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Os tributos sobre consumo e a política de transferência de renda no Brasil

Igor Ascarelli Castro de Andrade

sexta-feira, 20 de janeiro de 2017

Atualizado às 09:17

Igor Ascarelli Castro de Andrade

Uma representação comum da realidade brasileira veiculada aqui no Brasil é a de que o País ocupa uma posição elevada no ranking das economias mundiais. O Fundo Monetário Internacional classificou o Brasil, em 2015, como a 9.ª economia do mundo em termos de Produto Interno Bruto nominal a preços correntes em dólares1. Embora importante para situar os países com maior capacidade produtiva, esse dado não é um indicador suficiente para que possamos nos representar a nós mesmos como país.

Três indicadores ajudam a retratar melhor a realidade brasileira. Um é o Produto Interno Bruto per capita nominal anual a preços correntes em dólares (PIB per capita); outro é o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) e ainda há o Índice de Gini. Quando falamos na repartição do PIB por cada habitante, o Brasil ocupa a 70ª posição de um total de 184 países segundo dados do Fundo Monetário Internacional2. Quando levamos em conta dados como renda, educação e saúde, o Brasil passa a ocupar a 75ª posição de um total de 188 países, segundo dados do IDH da Organização das Nações Unidas de 20153. Para complementar nossa representação de nós mesmos, devemos levar em conta o Índice de Gini do Banco Mundial, que mede o grau de concentração de renda. Precedido de Camarões, África do Sul, Namíbia, Haiti, Botsuana, República Centro Africana, Zâmbia, Lesoto, Honduras, Colômbia e Belize, o Brasil ocupa a 12ª posição entre países com maior desigualdade de renda no mundo4. A razão entre a renda média dos 10% mais ricos e os 10% mais pobres da população no Brasil é de 40.6. Essa razão nos Estados Unidos é de 15.9, no Reino Unido de 13.8, no Canadá de 9,4, na França de 9,1, na Suíça de 9,0, na Áustria e na Alemanha de 6,9, na Suécia de 6,2 e no Japão de 4,55.

Para completar uma visão mais acurada do Brasil, segundo a Associação Brasileira de Empresas de Pesquisa6, a classe D/E, de renda média familiar mensal de R$ 639,78, representa 26,6% da população brasileira ou 53,3 milhões de pessoas; a classe C2, de renda familiar média mensal de R$ 1.446,24, representa 24,6% da população brasileira ou 49,3 milhões de pessoas e a classe C1, de renda familiar média mensal de R$ 2.409,01, representa 25,0% da população brasileira ou 50,1 milhões de pessoas. As classes D/E, C2 e C1 compõem a maior parte da população, 74,1% do total. Os dados em conjunto revelam um país de forte capacidade produtiva cujo produto é repartido entre os poucos que ganham muito e os muitos que ganham pouco ou quase nada.

Um tema a ser enfrentado é o do papel das instituições na formação da pobreza e da riqueza. Se o Brasil está entre os dez países que mais produzem no mundo, uma pergunta que se põe é a respeito do papel do sistema de regras e princípios na alocação de recursos originariamente realizada pelo mercado. É preciso pensar não só a elaboração das regras e princípios em si mesmos, mas sua interpretação e aplicação pelos órgãos do Estado tanto em sua função administrativa quanto em sua função judicial. Para usar os termos da teoria da justiça de John Rawls, a questão é saber qual o papel da estrutura básica da sociedade na formação de um mínimo social e na consequente distribuição da renda e riqueza entre os indivíduos7. Em outras palavras, qual o papel que nossas instituições têm na configuração de uma sociedade de tantos pobres e miseráveis? Essa é uma indagação que precisamos fazer a nós mesmos como cidadãos e, eventualmente, como profissionais do direito e como agentes do Estado. Trata-se de uma questão fundamental que precisamos colocar, se pretendemos fazer de nossa sociedade uma sociedade livre, justa e solidária, sem pobreza, como almeja nossa Constituição Federal8.

