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O adequado aproveitamento da propriedade urbana em Belo Horizonte à luz do novo plano diretor e da lei 11.216/2020

quinta-feira, 20 de fevereiro de 2020

Atualizado em 21 de fevereiro de 2020 07:44

Texto de autoria de Vinícius Monte Custodio

1. A propriedade privada é consagrada pela Constituição da República - CR tanto como um direito fundamental (art. 5º, XXII) quanto como um princípio geral da atividade econômica (art. 170, II), porém vinculada ao atendimento de sua função social (art. 5º, XXIII, e art. 170, III).

O regime jurídico da propriedade privada não é monolítico, sendo particularmente conspícua a clivagem feita pelo Poder Constituinte em propriedade urbana (arts. 182 e 183) e propriedade rural (art. 184 a 191).

Enquanto os requisitos para o cumprimento da função social da propriedade rural são fixados pela própria Constituição, ainda que segundo critérios e graus de exigência estabelecidos em lei (art. 186), as "exigências fundamentais" para o cumprimento da função social da propriedade urbana são expressas no plano diretor (art. 182, § 2º).

Por isso, promover o adequado aproveitamento do solo urbano não edificado, subutilizado ou não utilizado, em área incluída no plano diretor, sob pena, sucessivamente, de parcelamento ou edificação compulsórios, IPTU progressivo no tempo e desapropriação com pagamento mediante títulos da dívida pública (art. 182, § 4º), não equivale a cumprir sua função social.

Do contrário, estar-se-ia implicitamente admitindo que o solo urbano não edificado, subutilizado ou não utilizado situado fora da área demarcada pelo plano diretor prescinde do cumprimento de sua função social. E mais, sendo a lei específica que exige seu adequado aproveitamento uma faculdade do Poder Público municipal, a tutela da função social da propriedade urbana deixaria de ser um poder-dever do Executivo, passando a ser uma mera possibilidade aberta pela Constituição. Além disso, a função social não mais seria uma imposição do plano diretor, mas da lei específica que (e se) viesse a ser editada.

Logo, as penas previstas nos incisos do art. 182, § 4º, CR são sanções administrativas pela violação do dever de parcelar e/ou edificar o solo em determinada área onde se planeja adensar a cidade, muito embora a Súmula 668 do STF conclua - e mal - que são formas de assegurar o cumprimento da função social da propriedade urbana.

Reproduzindo esse equívoco, as recentíssimas lei 11.181, de 08 de agosto de 2019, que aprovou o Plano Diretor de Belo Horizonte - PD, e lei 11.216, de 04 de fevereiro de 2020, que dispõe sobre a aplicação dos instrumentos de política urbana previstos nos Capítulos II, III e IV do Título II do PD, vinculam o parcelamento ou edificação compulsórios, o IPTU progressivo no tempo e a desapropriação-sanção ao cumprimento da função social da propriedade urbana.

2. Antes de mais, convém lembrar que a Constituição determina que lei municipal específica, nos termos da lei federal, exigirá o adequado aproveitamento do solo urbano.

A esse respeito, o STF está analisando se tal especificidade é de ordem material ou formal, ou seja, se basta à lei conferir tratamento específico à matéria ou se é preciso lei autônoma e monotemática (ADI 5.154/PA). O julgamento está sobrestado desde 2015, com votação parcial (5 a 4) favorável à posição formalista1.

A se confirmar o resultado, o Capítulo II da Lei 11.216/2020 poderá eventualmente ser declarado inconstitucional ou, ao menos, seus arts. 4º e 5º, §§ 3º e 4º, que não estarão "nos termos da lei federal" (arts. 5º e 7º, § 1º, do Estatuto da Cidade - ECi, respectivamente).

Em se revertendo o placar atual, o art. 4º da lei 11.216/2020, que fixou prazos para a aprovação do projeto de parcelamento do solo (inciso I) e de edificação (inciso II), para o início (inciso III) e a conclusão das obras (inciso IV), deveria ser emendado para incluir o prazo para protocolo do projeto de obra, que não pode ser inferior a um ano, consoante o art. 5º, § 4º, I, ECi.

A lei 11.216/2020 deveria estabelecer, ainda, conforme o art. 40, § 4º, PD, a possibilidade excepcional de conclusão de empreendimentos de grande porte em etapas.

3. Se o sentido de imóvel não edificado é autoevidente e o de subutilizado é aquele "cujo aproveitamento seja inferior ao mínimo definido no plano diretor ou em legislação dele decorrente" (art. 5º, § 1º, I, ECi), só se pode interpretar não utilizado como não parcelado.

Primeiro porque, ao não impor sanção de utilização compulsória, apenas de parcelamento e edificação compulsórios, somente assim o art. 182, § 4º, CR seria articulável com seu inciso I. E depois porque o art. 5º, §§ 4º e 5º, ECi fala em protocolo de projeto, início das obras e empreendimentos de grande porte, nitidamente remetendo à ideia de parcelamento e edificação no terreno.

Nessa linha, não se justifica o conceito de "imóvel não utilizado" adotado pelo plano diretor (art. 42), que tanto se aplica à gleba não parcelada ou ao lote não edificado (inciso I) quanto ao imóvel abandonado (inciso II), edificado sem uso comprovado há mais de cinco anos (inciso III) ou com obra paralisada (inciso IV).

Ora, lote não edificado e obra paralisada são casos de solo não edificado; imóvel abandonado deve ser arrecadado como bem vago (art. 1.276 do Código Civil e arts. 64 e 65 da lei Federal 13.465/2017); e imóvel edificado sem uso comprovado há mais de cinco anos não se articula nem com a pena de parcelamento nem com a de edificação compulsória.

