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Registralhas

Análises do Direito Notarial e Registral.

Vitor Frederico Kümpel
Este artigo se propõe a analisar o Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) no contexto do Direito Notarial e Registral, concentrando-se na compreensão de sua aplicação dentro do regime censório-disciplinar dos delegatários de serventias extrajudiciais. O Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) representa uma ferramenta da Justiça Restaurativa que, atualmente, recebe preferência na resolução de conflitos de interesses. Através da busca pela consensualidade, são estabelecidos acordos para restaurar a regularidade no funcionamento dos serviços notariais e de registro, diante de infrações de reduzida gravidade e lesividade. Recentemente, o Provimento 162, de 11 de março de 2024, da Corregedoria Nacional de Justiça do Conselho Nacional de Justiça (CNN/CN/CNJ-Extra), introduziu o artigo 135-A no Livro I da Parte Geral, Título VII, Capítulo I, do Código Nacional de Normas. Esta normativa administrativa autoriza o uso do TAC no âmbito disciplinar das serventias notariais e de registro, visando fornecer soluções adequadas para a prevenção e resolução de infrações disciplinares, conforme estabelecido na lei 8.935, de 18 de novembro de 1994, artigo 31, em conjunto com o Provimento 162/2024 da CN-CNJ, artigos 2º, § 1º e 18. Dessa forma, os Procedimentos Administrativos Disciplinares (PADs) podem ser evitados, a critério do órgão responsável pela fiscalização disciplinar das atividades notariais e de registro, nos casos em que as infrações resultem em repreensão ou multa. Vale ressaltar que o processamento do PAD é válido, mas não é iniciado. Ressalte-se que o processamento do PAD é válido, mas não é instaurado. O Conselho Nacional de Justiça introduziu uma nova disposição em seu regimento interno por meio da Resolução nº 536, de 7 de dezembro de 2023. Essa disposição permite a proposição de Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) durante a condução de qualquer processo abrangido pelo capítulo. Quando uma infração disciplinar leve é identificada envolvendo um magistrado, servidor, funcionário judicial ou delegado de serventia extrajudicial, sujeita a uma advertência ou repreensão, o Corregedor Nacional de Justiça ou o sindicante tem a prerrogativa de sugerir ao investigado a assinatura do TAC. Se o investigado concordar, o TAC será homologado pelo Corregedor Nacional de Justiça.1 A concepção consensual e não punitiva de conflitos de interesse no âmbito da Corregedoria Permanente e da Corregedoria Geral da Justiça encontra fundamento legal na lei 9.099/1995, no Código de Processo Penal, no art. 28-A - incluído pelo Pacote Anticrime, lei 13.964/2019 -, na lei 8.429/1992, lei 13.140/2015, art. 32, e o Código de Processo Civil, art. 3º, § 2º, e 1742. O TAC, no contexto do direito notarial e de registro, é o acordo celebrado para solução de controvérsias surgidas da fiscalização do cumprimento dos deveres previstos na lei 8.935/1994, art. 30, bem como nas leis e nas normas das Corregedorias pelos delegatários de notas e de registro, a fim de evitar a produção de prova em procedimentos administrativos potencialmente litigiosos, morosos e custosos3. A solução consensual para regularizar situações contrárias a legislação e os regulamentos será instrumentalizada em documento firmado pela Corregedoria Permanente, a E. Corregedoria Geral da Justiça ou a Corregedoria Nacional do CNJ e o delegatário, estabelecendo as medidas necessárias para correção das irregularidades e garantir o serviço adequado prestados aos usuários pelos notários e registradores4. Infrações disciplinares graves, que possam resultar na perda da delegação, não devem ser objeto de TAC, tampouco aquelas passíveis de suspensão. Dessa forma, o TAC será utilizado apenas para multas ou repreensões5. O objeto do TAC estabelecerá obrigações e compromissos entre as partes envolvidas, com efeitos práticos e executáveis, sem a aplicação do regime disciplinar de notários e registradores, conforme estipulado na Lei nº 8.935, de 18 de novembro de 1994. Ao aceitar o TAC, o notário ou o registrador confessa-se, reconhecendo a inadequação da conduta imputada e comprometendo-se a cumprir condições previstas nos artigos 4º, 5º e 18 do Provimento nº 162/2024, que podem ser adotadas isolada ou cumulativamente. Em relação às eventuais máculas em seu histórico, o artigo 13 do referido Provimento estabelece que a assinatura do TAC não é considerada uma punição disciplinar nem um direito garantido ao investigado. Sua inclusão nos registros funcionais é temporária, limitada a um período de três anos6 após a declaração de extinção da punibilidade devido ao cumprimento. Essa inclusão tem como único propósito evitar que o investigado receba novos benefícios durante esse período. Nos termos do artigo 3º do Provimento nº 162/2024, os delegatários acordam a reparação do dano, salvo absoluta impossibilidade de fazê- lo; a retratação; a correção de conduta; o incremento de produtividade, em até 50% mais; a frequência a cursos oficiais de capacitação e aperfeiçoamento. Poderão ser acordadas outras condições, desde que alinhadas ao propósito de prevenir novas infrações e de promover a cultura da moralidade e eficiência no serviço público. O Corregedor Nacional de Justiça poderá decidir pela utilização da Justiça Restaurativa, hipótese em que as condições serão apenas as estabelecidas no plano de ação eventualmente celebrado, a partir de procedimento restaurativo. Portanto, as condições deverão estar alinhadas ao propósito de prevenir novas infrações e de promover a cultura da moralidade e eficiência no serviço público, nos termos do Provimento nº 162/2024 da CN-CNJ, art. 3º, § 1º, c.c. os incisos do caput7. Alinhado a estes princípios, objetiva-se eliminar irregularidades, a incerteza jurídica, situações potencialmente contenciosas ou atentatórias às instituições notariais e de registro, bem como de estabelecer a compensação por benefícios indevidos ou prejuízos, públicos ou privados, resultantes das condutas praticadas. Os requisitos para a celebração do TAC, conforme estipulado no Provimento nº 162/2024 da CN-CNJ, incluem a identificação das partes envolvidas, ou seja, dos notários e registradores, bem como das Corregedorias Permanentes, Corregedorias Gerais das Justiças ou Corregedoria Nacional do CNJ. Além disso, o notário ou o registrador não podem estar respondendo a um PAD já instaurado por outro motivo, ter sido penalizado disciplinarmente, ter celebrado TAC ou outro instrumento semelhante nos últimos três anos. A homologação pela Corregedoria Nacional do CNJ é necessária para sua validação. Ademais, o TAC deve conter a descrição detalhada das irregularidades e pendências a serem corrigidas; os fundamentos de fato e de direito para sua celebração, o estabelecimento de obrigações e compromissos específicos para cada parte, os prazos para o cumprimento das obrigações estabelecidas. os mecanismos de fiscalização e acompanhamento do cumprimento do termo e possíveis sanções em caso de descumprimento das obrigações.8 Portanto, o TAC incluirá a correção das irregularidades identificadas, por meio de obrigações objetivas e claras para as partes, evitando ou suspendendo o procedimento administrativo disciplinar - PAD - ou as penas, desde que cumpridos os prazos e compromissos estabelecidos. A fiscalização e o exercício do poder censório-disciplinar durante o período estipulado no TAC podem levar à conclusão pelo cumprimento, pelo notário ou registrador, das obrigações acordadas e à extinção da punibilidade (3 anos), ou à constatação da frustração dos objetivos, resultando na aplicação das punições disciplinares previstas nos artigos 33 e 34 da lei 8.935/1994. O TAC é o instrumento legal destinado a obter, do causador do dano, um título executivo extrajudicial, por meio do qual o comprometido se compromete a adequar suas condutas às exigências da lei, sob pena de sanções estabelecidas no próprio termo. Dessa forma, trata-se de um negócio jurídico unilateral e potestativo, conforme previsto no §2º do art. 8º do Provimento, que requer a concordância irrestrita do investigado para que o TAC seja homologado pelo Corregedor Nacional. Destaca-se que a homologação é um requisito essencial para a validade do negócio. Ressalte-se que referida homologação é elemento de existência e validade do negócio. Embora o artigo 13 do Provimento nº 162/2024 estipule que a celebração do TAC não constitui uma pena disciplinar e não confere um direito subjetivo ao investigado, equipara-se à pena, uma vez que é causa de extinção da punibilidade, conforme disposto no artigo 11. Quando todas as condições estabelecidas no TAC são cumpridas, a punibilidade do investigado pela infração administrativa é declarada extinta, com o arquivamento definitivo dos autos. É importante ressaltar que a extinção da punibilidade implica na perda da pretensão punitiva do Estado, ou seja, não há mais a possibilidade de impor uma pena ou sanção ao réu. A Justiça Restauradora e a busca de soluções extrajudiciais pelo ordenamento jurídico moderno trouxeram para fiscalização de notários e registradores o Termo de Ajustamento de Conduta. A moderna compreensão do serviços extrajudiciais continua a aprimorar o sistema que presta serviços voltados para segurança jurídica nos atos e negócios jurídicos civil e de outras naturezas atribuídas por lei. O Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) oferece diversos benefícios tanto para as partes envolvidas quanto para a sociedade em geral. Para as partes, representa uma maneira rápida e eficiente de resolver disputas legais, evitando os custos e incertezas do litígio judicial. Além disso, possibilita que as partes desempenhem um papel ativo na solução do problema, ao invés de dependerem exclusivamente de uma decisão judicial. A instauração de processos disciplinares é reservada para casos em que outros mecanismos não conseguem restaurar a ordem interna ou evitar a desordem administrativa, seguindo os princípios da eficiência e do interesse público. Dessa forma, busca-se racionalizar os procedimentos administrativos, simplificar processos e eliminar controles excessivos. Ao celebrar o acordo extrajudicial, o Procedimento Administrativo Disciplinar (PAD) é suspenso, evitando-se assim a investigação suplementar de infrações disciplinares mais graves. No entanto, apesar de suas vantagens, o TAC também enfrenta desafios e limitações. As desvantagens incluem a admissão da infração como parte do acordo, o que pode acarretar punições disciplinares em caso de descumprimento. As obrigações acordadas também se somam às responsabilidades ordinárias do profissional. Por fim, o TAC fica registrado no histórico do notário ou registrador, podendo afetar sua participação em futuros concursos devido à admissão de infrações disciplinares. Sua eficácia pode depender da boa-fé e cooperação das partes, assim como da capacidade de implementar e monitorar as medidas acordadas. Além disso, embora o TAC não seja considerado uma pena disciplinar, sua celebração resulta na extinção da punibilidade do investigado pela infração administrativa, o que impede a imposição de penalidades adicionais pelo Estado. __________ 1 "Art. 47-A. No curso de qualquer processo deste capítulo, uma vez evidenciada a prática de infração disciplinar por parte de magistrado, servidor, serventuário ou delegatário de serventia extrajudicial em que se verifique a hipótese de infração disciplinar leve, com possível aplicação de pena de advertência ou censura, o Corregedor Nacional de Justiça ou o sindicante poderá propor ao investigado Termo de Ajustamento de Conduta (TAC), que uma vez aceito pelo investigado será homologado pelo Corregedor Nacional de Justiça." 2 O regime jurídico do termo de ajustamento de conduta não se resume a estas leis. Outras Leis incidentes na temática são bem como na lei 8.069/1990, art. 211, a lei 7.347/1985, art. 5º § 6º; o Código de Defesa do Consumidor, no at. 113; e na lei 9.605/1998, art. 79-A, §§ 5º e 6º.  3 Cf. O. J. DE PLÁCIDO E SILVA (in Vocabulário Jurídico, atualizadores: Nagib Slaibi Filho e Priscila Pereira Vasques Gomes - 31. ed. - Rio de Janeiro: Forense, 2014, p. 2;086) é um mecanismo de solução extrajudicial de conflitos pautado pela negociação entre as partes e tem por finalidade fazer cessar ou buscar danos ou penas contra aquele que pratica a ação ou omissão ilícita ou que cause danos.  . 4 Provimento nº 162/2024 da CN-CNJ, art. 3º.   5 Provimento nº 162/2024 da CN-CNJ, art. 2º, § 1º, in fine   6 Nos termos do art. 131 da Lei nº 8.112/90: As penalidades de advertência e de suspensão terão seus registros cancelados, após o decurso de 3 (três) e 5 (cinco) anos de efetivo exercício, respectivamente, se o servidor não houver, nesse período, praticado nova infração disciplinar. Parágrafo único.  O cancelamento da penalidade não surtirá efeitos retroativos. 7 Provimento nº 162/2024 da CN-CNJ, art. 3º, in verbis: "Com a aceitação do TAC, o investigado se compromete a reconhecer a inadequação da conduta a ele imputada e a cumprir as seguintes condições,  que poderão ser adotadas isolada ou cumulativamente: I - reparação do dano, salvo absoluta impossibilidade de fazê-lo; II - retratação; III - correção de conduta; IV - incremento de produtividade; V - frequência a cursos oficiais de capacitação e aperfeiçoamento; VI - suspensão do exercício cumulativo e remunerado de funções judiciais; VII - suspensão do exercício remunerado de funções administrativas ou de caráter singular ou especial.   8 Provimento nº 162/2024, da CN-CNJ, art. 8º, § 1º, incisos. 
