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Reparação não pecuniária de danos extrapatrimoniais e covid-19

quinta-feira, 9 de julho de 2020

Atualizado às 08:43

Texto de autoria de Cícero Dantas Bisneto

Se é certo que as espécies de danos extrapatrimoniais têm sofrido alargada expansão, em razão das numerosas transformações ocorridas na tecitura social, constitui também fato incontroverso o de que as formas de reparação destas lesões não se apresentam tão variadas e diversificadas1, prevalecendo, ainda nos dias hodiernos, o monopólio da via monetária como único modo de compensar as violações a direitos da personalidade.

A prática forense tem revelado a preferência, quase que exclusiva, dos tribunais pátrios, pela utilização do estreito e uniforme caminho da pecuniarização do remédio ministrado em face de graves violações a interesses personalíssimos, em total desatenção às especificidades do direito transgredido. Não por outro motivo, avulta a compensação em dinheiro como solução única na seara da responsabilidade civil, ainda que a heterogeneidade das novas espécies de danos não patrimoniais clame por novas e variegadas formas de reparação, ante a patente incapacidade dos meios monetários de fazer frente à complexa rede de lesões à pessoa humana.

Alguns fatores concorrem para a larga predominância da utilização dos meios monetários na seara dos danos extrapatrimoniais no direito brasileiro.

Inicialmente, há de se mencionar a histórica vinculação da caracterização da lesão não patrimonial com a existência de sentimentos negativos e estados subjetivos do ser, tais como dor, sofrimento, angústia, amargura, vexame, tristeza e humilhação, dentre outros, de modo que a configuração desta dependeria da efetiva modificação do estado psicológico ou espiritual da pessoa. A vinculação do dano não patrimonial a fatores eminentemente subjetivos parece ter sua gênese na interpretação latina, com influências do direito canônico, do direito comum germânico, consagrando expressões como o pretium doloris e o Schmerzensgeld2.

Para este segmento doutrinário e jurisprudencial, consistindo o dano extrapatrimonial em sofrimento infligido à vítima, não se apresentaria possível a sua restituição ao estado anterior à lesão, de forma que dever-se-ia, ao menos, ofertar a esta certa quantia em pecúnia, a fim de aplacar a angústia e a frustação experimentadas pelo fato lesivo, compensando-se o lesado (compensatio doloris) com a possibilidade de adquirir certos bens imateriais.

Tem albergado a jurisprudência nacional, neste sentido, em verdadeira lógica do tudo ou nada, a errática conclusão de que, não sendo possível o retorno da vítima ao statu quo ante, melhor seria atribuir a esta determinada soma em dinheiro, sob pena de deixá-la ao desamparo, sem se atentar para o fato de que, em muitos casos, a recomposição parcial do bem existencial lesionado é preferível, ainda que cumulada a obrigação de fazer com a condenação de certo valor monetário.

O ponto ora debatido guarda estreita conexão com a necessidade, defendida por parcela doutrinária, de se aplicar o postulado da reparação integral ou plena aos danos não patrimoniais3. A utilização do princípio da reparação integral na seara da lesões extrapatrimoniais, no mesmo sentido do acolhimento da noção subjetivista mencionada, tem ensejado o emprego de meios exclusivamente monetários na reparação de tais danos, sob a justificativa de que, não sendo possível a restauração plena do dano suportado, caberia ao magistrado fixar certa monta em dinheiro a fim de compensar o lesado pelos infortúnios sofridos.

Cabe registrar ainda o movimento doutrinário no sentido de atribuir à responsabilidade civil uma miríade de funções, além do clássico desígnio reparatório. Tem-se imputado a este campo do direito civil um excesso de funções, em verdadeira esquizofrenia de fins e objetivos, afastando o estudo da responsabilidade civil de seu mais importante desiderato, o de reparar a lesão sofrida. O espraiamento das funções desempenhadas pela responsabilidade civil, especialmente a preventiva e a punitiva, tem desembocado no afunilamento dos meios reparatórios, mediante o uso exclusivo da via monetária.

A utilização de remédios outros, contudo, que não a pecúnia, apresenta-se fundamental para uma mais eficiente e adequada reparação dos danos extrapatrimoniais, ofertando-se a tutela mais apropriada à concretização da proteção do direito da personalidade afrontado no caso concreto, atento o julgador às especificidades que cada interesse existencial apresenta.