Um dos aspectos jurídicos que importam na reflexão sobre pobreza e instituições é a tributação. Como sabemos, a tributação é uma dimensão da cidadania. Ela é indispensável para a construção e manutenção do Estado, essa entidade que viabiliza a coexistência de indivíduos em sociedades complexas. O pagamento de tributos é uma expressão dos ganhos que auferimos da vida em sociedade. Quanto mais nós ganhamos com a cooperação social, mais devemos ser chamados a contribuir para viabilizar a própria cooperação. Isso pressupõe que o Estado seja concebido pelos cidadãos como meio de realização de uma concepção de justiça legitimada pela própria cidadania. Desse modo, respaldada em instituições justas, a tributação financia a possibilidade de exercermos nossa liberdade e nossa igualdade de modo pleno, de acordo com uma base social sólida que permita a cada um fruir de sua concepção individual do bem-viver.

Há, no Brasil, um hiato de grandes proporções entre o ser e o dever ser das instituições estatais, bem como entre o ser e o dever ser da tributação. No Brasil, os mais pobres pagam, em termos relativos, mais tributos do que os mais ricos. É o que Valcir Gassen chama de matriz tributária9 regressiva. Isso acontece por causa dos tributos indiretos cobrados sobre o consumo das famílias. Segundo estudo da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo10, os tributos sobre consumo de bens e serviços consomem 46% da renda familiar das famílias que ganham até 2 salários mínimos, ao passo que esses mesmos tributos consomem 18% da renda familiar das famílias que ganham mais de 25 salários mínimos. Ao tributar mais os mais pobres e menos os mais ricos, o Estado brasileiro diminui a renda líquida dos que ganham menos e aumenta a renda líquida dos que ganham mais, dificultando, assim, a saída da maior parte de nossa população da situação de pobreza.

Um dos programas do Estado direcionados à erradicação da pobreza foi instituído pela Lei no 10.836/0411, regulamentada pelo Decreto no 5.209/0412. Trata-se do programa de transferência de renda com condicionalidades, conhecido como programa Bolsa Família. Por lei, os beneficiários desse programa são unidades familiares que se encontram em situação de pobreza e extrema pobreza. Segundo o Decreto nº 8.794/1613, que altera o Decreto nº 5.209/04, unidades familiares pobres são as que possuem renda familiar mensal per capita de até R$ 170,00 e extremamente pobres são as que possuem renda familiar mensal per capita de até R$ 85,00. As famílias recebem benefícios de acordo com sua composição.

Assim, pelo programa, uma família extremamente pobre composta pelos pais e por dois filhos pequenos recebe um benefício básico de R$ 85,00 mais R$ 39,00 por cada filho14, perfazendo R$ 163,00. Acontece que, no Brasil, uma família extremamente pobre compromete aproximadamente 46% de sua renda familiar com tributos sobre consumo de bens e serviços, como vimos15. Desse modo, a família de nosso exemplo, cuja renda mensal familiar per capita seja de R$ 85,00, ganha, no total, sem os benefícios, R$ 340,00 mensais. O valor que ela paga de tributos corresponde a R$ 156,40. Na relação de crédito e débito que ela mantém com o Estado, ela só recebe, na verdade, R$ 6,60, que é a diferença entre o que ela recebe do Estado (R$ 163,00) e o que ela paga de volta ao Estado (R$ 156,40) em tributos.

Se supusermos, agora, que essa família seja pobre e sua renda familiar mensal per capita seja de R$ 170,00, ela possui uma renda familiar mensal total de R$ 680,00, sem os benefícios. Desse valor, ela paga R$ 312,80 de tributos sobre consumo de bens e serviços. Como se trata de uma família classificada como pobre, ela recebe do Estado R$ 39,00 por cada filho, perfazendo R$ 78,00 . Nesse caso a família não recebe nada do Estado em termos líquidos, uma vez que ela recebe os R$ 78,00 do Estado, mas lhe paga de volta R$ 312,80. Na verdade, houve apenas um abatimento no ônus tributário, que, descontado o valor do benefício, passa a ser de R$ 234,80.

Os casos analisados aqui são de famílias que estão no teto da situação de pobreza e de extrema pobreza, isto é, de famílias que estão numa situação "melhor" que as de famílias de sua classe. Além disso, os casos trazidos aqui são de famílias com pequeno número de filhos. Dos exemplos vistos acima, é possível dizer que praticamente todo o esforço do Estado para retirar uma família da pobreza ou da extrema pobreza é anulado pelo próprio Estado mediante sua forma indireta de tributação. O Estado fornece à família o valor ou uma parte do valor que deverá custear a tributação. O que os pobres e extremamente pobres recebem do Estado acaba voltando para o próprio Estado. Embora esse vai-e-vem de recursos aumente a renda disponível das famílias, essa ação consiste mais numa isenção tributária do que numa transferência mais efetiva de renda. Um programa que se destina a transferir renda, ainda que com condicionalidades, na prática, apenas confere uma forma de isenção tributária, às vezes insignificante, sobre os produtos e serviços consumidos pelas famílias necessitadas. Seria necessário fazer um estudo mais abrangente para avaliar a relação entre tributação indireta e transferência de renda no Brasil. No entanto, para os dois casos ilustrados, pode-se sugerir a existência de uma eficiência ainda muito incipiente de nossas políticas de transferência de renda.