Neste artigo, serão analisados os impactos da Emenda Constitucional 131, de 3 de outubro de 2023, que alterou questões relacionadas ao direito de nacionalidade, especialmente no contexto das atividades realizadas nos tabelionatos e registros públicos. O Estado da Pessoa Natural é uma representação de sua posição jurídica em diferentes contextos: político, familiar e individual. Ele reflete a soma de suas características na sociedade e é essencial para sua identificação no sistema jurídico, juntamente com seu nome e domicílio. A definição do estado da pessoa natural é crucial para a realização de atos civis, e é por isso que toda entrada nos registros públicos começa com essa informação1. No Registro Civil das Pessoas Naturais, o estado civil faz parte da descrição do titular do direito registrado, como visto nos procedimentos de habilitação para o casamento e nos registros matrimoniais, além de ser relevante na identificação das testemunhas. No que diz respeito aos registros de nascimento, embora incluam informações sobre a nacionalidade dos pais do registrado, não é apropriado registrar o estado civil, pois é proibido inserir no registro dados que indiquem qualquer diferenciação em relação à natureza da filiação. O estado político aborda as questões relacionadas à política e à nacionalidade de uma pessoa, especialmente aquelas relacionadas à sua condição como nacional, estrangeiro, apátrida ou com múltiplas nacionalidades. O registro civil de nascimento atua como uma prova direta e imediata da nacionalidade de uma pessoa, o que é fundamental para o exercício dos direitos políticos. A nacionalidade, de acordo com a Constituição de 1988, é considerada um direito fundamental e pode ser definida como o vínculo legal e político interno que faz com que uma pessoa seja parte integrante da população de um Estado. Essa ligação, portanto, conecta o indivíduo a um Estado específico, tornando-o sujeito às leis desse Estado. Tal direito é reconhecido na Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, art. XV, que também veda o estado de apatridia (vínculo local ou ascendência)2. Segundo José Afonso da Silva, nacionalidade e cidadania são conceitos distintos, sendo o primeiro atribuído aos brasileiros natos ou naturalizados, enquanto a cidadania qualifica o indivíduo para desfrutar de direitos políticos e participar ativamente na vida do Estado3. A nacionalidade originária é aquela considerada como primária e concedida desde o nascimento, sendo atribuída de forma involuntária. Pode resultar tanto do local de nascimento (princípio do jus soli)4 quanto da nacionalidade dos pais (princípio do jus sanguinis)5. Por outro lado, a nacionalidade derivada é adquirida de forma voluntária, geralmente através do processo de naturalização. Geralmente, implica em uma mudança da nacionalidade anterior, pois requer uma expressão de vontade por parte do indivíduo6. A importância da nacionalidade como componente do estado civil de uma pessoa foi mais relevante no passado do que é atualmente, especialmente em um mundo globalizado com um constante intercâmbio de pessoas. Nesse contexto, D. A. DALLARI adverte que a análise natural dos elementos do Estado sugere que o plurinacionalismo é a regra, ou seja, em cada povo há indivíduos de inúmeras nacionalidades7. Desde os tempos do sistema jurídico romano, essa questão tem sido uma preocupação, com o status civitatis representando a dependência de um indivíduo em relação a uma comunidade juridicamente organizada. Inicialmente, esse vínculo estava entre os homens livres e a cidade de Roma. Apesar da posterior expansão, os romanos não abandonaram a concepção de cidade-Estado, criando uma categoria para representar, ao lado dos cives (cidadãos), os súditos livres (peregrini = peregrinos) que não o eram8. O Brasil, como um país formado por imigrantes e com uma rica diversidade cultural, reflete essa complexidade. A nacionalidade é um elemento crucial na qualificação por notários e registradores, além de ser um requisito para vários atos praticados nos Registros Públicos, como na aquisição de imóveis rurais por estrangeiros (Lei nº 5.709/1971), participação em empresas jornalísticas e de radiodifusão sonora e de sons e imagens (art. 222 da CF), bem como na opção de nacionalidade e sua eventual perda. A alteração proposta pela Emenda Constitucional nº 131/2023 no artigo 12, § 4º, da Constituição Federal, referente à perda da nacionalidade brasileira, destaca-se pela sua significativa relevância. Agora, o cidadão somente perderá sua nacionalidade brasileira mediante um pedido expresso por escrito, e ainda assim, terá a possibilidade de readquiri-la posteriormente. Anteriormente, a nacionalidade derivada era declarada perdida mediante o cancelamento da naturalização por sentença judicial, em casos de atividade nociva ao interesse nacional, ainda baseada na antiga lei de segurança nacional (Lei nº 7.170/1983) declarada inconstitucional pelo STF. Houve considerável debate doutrinário e jurisprudencial sobre o significado dessa atividade "nociva"9. A Constituição Federal de 1988 não especificava o que seria considerado "atividade nociva ao interesse nacional" para justificar a perda da nacionalidade por punição. A Lei de Migração (Lei nº 13.445/2017), ao tratar desse assunto, não esclareceu esse conceito vago, apenas mencionando o risco de tornar alguém apátrida. Em um caso incomum de definição judicial do termo "atividade nociva", o TRF da 3ª Região confirmou a perda da nacionalidade de uma brasileira naturalizada que cometeu crimes de falsificação de documentos e introdução clandestina de estrangeiros, conforme previsto no Estatuto do Estrangeiro (lei 6.815/80)10. Com a nova redação introduzida pela emenda, o cancelamento da naturalização passa a ser uma das causas de perda da nacionalidade em duas situações: em primeiro lugar, na ocorrência de fraude no procedimento de naturalização, o que resulta em sua nulidade e eventual trasladação no Livro E do Registro Civil das Pessoas Naturais;11 em segundo lugar, de forma mais ampla e superveniente à aquisição da nacionalidade brasileira, nos casos de atentado contra a ordem constitucional e o Estado Democrático.  Esse conceito amplo de "atentado contra a ordem constitucional e o Estado Democrático" pode ser aplicado conforme previsto no Código Penal, especialmente nos crimes contra o Estado Democrático de Direito, incluídos no Título XII da Parte Especial do Código pela lei 14.197/2021, arts. 359-I a 359-T (dos crimes contra a soberania nacional, dos crimes contra a instituição democrática, dos crimes contra o funcionamento das instituições democráticas no processo eleitoral, dos crimes contra o funcionamento dos serviços essenciais). A nacionalidade originária e derivada brasileira podem ser perdidas mediante  renúncia expressa do titular, desde que isso não resulte em estado de apatridia. Portanto, os brasileiros natos que adquirirem outra nacionalidade estrangeira não estão mais sujeitos à perda de sua nacionalidade brasileira, desde que a nova nacionalidade seja devidamente averbada no assento de nascimento, conforme previsto no art. 102, 5º, da LRP, por meio de comunicado emitido pelo Ministério da Justiça, cuja competência foi atribuída pelo decreto 3.453/2020. Ressalte-se que o objetivo do sistema é evitar a situação dos heimatlos (indivíduo que se encontra desprovido de nacionalidade). Nesse sentido, é necessário que o renunciante possua a nacionalidade de outro país como requisito para o ato, a fim de evitar o estado de apatridia. Vale ressaltar que a reaquisição futura da nacionalidade brasileira também é permitida, conforme estabelecido pela inclusão do § 5º ao art. 12 da Constituição Federal pela Emenda Constitucional 131/2023, com a devida averbação no assento de nascimento. Conforme analisado, os efeitos decorrentes da nova ou dupla nacionalidade refletem no Registro Civil das Pessoas Naturais, mediante averbação no assento de nascimento, conforme previsto no art. 102, 5º, da LRP, por meio de comunicado emitido pelo Ministério da Justiça. Isso significa que os registradores terão a responsabilidade de analisar uma quantidade maior de atos que impactam a relação legal entre o cidadão e o Estado Brasileiro, o que pode resultar na perda de mandatos eletivos, cargos, empregos ou funções públicas, já que a nacionalidade brasileira é um requisito essencial para o exercício dessas atribuições.  Ainda, esses efeitos podem incluir a submissão ou não aos requisitos estabelecidos pela lei 5.709/1971, regulamentada pelo decreto 74.965/1974, para aquisição de imóveis rurais no Brasil, tais como a exigência de escritura pública e os limites de área em determinado município para estrangeiros ou nacionais do mesmo país. Ainda há incerteza quanto à questão de se a renúncia da nacionalidade brasileira resulta ou não na perda da propriedade para o ex-nacional. De um lado, a renúncia é um negócio abdicativo, que altera o estado da pessoa, porém, o sistema brasileiro tem com regra a irretroatividade dos efeitos de modificações de estado político, o qual pode ser considerado um direito adquirido, no caso, a propriedade. No Registro Civil de Pessoas Jurídicas, a questão da nacionalidade também se mostra relevante, especialmente no que diz respeito à obrigatoriedade de matrícula no RCPJ para empresas jornalísticas e de radiodifusão sonora, de sons e imagens, conforme previsto no artigo 222 da Constituição, que limita a participação de estrangeiros nessas empresas a até 25% do capital total e votante. Outros efeitos decorrentes da renúncia e reaquisição da nacionalidade brasileira podem ser objeto de estudo adicional. No entanto, é evidente que a nacionalidade desempenha um papel crucial nos tabelionatos e registros públicos. A mudança introduzida pela Emenda Constitucional 131/2023, no artigo 12 da Constituição Federal de 199812, é vista como positiva, pois se adapta à nova realidade de cidadãos plurinacionais em diversos países do mundo, bem como atende às necessidades das pessoas e à sua plurinacionalidade. A distinção entre nacionalidade e cidadania, a necessidade de evitar a apatridia e a possibilidade de renúncia seguida de reaquisição da nacionalidade são aspectos fundamentais abordados nesse contexto. Essas mudanças impactam diretamente os registros públicos e tabelionatos, exigindo uma análise mais criteriosa dos atos que envolvem a nacionalidade dos cidadãos. A voluntariedade na perda da nacionalidade brasileira e os efeitos decorrentes desse processo ganham destaque, ressaltando a importância de garantir a segurança jurídica e a proteção dos direitos dos indivíduos em um cenário cada vez mais plural e diversificado. Diante desse cenário de transformações e adaptações legais, é essencial que os profissionais do direito estejam atualizados e preparados para lidar com as questões relacionadas à nacionalidade, garantindo o pleno exercício dos direitos e deveres dos cidadãos em um contexto nacional e internacional em constante evolução. A Emenda Constitucional trouxe alterações significativas tanto na perda da nacionalidade por punição, alterando profundamente seus fundamentos, quanto na perda por aquisição, que foi eliminada. Isso resultou em uma restrição significativa à possibilidade de perda da nacionalidade brasileira. Portanto, pode ser considerada uma Emenda Constitucional que tem como objetivo a preservação da nacionalidade, na medida em que eliminou a figura tradicionalmente conhecida como "polipatria proibida" e também restringiu o cancelamento da naturalização de um indivíduo por meio de sentença judicial, ressaltando a relevância da nacionalidade como aspecto do estado da pessoa natural, especialmente em um mundo globalizado caracterizado por um constante intercâmbio de pessoas. __________ 1 Cf. V. F. KÜMPEL - C. M. FERRARI, Tratado de direito notarial e registral, 2ª ed., São Paulo, YK, 2022, p. 168.    2 Cf. F. K. COMPARATO (in A afirmação histórica dos direito humanos, 7ª ed. rev. e atual., São Paulo, Saraiva, 2010, p. 245-246. 3 Cf. Curso de direito constitucional positivo, 26ª ed. rev. e atual, São Paulo, Malheiros, 2006, p. 319.   4 CF, art. 12, I, "a"; LRP, art. 50, caput 5 CF, art. 12, I, "c"; LRP, art. 32 6 Lei 13.445/2017, art. 64 e seguintes 7 Cf. DALMO DE ABREU DALLARI, Elementos de teoria geral do Estado, 25ª ed., São Paulo, Saraiva, 2005, p. 135 8 Cf. J.C. MOREIRA ALVES, Direito Romano, 18ª ed, Rio de Janeiro, Forense, 2018, p 140-141. 9 Como bem ressaltou o ex-MIN. MARCO AURÉLIO DE MELLO, obtiter dictum, no Recurso Ordinário em Mandado De Segurança 27.840, do Distrito Federal, julgado em 07/02/2013, o Constituinte deixou aberta a redação para os casos de perda, porque "n" são as hipóteses que justificava a perda da nacionalidade. Cf. o ex-Min. Marco Aurélio de Mello, a que se transcreve "Penso que a cláusula do inciso I do § 4º do artigo 12 da Constituição Federal é abrangente, no que revela que o cancelamento - é a situação jurídica - da naturalização deve decorrer de sentença judicial. É certo que na parte final do preceito se tem "em virtude", apontando-se causa, mas, a meu ver, essa referência: "em virtude de atividade nociva ao interesse nacional", é simplesmente exemplificativa, porque "n" situações podem surgir a desaguarem na cassação, no cancelamento da naturalização".  10 AC 00163489720064036100, Rel. Des. Fed. Marli Ferreira, e-DJF3 26/09/2013. 11 Cf. Enunciado 1 da I Jornada de Direito Notarial e Registral: É possível trasladar os registros civis estrangeiros de nascimento, casamento e óbito de brasileiros naturalizados no Livro E do Ofício de Registro Civil das Pessoas Naturais competente mediante a apresentação do certificado de naturalização e dos demais documentos exigidos na Resolução CNJ n. 155/2012. Somado a este, o enunciado 8 da mesma Jornada, cujo teor, in verbis: "Para inscrição dos demais atos relativos ao estado civil, é possível o registro da naturalização no Livro E do Registro Civil das Pessoas Naturais, após sua concessão pelo Ministério da Justiça e Segurança Pública". 12 § 4º - Será declarada a perda da nacionalidade do brasileiro que: I - tiver cancelada sua naturalização, por sentença judicial, em virtude de fraude relacionada ao processo de naturalização ou de atentado contra a ordem constitucional e o Estado Democrático; II - fizer pedido expresso de perda da nacionalidade brasileira perante autoridade brasileira competente, ressalvadas situações que acarretem apatridia. § 5º A renúncia da nacionalidade, nos termos do inciso II do § 4º deste artigo, não impede o interessado de readquirir sua nacionalidade brasileira originária, nos termos da lei.
terça-feira, 5 de março de 2024

Nascimento no dia 29 de fevereiro e o RCPN

O acréscimo do dia 29 ao mês de fevereiro a cada 4 anos (chamados anos bissextos) resultou de um ajuste de calendário ao longo dos séculos para se estabelecer uma compensação de horas no ciclo solar, que tem duração de 365 dias, 5 horas, 48 minutos e 46 segundos. O acréscimo foi inicialmente introduzido no calendário Juliano, organizado em 46 a. C. Esse calendário teve como objetivo fixar a duração de um ano comum de 365 dias, dividido em 12 meses, e intercalar o dia extra, a princípio, a cada 3 anos.  Antes da modificação proposta, o ano iniciava-se no mês de março e terminava apenas em fevereiro. Porém, não havia a padronização de 30 a 31 dias dentro de cada mês, tal qual a atual; os meses, na verdade, eram contados em ciclos lunares, considerando-se também os equinócios, solstícios e outros fatores naturais. Assim, o calendário Juliano visou padronizar a duração e quantidade de meses do ano, bem como realizar essa compensação do ciclo solar a cada 3 anos, criando-se o dia extra em fevereiro (que era, anteriormente, o último mês). Em 1582 A. D., ocorreu uma nova reforma promovida pelo Papa Gregório XIII, introduzindo-se o conhecido calendário Gregoriano, utilizado até os dias de hoje. O novo calendário visou sanar a compensação de dias de divergências que surgiram ao longo da utilização do calendário Juliano, bem como determinou a data do dia extra do ano bissexto para o dia 29 de fevereiro, reajustando-o para ocorrer a cada 4 anos pares. Nossa controvérsia surge, então, sobre o registro dos nascimentos ocorridos no dia 29 de fevereiro, que acontece somente a cada 4 anos. Há quem defenda que o registro deverá constar o próprio dia 29 de fevereiro, a fim de se manter a veracidade do registro. Concorda-se com esse pensamento para a emissão da DNV e a lavratura do assento de nascimento, visto que é necessária a correspondência dos dados do Registro Civil com a realidade. Contudo, faz-se uma ressalva para a certidão de nascimento extraída desse assento. A fim de proteger o cidadão, aponta-se que o correto seria que as certidões gerais constassem o nascimento no dia 1º de março, imediatamente subsequente1, reservando-se à certidão de inteiro teor com a data do dia 29 de fevereiro apenas aos legitimamente interessados. Publicizar o nascimento da pessoa no dia existente apenas a cada 4 anos (principalmente enquanto crianças) pode expô-la ao ridículo e causar prejuízos em sua vida comum, complicando fatos cotidianos simples como a comemoração de seu aniversário na comunidade, o cadastro de sua data de nascimento em sistemas gerais (que, muitas vezes, beneficiam os usuários no dia ou mês de seu aniversário), além de desloca-la da sociedade.  A atividade notarial e registral e, principalmente, o Registro Civil das Pessoas Naturais tem como um de seus objetivos e princípios a eficácia dos atos jurídicos (art. 1º da LRP e da lei 8.935/94). Assim, devem primar pela proteção do usuário e para que seus atos efetivamente auxiliem a vida cotidiana das pessoas, e não a atrapalhem. Adotar a regra de constar na certidão de nascimento o dia 29 de fevereiro apenas prejudica a pessoa, não lhe trazendo qualquer benefício. Em contrapartida, mantendo-se o assento originário com a informação real e apenas a certidão para o dia 1º de março, preserva-se a intimidade da pessoa, bem como a veracidade registral. Outras novidades serão analisadas, oportunamente, nesta coluna; sigam conosco! Sejam felizes! ------------------------------- 1 Em interpretação analógica do art. 132, §2º do Código Civil: Art. 132. Salvo disposição legal ou convencional em contrário, computam-se os prazos, excluído o dia do começo, e incluído o do vencimento. § 1 o Se o dia do vencimento cair em feriado, considerar-se-á prorrogado o prazo até o seguinte dia útil.