Constata-se, entretanto, que a jurisprudência nacional tende a encarar as formas não monetárias de reparação do dano moral de maneira casuística4, a depender de específicas previsões legislativas, não situando a reparação natural como regra geral do sistema de responsabilidade civil. Parte-se, assim, da falsa premissa de que os modos específicos de reparação, que não se identifiquem com a solução monetária, sujeitar-se-iam à necessidade de explícito acolhimento normativo, sem o qual não seria possível o emprego de expedientes não pecuniários de recomposição de bens jurídicos existenciais.

Ocorre que o art. 927 do Código Civil de 2002, de larga abrangência, deixou de esmiuçar as formas de reparação do dano extrapatrimonial5. Do mesmo modo, o art. 944 da citada codificação, limita-se a prescrever que a indenização mede-se pela extensão do dano. Esta amplitude conferida ao sistema de reparação de danos no Brasil não pode ser interpretada como uma limitação imposta ao intérprete, mas ao revés, como cláusula geral que permite os mais diversificados modos de reparação da lesão extrapatrimonial.

Recentemente, no direito brasileiro, algumas decisões têm albergado a possibilidade de reparação específica de danos não patrimoniais, alargando o rol de instrumentos disponibilizados ao ofendido.

No Recurso Especial n. 1.771.866/DF, o Superior Tribunal de Justiça condenou o autor da obra "Operação Banqueiro: as provas secretas da Operação Satiagraha", que teria retratado o Ministro do STF Gilmar Ferreira Mendes de forma desabonadora, a publicar, nas próximas edições do livro indicado, a íntegra do acórdão condenatório proferido pelo TJDFT ao final de cada exemplar, com a mesma fonte e no mesmo tamanho padrão de todo o corpo da obra literária. Em outro caso emblemático, fora julgada parcialmente procedente demanda intentada pela deputada Maria do Rosário Nunes, contra Jair Messias Bolsonaro, condenando-se este à compensação por danos morais no valor de R$ 10.000,00 e a tornar pública a sentença em sua página oficial no canal YouTube, sob pena de multa diária.

A reparação natural, entretanto, não está restrita às hipóteses de danos à honra ou à imagem. Em tempos de COVID-19, também na seara médica a utilização de meios não monetários pode se apresentar como forma mais adequada de reparação da lesão. Assim, em caso de enfermidade ou de deformidade estética, pode o magistrado determinar que o lesante adote todas as medidas cabíveis ao completo restabelecimento do paciente6.

Pense-se, a título exemplificativo, no caso do indivíduo que, acometido de uma simples gripe ou outra enfermidade menos grave, acabe por ser infectado em determinado estabelecimento hospitalar, por falta de higienização adequada do local ou por erro médico. Nada obsta que o hospital ou a clínica, responsáveis pela deflagração do ato ilícito, sejam obrigados a providenciar o tratamento adequado ao paciente, com a sua respectiva internação em leito de UTI ou enfermaria, bem assim a disponibilizar a medicação necessária, de acordo com os preceitos médicos vigentes. Na hipótese de a vítima não possuir mais confiança nos médicos ou na instituição que perpetrou o ato ilegal, ou não dispondo esta de condições estruturais e técnicas adequadas, parece possível que o magistrado determine que a entidade médica proveja a internação do paciente em outro estabelecimento hospitalar, ao invés de simplesmente condená-la a pagar determinada soma em dinheiro.

No mesmo sentido, a empresa que deixou de adotar as medidas preventivas recomendadas para a não disseminação do vírus, pode ser compelida a providenciar a internação do empregado ou prestador de serviços em hospital particular, a fim de que este receba o tratamento adequado. Assim também o particular, pessoa física, que tenha causado, de forma negligente, a transmissão da doença a terceiro. O mero ressarcimento monetário, nestes casos, pode se revelar instrumento inútil à reparação do dano, uma vez ceifada a vida da vítima ou estabelecidas lesões permanentes em sua saúde.

*Cícero Dantas Bisneto é mestre em Direito Civil pela Universidade Federal da Bahia (2018). Doutorando em Direito Civil pela USP. Juiz de Direito do Tribunal de Justiça do Estado da Bahia e Juiz Eleitoral do TRE/BA. Associado Titular do IBERC.