Diante dessa situação, algumas medidas podem ser discutidas. Uma possibilidade é o cadastramento do CPF da/o beneficiária/o num sistema de concessão de créditos de impostos sobre consumo, à semelhança do programa Nota Legal, adotado pela Secretaria de Fazenda do Distrito Federal. Cada vez que consumir, a/o beneficiária/o do programa de transferência de renda tem registrado o valor do imposto sobre consumo na nota fiscal. Um banco de dados do Estado registra esse valor e o restitui integralmente às famílias pobres e extremamente pobres periodicamente, digamos, mensalmente, somando-o ao valor do benefício. Desse modo, a transferência de renda dar-se-ia efetivamente, sem a retomada de recursos dos pobres e extremamente pobres pelo Estado. A institucionalização de uma medida como essa pode requerer medidas adicionais, como a majoração de alíquotas de impostos sobre consumo de bens de luxo, para compensar a perda de arrecadação. Pode-se ainda compensar a perda de arrecadação com a instituição de uma maior progressividade do imposto sobre a renda. Várias soluções podem ser pensadas. O importante é garantir que a efetividade da transferência de renda aos pobres e extremamente pobres não seja comprometida pela tributação.

Como foi dito antes, uma representação mais acurada do Brasil mostra que, embora estejamos entre as dez maiores economias do mundo, estamos também entre os doze países mais desiguais do mundo, sendo que a razão entre a renda média dos mais ricos e dos mais pobres da população está muito longe da razão que encontramos nos países desenvolvidos. Há algum tempo, vem sendo feito um esforço para tentar erradicar a pobreza de nosso país, mas esse esforço ainda é insuficiente. Enquanto não tivermos revista a nossa política tributária para os mais pobres, a começar pela tributação sobre o consumo que incide sobre eles, continuaremos tendo um déficit de cidadania, de liberdade e de igualdade em nossas instituições. Se tomarmos esses exemplos e uma teoria liberal como a de Rawls17, logo veremos que as instituições que compõem a estrutura básica da sociedade no Brasil ainda não podem ser chamadas de justas. Um esforço para corrigir essa situação pode começar com a revisão da política tributária para as famílias pobres e extremamente pobres de nosso país.

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1 International Monetary Fund, 2016.

2 Id., ibid.

3 United Nations Development Program, 2015, p. 235.

4 Id., 2009, p. 195-196.

5 Id., ibid., p. 195-196.

6 Associação Brasileira de Empresas de Pesquisa, 2015.

7 John Rawls, 1971.

8 Brasil, 2016a. Art. 3.º, CF.

9 Valcir Gassen, 2012, p. 27-50.

10 Federação das Indústrias do Estado de São Paulo, 2015.

11 Brasil, 2004a.

12 Brasil, 2004b.

13 Brasil, 2016b.

14 Brasil, 2016b.

15 Federação das Indústrias do Estado de São Paulo, 2015.

16 Brasil, 2016b.

17 John Rawls, 1971.

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Referências

ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE EMPRESAS DE PESQUISA. Critério de classificação econômica: Brasil. [S.l]: [s.n.], 2015. Disponível em: <https://www.abep.org/criterio-brasil>. Acesso em: 06 jul. 2016.

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https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2004/decreto/d5209.htm>. Acesso em: 03 ago. 2016.

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BRASIL. Lei no 10.836, de 9 de janeiro de 2004. Brasília: [s.n.], 2004a. Disponível em: <https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2004/Lei/L10.836.htm>. Acesso em: 03 ago. 2016.

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*Igor Ascarelli Castro de Andrade é professor universitário, mestre em Direito pela UFPB e doutor em Direito pela UnB. É membro do Grupo de Pesquisa Estado, Constituição e Tributação (GETRIB) da Faculdade de Direito da UnB.