terça-feira, 20 de fevereiro de 2024

Concursos de cartório previstos para 2024

A atividade notarial e registral está em grande projeção nacional, em vista da forte tendência à extrajudicialização de atos antes privativos da jurisdição e da qualidade do serviço prestado pelas serventias extrajudiciais. Em razão disso, os Tribunais de Justiça estaduais seguem organizando constantemente os concursos públicos para a outorga das delegações, evitando-se a vacância das serventias, em observação aos comandos constitucionais. Como se sabe, nos termos do art. 236, §3º da Constituição Federal, o ingresso na atividade notarial e de registro depende de concurso público de provas e títulos, não se permitindo que qualquer serventia fique vaga, sem abertura de concurso de provimento ou de remoção, por mais de seis meses. Os concursos para o ingresso na atividade, comumente conhecidos como "Concursos de Cartório", são divididos nas seguintes fases: Prova objetiva (em regra, eliminatória); Prova escrita e prática (eliminatória e classificatória); Prova oral (eliminatória e classificatória); Entrevista e Avaliação de Títulos (classificatória). A prova objetiva, primeira fase, consiste em questões de múltipla escolha sobre as disciplinas dispostas no edital. Essa etapa é, em regra, eliminatória e não é permitido consultar nenhum tipo de material. Na prova escrita e prática, que tem caráter eliminatório e classificatório, normalmente, é composta por dissertação e elaboração de peça prática, além de questões discursivas. Nesta fase, o candidato possui direito a consulta à legislação não comentada ou anotada. A terceira fase consiste em uma prova oral, cujo caráter é eliminatório e classificatório. Os candidatos são convocados e devem comparecer presencialmente para responder a perguntas feitas pelos examinadores, tudo de forma oral, sem possibilidade de anotações.  A ordem dessa arguição é definida por sorteio e ocorre, na maior parte dos casos, de forma individual, com um candidato interagindo apenas com um examinador. Entretanto, em estados como São Paulo e outros, há uma espécie de rodízio e os candidatos são arguidos por todos os examinadores presentes. Por fim, há a avaliação de títulos que consiste na apresentação dos comprovantes de atividades desenvolvidas pelo candidato. A cada título, é atribuída uma pontuação, que irá compor a nota final do candidato no concurso, conforme os critérios da resolução nº 81/2009 do CNJ1. Para o ano de 2024, temos inúmeros concursos previstos e em andamento. A saber: Acre Status: Há concurso em andamento. A prova escrita e prática que ocorreu no dia 18 de fevereiro de 2024. Perspectivas: Aguardando o resultado da prova escrita e prática e o agendamento da prova oral. Alagoas Status: Há concurso em andamento. A prova escrita e prática ocorreu em 22 de outubro de 2023. Previsão: Aguardando o resultado da prova escrita e prática e o agendamento da prova oral. Amazonas Status: Há concurso em andamento. A prova escrita e prática ocorreu em 17 de dezembro de 2023. Previsão: Aguardando o resultado da prova escrita e prática e o agendamento da prova oral. Bahia Status: Há previsão de Edital para o concurso em 2024. Comissão Examinadora: Já está formada. Maranhão Status: Há concurso em andamento. No dia 29 de outubro de 2023 ocorreu a prova escrita e prática. Perspectivas: aguardando-se o resultado e as definições para a prova oral. Mato Grosso Status: Há previsão de Edital para o concurso em 2024. No dia 14 de novembro de 2023 foi divulgado a lista de serventias vagas. Banca Organizadora: Centro Brasileiro de Pesquisa em Avaliação e Seleção e de Promoção (Cebraspe) Minas Gerais Status: Há previsão de Edital para o concurso em 2024. Comissão Examinadora: Já está formada. Pará Status: Há previsão de Edital para o concurso em 2024. Lista de serventias vagas publicada Paraíba Status: Há previsão de Edital para o concurso em 2024. Comissão Examinadora: Já está formada. Banca Organizadora: Consulplan Pernambuco Status: Há previsão de Edital para o concurso em 2024. Comissão Examinadora: Já está formada. Rio Grande do Norte Status: Há previsão de Edital para o concurso em 2024. Comissão Examinadora: Já está formada. Rondônia Status: Há previsão de Edital para o concurso em 2024. Comissão Examinadora: Já está formada. Roraima Status: Há previsão de Edital para o concurso em 2024. Banca Organizadora: Centro Brasileiro de Pesquisa em Avaliação e Seleção e de Promoção de Eventos (Cebraspe). Santa Catarina Status: Há concurso em andamento. Perspectiva: No dia 30/01/24 houve a reabertura do prazo para envio dos documentos para outorga e dos títulos. A fase oral foi agendada para o dia 03 de abril de 2024. São Paulo Status: Há previsão de Edital para o concurso no primeiro trimestre de 2024. O 13º concurso de cartório de São Paulo teve sua abertura aprovada e no dia 10 de novembro de 2023 foi publicada a lista de serventias vagas. Comissão Examinadora: Já está formada. Sergipe Status: Há concurso em andamento. Perspectiva: A prova escrita e prática foi agendada para o dia 10 de março de 2024. Aos que almejam se tornarem titulares de uma serventia extrajudicial, deixamos nosso convite para fazer parte da VFK Educação. Em 2024, a VFK está completando 25 anos de atuação na preparação de candidatos para esse certame. A VFK é líder de aprovação em Concursos de Cartório desde 1999 e foi idealizada para a preparação dos candidatos em alta performance e especialização de seus alunos em Direito Notarial e Registral. Será uma alegria receber os próximos futuros titulares. Siga-nos no instagram @cursovfk Outras novidades serão analisadas, oportunamente, nesta coluna; sigam conosco! Sejam felizes! __________ 1 "7.1. O exame de títulos valerá, no máximo, 10 (dez) pontos, com peso 1 (um), observado o seguinte: I - exercício da advocacia ou de delegação, cargo, emprego ou função pública privativa de bacharel em Direito, por um mínimo de três anos até a data da primeira publicação do edital do concurso (2,0); II - exercício de serviço notarial ou de registro, por não bacharel em direito, por um mínimo de dez anos até a data da publicação do primeiro edital do concurso (art. 15, § 2º, da Lei n. 8.935/1994) (2,0); (Alteração dada pela Resolução n. 187, de 24 de fevereiro de 2014) III - exercício do Magistério Superior na área jurídica pelo período mínimo de 5 (cinco) anos: a) mediante admissão no corpo docente por concurso ou processo seletivo público de provas e/ou títulos (1,5); b) mediante admissão no corpo docente sem concurso ou processo seletivo público de provas e/ou títulos (1,0); IV - diplomas em Cursos de Pós-Graduação: a) Doutorado reconhecido ou revalidado: em Direito ou em Ciências Sociais ou Humanas (2,0); (Alteração dada pela Resolução n. 187, de 24 de fevereiro de 2014) b) Mestrado reconhecido ou revalidado: em Direito ou em Ciências Sociais ou Humanas (1,0); (Alteração dada pela Resolução n. 187, de 24 de fevereiro de 2014) c) Especialização em Direito, na forma da legislação educacional em vigor, com carga horária mínima de trezentos e sessenta (360) horas-aula, cuja avaliação haja considerado monografia de final de curso (0,5); V - exercício, no mínimo durante 1 (um) ano, por ao menos 16 horas mensais, das atribuições de conciliador voluntário em unidades judiciárias, ou na prestação de assistência jurídica voluntária (0,5); (Alteração dada pela Resolução n. 187, de 24 de fevereiro de 2014) VI - período igual a 3 (três) eleições, contado uma só vez, de serviço prestado, em qualquer condição, à Justiça Eleitoral (0,5). Nas eleições com dois turnos, considerar-se-á um único período, ainda que haja prestação de serviços em ambos."
terça-feira, 19 de dezembro de 2023

Retrospectiva 2023 - Direito Notarial e Registral

O ano de 2023 foi a prova viva de que a atividade notarial e registral, principalmente pela extrema qualidade de seus agentes, está no epicentro de atuação legislativa, cabendo mencionar: lei 14.620/23 e lei 14.711/23, ambas buscando o desenvolvimento econômico do Brasil no cenário mundial. Em julho, foi publicada a lei 14.620/2023, sobre o Programa Minha Casa Minha Vida e que promoveu outras alterações diversas, como na Lei de Desapropriação, instituindo-se o direito real de imissão provisória na posse, e na Lei nº 6.766/1979, possibilitando o regime de afetação nos loteamentos. Na ocasião, discutimos algumas questões levantadas pela referida normativa. A respeito do Programa Minha Casa Minha Vida, verificamos inovações na aquisição de propriedade fundada no Direito de Família, nos casos de dissolução de união estável, separação ou divórcio de casal que tenha adquirido um imóvel no âmbito do programa, efetivando-se a transferência da totalidade dos direitos sobre o bem para a mulher, preferencialmente, ou para o homem que tiver a guarda dos filhos menores. Além disso, verificamos a criação do direito real de imissão provisória na posse, que foi elencado no rol do art. 1.225 do Código Civil. Retomamos, então, a discussão acerca do momento da transferência da propriedade na desapropriação, defendendo-se a tese de que a mesma ocorre no momento do pagamento do valor pelo ente público, em vista, justamente, da possibilidade de ser gerado um direito real à Administração muito antes da sentença do processo de desapropriação. Houve ainda importante alteração no art. 176-A da Lei dos Registros Públicos, sobre as hipóteses de abertura de matrícula nova nas situações de aquisição originária da propriedade imóvel; além da possibilidade de inserção do regime de patrimônio de afetação nos loteamentos da lei 6.766/1979. No final do ano, em 30 de outubro, foi publicada também a lei 14.711/2023, conversão do Projeto de lei 4.188/2021, sobre o aprimoramento das garantias. Ainda estamos discutindo os muitos impactos trazidos pela nova normativa, dentre eles, principalmente as alterações no procedimento da alienação fiduciária em garantia e a criação da execução extrajudicial da hipoteca. Foi criada, ainda, a figura do agente de garantias, inserida no art. 853-A do Código Civil, além da solução negocial prévia ao protesto e outras medidas de renegociação de dívida colocadas na lei 9.492/1997. As alterações para o Tabelionato de Protesto e novas possibilidades para os títulos de crédito foram inúmeras e com certeza ainda traremos mais exposições práticas para o início do ano. Em âmbito normativo, não podemos deixar de lado também a criação do Código Nacional de Normas do Foro Extrajudicial do CNJ. Já há muito esperado, o Código organizou e atualizou os Provimentos da atividade, dividindo-o por matérias. Umas das alterações, já nele inseridas, que repercutiu no início do ano foi a regulamentação da adjudicação compulsória extrajudicial (Prov. nº 150), que havia sido prevista na lei 14.382/2022. Agora, aguardamos o ano de 2024 com mais novidades positivas na atividade notarial e registral e a expectativa de implementação do SERP. Deixamos, por fim, um agradecimento especial aos colaboradores da nossa Coluna Registralhas, que foram essenciais para os nossos artigos do ano: Fernando K. Mady; Marcos Claro; Natália Sóller e Victor V. Fogolin!!! Desejamos a todos um excelente fim de ano com muito estudo, foco e dedicação plena a aqueles que trabalham no extrajudicial e/ouse preparam para os concursos de outorga de delegação e que vem tornando a atividade notarial e registral um destaque na vida da sociedade brasileira. Sejam felizes!
A hipoteca experimentou um processo de declínio desde o surgimento da alienação fiduciária no ordenamento brasileiro, com o advento da Lei do Mercado de Capitais (Lei n° 6385/1976). Como elucidamos em artigo anterior1, diante da tendência legislativa de criação de meios mais céleres para a recuperação do crédito, a execução de garantia hipotecária tornou-se menos utilizada, por gerar um processo judicial demorado e oneroso, que inviabilizava a própria concessão do crédito imobiliário, fortalecendo, de outro lado, a alienação fiduciária em garantia. Como tentativa de solucionar a morosidade da excussão da garantia hipotecária, incentivando o retorno de sua importância, o legislador criou a execução extrajudicial da hipoteca, prevista no art. 9° da lei 14.711/2023, em regime similar ao da alienação fiduciária. Constitucionalidade e histórico da execução extrajudicial Como gênero, a execução extrajudicial já era contemplada em leis especiais, que autorizavam a alienação do bem empenhado independentemente de ação judicial, desde que houvesse autorização expressa no contrato de penhor2. A execução extrajudicial da hipoteca também não se mostra inteiramente uma novidade no ordenamento, pois já era prevista no decreto-lei 70/66, embora com escopo restrito ao Sistema Financeiro de Habitação e promovida pelo agente fiduciário da garantia (particular imparcial, incumbido de verificar a regularidade e dar cumprimento ao acordo). A constitucionalidade do procedimento foi questionada perante o STF no Recurso Extraordinário n° 627.106, sob a alegação de ofensa desproporcional ao devido processo legal e ao direito de propriedade (art. 5°, LIV da CF: "ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal"). Como relatado pelo Ministro Marco Aurélio, esse argumento baseava-se na "automaticidade de providências, que acaba por alcançar o direito de propriedade, fazendo perder o devedor, sem possibilidade de defender-se, o bem que até então integrava seu patrimônio", em uma posição abusiva do credor. Porém, prevaleceu o entendimento de que não há qualquer ofensa a esses direitos, já que o procedimento não afasta o controle judicial, mas inverte a fase de intervenção, que passa, como regra, a ser posterior ao procedimento. O devedor é intimado a acompanhar o procedimento, podendo impugnar, inclusive no âmbito judicial, o desenrolar do procedimento, se irregularidades vierem a ocorrer durante o seu trâmite3. Assim, a tese de repercussão geral fixada no RE 627.106 foi: "É constitucional, pois foi devidamente recepcionado pela Constituição Federal de 1988, o procedimento de execução extrajudicial, previsto no Decreto-lei nº 70/66". Ressalva-se que o rito do Decreto-Lei 70/66 foi expressamente revogado pela Nova Lei de Garantias, não mais subsistindo. As mesmas razões foram utilizadas pelo STF para declarar a constitucionalidade do procedimento de execução extrajudicial da alienação fiduciária (Lei 9.514/1997), no RE 860631, "haja vista sua compatibilidade com as garantias processuais previstas na Constituição Federal". Diferenças entre a hipoteca e a alienação fiduciária Como principais diferenças, a hipoteca não implica em transferência da propriedade do imóvel ao credor, permanecendo sob o domínio do devedor, sendo o bem livremente alienável (art. 1475 do Código Civil), enquanto a alienação fiduciária transfere a propriedade resolúvel ao credor com escopo de garantia4, revestindo o bem de inalienabilidade, salvo em caso de anuência do credor. Quanto à forma de constituição, a hipoteca observa a regra do art. 108 do Código Civil, exigindo escritura pública em caso de imóveis com valor superior a trinta salários-mínimos, conforme expresso no art. 9°, §15° da lei 14.711/2023. De outro lado, a alienação fiduciária dispensa instrumento público independentemente do valor (art. 38 da lei 9.514/97). Também, a hipoteca pode ter por objeto bens imóveis e direitos reais sobre estes, elencados no art. 1473 do Código Civil, além de navios e aeronaves. A alienação fiduciária pode ter por objeto bens imóveis (lei 9.514/97) e móveis, regulada pelo Código Civil ou pelo decreto-lei 911/69 (caso se trate de instituição financeira). Por fim, como grande diferença que motivou a alteração legislativa, a hipoteca imobiliária, em regra, exigia a excussão pela forma judicial, com mutação real no momento da assinatura do auto de arrematação, exceto na situação do Decreto-Lei 70, enquanto a alienação fiduciária sobre imóveis, por força da lei 9.514/97, poderia ser concretizada no registro de imóveis, com a averbação da consolidação da propriedade.  Procedimento de execução extrajudicial da hipoteca Por expressa previsão5, o procedimento de execução extrajudicial da hipoteca rege-se, no que for omisso, pelas disposições do rito da alienação fiduciária de bens imóveis. Destaca-se que é requisito de validade do título constitutivo da hipoteca (em regra, a escritura pública) que conste menção expressa ao teor do procedimento de excussão extrajudicial, previsto no art. 9° da Nova Lei de Garantias, ao que recomendamos a cópia desses parágrafos na escritura e uma análise atenta do registrador sobre essa cláusula. Diante do descumprimento do negócio, a garantia hipotecária pode ser executada judicialmente ou perante o registro de imóveis da situação do imóvel hipotecado, em procedimento com a participação do tabelião de notas da circunscrição do local do bem. Como exceção, não se submete ao procedimento de execução extrajudicial o crédito hipotecário oriundo de atividade agropecuária, por força do §13 do art. 9º da Lei das Garantias, em razão de não ser conveniente uma célere execução nesse setor. A motivo dessa previsão é que, no agronegócio, surgem situações em que há conveniência em um atraso do pagamento da dívida (como perspectivas de renegociação com auxílio do governo), bem como intercorrências naturais, que são frequentes nesse ramo, levando ao atraso da prestação. Portanto, o Registrador de Imóveis deverá negar execuções hipotecárias oriundas de crédito do agronegócio. No rito, vencida e não paga a dívida, no todo ou em parte, possuem legitimidade para iniciá-lo o credor ou seu cessionário. Serão intimados pessoalmente pelo Registro de Imóveis, para purgação da mora em 15 dias úteis: o devedor; se for o caso, o terceiro hipotecante; ou seus representantes legais ou procuradores regularmente constituídos. Ressalva-se que não foi expresso número de parcelas ou valor mínimo para que o credor se utilize desse procedimento. Entendemos, porém, que se aplicam as vedações ao abuso de direito e a teoria do adimplemento substancial, coibindo-se execuções de valores ínfimos, à semelhança do princípio processual da utilidade da execução judicial. O marco inicial do procedimento de excussão extrajudicial da hipoteca é a não purgação da mora nesse prazo, que implica em averbação na matrícula do imóvel, noticiando o início do procedimento. Em importante inovação, fortalecendo o princípio da concentração, essa averbação é obrigatória e deve ser pedida pelo credor nos 15 dias úteis seguintes ao fim do prazo para purgação da mora, sob pena de necessidade de nova intimação. Em até 60 dias após essa averbação, o credor promoverá leilão público do imóvel, que pode eletrônico. O devedor e o terceiro hipotecante devem ser comunicados da data, horário e local deste, por correspondência ao endereço constante do contrato ou outro fornecido, que pode até mesmo ser eletrônico (por e-mail). Destaca-se que o Registrador de Imóveis deve fiscalizar essa comunicação e a regular publicação dos editais de leilão, de modo a permitir ampla divulgação aos licitantes, conforme precedentes do Conselho Superior da Magistratura - SP sobre a mesma questão na execução da alienação fiduciária6. No primeiro leilão, o valor mínimo do lance é aquele estabelecido no contrato para excussão ou o valor de avaliação realizada pelo município para fins do ITBI, o que for maior. No segundo leilão, realizado nos 15 dias úteis seguintes à frustração do primeiro, o valor mínimo, de aceitação obrigatória, é o valor integral da dívida garantida pela hipoteca, das despesas, inclusive emolumentos, dos prêmios de seguro, dos encargos legais, inclusive tributos, e das contribuições condominiais. Como novidade, é facultado ao credor, se não houver lance nesse valor, que aceite lance que corresponda, no mínimo, a metade do valor de avaliação do bem. Em importante inovação, frustrado o segundo leilão, surgem duas opções ao credor: A primeira opção é, abatendo o valor do referencial mínimo (valor de avaliação ou do ITBI), apropriar-se do imóvel em pagamento da dívida, situação em que, por meio de ato de registro em sentido estrito na matrícula, constará a transmissão de domínio e os leilões negativos em ato único, mediante a apresentação de requerimento de adjudicação ao Registro de Imóveis, acompanhado de auto negativo dos leilões. A segunda opção é a venda direta do bem, em até 180 dias do último leilão, por valor não inferior ao referencial mínimo, dispensando as formalidades do leilão. Nesse caso, como forma de viabilizar a alienação, o credor hipotecário fica investido de mandato legal e irrevogável para representar o devedor, com poderes para transmitir domínio, direito, posse e ação, manifestar a responsabilidade do alienante pela evicção e imitir o adquirente na posse. Aplicando-se o mesmo entendimento da alienação fiduciária, conforme precedentes do CSM7, não cabe ao Registrador de Imóveis fiscalizar a observância dos valores mínimos ou do repasse do excedente ao devedor ou dos prazos do leilão da excussão da hipoteca, pois essas etapas possuem caráter obrigacional, reguladas contratualmente (art. 30 da lei 9.514, aplicável subsidiariamente), resolvendo-se em perdas e danos em favor do devedor. Assim, "todas as ações judiciais que digam respeito a litígios decorrentes de cláusulas contratuais e a requisitos procedimentais de cobrança e leilão deverão ser resolvidos em perdas e danos, exceto se relativos à exigência de notificação do devedor"8. Até a alienação em leilão, o devedor ou prestador da garantia têm assegurado o direito de remição da hipoteca, mediante o pagamento da totalidade da dívida acrescida das despesas de cobrança e leilões. Por "totalidade da dívida", devem ser entendidas todas as parcelas do crédito, mesmo aquelas com data futura, seguindo-se a interpretação do STJ9 para previsão semelhante no DL 911 ("totalidade da dívida"), orientando-se pelo escopo da lei de evitar o inadimplemento. Ademais, o Registrador de Imóveis é autorizado a receber esse valor da remição da hipoteca na excussão extrajudicial, repassando as quantias em até 3 dias úteis e averbando a quitação da dívida. Como desvantagem da opção pela excussão extrajudicial, nos financiamentos para aquisição ou construção de imóvel residencial, caso não seja suficiente o produto da excussão, o devedor não responderá pelo saldo remanescente da dívida. Nos demais casos e no sistema de consórcios, o devedor responderá pelo saldo remanescente, por força do art. 1430 do Código Civil. Ata notarial de arrematação Sendo frutífero o leilão, o legislador optou por inovação que une a celeridade com a segurança jurídica. Trata-se da ata notarial de arrematação. Após a conclusão do leilão, os autos deste e do procedimento de execução extrajudicial da hipoteca serão distribuídos ao tabelião de notas da circunscrição do imóvel, para a lavratura dessa ata. Nesse caso, não há livre escolha do tabelião, com a finalidade legislativa de evitar a concorrência predatória. A ata notarial de arrematação conterá os dados da intimação do devedor e do garantidor e dos autos do leilão, constituindo título hábil de transmissão da propriedade ao arrematante, ingressando no fólio real. Entendemos que a atividade do tabelião não se restringe à mera descrição dos documentos, mas também abrange a qualificação de vício formais e materiais que impeçam a arrematação, bem como do pagamento do ITBI e, caso se trate de imóvel enfitêutico, do laudêmio, requisitos para o ingresso no fólio real (art. 9°, §14). Em primeira vista, causaria perplexidade o ingresso de uma ata notarial como título hábil para a transferência de domínio no Registro de Imóveis. Contudo, recorda-se que as cartas de sentença extrajudiciais, hábeis para esse ingresso, também possuem natureza jurídica de ata notarial10. Como importante efeito, iniciando a obrigação do devedor em arcar com a taxa de ocupação e com as despesas de desocupação do imóvel, a data da expedição da ata notarial de arrematação é equiparada à data de consolidação da propriedade na execução da alienação fiduciária. Por fim, destaca-se que a ata notarial de arrematação, em regra obrigatória ao final do rito de excussão extrajudicial da hipoteca, é dispensada no caso de opção do credor pela adjudicação do imóvel em pagamento da dívida, após frustrado o segundo leilão, mediante requerimento de adjudicação ao Registro de Imóveis acompanhado de auto negativo de leilões. Este é um primeiro mergulho de um tema tão intrigante e que merece novos capítulos em outras oportunidades. Sejam felizes! Referêbcia bibliográfica OLIVEIRA, Carlos Eduardo Elias de. Lei das Garantias (lei 14.711/23): Uma análise detalhada. Migalhas Notariais e Registrais, quarta-feira, 1 de novembro de 2023. Disponível aqui. Acesso em: 11 de novembro de 2023. __________ 1 Disponível aqui. 2 Artigos 774, inciso III, do Código Civil de 1916; artigo 279, do Código Comercial; além do artigo 120 da Antiga Lei de Falências. 3 Disponível aqui. 4 Item 224, Cap. XX, NSCGJSP. 5 Art. 9°, §12° da Nova Lei de Garantias. 6 CSMSP - APELAÇÃO CÍVEL: 1011556-33.2020.8.26.0114. Campinas, 29 de junho de 2023. Diário da Justiça de 12 de setembro de 2023. Relator: Fernando Antônio Torres Garcia. 7 TJSP; Apelação Cível 1000490-18.2018.8.26.0505; Relator (a): Pinheiro Franco (Corregedor Geral); Órgão Julgador: Conselho Superior da Magistratura; Foro de Ribeirão Pires - 1ª Vara; Data do Julgamento: 26/02/2019; Data de Registro: 01/03/2019. 8 CSMSP - APELAÇÃO CÍVEL: 1011556-33.2020.8.26.0114. Campinas, 29 de junho de 2023. Diário da Justiça de 12 de setembro de 2023. Relator: Fernando Antônio Torres Garcia. 9 STJ. 2ª Seção. REsp 1.418.593-MS, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, julgado em 14/5/2014 (recurso repetitivo) (Info 540). 10 CGJSP - RECURSO ADMINISTRATIVO: 39.867/2013. São Paulo, 24 de julho de 2019. Diário da Justiça de 30 de julho de 2019. Relator: Geraldo Francisco Pinheiro Franco.
A lei 14.711/23, Lei de Garantias, promoveu diversas alterações no instituto da alienação fiduciária em garantia, modificando diretamente a lei 9.514/97, o Código Civil e outras leis que regulamentam a matéria. O objetivo desta coluna é analisar como tais alterações reforçam a tese de que a AFG tem natureza jurídica de patrimônio de afetação. Não obstante a nova redação dada ao art. 22 da lei 9.514/97 tenha mantido a definição da AFG como uma forma de propriedade resolúvel1, entende-se que sua natureza mais adequada é a de patrimônio de afetação, não existindo de fato uma resolubilidade com a constituição dessa garantia2. Em rápida análise, destaca-se que a propriedade resolúvel é uma cláusula aquela que está sujeita à extinção por uma condição resolutiva consignada no próprio título de sua constituição ou em determinação legal; nesse cenário, o titular do bem perde sua propriedade plena em favor de seu titular anterior ou de um terceiro, em razão do implemento de uma condição que fora estabelecida pelas partes no momento da transferência da propriedade (no título) ou que estiver prevista na lei. A alienação fiduciária em garantia, por sua vez, é um contrato com o objetivo de garantia, que gera um direito real de desafetação sobre o bem em favor do fiduciante e que não transfere a propriedade plena ao fiduciário para que, após a garantia, ela se resolva. O bem adquirido em alienação fiduciária em garantia, embora esteja em nome inicialmente do fiduciário - para, após, ser transmitido ao fiduciante com a quitação -, fica segregado de seu patrimônio, não pertencendo a ele de forma plena desvinculada de outras obrigações, visto que, mesmo com a consolidação da propriedade diante do inadimplemento, o fiduciário ainda está obrigado a realizar sua aquisição plena e transmissão. Assim, o bem tem a finalidade precípua de servir como garantia daquela relação contratada e apenas se desvincula do gravame quando o crédito é quitado pelo fiduciante ou quando ele é levado a leilão pelo fiduciário em caso de inadimplemento. Ademais, parece que as modificações promovidas pela Lei de Garantias reforçam tal posicionamento. A saber. A inserção do §4º ao art. 22 da lei 9.514/97, passou a admitir as "alienações fiduciárias sucessivas", permitindo-se, portanto, a constituição de mais de uma garantia por alienação fiduciária sobre o mesmo bem3. Num primeiro momento, poder-se-ia ter o entendimento oposto, no sentido de que, justamente por se permitir apor mais de uma garantia sobre o mesmo bem, ele não estaria afetado à primeira alienação fiduciária. Contudo, o que deve ficar muito claro é que, para os credores de segundo grau para frente, a sua garantia ocorre sobre o direito real de aquisição que o fiduciante tem sobre o bem objeto da garantia (art. 1.368-B, CC)4. Quando constituída uma alienação fiduciária em garantia, o devedor fiduciante adquire (até o momento da quitação plena) somente o direito real de aquisição sobre o bem, permanecendo a propriedade - afetada - sob titularidade do credor fiduciário. Dessa forma, o único direito que o fiduciante poderia efetivamente alienar em garantia é o seu direito real à reaquisição, leia-se desafetação, não tendo ainda outros direitos de propriedade sobre o bem passíveis de oneração. Tanto que, pela própria redação do §4º, caso o primeiro credor fiduciário execute o bem, os demais apenas sub-rogar-se-ão no preço obtido, cancelando-se as AFGs posteriores, na medida em que o devedor fiduciante não conseguiu adquirir efetivamente seu direito de propriedade (desconstituindo-se também seu direito real à aquisição). Veja-se que a plena eficácia da alienação fiduciária se dá apenas para a primeira garantia5, tendo esse credor a obrigação apenas de disponibilizar eventual crédito remanescente aos demais. Outra alteração legislativa que reforma o entendimento pela afetação é o "recarregamento" da garantia, inserido nos arts. 9-A a 9-D da lei 13.476/17, sobre constituição de gravames e ônus sobre ativos financeiros e valores mobiliários, art. 1.487-A do Código Civil e art. 167, II, 37 da Lei dos Registros Públicos. Em resumo, passou-se a permitir a extensão da garantia nas situações de alienação fiduciária e hipoteca, de forma que tais garantias reais poderão servir para mais de uma obrigação ao mesmo tempo. Veja-se que a extensão se difere da sucessividade - nesta última, embora exista mais de uma obrigação, as garantias são, justamente, sucessivas, autônomas entre si. Em âmbito da AFG, exige-se, para tanto, que o credor das obrigações garantidas seja o mesmo e que inexistam outras obrigações garantidas pelo bem a outros credores. Logicamente, não se poderia integrar a garantia para mais de uma obrigação se as partes fossem diversas e se o bem já estivesse onerado a terceiros6. A possibilidade do recarregamento na AFG vai ao encontro do entendimento de que tal garantia gera um patrimônio separado, de forma que a afetação do bem pode ser estendida entre as partes da relação de garantia originária. Em outras palavras, as partes podem "otimizar" a destinação dada ao bem - qual seja a de garantia de alienação fiduciária - funcionando o direito para garantir mais de uma relação obrigacional de crédito entre as partes. Na hipótese de se classificar o instituto como uma propriedade resolúvel, o recarregamento, na verdade, teria que alterar constantemente a "condição suspensiva", de forma a adaptar os termos que permitiriam a resolução da propriedade em favor do devedor. Nesse cenário, a obrigação originária, portanto, seria necessariamente alterada, na medida em que sua conclusão não mais necessariamente geraria a resolução, estando pendentes outras obrigações garantidas pelo bem. Não parece, contudo, que o recarregamento admita alterações no vínculo originário ou das outras obrigações constituídas pelas mesmas partes, entendendo-se que ocorre apenas a extensão da afetação do bem em razão de outros vínculos criados pelas partes, concluindo-se os termos das obrigações de maneira autônoma e permanecendo a afetação até a quitação de todos os créditos. Assim, a adoção do entendimento da natureza da alienação fiduciária em garantia como patrimônio de afetação está em consonância com as novas medidas propostas pela lei 14.711/23. Outras novidades serão analisadas, oportunamente, nesta coluna; sigam conosco! Sejam felizes! _____________ [1] Art. 22. A alienação fiduciária regulada por esta Lei é o negócio jurídico pelo qual o fiduciante, com o escopo de garantia de obrigação própria ou de terceiro, contrata a transferência ao credor, ou fiduciário, da propriedade resolúvel de coisa imóvel (Redação dada pela Lei nº 14.711, de 2023) [2] V. F. Kümpel - C. M. Ferrari, Tratado Notarial e Registral, vol. 5, t. 2, São Paulo, YK, 2020, p. 1775; N. Sóller, Alienação fiduciária em garantia: análise da propriedade fiduciária, do negócio fiduciário, da propriedade resolúvel, do patrimônio de afetação, do elemento de fidúcia e de seus antecedentes no direito romano, Dissertação (Mestrado) - Universidade de São Paulo (USP), São Paulo, 2023. [3] § 4º Havendo alienações fiduciárias sucessivas da propriedade superveniente, as anteriores terão prioridade em relação às posteriores na excussão da garantia, observado que, no caso de excussão do imóvel pelo credor fiduciário anterior com alienação a terceiros, os direitos dos credores fiduciários posteriores sub-rogam-se no preço obtido, cancelando-se os registros das respectivas alienações fiduciárias. (Incluído pela Lei nº 14.711, de 2023). [4] Nesse mesmo sentido, C. E. E. Oliveira, Lei das Garantias (lei 14.711/23): Uma análise detalhada, in Migalhas, s.l., 01.12.2023, pp. 16 e ss., disponível em https://www.migalhas.com.br/coluna/migalhas-notariais-e-registrais/396275/lei-das-garantias-lei-14-711-23--uma-analise-detalhada [12.11.2023]. O autor defende de forma muito adequada que o melhor entendimento é o de que o direito gerado ao devedor fiduciante é o direito real à aquisição, que é atual, em vez da "propriedade superveniente" (termo utilizado pela própria lei), que seria um direito futuro, sob condição suspensiva. [5] C. E. E. Oliveira, Lei cit. p. 12. [6] Neste ponto, vale destacar que, para a alienação fiduciária em garantia, previu-se a possibilidade de recarregamento ainda quando houve garantias a instituição financeira diversa sobre o mesmo bem, desde que tal instituição seja integrante do mesmo sistema de crédito cooperativo da instituição financeira credora da operação original ou garantidora fidejussória da operação de crédito original - art. 9-A, §3º, Lei nº 13.476/1997.
O PL 6.204/2019, que atualmente tramita na Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania, dispõe sobre a desjudicialização da execução civil de título executivo judicial e extrajudicial, visando alterar as leis 9.430/1996; 9.492/1997; 10.169/2000; e o Código de Processo Civil. Essencialmente, seu maior objetivo é permitir que a execução de títulos seja conduzida pelo tabelião de protesto - que se tornaria o agente de execução -, tirando uma sobrecarga do Poder Judiciário, na medida em que extrajudicializa o processo de execução em determinadas situações. Trata-se de uma desburocratização da execução e títulos condenatórios de pagamento de quantia certa, a fim de reduzir os custos estatais e dar maior celeridade ao processo. Com a leitura do texto do projeto de lei1, contudo, algumas questões são levantadas sobre os limites da atuação do agente de execução e da formalização dos títulos nesse procedimento. A saber. Questiona-se, primeiramente, sobre a possibilidade de ingresso da certidão de protesto na matrícula dos imóveis, para fins de penhora ou outros gravames. Dispõe o art. 12 do referido Projeto: Art. 12. O agente de execução, de ofício, lavrará certidões referentes ao início da execução, ao arresto e à penhora para fins de averbação nos registros competentes, para presunção absoluta de conhecimento por terceiros. O Registro de Imóveis está adstrito ao princípio da legalidade, de forma que apenas têm ingresso para registro na matrícula os títulos determinados por lei. O atual rol do art. 221 da lei 6.015/1973, inciso IV, admite, em termos de títulos oriundos de processo judicial, o registro de cartas de sentença, formais de partilha, certidões e mandados extraídos de autos de processo; parece, portanto, necessária uma adequação para que se permita o ingresso de títulos lavrados pelo agente de execução. Além disso, é razoável que as ordens de gravames de bens emitidas pelo agente de execução cumpram com todos os requisitos necessários à qualificação pelo registrador de imóveis, contendo, por exemplo, a especialidade objetiva e subjetiva, as determinações de benefício da gratuidade da justiça concedido à parte, entre outros. Outro ponto de debate é se, no caso de se promover adjudicação ou arrematação de imóvel no procedimento de execução extrajudicial, a certidão expedida pelo agente de execução seria um título hábil para a transmissão da propriedade ou se haveria a necessidade de uma segunda atuação do tabelião de notas a fim de lavrar uma ata notarial, ou mesmo materializar o negócio jurídico em escritura pública, para o registro da transferência. Necessário pontuar que, na adjudicação ou arrematação, compete ao juiz a lavratura de dois documentos: o auto de adjudicação ou arrematação, o qual consiste no documento de materializa a transmissão da propriedade - configurando-se a transferência do direito real com a sua assinatura -; e a carta de adjudicação ou arrematação, que é o título hábil para ingresso no Registro de Imóveis, nos termos do referido art. 221, IV da LRP2. Assim, a carta de adjudicação ou arrematação deve conter o auto de adjudicação arrematação devidamente assinados pelo juiz, arrematante, serventuário da justiça ou leiloeiro, a descrição completa do imóvel, o controle do recolhimento ITBI e a indicação da existência de ônus real ou gravames sobre o bem3. Parece plenamente viável que o agente de execução lavre o auto de adjudicação ou arrematação no âmbito extrajudicial, fazendo o controle de recolhimento de imposto (o que já é próprio da atividade notarial e registral) e da completa descrição do imóvel. Há que se verificar, contudo, se o legislador optará por manter a competência para a lavratura da carta subsequente com o agente de execução ou se isso será designado ao tabelião de notas por meio de ata notarial ou escritura pública. Num primeiro momento, tendo em vista que a transmissão da propriedade ocorre com a assinatura do auto, parece viável que o agente de execução também formalize o título da carta para ingresso no Registro de Imóveis, visto que ele está diretamente ligado ao procedimento de execução conduzido pelo agente. Compete analisar, ainda, os limites do poder do agente de execução quanto aos requerimentos das partes. Da leitura do Projeto de Lei, infere-se que o agente de execução tem por objetivo administrar e conduzir o procedimento de execução, de forma que, atos de expropriação ou de demandem força devem ser praticados apenas com a intervenção do Judiciário, cabendo ao agente dar andamento a o que se mantiver dentro da regularidade do procedimento geral previsto em lei. No mais, o agente de execução pode e deve encaminhar requerimentos mais sensíveis das partes para o juiz competente, estando seu papel mais voltado à realização da execução e satisfação do crédito, e não ao poder decisório de questões que envolvam mérito ou fujam do procedimento legalmente previsto. Por fim, um ponto de extrema relevância é a exigência do protesto prévio do título para o início do procedimento de execução extrajudicial, nos termos do art. 6º, caput, do PL: Art. 6º. Os títulos executivos judiciais e extrajudiciais representativos de obrigação de pagar quantia líquida, certa, exigível e previamente protestados, serão apresentados ao agente de execução por iniciativa do credor. Recentemente, foi feita uma proposta de emendas aprovadas no Senado Federal ao PL 4.188/20214, sobre o serviço de gestão especializada de garantias. Dentre elas, o art. 11-A da lei 9.492/1997 (que regulamenta o protesto de títulos), o qual permitiria que o tabelião de protesto realizasse conciliação entre credor e devedor, buscando uma composição entre as partes em fase prévia negocial, antes da efetivação do protesto5. O referido projeto foi aprovado em Plenário no dia 3/10/2023 e aguarda somente a sanção presidencial para sua promulgação. Assim, a o que tudo indica, a inclusão do art. 11-A da lei 9.492/1997 será efetivada a fim de se estabelecer a fase preliminar de tentativa negocial anterior ao protesto do título. Dessa forma, não parece razoável que o texto legal sobre o agente de execução mantenha a disposição do art. 6º do PL 6.204/2019, que estaria em desconformidade com a nova redação que incentiva a conciliação anterior ao protesto da dívida e, consequentemente, anterior à execução do título na via extrajudicial. Apesar das questões práticas aqui discutidas, a instituição do agente de execução é medida necessária e importante para desonerar o Poder Judiciário, otimizando-se a atuação das serventias extrajudiciais, cujo serviço garante segurança e celeridade dos procedimentos. Outras novidades serão analisadas, oportunamente, nesta coluna; sigam conosco! Sejam felizes! __________ 1 Disponível aqui. [Acesso em 22.10.2023]. 2 KÜMPEL, Vitor Frederico - FERRARI, Carla Modina. Tratado Notarial e Registral. 1. ed. São Paulo: YK, 2020. vol. 5. Tomo 2. p. 2025. 3 Idem. 4 Disponível aqui. [Acesso em 22.10.2023] 5 Nos termos do relatório de emenda: "Emenda nº 3 - Art. 1º; inciso II (alteração) e Art. 11-A (inclusão): o inciso II do art. 1º é reescrito para substituir a expressão "o aprimoramento das regras de garantias" por "o aprimoramento das regras de garantias e das medidas extrajudiciais para recuperação de crédito"; um novo art. 11-A é acrescentado para facultar ao credor apresentar ao tabelionato de protesto documento de dívida com proposta de solução negocial e para dar aos tabelionatos de protestos poderes para incentivarem a conciliação entre credor e devedor; e para receberem pagamento pelo credor. Emenda nº 3: Trata-se de uma mera faculdade concedida aos tabeliães de protesto para que façam a intermediação da negociação entre credor e devedor. Não é um serviço obrigatório; ele só será prestado se os cidadãos entenderem que ele gera valor".