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1 Esta circunstância não restou desapercebida por René Demogue que, já em 1897, sustentava não contar a responsabilidade civil com meios tão diversificados de reparação quanto os empregados para a perpetração de ilícitos (DEMOGUE, René. Reparación civile des délits. Paris: Librairie nouvelle de droit et de jurisprudence, 1898, 44-47).

2 "Los términos 'daño moral', que designan este tipo de perjuicio extrapatrimonial en su acepción más extendida, tendrían su origen en una interpretación latina, y gracias a la influencia del Derecho canónico, de la institución del Derecho germánico antiguo 'Wergeld' o 'rescate de la sangre' o 'dinero del dolor'. Esta acepción, desde la cual nació el concepto moderno del Derecho alemán 'Schmerzensgeld', también fue utilizada y aplicada en la península itálica, como asimismo en los antiguos territorios francos" (ZAMORANO, Marcelo Barrientos. Del daño moral al daño extrapatrimonial: la superación del pretium doloris. Revista Chilena de Derecho, v. 35, n. 1, p. 85-106, 2008, p. 86). Em sentido análogo: DE CUPIS, Adriano. Il danno: teoria generale della responsabilitá civile. Milano: Giuffrè, 1946, p. 31.

3 Defendemos, ao revés, no que tange aos direitos da personalidade, a utilização do princípio da reparação adequada, voltado este a perquirir as medidas mais eficazes a reparar o bem imaterial transgredido, ciente o julgador de que o restabelecimento integral das condições anteriormente existentes não se revela possível. A este propósito, cf.: DANTAS BISNETO, Cícero. Formas não monetárias de reparação do dano moral: uma análise do dano extrapatrimonial à luz do princípio da reparação adequada. Florianópolis: Tirant Lo Blanch, 2019. Olivier Moreteau, em sentido análogo, entende que o princípio da reparação integral constitui um mito, ou, no máximo, uma orientação judicial conveniente, embora muitas vezes enganosa (MORÉTEAU, Olivier. Basic questions of tort law from a French perspective. In: KOZIOL, Helmut (Ed.). Basic Questions of Tort Law from a Comparative Perspective. Wien: Jan Sramek Verlag, 2015, p. 89).

4 Diferentemente, no Direito alemão, prevalece, como regra geral, sempre que possível, a reparação específica da lesão: "La pretensión de indemnización de daños se encamina em primer lugar a obtener el resarcimiento 'in natura'. Esto se deduce del § 249, inc. 1°: el deudor está obligado a 'restablecer la situación que existiría si las circunstancias que obligan a indemnizar no se hubiesen dado'. Esta no es necesariamente la misma situación que antes había existido, sino que hay que tener en cuenta el previsible desarrollo posterior de los hechos" (LARENZ, Karl. Derecho de Obligaciones. Tomo I. Versão espanhola e notas de Jaime Santos Briz. Madrid: Editorial Revista de Derecho privado, 1958, p. 227-228). Assim também: LANGE, Hermann; SCHIEMANN, Gottfried. Schadensersatz. 3. ed. Tübingen: Mohr Siebeck, 2003, p.

5 "Por outro lado, o art. 927 do CC, ao tratar da obrigação de reparar o dano, evidentemente não afirma que esta é obrigação de pagar soma em dinheiro. Foi o processo civil, ou mais precisamente a sentença condenatória, que transformou a obrigação de reparar o dano em obrigação de pagar soma em dinheiro" (MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz; MITIDIERO, Daniel. Novo curso de processo civil: tutela dos direitos mediante procedimento comum, v. 2, 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2017, p. 504).

6 Em caso de erro médico, já se decidia, nos idos de 2011, que, além do pagamento em pecúnia, deveria o lesante ser compelido a realizar cirurgia plástica reparadora, com o escopo de amenizar as marcas deixadas pela deficiente prestação de serviço (TRF-5, Ap. Civ. 428094-RN (2003.84.00.008453-3, Rel. Bruno Leonardo Câmara Carrá, julg. Em 18.08.2011).

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Esta coluna é exclusivamente produzida pelos associados do IBERC (Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil).