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Covid-19 e o impacto nos contratos imobiliários

terça-feira, 24 de março de 2020

Atualizado às 07:31

Texto de autoria de André Roberto de Souza Machado

O novo coronavírus (COVID-19) está provocando impactos em todo o planeta e em todos os seguimentos, não há situação imune. Por evidente que um mercado tão sensível às crises, como é o mercado imobiliário, não passaria incólume às consequências da pandemia. Afinal, contratos imobiliários estabelecem, de um modo geral, relações jurídicas e econômicas de longa duração e envolvendo o dispêndio de valores significativos para as partes contratantes.

Tomemos como primeira hipótese para reflexão, o contrato de empreitada celebrado entre uma construtora e um incorporador, com o escopo de realizar a edificação de um empreendimento residencial, sob a modalidade de empreitada global, a preço certo e prazo determinado.

Pela inteligência dos artigos 619 e 620¹, do Código Civil brasileiro, o empreiteiro construtor assume como regra os riscos da oscilação dos custos de mão-de-obra e de materiais, bem como os riscos ordinários quanto ao prazo de conclusão das obras. Sua responsabilidade perante o incorporador é contratual e, salvo disposição em contrário, regida pelo Código Civil.

Contudo, se houver determinação do Poder Público que imponha a paralisação das obras ou que, indiretamente, restrinja o acesso dos empregados ao canteiro de obras ou, ainda, que acarrete escassez de materiais no mercado, por consequência, a execução do contrato de empreitada será afetada, com possibilidade de impacto no prazo, no custo ou nos dois simultaneamente. Tal cenário pode, também, ser observado em casos de afastamento de profissionais em virtude direta da contaminação e do tratamento dos sintomas do COVID-19.

Em tais circunstâncias, estará o empreiteiro construtor amparado pelas exceções do artigo 393² (exclusão de responsabilidade por caso fortuito ou de força maior) e do artigo 478³ (revisão ou resolução por excessiva onerosidade superveniente)? Parece-nos que sim, uma vez que se encontrariam presentes os pressupostos legais para amparar a pretensão, senão vejamos:

No caso de impossibilidade de execução das obras pelo construtor, no todo ou em parte, em razão do novo coronavirus, as consequências de seu inadimplemento seriam mitigadas pelas excludentes de Fato do Príncipe e/ou de Força Maior, afastando a mora voluntária e seus efeitos, tais como multas, juros de mora, danos emergentes e lucros cessantes associados direta e imediatamente ao atraso (artigos 393 c/c 403, ambos do Código Civil).

Assim, o incorporador estaria impedido de imputar ao empreiteiro os encargos exemplificados, salvo se houver sido prevista cláusula expressa em contrário, o que no caso do COVID-19 dependeria de as partes terem "adivinhado" a ocorrência de um fato tão extraordinário. Mas isto não significa que o prejuízo seria suportado exclusivamente pelo incorporador pois, afinal, também ele não teria culpa pelos acontecimentos, não podendo ser obrigado a pagar por medições de obra ainda não concluídas, nem por custos trabalhistas durante o período de suspensão da execução das obras, mesmo que tal fato venha a onerar a folha de pagamento do construtor.

Já custos com o aumento extraordinário do preço de materiais e de outras despesas abrangidas pelo contrato poderão ser considerados legítimos para que o empreiteiro pleiteie a revisão do preço global contratado, invocando a incidência do artigo 478, do Código Civil, uma vez preenchidos os requisitos legais respectivos, a saber:

1) Desequilíbrio econômico-financeiro, acarretando onerosidade excessiva para um dos contratantes em comparação à prestação oposta: este requisito é fundamental e o ponto de partida para que se possa cogitar aplicar o disposto no artigo 478. Isto significa que o direito civil brasileiro positivou o desequilíbrio objetivo, a perda da equivalência (ou comutatividade) entre as prestações, originalmente esperada pelos contratantes.

Assim, não basta que ocorra um desencaixe financeiro para um dos contratantes e que tal acontecimento dificulte a continuidade dos pagamentos, mas sim que ocorra um desequilíbrio entre o valor da prestação exigida (no caso, a construção) e o da contraprestação recebida (neste caso, o preço).

2) Acontecimento superveniente, extraordinário e imprevisível: o fato gerador ou a consequência gerada devem se traduzir em um acontecimento superveniente ao momento da contratação (acontecimentos anteriores, mesmo quando descobertos depois4, não se enquadram para esse fim); extraordinário ao risco próprio do que foi contratado e que se encontra expressa ou implicitamente abrangido pelo negócio; imprevisível, isto é, que as partes não puderam prever, mesmo atuando com a diligência normal esperada;

3) Contrato de execução futura (continuada ou diferida): é indispensável que a discussão se opere sobre prestações futuras e ainda não vencidas ao tempo da superveniência do acontecimento que ocasionou a onerosidade excessiva, como no exemplo, seria a elevação acentuada do preço dos insumos. Atente-se que no caso de prestações executadas anteriormente, ainda quando o acontecimento superveniente afete a expectativa de lucro, não se enquadra nos institutos ora sob exame.

Uma vez verificada a presença de todos os pressupostos, poderia ser formulado pedido de revisão judicial do contrato, com o objetivo de afastar o desequilíbrio, através de uma sentença que venha a arbitrar um novo valor para a empreitada ou novas condições objetivas de cumprimento do contrato, tal como preceituam os artigos 317 e 479, do Código Civil. A alternativa da revisão, ao contrário de um pedido de resolução do contrato, teria a vantagem de conservar a relação contratual vigente e, com isso, permitir que a atividade econômica relacionada não fosse definitivamente frustrada.

Por outro lado, caso o empreiteiro já se encontrasse em mora ao tempo da ocorrência do fato superveniente que acarretou maior onerosidade, dificilmente encontraria acolhida para uma pretensão revisional ou mesmo resolutória, uma vez que o artigo 3995, do Código Civil, pois como a prova de isenção de culpa a que se refere o legislador diz respeito ao fato anterior que o colocou em mora, e não ao evento superveniente (COVID-19) que onerou ou impossibilitou a prestação, seria objetiva a sua responsabilidade pelos riscos de agravamento ou mesmo impossibilidade da prestação durante o atraso.

Na outra ponta da operação econômica, entretanto, se encontram os adquirentes das unidades residenciais em construção, consumidores finais cuja relação contratual se encontra regida pelo Código de Defesa do Consumidor (lei 8.078/1990) e, neste outro contexto normativo, poderia o incorporador, fornecedor do empreendimento imobiliário, exercer pretensões equivalentes àqueles alegadas pelo empreiteiro?

Sem dúvida que aqui a questão é distinta e mais delicada, por envolver a possibilidade ou não de se enquadrar a hipótese como um fortuito externo ao risco do empreendimento e, com isso, romper o nexo causal essencial para a responsabilidade objetiva do fornecedor. A nosso ver, contudo, o COVID-19 possui todas a características para ser enquadrado como fortuito externo à atividade do incorporador, afastando, por conseguinte, a sua responsabilidade pela eventual mora na entrega das chaves, desde que comprovadamente decorrente das atuais e excepcionais circunstâncias, independente do atraso superar o prazo de tolerância de 180 dias. Desse modo, ao que nos parece, não incidiriam os encargos moratórios e nem o dever de indenizar pelo período de atraso associado ao novo coronavirus.

Já o aumento de custos dos insumos tenderia a ser absorvido pelo reajuste contratual atrelado ao INCC ou outro índice apropriado, possibilitando um repasse em momento posterior, ao preço final da unidade. Esse aumento só se mostraria um problema efetivo se o mesmo provocar um descasamento entre o valor de mercado do imóvel e o preço reajustado contratualmente, de forma a ensejar hipótese concreta de excessiva onerosidade superveniente para o consumidor.

Em se tratando de relações de consumo, o Código de Defesa do Consumidor Brasileiro adotou uma teoria correlata, denominada Teoria da Base Objetiva ou Quebra da Base, no art. 6º, V, do referido diploma legal. Seus pressupostos diferem daqueles exigidos pela Código Civil, tornando mais flexível a sua aplicação. É fundamental ter em vista que para invocar esta teoria será preciso que o adquirente concretamente se enquadre como consumidor, para estar amparado pelo rol de direitos básicos definidos no mencionado Código de Defesa do Consumidor6.

Pelo disposto no art. 6º, V, do CDC, é direito básico do consumidor a revisão do contrato de consumo quando, por fato superveniente, sobrevier onerosidade excessiva para o consumidor. Dispensou-se, assim, o requisito da imprevisão, limitando-se a lei a exigir que o fato seja superveniente e seja extraordinário às condições originalmente pactuadas, acarretando excessiva onerosidade para o consumidor.

Assim sendo, na hipótese descrita, parece perfeitamente possível ao consumidor pleitear uma revisão de preço que, em função de um repasse acentuado de custos extraordinariamente inflacionados pelo COVID-19, tenham tornado desequilibrada a relação de equivalência entre o valor do bem adquirido e o preço a ser pago por ele, independente de se estabelecer, em discussão mais profunda, os fundamentos da variação que tenha tornado a operação excessivamente onerosa.

Refiro-me a um eventual pedido de revisão pelo consumidor adquirente, por não vislumbrar de imediato uma legítima pretensão à resolução do contrato, a popular rescisão de contrato, uma vez que, para isso, a prestação (imóvel) precisaria perder substancialmente a sua utilidade para o adquirente, a ponto de caracterizar um inadimplemento absoluto. Não me parece que isso ocorreria de forma generalizada e automática.

Outra operação imobiliária que consideramos, para tecer estas primeiras reflexões, foi a de natureza locatícia, especialmente aquela relacionada à locação não residencial de lojas e salas comerciais em shopping center e em centros comerciais congêneres.

No Estado do Rio de Janeiro, por exemplo, o Poder Executivo determinou o fechamento dos shoppings centers e estabelecimentos congêneres (Decreto 46.973/2020), impedindo o funcionamento das mais variadas atividades ofertadas nesses estabelecimentos. As despesas correntes, entretanto e a priori, continuarão a ser exigidas desses mesmos lojistas, dentre elas o aluguel mensal pelo uso dos imóveis locados no interior desses empreendimentos comerciais e as cotas de manutenção das áreas comuns.

Ocorre que a sinalagma estabelecida neste tipo de contrato estará nitidamente afetada, quer pelo desequilíbrio superveniente entre o custo (aluguel e encargos) e o proveito (uso regular da coisa e dos serviços agregados), quer até mesmo pela absoluta destruição da contraprestação no caso de fechamento compulsório e absoluto desses estabelecimentos comerciais.

No primeiro caso, em que se esteja diante de um proveito reduzido, mas ainda existente, o valor de troca terá se tornado desproporcional, a ensejar possivelmente a sua revisão com fundamento nas denominadas Teoria da Imprevisão ou Teoria da Onerosidade Excessiva, previstas nos artigos 317 e 478, ambos do Código Civil Brasileiro, situação que poderá se verificar também em outras tantas relações contratuais comerciais e civis.

Todavia, como já apontado acima, merece atenção redobrada a verificação da presença dos pressupostos legais exigíveis para o acolhimento de pretensões dessa natureza, de forma que realmente sejam aplicáveis uma das Teorias mencionadas e não se acabe gerando mais frustrações, em virtude de uma má compreensão do âmbito de aplicação.

No segundo caso, em se tratando de impossibilidade absoluta de funcionamento do shopping center ou centro comercial congênere, parece-me que estaremos diante da total ausência de contraprestação, tornando inexigível o aluguel e demais consectários do período, sendo hipótese de inadimplemento não culposo do empreendedor locador que, embora lhe afaste o dever de indenizar o lojista locatário por lucro cessante, o impediria de cobrar as contraprestações respectivas, justamente pelo contrato não cumprido (inteligência do artigo 4767, do Código Civil)

A redução do aluguel, equitativamente à redução do proveito do empreendimento imobiliário ou mesmo a ausência de aluguel no período de fechamento compulsório, é medida perfeitamente compatível com os parâmetros legais da Teoria da Imprevisão e da Exceção de Contrato não Cumprido. De sorte que o aluguel somente retornaria ao parâmetro originalmente contratado após a cessação da causa de desequilíbrio ou de impossibilidade.

Concluindo, o caso do COVID-19 tem tudo para reverberar durante anos em nossos tribunais e em nossa literatura jurídica, exigindo uma necessária (re) leitura de suas bases teóricas e referências empíricas, a fim de que se assegure uma resposta ao mesmo tempo justa e adequada ao caso concreto, sem descuidar de seus preceitos objetivos, para que não se acuse a correta aplicação das teorias mencionadas de serem um indevido "atentado ao pacta sunt servanda".

André Roberto de Souza Machado é advogado e professor de Direito Contratual, cofundador de SMGA Advogados e membro da Comissão de Negócios Imobiliários do IBRADIM. Doutorando em Direitos, Instituições e Negócios e Mestre em Direito das Relações Econômicas.

__________

1 Art. 619. Salvo estipulação em contrário, o empreiteiro que se incumbir de executar uma obra, segundo plano aceito por quem a encomendou, não terá direito a exigir acréscimo no preço, ainda que sejam introduzidas modificações no projeto, a não ser que estas resultem de instruções escritas do dono da obra.

Parágrafo único. Ainda que não tenha havido autorização escrita, o dono da obra é obrigado a pagar ao empreiteiro os aumentos e acréscimos, segundo o que for arbitrado, se, sempre presente à obra, por continuadas visitas, não podia ignorar o que se estava passando, e nunca protestou.

Art. 620. Se ocorrer diminuição no preço do material ou da mão-de-obra superior a um décimo do preço global convencionado, poderá este ser revisto, a pedido do dono da obra, para que se lhe assegure a diferença apurada.

2 Art. 393. O devedor não responde pelos prejuízos resultantes de caso fortuito ou força maior, se expressamente não se houver por eles responsabilizado.

Parágrafo único. O caso fortuito ou de força maior verifica-se no fato necessário, cujos efeitos não era possível evitar ou impedir.

3 Art. 478. Nos contratos de execução continuada ou diferida, se a prestação de uma das partes se tornar excessivamente onerosa, com extrema vantagem para a outra, em virtude de acontecimentos extraordinários e imprevisíveis, poderá o devedor pedir a resolução do contrato. Os efeitos da sentença que a decretar retroagirão à data da citação.

4 Não confundir com institutos como a lesão, o erro ou o dolo.

5 Art. 399. O devedor em mora responde pela impossibilidade da prestação, embora essa impossibilidade resulte de caso fortuito ou de força maior, se estes ocorrerem durante o atraso; salvo se provar isenção de culpa, ou que o dano sobreviria ainda quando a obrigação fosse oportunamente desempenhada.

6 Conforme já afirmado pelo Superior Tribunal de Justiça no julgamento do REsp n. 1.321.614-SP.

7 Art. 476. Nos contratos bilaterais, nenhum dos contratantes, antes de cumprida a sua obrigação, pode exigir o implemento da do outro.