A lei 14.620/2023 introduziu a imissão provisória na posse decorrente do procedimento judicial de desapropriação por utilidade pública (art. 15 do decreto-lei 3.365/1941) no rol dos direitos reais do Código Civil, elencando-a no inciso XIV do art. 1.225. Além disso, permitiu que o mesmo direito se torne objeto tanto de hipoteca, pelo art. 1.473, XI, do Código Civil, quanto de alienação fiduciária em garantia, nos termos do art. 22, §1º, V da lei 9.514/1997, gerando um ativo econômico. Assim, a imissão provisória na posse passou a figurar entre os direitos reais e estar apto a ser hipotecada ou alienada fiduciariamente em garantia pelo ente público. Em coluna anterior, discorreu-se acerca da natureza jurídica desse direito de imissão provisória na posse decorrente de desapropriação; adotou-se o posicionamento de que a transmissão da propriedade na desapropriação ocorre no instante do pagamento inicial pelo ente público, de sorte a considerar que a imissão provisória na posse, na verdade, não goza da provisoriedade atribuída pelo legislador de 19411. Ocorrendo a transferência com o pagamento, autoriza-se a imissão do ente público na posse do bem, já de forma definitiva, visto que não haverá a possibilidade, por regra, de desistência da desapropriação, correndo em juízo apenas discussões posteriores sobre a complementação do pagamento ou outras questões, e não mais sobre a efetivação da desapropriação em si. Parece que o termo "imissão provisória" foi mantido nas inserções realizadas pela lei 14.620/2023 por se alinhar ao texto do decreto-lei 3.365/1941, porém, os direitos dela oriundos já advêm da transmissão da propriedade efetivada com o pagamento. Nesse sentido, o título de imissão na posse (que é definitivo) serve para permitir a regularização dos direitos para o ente público, inclusive com abertura de matrícula, antes de se aguardar a sentença final e a carta de adjudicação do bem. Assim, o ente público não aguardará o término do processo para ter um título hábil para ingresso no Registro de Imóveis e potenciais direitos de garantia decorrentes. Neste artigo, analisar-se-á com mais detalhes o funcionamento da alienação fiduciária em garantia e hipoteca na imissão provisória. Na hipoteca ou na AFG ocorre a concessão de um crédito pelo titular de direitos, recebendo em garantia pelo devedor um direito real sobre um bem. Parece, nesse sentido, que o maior objetivo da inserção do direito real de imissão provisória na posse no rol de direitos hipotecáveis ou alienáveis fiduciariamente é a obtenção de crédito ao Poder Público para a realização de obras ou serviços de interesse social e um incentivo à circulação econômica dos bens. O Poder Público pode se utilizar do próprio bem desapropriado para conseguir um crédito para o empreendimento a ser ali desenvolvido, dando-o em garantia às instituições financeiras sem comprometer outro ativo público. Isso facilita, inclusive, a consecução de obras e investimentos necessários para dar cumprimento à finalidade para qual o bem foi desapropriado. Além disso, o bem desapropriado pode ter melhor circulação no mercado, na medida em que o registro do direito real em nome do Poder Público possibilita que ele seja manejado nas relações jurídicas antes da regularização ou abertura da matrícula (que ocorre antes do término do processo expropriatório). Contudo, como já dito, o grande sentido da concessão do crédito é que a instituição financeira tenha uma garantia para a hipótese de inadimplemento por parte do devedor, a qual será executada para fins de quitação do crédito. Assim, a possibilidade de dar em garantia o direito real de imissão na posse apenas reforça a tese de que a propriedade já se transmitiu ao Poder Público. Se considerar-se a possibilidade de desistência da desapropriação pelo ente público entre o período da concessão de imissão provisória na posse e a sentença do processo judicial, esses direitos hipotecados ou alienados fiduciariamente poderiam ser perdidos e, consequentemente, inexistira a garantia dada na hipoteca ou na alienação fiduciária. Em outras palavras, se a propriedade do bem expropriado se transmitisse apenas ao fim do processo judicial e se permite ao ente público a possibilidade de desistência da desapropriação após a imissão provisória na posse, a alienação desses direitos decorrentes da imissão poderia ser desconstituída com a desistência. Eventual desistência e desconstituição dos direitos da imissão na posse faria com que, consequentemente, se desconstituísse também a garantia da hipoteca ou da alienação fiduciária; assim, novamente ocorreria uma incongruência no sistema, fugindo-se do objetivo do instituto de concessão de crédito com garantia para a instituição financeira. Por outro lado, é ainda necessário considerar os impactos da hipótese de não pagamento do crédito pelo Poder Público. Caso os valores concedidos pelas instituições financeiras não sejam adimplidos, justamente, o direito real dado em garantia será executado em favor do credor. A partir disso, questiona-se: pode esse bem, que é patrimônio público já com uma destinação específica para fins de desapropriação, ser normalmente executado? Em caso de hipoteca, o bem iria à hasta pública, podendo ser adquirido por particulares em leilão; em AFG, o bem seria consolidado em favor do credor e também seguiria para o procedimento de leilão a particulares. É necessário avaliar como seria compatibilizada essa garantia com a necessidade de cumprimento da finalidade da desapropriação. Logicamente, a probabilidade de inadimplemento por parte do Poder Público é baixa, por isso, não se deve ter considerado essa hipótese quando da elaboração da Lei nº 14.620/2023; contudo, ainda que remota, essa possibilidade pode gerar uma incongruência no sistema. Se houver a necessidade de execução da garantia, o texto legal protege o credor - dentro da lógica das garantias -, mas acaba gerando a possibilidade de descumprimento da finalidade pública da desapropriação. Uma primeira saída seria vincular o adquirente do bem executado ao cumprimento da mesma finalidade pública para a qual o bem foi desapropriado, forçando-o a desempenhar a atividade a que seria destinado. Essa situação, contudo, parece realmente inviável, na medida em que burla o sistema de prestação de serviços públicos, tornando possível que um particular desenvolva o serviço apenas em razão da aquisição do bem - pulando procedimentos obrigatórios, como a licitação, por exemplo -, além de, ao mesmo tempo, desestimular a aquisição do bem em leilão por particulares diversos que têm interesse tão somente na propriedade do imóvel. Poder-se-ia viabilizar, contudo, que à instituição financeira, ao executar o imóvel, fosse permitida a realização de um procedimento licitatório ou de contratação de parceria público-privada, para que aquele serviço continuasse a ser prestado, só que não diretamente pelo Poder Público. Seria o caso, por exemplo, de uma rodovia que foi construída e executada para que se instalasse o sistema de pedágio, e os valores arrecadados seriam pagos à instituição financeira até a quitação do débito. Outra solução, aplicável às situações em que essa execução seja inviável, como o caso de imóvel utilizado para uma escola ou posto de saúde, seria determinar que o Poder Público apresentasse outros ativos para a execução, em substituição àquele bem desapropriado, de mesmo valor e interesse econômico. Assim, o credor não seria prejudicado pela impossibilidade de executar sua garantia e o Poder Público tampouco seria prejudicado pela perda do bem que havia sido desapropriado para cumprir com um interesse social que não pode ser prestado pela iniciativa privada ou por parcerias. Contudo, entende-se que, nesse caso, deveria haver uma cláusula contratual, na hipoteca ou alienação fiduciária em garantia, que permita a sub-rogação posterior, para que não se siga o procedimento legal da execução. O mesmo seria necessário a uma outra solução, para que o direito ao crédito seja sub-rogado em precatórios. Parece possível inserir no contrato que o bem dado em garantia não seja executado, a fim de preservar o interesse público, e que o crédito se desse em precatórios, como nas situações gerais de dívidas da Administração. Contudo, esse cenário não é muito positivo para a instituição financeira, que teria que aguardar anos para obter o pagamento do crédito concedido. Faz-se necessário aguardar as aplicações práticas e o funcionamento do direito real de imissão provisória na posse dado em garantia para se verificar quais serão os efeitos gerados e as eventuais novas soluções adotadas pelo legislador. Sejam felizes! __________ 1 Disponível aqui.
O artigo 251-A da Lei de Registros Públicos trouxe previsão geral para o cancelamento pela via administrativa/extrajudicial do compromisso de compra e venda de imóvel não adimplido. Destaca-se que esse procedimento já encontrava previsão específica no DL 58/37 e na lei 6.766/79, alterada pela Lei do Distrato, aplicáveis aos loteamentos. O objetivo desse artigo é analisar a compatibilidade do art. 251-A da LRP com as peculiaridades das previsões especiais da Lei do Distrato. Mais especificamente, segundo o art. 32-A da lei 6.766/79, ocorrendo a resolução contratual por fato imputado ao adquirente, é exigida a devolução das parcelas pagas pelo compromissário comprador ao promitente vendedor que requereu o cancelamento, sob pena de indisponibilidade, ressalvada a retenção daquelas listadas no rol desse artigo. Assim, em uma indisponibilidade inominada, "somente será efetuado registro do contrato de nova venda se for comprovado o início da restituição do valor pago pelo vendedor ao titular do registro cancelado na forma e condições pactuadas no distrato, dispensada essa comprovação nos casos em que o adquirente não for localizado ou não tiver se manifestado". De outro lado, o art. 251-A da lei 6.015/73 não exige a devolução de qualquer parcela paga pelo comprador ao vendedor para que ocorra o cancelamento do compromisso de compra e venda e não prevê a pena de indisponibilidade. Indaga-se como deveria o registrador de imóveis se comportar diante dessa aparente antinomia e se a devolução das parcelas pagas é condição para o cancelamento administrativo do compromisso. As previsões legais e o histórico do cancelamento administrativo O Código Civil de 1916 adotou o sistema de título e modo, tornando o registro constitutivo para a transmissão da propriedade. Em uma consequência negativa dessa sistemática, como bem aponta Vicente Amadei, o proliferaram-se instrumentos particulares de promessa de compra e venda, em detrimento do negócio jurídico de compra e venda definitiva, em uma tentativa de evitar a incidência de emolumentos e impostos1. Todavia, a promessa não possuía eficácia real, não ingressando no Registro Imobiliário. Consequentemente, diante da falta de publicidade, era comum que ocorressem vendas simultâneas do mesmo bem para pessoas diversas. Também, a promessa era retratável até a conclusão do contrato (art. 1088 do CC de 1916), faculdade muito exercida pelo promitente vendedor em caso de valorização imobiliária, na qual, após a retratação, ocorria a venda a preço maior, prejudicando o promitente vendedor e aumentando seus lucros. Visando combater essa insegurança jurídica e a falta de confiança do mercado, o DL 58/37, restringindo-se aos imóveis loteados, promoveu importantes alterações: i) a promessa de compra e venda presumia-se irretratável no silêncio das partes (Súmula 166 do STF); ii) criação da ação de adjudicação compulsória, com a quitação; iii) possibilidade de averbação destes negócios no RI, reforçando a publicidade e coibindo a multiplicidade de vendas, passando esta a ter eficácia real. Em seus próprios fundamentos, esse diploma trouxe que: "Considerando que êsse dispositivo  [art. 1088 do Código Civil de 1916] deixa pràticamente sem amparo numerosos compradores de lotes, que têm assim por exclusiva garantia a seriedade, a boa fé e a solvabilidade das emprêsas vendedoras". Como contrapartida, em uma proteção à celeridade e aos interesses de liquidez dos compromissários vendedores e incentivando o registro, o DL 58/37 trouxe a primeira possibilidade de cancelamento administrativo para imóveis loteados, considerando o contrato rescindido 30 dias depois de constituído em mora o devedor (art. 14), após intimado pelo registrador de imóveis. Caso purgada a mora, o compromisso se convalesceria. Não ocorrido o pagamento, esse fato seria certificado e o promitente vendedor, cientificado, poderia solicitar diretamente no Registro Imobiliário seu cancelamento, se operacionalizando por ato de averbação. A mesma previsão foi repetida pelo art. 32 da lei 6.766/79, aplicável aos imóveis em loteamentos urbanos, enquanto o diploma anterior foi restrito aos imóveis rurais loteados. Em relação aos compromissos de compra e venda de imóveis não loteados, não havia essa previsão legal de cancelamento administrativo, embora fosse exigida sua notificação para constituição em mora, ex persona (art. 1º, decreto-lei 745/69). Essa previsão genérica somente foi incluída pela lei 14.382/22, no referido art. 251-A da LRP, que manteve o prazo para purgação da mora (30 dias), após o qual a lei entende haver inadimplemento absoluto. A intimação segue as regras do Código de Processo Civil e pode ser feita pelo próprio registro imobiliário ou delegada por este ao oficial do registro de títulos e documentos da comarca da situação do imóvel ou do domicílio de quem deva recebê-la.  A mudança surge na esteira de desjudicialização, evitando a propositura de demandas no Judiciário para a rescisão do compromisso e acompanha a própria mudança de entendimento do STJ, que reconheceu a operabilidade automática da cláusula resolutiva expressa, independentemente de ação judicial. Como bem apontado nessa Corte, "não se pode impor à parte já prejudicada pelo inadimplemento ter o ônus de ajuizar demanda judicial para obter a resolução do contrato quando já existe uma cláusula resolutória expressa em seu favor. Exigir isso seria impor ônus demasiado e obrigação contrária ao texto expresso da lei, desprestigiando o princípio da autonomia da vontade, da não intervenção do Estado nas relações negociais, criando obrigação que refoge à verdadeira intenção legislativa."2. O art. 251-A e as previsões especiais da Lei do Distrato A Lei do Distrato (13.786/2018) surge com o objetivo de incrementar a segurança jurídica e financeira das empresas do mercado imobiliário, gerando previsibilidade ao fluxo de caixa, quanto aos valores a serem devolvidos. Nesse sentido, o art. 32-A da lei 6.766/79, incluído pela Lei do Distrato, estabeleceu que, havendo culpa do adquirente, serão restituídos os valores pagos por ele em caso de rescisão contratual, permitida a retenção de: a) taxa de fruição (0,75% do valor do contrato); b) cláusula penal, inclusive arras ou sinal, limitada a 10%; c) encargos moratórios; d) tributos referentes ao imóvel, inclusive emolumentos; e) comissão de corretagem. O descumprimento dessa obrigação de devolução gera, como consequência, uma indisponibilidade inominada, impedindo o registro de nova venda do bem até comprovado o início da restituição na forma e prazo legal ou acordados em instrumento específico (art. 32-A, §2° da lei 6.766/79). Porém, o art. 251-A da LRP não exige a devolução de qualquer parcela paga pelo comprador ao vendedor para que ocorra o cancelamento administrativo do compromisso, sem qualquer ressalva quanto ao fato do imóvel ser loteado ou não. A primeira problemática que surge trata do escopo de aplicabilidade do art. 251-A e se há revogação de leis especiais. Por ser previsão geral, parece correto que possa ser aplicado naquilo que não for contrário à disposição especial, suprindo lacunas, já que, nos termos da LINDB, "a lei nova, que estabeleça disposições gerais ou especiais a par das já existentes, não revoga nem modifica a lei anterior"3. Em segundo lugar, havendo incidência da Lei do Distrato, questiona-se se o registrador de imóveis deve exigir a devolução das parcelas para o cancelamento administrativo do compromisso de compra e venda. A resposta é negativa, pois não há previsão legal para essa exigência em momento anterior ao cancelamento. O efeito civil de obrigar a devolução dos valores pagos pelo comprador somente ganha exigibilidade em momento posterior ao cancelamento do compromisso, em 12 parcelas mensais, após o prazo de carência de 180 dias do prazo contratual de conclusão das obras ou 12 meses da rescisão contratual, conforme dispõe o art. 32-A, §1° da lei 6.766/79. A melhor solução para essa questão perpassa pela averbação-notícia na matrícula do imóvel da indisponibilidade prevista no art. 32-A, §2° da lei 6.766/79, impedindo novo registro de venda até o início da restituição do valor pago. Essa situação pode ser noticiada em averbação autônoma ou no próprio ato de averbação do cancelamento administrativo do compromisso de compra e venda. Desse modo, para o cancelamento administrativo do compromisso de compra e venda (art. 251-A da LRP), havendo a incidência da Lei do Distrato - com o efeito civil de devolverem-se as parcelas paga pelos compromissário comprador - não deve o registrador exigir o prévio depósito desses valores para o cancelamento administrativo, mas deve fazer constar a indisponibilidade de novas compras e vendas até o início da restituição. Em outras palavras, ainda que as parcelas pagas pelo compromissário comprador inadimplente ao compromissário vendedor não sejam restituídas, pode-se operar o cancelamento administrativo do compromisso, mas com a pena da indisponibilidade, resolvendo-se essa questão da devolução em demanda judicial, em caso de negativa. Por fim, como incentivo para a desjudicialização, entendemos que o legislador poderia ter previsto essa situação, condicionando o cancelamento administrativo ao pagamento desses valores ou ao seu início, prevenindo lides sobre a devolução. Sejam Felizes! __________ 1 AMADEI, V. C.; AMADEI, V. D. A. Como lotear uma gleba: O parcelamento do solo urbano e seus aspectos essenciais (loteamento e desmembramento). (4ª ed). Campinas: Millennium, 2014. 2 STJ. 4ª Turma. REsp 1789863-MS, Rel. Min. Marco Buzzi, julgado em 10/08/2021 (Info 704). 3 Art. 2, §2° da LINDB.
