage eine Anpassung des Vertrages oder gar das Recht eines oder beider Vertragspartner erfordern, sich vom Vertrag zu lösen (§ 313 Abs. 1 BGB)".

3 LARENZ, Karl. Allgemeiner Teil des Bürgerlichen Rechts. München: Beck, 2004, p. 93-96.

4 GRÜNEBERG, Christian. Bamberger/Roth-BGB. Bd. 1. München: Beck, 2003, p. 1276.