4. Quanto ao alcance territorial do dever de promover o adequado aproveitamento do solo urbano, o plano diretor definiu que o parcelamento, a edificação e a utilização compulsórios são aplicáveis à integralidade do município (art. 40, § 1º).

Todavia, as áreas sem coeficiente de aproveitamento mínimo determinado somente se sujeitam a utilização compulsória (art. 40, § 2º).

Já os terrenos nos quais exista impossibilidade técnica de implantação de infraestrutura de saneamento, de energia elétrica ou de sistema de circulação (art. 40, § 3º, I) ou impedimento de ordem ambiental a sua ocupação ou utilização (art. 40, § 3º, II) estão imunes às referidas sanções administrativas.

Com isso, o art. 40, § 1º, PD criou a possibilidade de se instituir uma obrigação generalizada de parcelar, edificar e utilizar o solo urbano do município inteiro, salvo nas hipóteses dos parágrafos 2º e 3º. Essa opção legislativa é questionável, porquanto rivaliza com a diretriz geral da política urbana de evitar o parcelamento do solo, a edificação ou o uso excessivos ou inadequados em relação à infraestrutura urbana (art. 2º, VI, c, ECi).

Por sua vez, o art. 40, § 2º, PD é absolutamente injustificável. Primeiro porque o coeficiente de aproveitamento mínimo só se aplica à edificação compulsória, não fazendo sentido o afastamento do parcelamento compulsório em determinada área onde aquele não exista. E depois porque viola o princípio da proporcionalidade da pena, ao punir não utilizar (infração mais leve), mas não punir não parcelar ou não edificar (infração mais grave).

E o art. 40, § 3º, PD, ao não prever exceção em caso de inviabilidade econômica, cria situação de grave injustiça, pois compele os proprietários a parcelarem, edificarem e/ou utilizarem compulsoriamente seus imóveis, independentemente da lei da oferta e da procura.

Por essa lógica, merece elogio o art. 2º, parágrafo único, da lei 11.216/2020, em cujos incisos são elencadas porções territoriais onde é plenamente justificável o adensamento da cidade, por meio do parcelamento, da edificação e da utilização compulsórios, tais como áreas de centralidades (inciso III) e terrenos adjacentes a eixos de transportes coletivos (inciso V).

Sem embargo, como o plano diretor não manda - apenas faculta - aplicar esses três instrumentos jurídicos da política urbana, seria desejável a alteração do art. 2º, parágrafo único, da lei 11.216/2020 para restringir a aplicação do parcelamento, da edificação e da utilização compulsórios exclusivamente - e não prioritariamente - às porções territoriais arroladas em seus incisos.

5. O consórcio imobiliário é "forma de viabilização de planos de urbanização, de regularização fundiária ou de reforma, conservação ou construção de edificação por meio da qual o proprietário transfere ao poder público municipal seu imóvel e, após a realização das obras, recebe, como pagamento, unidades imobiliárias devidamente urbanizadas ou edificadas, ficando as demais unidades incorporadas ao patrimônio público" (art. 46, § 1º, ECi).

O Plano Diretor de Belo Horizonte andou bem ao prever a possibilidade de o Executivo adotar programas voltados a aproximar os proprietários notificados para o parcelamento, edificação ou utilização compulsórios e os agentes interessados no desenvolvimento de empreendimentos imobiliários (art. 43, § 3º).

O art. 7º, § 1º, da lei 11.216/2020 merece elogios por admitir que o plano ou projeto de urbanização ou edificação visando à constituição de consórcio imobiliário seja elaborado, além do órgão municipal responsável pelo planejamento urbano, pelo parceiro privado, hipótese em que deverá ser aprovado pelo referido órgão.

O art. 7º, § 3º, da lei 11.216/2020, repetindo o art. 43, § 3º, PD, prevê que "o Executivo poderá adotar programas voltados para aproximação entre proprietários notificados para o parcelamento, edificação e utilização compulsórios e agentes interessados no desenvolvimento de empreendimentos imobiliários". Trata-se de inteligente opção da legislação belo-horizontina, porque estimula o mercado a custear as obras, desonerando as finanças da Prefeitura Municipal.

Por último, o art. 7º, § 5º, da lei 11.216/2020 confere ao Município o poder de descontar os débitos existentes em seu favor, relativos ao imóvel, do valor das unidades imobiliárias a serem entregues ao proprietário após a realização das obras. Para se evitarem futuras alegações de sanção política, configurada pelo uso de meio indireto coercitivo para pagamento de tributo, vedada pela Súmula 323 do STF, o instrumento de formalização do consórcio imobiliário deverá prever cláusula expressa admitindo a compensação de crédito.

*Vinícius Monte Custodio é doutorando em Direito Econômico e Economia Política na USP. Mestre em Ciências Jurídico-Políticas com menção em Direito do Ordenamento, do Urbanismo e do Ambiente pela Universidade de Coimbra. Advogado. E-mail: [email protected].

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1 A título de registro, o parecer do Procurador do Município de Belo Horizonte Fernando Couto Garcia (Processo Administrativo 01-068101-11-03), datado de 12 de julho de 2011, aprovado pelo então Procurador-Geral Adjunto do Município Rúsvel Beltrame, concluiu que a lei específica mencionada no art. 182, § 4º, CR significa "lei exclusiva", "lei que não pode tratar de nenhum outro tema".