A matrícula materializa o sistema do fólio real, modelo observado pela Lei dos Registros Públicos, a partir de 1976,1 que substituiu o sistema do fólio pessoal, no qual a organização das serventias era feita com base nos títulos apresentados e nos titulares dos imóveis, inexistindo o sistema de matrícula. Com a introdução do fólio real, a função registral foi reorientada para se concentrar no próprio imóvel. O art. 176, §1º, inciso I, da lei 6.015/1973, estabeleceu as bases para a estruturação do Registro de Imóveis. De acordo com o princípio da unitariedade, cada matrícula corresponde a um imóvel, resultando em uma correspondência direta entre cada imóvel e sua respectiva matrícula componente do Livro nº 2 - Registro Geral. Os atos na matrícula devem ser escriturados de forma narrativa, segundo as mutações jurídico-reais, por meio de atos de registro e averbação que se sucedem de maneira contínua e coordenada, alinhados com o sistema causal brasileiro, baseado nos conceitos de título e modo, inaugurado pelo Código Civil de 1916. A matrícula é o primeiro ato de registro em sentido lato, uma vez que é estabelecida antes de qualquer outro ato de registro ou averbação no contexto do sistema do fólio real. Seu propósito é refletir a situação jurídica de um imóvel específico, conforme estipulado nos artigos 176, § 1º, 228 e 236 da Lei dos Registros Públicos. Embora seu substrato físico esteja em transição para um formato virtual, de acordo com a Lei nº 14.382/2022, artigo 11, a matrícula continua a ser o repositório de todas as informações cadastrais do imóvel.2 As recentes mudanças legislativas demonstram uma tendência em simplificar o processo de abertura de matrículas, reduzindo os requisitos anteriores, mas sem comprometer a segurança jurídica. Trata-se de um sistema depurativo, em razão de estar em vigor, desde 1976, dois sistemas, quais sejam: o fólio real e pessoal (LRP, art. 295). Uma vez aberta a matrícula, qualquer evento relevante é averbado na transcrição total ou parcial, com referências e indicações às averbações, junto aos registros (transcrições e inscrições) mencionados no mandado judicial. O art. 176-A da LRP apresenta situações em que a abertura de matrículas é permitida, resultantes de aquisições originárias ou equiparadas (LRP, art. 176, § 5º). Essas aberturas podem ocorrer independentemente da aplicação do princípio da continuidade ou do trato sucessivo, conforme estabelecido nos artigos 195 e 237 da LRP. A aquisição da propriedade imóvel é classificada pela doutrina como originária ou derivada. Sob o aspecto do encadeamento das relações jurídicas entre os titulares do bem, a aquisição originária é aquela em que inexiste uma causalidade volitiva entre o novo domínio e a situação anterior da coisa. Esta aquisição originária se dá em razão de um fato ou ato jurídico desvinculado do titular anterior, pouco importando as relações anteriores da coisa. Por outro lado, na aquisição derivada, mantém-se uma sucessão de fatos jurídicos volitivos interligados. Aqui, existe uma transmissão do bem de um sujeito para o outro, de forma que a propriedade se transfere com todos os ônus pendentes em seu domínio anterior, tais como os direitos reais e as condições resolutivas.3 Uma das formas de a aquisição ser denominada de originária é no caso da primeira propriedade, em que enseja a abertura de matrícula, já que inexiste transcrição anterior. No entanto, o sentido utilizado pelo legislador, no caso do art. 176-A, não é esse, mas sim o de aquisição originária relacionada à inexistência de uma vinculação volitiva entre o titular atual e o anterior. Nesse sentido, o legislador não determinou, por regra, a abertura de matrícula nas aquisições originárias na medida em que não é criada relação de causalidade entre o titular atual e o anterior. Atuando de forma mais ousada, poderia ter entendido que se a aquisição é originária e inaugura uma nova etapa do fólio real, a abertura de matrícula deveria ser regra, além de serem transportados dados anteriores quando forem imprescindíveis. Sob o aspecto do encadeamento das relações jurídicas entre os titulares do bem, a aquisição originária é aquela em que inexiste uma causalidade volitiva entre o novo domínio e a situação anterior da coisa. Esta aquisição originária se dá em razão de um fato ou ato jurídico desvinculado do titular anterior, pouco importando as relações anteriores da coisa. Por outro lado, na aquisição derivada, mantém-se uma sucessão de fatos jurídicos volitivos interligados. Aqui, existe uma transmissão do bem de um sujeito para o outro, de forma que a propriedade se transfere com todos os ônus pendentes em seu domínio anterior, tais como os direitos reais e as condições resolutivas.4 O §4º do artigo 176-A dispõe que eventuais divergências entre a descrição do imóvel constante do registro e aquela apresentada pelo requerente não obstarão o registro, na medida em que é quase impossível se observar a especialidade objetiva para área que foi adquirida, pois ela varia muito de acordo com cada caso concreto, de forma que o dispositivo facilitou para o registrador promover a regularização. Ainda que ausentes alguns elementos de especialidade objetiva ou subjetiva, deve-se abrir um novo fólio, caso exista segurança quanto à localização e à identificação do imóvel, e desde que constem os dados do registro anterior (LRP, art. 176, § 8º). Cabe ressaltar que a matrícula é elaborada à vista dos elementos constantes do título apresentado e do registro anterior que contar do acervo do registrador (LRP, art. 196). Portanto, o título deverá conter os dados da matrícula evidentes e completos, para a sua abertura, mesmo que judicial ou administrativo (LRP, art. 225). Além disso, o princípio da territorialidade é fundamental na abertura de matrículas, exigindo que esta seja realizada na circunscrição onde o imóvel está localizado. Isso pode ocorrer mediante solicitação do interessado ou por iniciativa própria, por conveniência do serviço, conforme estipulado no caput do artigo 169 da LRP.5 Os imóveis públicos têm a opção de registro, podendo ser feito de ofício ou mediante solicitação, conforme estabelecido no artigo 195-A da Lei dos Registros Públicos (LRP). A abertura de matrícula para logradouros públicos ocorre principalmente em casos de parcelamentos do solo, sejam eles regulares ou irregulares. Além disso, essa regra se aplica a imóveis públicos que não possuíam matrícula prévia, incluindo terras devolutas destinadas a projetos urbanos, de acordo com o artigo 195-B da LRP. A fusão de matrículas contíguas de imóveis objeto de imissão provisória em favor do ente desapropriante ou de cessionários ou promitentes cessionários, deve ser requerida perante o registrador com atribuição territorial para tanto (Lei nº 8.935/1994, art. 12). É importante observar que esse requerimento deve se referir a imóveis localizados em áreas urbanas ou de expansão urbana, e que estejam relacionados a programas habitacionais ou de regularização fundiária, conforme delineado nos §§ 2º e 3º do artigo 235, bem como no item III do mesmo artigo da LRP.A abertura de matrícula única, de dois ou mais imóveis contíguos objeto de imissão provisória registrada em nome da União, dos Estados, do Distrito Federal, dos Municípios ou de suas entidades delegadas ou contratadas e sua respectiva cessão e promessa de cessão, será utilizada com a finalidade de implementar programas habitacionais ou de regularização fundiária, o que deverá ser informado no requerimento de unificação (LRP, art. 235, §§ 2º e 3º). Cabe a averbação de encerramento ou desfalque nas matrículas anteriores. Todas as matrículas devem conter o número de ordem do Livro 2 - Registro Geral -, a data da abertura, a identificação do imóvel e do proprietário, o número do registro anterior, além do Código Nacional das Serventias e o Código Nacional de Matrícula (LRP, art. 235-A, regulamentado pelo Código Nacional de Normas da CN-CNJ, art. 330). Conforme analisado, o modo de aquisição originária, e as situações lhe equiparadas ex vi legis não são causas de abertura de matrícula, em regra, ressalvados os seguintes casos: a inexistência de matrícula anterior; a sobreposição parcial a registro anterior; ou atingir a mais de um imóvel, parcial ou totalmente (LRP, art. 176-A, caput e incisos). Neste caso, o registrador averbará o encerramento do registro ou da matrícula anterior, caso a sobreposição seja total; ou então, averbará o seu desfalque, independentemente de apuração da área remanescente. A apuração da disponibilidade da matrícula ou transcrição anterior, neste caso, será legada para momento futuro (LRP, arts. 171, parágrafo único, 176 § 18, 176-A, § 2º, e 195-A, § 6º).6 Trata-se da presunção de legitimidade dos atos administrativos, que se caracteriza como qualidade que os reveste, impondo a aceitação pelo destinatário da veracidade e conformidade com o Direito, até prova em contrário.7 A próxima inscrição na matrícula, em área remanescente não previamente especificada, estará condicionada à retificação dos dados registrais, em atenção aos princípios da disponibilidade ("Nemo plus iuris transfere ad alium potest quam ipse habet") e especialidade (LRP, art. 176, § 1º, II e 225). Ademais, pela Lei dos Registro Públicos se exige a análise qualitativa ou geodésica, observando-se todas as características do imóvel, tais como medidas lineares, área total, confrontações e distância da próxima esquina. Isto não era necessário no sistema do fólio pessoal, o qual, por extratos, escriturava o Livro 3 - Das Transcrições (decreto 4.857/1939, art. 213). Se o registro anterior existente for menor que a área adquirida originariamente, o oficial deverá averbar a diferença apurada na matrícula aberta por ocasião da execução do mandado judicial, da escritura pública, ou do termo ou contrato administrativo (LRP, arts. 176-A, § 4º c.c. 221, I, IV, V e VI), situação não impediente da qualificação e registro (LRP, art. 176-A, § 4º-A). No entanto, é importante ressaltar que a identificação e a localização do imóvel, quando precárias, devem ser obstadas pelo registrador, independentemente de a norma permissiva relativizar o princípio da especialidade objetiva.8 Os contratos e termos administrativos constam em duas hipóteses abstratas no rol do títulos formais, portanto, o substrato do direito material. Classificam-se segundo a destinação do imóvel. Em regra, o pagamento justo e prévio deve ser feito antes do registro da desapropriação ou situação de equiparação (LRP, art. 176-A, § 5º). Caso se esteja diante das hipóteses específicas do art. 3º do Decreto Lei nº 3.365/1941 - que dispõe sobre as desapropriações por utilidade ou necessidade pública -, incluído pela lei 14.620/2023, o registrador será obrigado a qualificar o título, independentemente de o expropriado receber o seu pagamento (LRP, art. 221, § 6º). Veja-se: "§ 6º  Os contratos e termos administrativos mencionados no inciso VI deverão ser submetidos à qualificação registral pelo oficial do registro de imóveis, previamente ao pagamento do valor devido ao expropriado." Nesse contexto, embora seja forma originária e não mude a natureza declaratória do registro, o §6º dispõe que os contratos e termos administrativos devem ser submetidos à análise qualificadora antes do pagamento do preço. Essa abordagem parece ser apropriada, pois reforça ainda mais a integridade do sistema do título e modo, representando um avanço do sistema, na medida em que não há mutação júri-real (com o pagamento) enquanto o registrador não confirme a registrabilidade do título. A qualificação destes títulos administrativos deve verificar a competência administrativa do autor do título prenotado (Ex: funcionário de fato, ou irregular, ou usurpador); as formalidades extrínsecas do documento (p. ex., integridade dos documentos exigidos em lei); a sua correlação ou congruência com o ato de registro ou averbação rogado (dos sujeitos e tipos predeterminados em lei).9 Igualmente, o registrador tem a responsabilidade de avaliar a adequação à situação jurídica do imóvel, verificar a inexistência de preclusão de direitos e assegurar a conformidade com o princípio da especialidade objetiva.10 No caso de um mandado judicial relacionado a um processo que confirma uma aquisição originária, o registrador deve realizar uma análise qualificada do título judicial. Após o título ser protocolado no Livro 1 - Protocolo, ele será minuciosamente examinado em relação ao cumprimento de suas formalidades e às suas características externas, como a ausência de nulidades absolutas, a competência jurisdicional adequada, a validade das citações e a conformidade com os princípios do sistema registral, especialmente os princípios da continuidade e da especialidade subjetiva e objetiva. No entanto, o registrador não pode se envolver no mérito da decisão, uma vez que essa é uma competência exclusiva da jurisdição, representada pelo Juiz.11 Os títulos materiais hábeis exigidos para a abertura de matrícula são: i. ato de imissão provisória na posse, em procedimento de desapropriação; ii. a carta de adjudicação, em procedimento judicial de desapropriação, ou iii. a sentença expropriatória de que tratam os §§ 4º e 5º do art. 1.228 da lei 10.406, de 10 de janeiro de 2002 (Código Civil). corporificados em mandado judicial (LRP, art. 221, IV). Cumpre ressaltar que a usucapião comporta duas vias facultativas ao requerente: a via judicial, na qual o título é representado pelo mandado judicial proveniente de uma sentença transitada em julgado; e, por outro lado, a via extrajudicial, que envolve a nota de deferimento do oficial de registro, a qual atesta a aquisição, conforme estipulado no artigo 216-A da Lei dos Registros Públicos (LRP). Entre essas opções, a escritura pública de desapropriação amigável é considerada título notarial, com outro regime jurídico incidente. A fé pública do Tabelião de Notas, investido na função, proporciona prova plena das informações contidas em seu Livro de Notas (CC, art. 215, caput). Por fim, a concessão de uso especial para fins de moradia é um direito real, encartado em termo ou contrato administrativo sobre imóvel público, ou mandado judicial, extraído de uma sentença declaratória (LRP, art.167, I, "19" c.c. CC, art. 1.225, XI, e a Medida Provisória nº 2.220/2001). Atualmente, se pode afirmar que as matrículas imobiliárias funcionam como um repositório de informações sobre a situação jurídica do imóvel, seja ele de propriedade privada ou pública, a depender do subsistema registral adotado.12 Em um futuro próximo, a matrícula representará a verdade formal e real do imóvel, suficiente para sua plena caracterização jurídica. Sejam felizes! __________ 1 Segundo Vitor Frederico Kümpel e Carla Modina Ferrari, fólio é derivado do latim folium. Refere-se a folha, ou o substrato material em suas duas faces, isto é duas páginas (Tratado de direito notarial e registral - vol. 5 - tomo i. São Paulo: YK Editora, 2020, p. 405-407); et. SANTANA DE MELO, Marcelo Augusto. Breves anotações sobre o Registro de Imóveis. Boletim IRIB em Revista, edição 237, 2006. Acesso em 27/09/2023, às 18:34 hrs, https://academia.irib.org.br/pdfjs/web/viewer.html?file=123456789/2953/2006-0327-0032_0049- BDI.pdf. 2 JACOMINO, Sérgio. Registro e cadastro - Uma Interconexão Necessária. Coleção IRIB em Debate. Porto Alegre: safE Sergio Antonio Fabris Editor, 2000, p. 17-40. Acesso em https://academia.irib.org.br/xmlui/handle/123456789/61, em 26/09/2023, às 13:13 hrs; et ÁVILA RIBEIRO, Moacyr Petrolecelli de. A matrícula: paradigmas para o sistema de registro eletrônico de imóveis. Revista de Direito Imobiliário, ano 42, vol. 86, jan.-jun., 2019, p. 215-264. 3 Vide KÜMPEL, Vitor Frederico, FERRARI, Carla Modina. Tratado Notarial e Registral: Ofício de Registro de Imóveis, v.5, tomo I, São Paulo, YK Editora, 2020. 4 Vide KÜMPEL, Vitor Frederico, FERRARI, Carla Modina. Tratado Notarial e Registral: Ofício de Registro de Imóveis, v.5, tomo I, São Paulo, YK Editora, 2020. 5 "Art. 176 - O Livro nº 2 - Registro Geral - será destinado, à matrícula dos imóveis e ao registro ou averbação dos atos relacionados no art. 167 e não atribuídos ao Livro nº 3. [...] § 14. É facultada a abertura da matrícula na circunscrição onde estiver situado o imóvel, a requerimento do interessado ou de oficio, por conveniência do serviço. § 15. Ainda que ausentes alguns elementos de especialidade objetiva ou subjetiva, desde que haja segurança quanto à localização e à identificação do imóvel, a critério do oficial, e que constem os dados do registro anterior, a matrícula poderá ser aberta nos termos do disposto no § 14". 6 O E. CSM na Apelação Cível n. 1014391-67.2015.8.26.0405, Relator Des. Pereira Calças, j. em 14/10/2016, entende da mesma maneira esboçada, in verbis: "Sem dúvida, o acesso da desapropriação ao fólio real, por implicar criação de nova unidade imobiliária, destacada de porção de terra mais extensa, descrita na mat. n.º 32.235 do 1.º RI de Osasco, demanda a observância do princípio da especialidade objetiva. No entanto, o registro da carta de adjudicação, por força do traço distintivo da originariedade da aquisição, não fica condicionado à prévia apuração da área remanescente resultante da desapropriação parcial. (...) De mais a mais, a compreensão a que se acede afina-se com o princípio da eficiência, a teleologia e a instrumentalidade registral. A exigência de prévia apuração do remanescente, nessas situações, obstaria, com tendência dissuasória, a regularização e a publicidade de uma situação fática e jurídica consolidada, que seriam obtidas, em benefício da segurança jurídica, por meio do registro, que, in concreto, é meramente declaratório" 7 BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de direito administrativo. 35ª ed. rev. e atual. até a Emenda Constitucional 109, de 15.3.2021 e a lei 14.133, de 1.4.2021. São Paulo: Malheiros, 2021, p. 340 e 341 8 O entendimento ora adotado é o mesmo do E.CSMSP, na apelação cível nº 0002933-39.2015.8.26.0383, julgada em 24/05/2017, e publicada no DJ em 23/08/2017, de Relatoria do então Corregedor Geral Des. Manoel de Queiroz Pereira Calças, cuja ementa se transcreve a seguir: "Registro de imóveis - Desapropriação - Descrição que obsta a localização da área destacada em relação ao imóvel desapropriado - Conferência do memorial descritivo por meio de software, tendo sido obtida localização diferente da esperada - Inobservância do princípio da especialidade - Dúvida procedente - Recurso improvido" 9 DIP, Ricardo. Registros sobre Registros # 60, 61 e 62. Fonte: iregistradores 10 Idem 11 Cuida-se aqui de mandados que refletem autênticos títulos judiciais, que se devem submeter à qualificação registral e, se for o caso, ser devolvidos pelo oficial do registro imobiliário. No entanto, não há como deixar de reconhecer que, de outro lado, há outros mandados dirigidos ao registrador imobiliário que não materializarão um título causal. Tais mandados, por seu conteúdo, não refletem qualquer título propriamente dito, por isso não podem ser reconhecidos como títulos, não se submetendo à qualificação registral tal como reservada para os títulos judiciais ou extrajudiciais. (BERTHE, Marcelo Martins. Lei de Registros Públicos Comentada. Coord. por José Manuel de Arruda Alvim Neto, Alexandre Laizo Clápis, et al. https://amz.onl/9sESWMD). 12 KÜMPEL, Vitor Frederico; et. FERRARI, Carla Modina. Tratado de Direito Notarial e Registral, vol. 5, tomo I. São Paulo: YK Editora, 2020, p. 200 e seguintes.
