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O que os números nos dizem

quarta-feira, 20 de maio de 2020

Atualizado às 08:20

Texto de autoria de Savério Orlandi

Tristes números

A velha máxima, em tempos atuais, nos remete diretamente à miserável condição de identificar dados, observar gráficos, quantificar perdas, difícil não enxergar o mundo dissociado da pandemia, com a força implacável das estatísticas que nos conduzem a um estado de desengano...

Aqui, não obstante, tratamos de outros números indicadores, quais sejam, aqueles que a grande maioria dos clubes apresentou no final de abril em seus balanços do exercício de 2019, vale dizer, as suas demonstrações financeiras relativas ao período anterior, frise-se, vivido sob absoluta condição de normalidade, sendo que no caso das equipes da Série A do Brasileirão, por exemplo, apenas 4 associações esportivas (isto é, 20% delas) não o fizeram.

Os números são superlativos!

Com efeito, as receitas dos clubes somadas alcançaram a cifra de quase 6,8 bilhões de reais, contra os pouco mais de 5,7 bilhões do ano anterior, representando um aumento de cerca de 18% na taxa de crescimento*, o que não pode deixar de ser um fato digno de nota e extremamente positivo.

Este incremento é resultante das negociações havidas com a televisão no exercício passado, da elevação geral das premiações pela disputa das competições (tem sido a tônica nos últimos anos), em alguns casos pela valorização dos contratos de patrocínios, pela venda de atletas em um período aparentemente proveitoso, circunstâncias que poderiam sinalizar solidez nos fundamentos econômicos do segmento. Só que não...

A par de exuberância, falta aos números consistência, e assim sugerem atenuações no rigor dos lançamentos, interpretações largas, apropriações discutíveis, leia-se, balanços patrimoniais que mesmo não expressos em peças ficcionais, seguramente não traduzem a realidade na prática.

A frieza dos números

São identificadas diversas rubricas de receitas para os clubes, contudo, as existentes ainda são mal performadas e não refletem de modo fidedigno a real condição financeira (caixa) dos clubes; como se não bastasse, não se vislumbra um ideário consistente para criação conjunta de novas receitas, que poderia se dar com a afluência de recursos do mercado de capitais, ávido (em épocas normais, claro) para participar e auferir lucro no setor.

"Descendo um degrau", vemos sem esforço a fragilidade da atual matriz econômica e o modo como a inoperância para maximizá-la se exterioriza; as negociações dos direitos de transmissão, por exemplo, representaram 35% das receitas dos clubes, porém, apesar de vultosas, são verticais e pouco cristalinas, determinam dependência, impedem a diversificação, impõem um produto envelopado e pouco atrativo, incapaz de se revigorar e despertar, a título ilustrativo, o interesse comercial do mercado externo de entretenimento esportivo, como vimos nas desordenadas ações nestes últimos anos nas tentativas de negociá-los.

As operações envolvendo direitos dos atletas, que alcançam 25% do total das receitas, parecem destinadas unicamente ao socorro na cobertura dos compromissos operacionais dos clubes, sendo cada vez mais precoces e sem a necessária maturação dos ativos, que poderia inclusive render aos clubes melhores posições de retorno, até de modo faseado - p. ex. no ato do negócio e na participação sobre a venda futura, já no exterior.

Programas de sócios torcedores e arrecadações, rubricas que contribuem juntas com pouco mais de 10% e são sazonais pela própria natureza, não foram otimizadas no limite de suas possibilidades, questões estruturais, econômicas e por vezes culturais inibem seus aumentos (vide má gestão das carteiras, dificuldades na precificação, falta de estratégia para os jogos de menor apelo e/ou que sejam "dobrados" pela transmissão ao vivo, etc.).

A questão mais sensível que se apresenta é o estrangulamento dos fluxos de caixa, fato é que as associações operam em absoluta falta de liquidez, ou seja, insuficiência de recursos disponíveis para o cumprimento de suas obrigações de curto e curtíssimo prazo, basta nos indagarmos de forma simplista, por exemplo, quantos clubes brasileiros dispõem de uma folha salarial em caixa "para solver uma emergência": Parece fácil? Não é...

Os números falam por si só...

Aspecto crítico e negativo é a elevação dos custos com departamentos de futebol, que dispararam sem administração eficaz dos gestores superando os 4,7 bilhões em 2019, em contrapartida aos 3,8 bilhões de 2018, o que fez galopar a totalidade de dívidas dos clubes, com a elite do nosso futebol devendo cerca de 8 bilhões, segundo nos informa o mesmo estudo (*).

É nítida a falta de controle dos gestores que levaram a grande maioria dos clubes ao dispêndio de percentuais muito mais do que os recomendáveis para o custeio dos seus departamentos de futebol... não perceberam que os contratos especiais de trabalho dos atletas são longos, que as opções em repatriar são onerosas, que "mensalizando" luvas do atleta "que veio sem custo" está armando uma bomba relógio, entre tantas situações que carreiam um custo operacional fixo gigantesco, impossível de suportar!

O descontrole flerta com o absurdo quando vemos que em alguns clubes brasileiros figuram como credores os seus próprios patrocinadores, em uma insólita e inadequada relação comercial quanto ao cumprimento de direitos e obrigações entre as partes. Bem mais comum do que se imagina!

As vendas, como já citado, são realizadas basicamente para cobrir o fluxo de caixa, num modo ainda bastante empírico e sem adoção de estratégias, em especial com métodos mais científicos, para ser contemporâneo... os clubes, premidos pelas suas necessidades de caixa, tem que enfileirar as operações e não desenvolvem meios de se preparar para o momento certo da realização dos ativos, nunca antes da primeira transição da base para o elenco profissional, se possível já com esta feita e provada (o Flamengo tem sido bom exemplo disso, sabe-se lá se por sorte ou por modelação).

Pois é. Em caráter absoluto, os números sinalizam o insucesso do nosso mercado futebolístico, vemos que os déficits totalizados superam a quantia de 250 milhões, enquanto as dívidas acrescidas dos clubes beiram o valor dos 8 bilhões, portanto, ultrapassando a própria somatória do resultado conjunto das associações esportivas no exercício passado.

Afinal, o que nos dizem os números?

Primeiro, para que não sejamos tolos... por mais que sejam consideráveis, como de fato são, em verdade nos entregam um mercado pouco eficiente, que sem a adoção de novas receitas e meios de financiamento somente fará perenizar o embuste, senão colapsar.

Por ora, posto que irremediável, para que possa validar os benefícios que serão originados pelo PL 2125/20, o qual deve ser caracterizado como sendo a aberração natural de um estorvo, e "carimbada" com o expresso alerta para que os gestores o recebam como derradeiro, fruto exclusivo de uma circunstância de absoluta excepcionalidade.

Pela frente, no sentido de sua insuficiência, como indicação que somente a inversão do capital de mercado poderá criar um modelo de negócio novo, que seja capaz não apenas de se auto sustentar e expandir, como também de obter resultado econômico e propiciar desenvolvimento social.

Por fim, para a urgência de se cravar um marco regulatório renovador a partir da adoção do modelo empresarial, quiçá através de um "golden goal" que poderá ser feito pelo Congresso Nacional mediante a reunião, debate e aprovação de um texto normativo oriundo da consolidação das propostas contidas nos projetos de lei do deputado Federal Pedro Paulo (DEM/RJ) e do senador Rodrigo Pacheco (DEM/MG), na perspectiva da retomada.

Enfim, os números podem ser expressivos, porém desnudam um mercado à míngua. Os números têm vida, e com ela podem guiar tantas outras.

*Savério Orlandi é advogado militante em SP, pós-graduado em Direito Empresarial pela PUC/SP, onde também se graduou. Membro do CD e do COF da Sociedade Esportiva Palmeiras.

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(*) SportsValue, Finanças dos Clubes Brasileiros em 2019 (maio/20), Amir Somoggi e equipe.