A comprovação do período de início e término da união estável é de extrema importância tanto para os companheiros envolvidos quanto para aqueles que têm interesses nas implicações legais desse relacionamento. Isso engloba consequências tanto de natureza patrimonial, como os direitos sucessórios e o regime de bens, quanto de natureza não patrimonial, como as responsabilidades entre os parceiros. À medida que a equiparação do regime sucessório entre cônjuges e companheiros1 ganha destaque, a união estável, embora seja uma relação informal e reconhecida como um ato-fato jurídico, enfrenta uma preocupação crescente na sociedade em relação à sua comprovação. Nesse contexto, é comum que a data de início da união esteja registrada em uma escritura pública declaratória, muitas vezes anterior à data de emissão do documento. Os efeitos decorrentes dessa declaração geralmente são aplicados apenas entre os próprios companheiros, ou seja, eles têm relevância restrita às partes envolvidas. Para que esses efeitos tenham validade em relação a terceiros e tenham consequências legais para eles, é essencial registrar a união estável no Registro Civil de Pessoas Naturais (RCPN), conforme estabelecido pelo artigo 1º, §1º, do Provimento 37 do CNJ. No entanto, ressalte-se que de acordo com a redação original do artigo 5º do Provimento 37, mesmo após o registro, os efeitos da escritura permaneceriam limitados aos companheiros, a menos que terceiros tivessem participado do processo. Antes da promulgação da lei 14.382/22 e da implementação do Provimento 141 do CNJ, o Provimento 37 do CNJ tinha uma abordagem restritiva, mencionando que o reconhecimento do período de vigência da união estável só poderia ser obtido por meio de uma decisão judicial2. De maneira similar, nas situações em que a união estável era convertida em casamento, de acordo com as normativas estaduais, não havia a inclusão da data de início ou da duração da união estável nos registros públicos, a menos que houvesse um reconhecimento por parte do sistema judicial3. Assim, na sistemática anterior, a única forma de aferição da data de início da união estável, de modo a levá-la ao registro e produzir efeitos perante terceiros, era por meio de ação judicial, em rito de jurisdição voluntária. A data de início declarada na escritura de união estável não era oponível a terceiros a menos que estes anuíssem. Isso tinha implicações significativas, como por exemplo, a ausência da data de início da união estável no registro implicaria que um bem comum pertencente a ambos os companheiros, mas registrado apenas em nome de um deles e adquirido antes do registro no Livro E, seria considerado como propriedade individual pelo credor, pois não produziria efeitos legais em relação a terceiros. Além disso, surgia uma complexidade na divisão dos bens no contexto do regime sucessório, uma vez que não se tinha certeza se a companheira deveria ser tratada como meeira, com direito a 50% do bem, ou como herdeira, com uma parcela igual à dos outros descendentes, conforme estabelecido pelo Código Civil.. Nesse contexto, na esteira da desjudicialização e do aumento das atribuições do Ofício da Cidadania, a lei 14.382/22 estabeleceu que "não constará do assento de casamento convertido a partir da união estável a data do início ou o período de duração desta, salvo no caso de prévio procedimento de certificação eletrônica de união estável realizado perante oficial de registro civil."4. Regulando esse dispositivo, o Provimento 141 do CNJ, ao alterar o Provimento 37, estabeleceu que o registro de reconhecimento ou de dissolução da união estável somente poderá indicar as datas de início ou de fim da união estável se estas constarem de um dos seguintes meios: a) decisão judicial; b) procedimento de certificação; c) escritura pública de reconhecimento ou dissolução, em que a data de início ou fim corresponda à data de lavratura do instrumento, desde que declarado pelos companheiros. No entanto, a última opção pode ser vista como contraditória, uma vez que implica que os companheiros devem formalizar a escritura pública de reconhecimento no mesmo dia em que decidem estabelecer a união estável, o que vai de encontro à ideia de que a união estável é um relacionamento contínuo e duradouro. Em virtude dessas mudanças, o procedimento de certificação eletrônica emergiu como a forma mais eficaz de estabelecer a data de início da união estável para fins de registro. Portanto, a certificação eletrônica é um procedimento opcional conduzido pelo oficial de registro civil que tem como objetivo comprovar a data de início e, se aplicável, a data de término da união estável, permitindo que essas informações sejam inseridas no registro no Livro E e tenham validade perante terceiros.  Procedimento de certificação O processo de certificação eletrônica se inicia mediante pedido expresso dos companheiros, que desejam que as datas de início ou término da união estável sejam registradas, seja por meio de comunicação eletrônica ou em formato escrito. No momento em que os companheiros fazem essa solicitação ao oficial de registro civil, ocorre a rogação e o início do procedimento, de forma que eles receberão orientações sobre como o processo de certificação ocorrerá5. Naturalmente, a competência pela condução do procedimento de certificação será atribuída ao 1º Registro Civil de Pessoas Naturais no local de residência dos companheiros ou, em caso de dissolução da união estável, ao último local de residência onde foi solicitado o registro da união no Livro E. Não existem restrições quanto à possibilidade de submeter o pedido por intermédio de um procurador, desde que esse representante esteja devidamente autorizado por meio de um instrumento legal, podendo ser público ou particular com firma reconhecida, com poderes específicos. Além disso, não há impedimento para que um único procurador atue em nome de ambos os conviventes. Importante mencionar que essa prática é aceita para situações de separação e divórcio consensuais extrajudiciais, do que não caberia maior rigidez quanto à união estável. Todavia, embora o requerimento possa ser apresentado por procurador, mostra-se necessária a entrevista pessoal dos companheiros pelo registrador, por expressa disposição legal, sendo esta reduzida a termo e assinado pelo registrador e entrevistados.6 Com base no princípio da liberdade de prova, o Provimento 141 estipula que todos os meios de prova reconhecidos pelo direito podem ser empregados no processo de certificação. Nesse contexto, é aplicável o artigo 369 do Código de Processo Civil, que confere às partes o direito de utilizar todos os meios legais e moralmente aceitáveis, mesmo que não sejam comuns, com o objetivo de influenciar a convicção do oficial de registro. No decorrer do procedimento, o oficial de registro civil deve verificar se os requisitos estabelecidos pelo artigo 1723 do Código Civil estão presentes, o que inclui a convivência pública, contínua e duradoura com o propósito de constituir uma família, sem impedimentos matrimoniais. Como importante referência de standart probatório, sugere-se os meios exemplificados para reconhecimento da paternidade socioafetiva do Prov. 63/CNJ7: inscrição em plano de saúde ou em órgão de previdência; registro oficial de que residem na mesma unidade domiciliar; inscrição como dependente em entidades associativas; fotografias em celebrações relevantes; declaração de testemunhas com firma reconhecida, além de outros, como conta corrente conjunta, contratos de aluguel e boletos em comum. Nesse contexto, o registrador civil se fundará no livre convencimento motivado, decidindo fundamentadamente ou, em caso de suspeita de fraude, podendo exigir provas adicionais ou negar o pedido. Caso indeferido o pedido de certificação, mostra-se cabível a suscitação de dúvida em 15 dias da ciência (arts. 198 e 296 da LRP). Destacando a sua natureza opcional, o processo de certificação eletrônica não será necessário quando outros documentos já comprovarem a data (seja através de uma decisão judicial ou uma escritura pública que ateste o início simultâneo da união estável)8. Com relação ao valor dos emolumentos, inexistindo lei estadual, será cobrado 50% do valor previsto para o rito de habilitação de casamento9. Efeitos da certificação  O entendimento firmado pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ) estabelece que a escolha do regime de bens para a união estável por meio de um contrato escrito produz efeitos a partir do momento da celebração (efetividade ex nunc), não sendo válidas as cláusulas que buscam retroagir os efeitos patrimoniais do acordo sem a devida autorização judicial, conforme estipulado no artigo 1.639, §2º, do Código Civil de 200210. Embora a certificação da união estável comprove a data de início e de fim, deve-se prestar especial atenção sobre seus efeitos: em proteção a terceiros de boa-fé, a certificação não afetará negócios já realizados, já que, por não haver registro anterior, não é oponível a terceiros; contudo, para os negócios futuros, realizados após a certificação, serão consideradas situações jurídicas anteriores, desde a data de início e fim fixadas. Por exemplo, considere uma certificação eletrônica que tenha fixado o início da união estável como ocorrido há seis meses. Uma venda de um bem realizada dois meses antes da certificação não poderá ser anulada devido à falta de consentimento de um dos companheiros, uma vez que, na época da transação, a data de início não era oponível a terceiros, garantindo a proteção de terceiros de boa-fé. No entanto, se a venda do bem ocorrer após a certificação e houver comunicabilidade entre os companheiros, o bem será considerado como propriedade comum, exigindo o consentimento do outro companheiro, mesmo que tenha sido adquirido anteriormente. No que diz respeito à possível necessidade de consentimento do companheiro, o STJ estabeleceu que "A alienação sem anuência de companheiro é válida se não há publicidade da união estável"11. Portanto, a certificação não afeta transações já concluídas, mas impõe a obrigação de considerar as datas de início e término para transações futuras, estabelecendo-as com uma presunção relativa de veracidade. Isso também implica, perante terceiros, que a comunicabilidade ou a exigência de consentimento do companheiro se aplique aos bens adquiridos antes do procedimento. Ademais, sobre os efeitos da certificação da união estável na conversão em casamento, destaca-se o Enunciado 74 da ARPEN-SP: "A prévia certificação eletrônica constante do art. 70-A, § 6º, lei 6.015/73 produzirá efeitos, quanto à conversão em casamento, a partir da data em que declarada perante o oficial de Registro Civil das Pessoas Naturais, ainda que a união estável tenha sido iniciada, pelos companheiros, em data anterior".  Responsabilidade do registrador civil pela certificação de data incorreta O registrador civil atua com autonomia e independência técnica em sua qualificação, baseando-se nos meios de prova aceitos e em sua convicção motivada. A respeito, bem aponta Walter Ceneviva: "Para que se possa entender como autônoma a qualificação registral, é necessário compreender que ela não é simplesmente a aplicação de normas preestabelecidas para o preenchimento de fichas cadastrais, mas sim um juízo técnico que demanda do oficial de registro uma série de diligências e análises."12. Além disso, o processo de certificação estabelece as datas de início e término da união estável com uma presunção relativa de veracidade, graças à fé pública associada a ele, mas sem criar coisa julgada, permitindo, assim, a apresentação de evidências em sentido contrário perante o Judiciário. A fé pública não é absoluta, mas relativa, sujeitando-se a prova em contrário, em casos de dúvida ou impugnação dos atos emanados pela Administração13. Nesse contexto, em geral, o registrador civil não é responsabilizado pela certificação incorreta de datas de início ou término, desde que sua decisão seja fundamentada e baseada nas informações fornecidas pelas partes envolvidas. Qualquer responsabilização indevida seria prejudicial à sua independência técnica e poderia ser vista como um erro na interpretação das normas (crime de hermenêutica), sem fundamento jurídico. Em casos excepcionais, nos quais ocorram erros evidentes, como equívocos materiais, fraudes ou decisões que claramente contrariem as evidências apresentadas, o registrador civil poderá ser responsabilizado subjetivamente na esfera civil, desde que se prove a existência de dolo ou culpa (conforme previsto no artigo 22 da lei 8.935/94), sem prejuízo de sanções administrativas ou penais. Dentro do procedimento de certificação, em princípio, o registrador atua de maneira similar a um juiz, tomando decisões fundamentadas com base em meios de prova legalmente aceitos. Portanto, ele não deve ser responsabilizado por sua interpretação jurídica e probatória a respeito do termo inicial e final da união estável, visto que a fé pública possui uma força relativa, permitindo, ainda assim, uma revisão por meio de um processo judicial subsequente. Sejam Felizes! ___________ 1 REs n° 646721 e 878694 - STF. 2 Art. 7°, §2° do Provimento 37 do CNJ: "Contendo a sentença em que declarada a dissolução da união estável a menção ao período em que foi mantida, deverá ser promovido o registro da referida união estável e, na sequência, a averbação de sua dissolução". 3 É o caso das Normas de Serviço de SP, Cap. XVII, item 87.5. Não constará do assento de casamento convertido a partir da união estável a data do início ou período de duração desta, salvo nas hipóteses em que houver reconhecimento judicial dessa data ou período. 4 Art. 70-A da Lei de Registros Públicos. 5 Art. 9-F, caput, Provimento n° 37 do CNJ. 6 Art. 9-F, §3°, Provimento n° 37 do CNJ. 7 Art. 10-A, §2°, Provimento n° 63 do CNJ. 8 Art. 9-F, §9°, Provimento n° 37 do CNJ. 9 Art. 1°-A, §6°, II, Provimento n° 37 do CNJ. 10 STJ. 4ª Turma. AREsp 1.631.112-MT, Rel. Min. Antonio Carlos Ferreira, julgado em 26/10/2021 (Info 715). 11 STJ. 3ª Turma. REsp 1424275-MT, Rel. Min. Paulo de Tarso Sanseverino, julgado em 4/12/2014 (Info 554). 12 CENEVIVA, Walter. Lei dos Registros Públicos Comentada. 21ª edição, 2012. 13 CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. 32ª edição, 2018.
No procedimento judicial de desapropriação, a imissão provisória na posse tem por objetivo transferir a poderes dominiais do bem ao ente público, uma vez efetivado o pagamento em favor do antigo titular e quando alegada urgência, nos termos do art. 15 do decreto-lei 3.365/19411, sobre desapropriação para utilidade pública. Assim, realizado o pagamento pelo ente público e comprovada a urgência no pedido, ele poderá ser imitido provisoriamente na posse do bem durante o processo judicial de desapropriação e tal imissão será levada a registro, em sentido estrito, na matrícula do imóvel, conforme determinação da lei 11.977/2009. Recentemente, a lei 14.620/2023 introduziu essa imissão provisória na posse no rol dos direitos reais do Código Civil, elencando-a no inciso XIV do art. 1.2252. Além disso, permitiu que o mesmo direito se torne objeto tanto de hipoteca, pelo art. 1.473, XI, do Código Civil3, quanto de alienação fiduciária em garantia, nos termos do art. 22, §1º, V da lei 9.514/19974, gerando um ativo econômico. Assim, a imissão provisória na posse passou a poder configurar direito real e estar apto a ser hipotecado ou alienado fiduciariamente em garantia pelo ente público. Verifica-se, ainda, que a lei 14.620/2023 alterou igualmente a Lei dos Registro Públicos em seu art. 176-A, que dispõe sobre a abertura de matrícula decorrente de aquisição originária da propriedade, prevendo expressamente tal abertura para o registro da imissão provisória na posse em procedimento de desapropriação5. Com todas essas alterações, questiona-se, então: seria tal imissão na posse realmente provisória, como indicado na terminologia legal do decreto-lei 3.365/1941? A controvérsia surge pela necessidade de verificação do momento da transmissão da propriedade para o Poder Público. Parte da doutrina administrativista entende que, no processo judicial de desapropriação, o bem só se transmite após a condenação no valor a ser pago na sentença e com a integralização desse pagamento, podendo o ente público desistir da desapropriação até o término do processo6. Parece, nesse sentido, que o decreto-lei 3.365/1941 trata a imissão na posse concedida ao ente público como provisória sob a ótica de que a transferência da propriedade na desapropriação ocorreria apenas após o término do procedimento com a sentença judicial; uma vez efetivada a transferência do bem, a imissão tornar-se-ia definitiva. Outra corrente, em sentido oposto, afirma que a transmissão do bem ocorre, na verdade, já no momento do pagamento pelo ente expropriante, sendo a sentença do término do processo apenas título hábil para mais um registro da desapropriação no Registro de Imóveis (com efeito, portanto, declaratório)7. Com as alterações promovidas pela lei 14.620/2023, a última posição parece, de fato, mais adequada. A saber. O fundamento inicial para a transferência da propriedade ocorrer com o pagamento é o próprio art. 5º, XXIV da CF, que estabelece que a desapropriação se dará, em regra, mediante justa e prévia indenização em dinheiro, assim, uma vez realizada essa indenização, o texto constitucional já autoriza a efetivação da desapropriação. Ademais, a lei 14.620/2023 possibilitou que a imissão provisória na posse se constitua como direito real e seja objeto de hipoteca e alienação fiduciária em garantia. O direito real é aquele exercido por seu titular diretamente sobre um bem determinado, que pode gozar e fruir da coisa. Esse direito é oponível erga omnes, de forma que os terceiros são obrigados a respeitar os poderes conferidos pela titularidade do direito real. Existe, portanto, a atribuição de titularidade de um bem a um sujeito, criando-se um vínculo entre a coisa e a pessoa e que poderá ser imposto a uma coletividade indeterminada8. Os direitos reais (elencados no art. 1.225 do CC), portanto, pressupõem a existência de domínio pelo titular de forma que só detém um direito real quem tiver a titularidade da propriedade ou tiver recebido um direito real por um titular que tenha poder para realizar a oneração do bem. Não se vislumbra, a princípio, no sistema, a constituição de um direito real em razão de mera "imissão provisória na posse": inicialmente porque a posse por si só não gera direitos reais, constituindo-se uma situação de fato; ademais, a instituição de um direito real em favor de terceiros (fruição, garantia ou aquisição) depende do titular da propriedade. Assim, tornando-se os direitos oriundos da imissão provisória na posse concedidos em favor de entes públicos direitos reais inseridos no rol taxativo do Código Civil, parece necessário - em alinhamento ao sistema dos direitos reais - que esses entes tenham adquirido, já no momento da imissão provisória na posse, também a propriedade (plena ou onerada)9. Outra questão que se coloca para a possibilidade de alienação desses direitos em garantia é a segurança do crédito. O objetivo da hipoteca ou da AFG é a concessão de um crédito pelo titular de direitos ou fiduciário, recebendo em garantia pelo devedor ou fiduciante uma propriedade. Em regra, a propriedade alienada fiduciariamente é a do próprio bem a ser adquirido com o crédito, mas, nos termos do art. 22, §1º, da lei 9.514/1997, outros direitos podem servir como garantia além da propriedade plena, tais como a superfície, o direito real de uso, pertenças e, agora, os direitos decorrentes da imissão provisória na posse em favor de entes públicos. Muito embora a lei permita que alguns direitos sejam alienados fiduciariamente (além da propriedade plena), esses direitos pressupõem uma segurança mínima ao fiduciário. O grande sentido da concessão do crédito é que a instituição financeira tenha uma garantia para a hipótese de inadimplemento por parte do devedor, a qual será executada para fins de quitação do crédito. Assim, se considerar-se a possibilidade de desistência da desapropriação pelo ente público entre o período da concessão de imissão provisória na posse e a sentença do processo judicial, esses direitos hipotecados ou alienados fiduciariamente poderiam ser perdidos e, consequentemente, inexistira a garantia dada na hipoteca ou na alienação fiduciária. Em outras palavras, se a propriedade do bem expropriado se transmite apenas ao fim do processo judicial e se permite ao ente público a possibilidade de desistência da desapropriação após a imissão provisória na posse, a alienação desses direitos decorrentes da imissão poderia ser desconstituída com a desistência. Eventual desistência e desconstituição dos direitos da imissão na posse faria com que, consequentemente, se desconstituísse também a garantia da hipoteca ou da alienação fiduciária; assim, novamente ocorreria uma incongruência no sistema, fugindo-se do objetivo do instituto de concessão de crédito com garantia para a instituição financeira. Por fim, questiona-se a alteração do art. 176-A da lei 6.015/1973, que possibilitou a abertura de matrícula nova para registrar a imissão provisória na posse decorrente do processo de desapropriação. Teria sentido a abertura de uma matrícula (que pressupõe o direito de propriedade - plena ou onerada) se ainda não tiver ocorrido a transferência do bem? É igualmente ilógico no sistema realizar a abertura de uma matrícula por aquisição originária de propriedade se essa propriedade ainda não houver sido efetivamente transmitida, correndo-se o risco, inclusive, da necessidade de cancelamento do novo assento, caso o ente público desista da desapropriação no curso do processo. Pela própria redação do art. 176-A, é o registro de aquisição originária que ensejará a abertura de matrícula relativa ao imóvel expropriado, ou seja, o novo assento só será criado por ocorrência da aquisição originária da propriedade pela desapropriação. Analisando-se ainda mais a fundo o mesmo artigo, tem-se a seguinte redação: Art. 176-A. O registro de aquisição originária ensejará a abertura de matrícula relativa ao imóvel adquirido, se não houver, ou quando § 5º  O disposto neste artigo aplica-se, sem prejuízo de outros, ao registro de: (Redação dada pela lei 14.620, de 2023) I - ato de imissão provisória na posse, em procedimento de desapropriação; (Incluído pela lei 14.273, de 2021) Vigência II - carta de adjudicação, em procedimento judicial de desapropriação; (Incluído pela lei 14.273, de 2021) Vigência III - escritura pública, termo ou contrato administrativo, em procedimento extrajudicial de desapropriação. (Incluído pela lei 14.273, de 2021) Vigência IV - aquisição de área por usucapião ou por concessão de uso especial para fins de moradia; (Incluído pela lei 14.620, de 2023) V - sentença judicial de aquisição de imóvel, em procedimento expropriatório de que tratam os §§ 4º e 5º do art. 1.228 da lei 10.406, de 10 de janeiro de 2002 (Código Civil). (Incluído pela lei 14.620, de 2023) O artigo não só prevê a abertura da matrícula originária pela imissão provisória na posse, como também pela carta de adjudicação ou pela sentença no processo expropriatório específico do art. 1.228 do CC, além da escritura pública no caso de procedimento extrajudicial. A abertura da matrícula por conta da desapropriação, portanto, pode ocorrer em razão de diversos títulos, podendo-se, por interpretação lógica, deduzir que não é nenhum deles especificamente que enseja a transmissão da propriedade. Se fossem, haveria contradição para a abertura da matrícula, na medida em que o caput prevê que a aquisição originária ensejará a criação do novo assento. Explica-se: se a aquisição originária fosse efetivamente determinada por algum desses títulos, haveria uma contradição para o momento da transmissão da propriedade, visto que a redação permitiria o registro da aquisição pelo título de imissão provisória na posse, pela carta de adjudicação, pela sentença ou pela escritura pública - ocorrendo cada uma delas em momento diverso. Assim, há mais sentido ainda no entendimento de que a propriedade (plena ou onerada) se transmite com o pagamento inicial, ocasião anterior a todos esses títulos, servindo os mesmos apenas para regularizar o ingresso da desapropriação no Registro Imobiliário (natureza declaratória). Outro ponto a ser verificado é a previsão da lei 6.766/1979, sobre o parcelamento do solo urbano. O art. 2ª-A, c, permite que o parcelamento seja realizado por ente da administração pública direta ou indireta habilitado a promover o ato expropriatório com a finalidade de implantação de parcelamento habitacional ou de realização de regularização fundiária de interesse social, desde que tenha ocorrido sua regular imissão na posse. Mais à frente, o art. 18 dispõe: Art. 18. Aprovado o projeto de loteamento ou de desmembramento, o loteador deverá submetê-lo ao registro imobiliário dentro de 180 (cento e oitenta) dias, sob pena de caducidade da aprovação, acompanhado dos seguintes documentos: I - título de propriedade do imóvel ou certidão da matrícula, ressalvado o disposto nos §§ 4º e 5º; (Redação dada pela lei 9.785, de 1999) § 4o O título de propriedade será dispensado quando se tratar de parcelamento popular, destinado às classes de menor renda, em imóvel declarado de utilidade pública, com processo de desapropriação judicial em curso e imissão provisória na posse, desde que promovido pela União, Estados, Distrito Federal, Municípios ou suas entidades delegadas, autorizadas por lei a implantar projetos de habitação. (Incluído pela lei 9.785, de 1999) § 5o No caso de que trata o § 4o, o pedido de registro do parcelamento, além dos documentos mencionados nos incisos V e VI deste artigo, será instruído com cópias autênticas da decisão que tenha concedido a imissão provisória na posse, do decreto de desapropriação, do comprovante de sua publicação na imprensa oficial e, quando formulado por entidades delegadas, da lei de criação e de seus atos constitutivos. (Incluído pela lei 9.785, de 1999) Ocorre, portanto, uma dispensa expressa da apresentação do título de propriedade para que se efetive o registro do loteamento ou desmembramento promovido por ente público, quando ele já tiver sido imitido provisoriamente na posse do bem objeto do parcelamento que estiver em processo de desapropriação. Novamente, parece pouco provável que o sistema permitiria a realização do parcelamento do solo de um bem ainda não adquirido efetivamente pela Administração Pública, cuja desapropriação fosse passível de desistência no curso do processo. O texto da lei 6.766/1979 se alinha com a ideia de que, efetivado o pagamento (motivo pelo qual foi imitido o ente público na posse do bem), a propriedade já se transfere na desapropriação. Assim, o título de propriedade é dispensado por ser meramente declaratório. Diante das considerações e entendendo pelo posicionamento de que a transmissão da propriedade na desapropriação ocorre com o pagamento inicial pelo ente público, pode-se considerar que a imissão provisória na posse, na verdade, não tem natureza provisória. Ocorrendo a transferência com o pagamento, autoriza-se a imissão do ente público na posse do bem, já de forma definitiva, visto que não haverá a possibilidade, por regra, de desistência da desapropriação, correndo em juízo apenas discussões posteriores sobre a complementação do pagamento ou outras questões, e não mais sobre a efetivação da desapropriação em si. Parece que o termo "imissão provisória" foi mantido nas inserções realizadas pela lei 14.620/2023 por se alinhar ao texto do decreto-lei 3.365/1941, porém, os direitos dela oriundos já advêm da transmissão da propriedade efetivada com o pagamento. Nesse sentido, o título de imissão na posse (que é definitivo) serve para permitir a regularização dos direitos para o ente público, antes de se aguardar a sentença final e a carta de adjudicação. Assim, o ente público não precisará aguardar o término do processo para ter um título hábil para ingresso no Registro de Imóveis, servindo já a imissão para possibilitar a constituição de direitos reais sobre o bem, sua hipoteca ou alienação em garantia, o parcelamento de solo, entre outros direitos decorrentes da propriedade constituída. Sejam felizes! __________ 1 Art. 15. Se o expropriante alegar urgência e depositar quantia arbitrada de conformidade com o art. 685 do Código de Processo Civil, o juiz mandará imití-lo provisoriamente na posse dos bens; § 1º A imissão provisória poderá ser feita, independente da citação do réu, mediante o depósito:  (Incluído pela lei 2.786, de 1956) a) do preço oferecido, se êste fôr superior a 20 (vinte) vêzes o valor locativo, caso o imóvel esteja sujeito ao impôsto predial; (Incluída pela lei 2.786, de 1956) b) da quantia correspondente a 20 (vinte) vêzes o valor locativo, estando o imóvel sujeito ao impôsto predial e sendo menor o preço oferecido; (Incluída pela lei 2.786, de 1956) c) do valor cadastral do imóvel, para fins de lançamento do impôsto territorial, urbano ou rural, caso o referido valor tenha sido atualizado no ano fiscal imediatamente anterior; (Incluída pela lei 2.786, de 1956) d) não tendo havido a atualização a que se refere o inciso c, o juiz fixará independente de avaliação, a importância do depósito, tendo em vista a época em que houver sido fixado originàlmente o valor cadastral e a valorização ou desvalorização posterior do imóvel.  (Incluída pela lei 2.786, de 1956) § 2º A alegação de urgência, que não poderá ser renovada, obrigará o expropriante a requerer a imissão provisória dentro do prazo improrrogável de 120 (cento e vinte) dias. (Incluído pela lei 2.786, de 1956) § 3º Excedido o prazo fixado no parágrafo anterior não será concedida a imissão provisória. (Incluído pela lei 2.786, de 1956) § 4o  A imissão provisória na posse será registrada no registro de imóveis competente. (Incluído pela lei 11.977, de 2009)  2 Art. 1.225. São direitos reais: XIV - os direitos oriundos da imissão provisória na posse, quando concedida à União, aos Estados, ao Distrito Federal, aos Municípios ou às suas entidades delegadas e a respectiva cessão e promessa de cessão." (NR) 3 Art. 1.473. Podem ser objeto de hipoteca: XI - os direitos oriundos da imissão provisória na posse, quando concedida à União, aos Estados, ao Distrito Federal, aos Municípios ou às suas entidades delegadas e a respectiva cessão e promessa de cessão. (Incluído pela lei 14.620, de 2023) 4 Art. 22. A alienação fiduciária regulada por esta Lei é o negócio jurídico pelo qual o devedor, ou fiduciante, com o escopo de garantia, contrata a transferência ao credor, ou fiduciário, da propriedade resolúvel de coisa imóvel. § 1o  A alienação fiduciária poderá ser contratada por pessoa física ou jurídica, não sendo privativa das entidades que operam no SFI, podendo ter como objeto, além da propriedade plena:     V - os direitos oriundos da imissão provisória na posse, quando concedida à União, aos Estados, ao Distrito Federal, aos Municípios ou às suas entidades delegadas, e a respectiva cessão e promessa de cessão; (Incluído pela lei 14.620, de 2023) 5 Art. 176-A. O registro de aquisição originária ensejará a abertura de matrícula relativa ao imóvel adquirido, se não houver, ou quando: (Redação dada pela lei 14.620, de 2023) § 5º  O disposto neste artigo aplica-se, sem prejuízo de outros, ao registro de: (Redação dada pela lei 14.620, de 2023) I - ato de imissão provisória na posse, em procedimento de desapropriação; (Incluído pela lei 14.273, de 2021)    Vigência 6 BANDEIRA DE MELLO, Celso Antonio. Curso de direito administrativo. 26º ed., São Paulo: Malheiros, 2009, p. 881; MEIRELLES, Hely Lopes; e BURLE FILHO, Emmanuel. Direito administrativo brasileiro. 42ª ed. São Paulo: Malheiros, 2016. p. 743-745; MAZZA, Alexandre. Manual de direito administrativo. 6ª ed. São Paulo: Saraiva, 2016, p. 1132 e 1137; GASPARINI, Diógenes. Direito Administrativo. 8ª ed. São Paulo: Saraiva, 2003. p. 775. 7 DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo. 31ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2018, p. 243. CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. 33ª ed. São Paulo: Atlas, 2019. p. 1204-1205; KÜMPEL, Vitor Frederico - FERRARI, Carla Modina. Tratado Notarial e Registral. São Paulo: YK, 2020. vol. 5. Tomo 2. p. 2095. 8 Texto retirado de KÜMPEL, Vitor Frederico - FERRARI, Carla Modina. Tratado cit. Tomo 1. p. 162. 9 A discussão sobre o tipo de direito real será retomada em coluna posterior.
terça-feira, 5 de setembro de 2023

O patrimônio de afetação e os loteamentos

A lei 6.766/1979, também conhecida como Lei Lehman, representou uma mudança significativa no regime jurídico de parcelamento de solo para imóveis urbanos, enquanto o decreto-lei 58/1937 passou a regulamentar outras formas de parcelamento, incluindo loteamentos rurais e industriais, conforme disposto no art. 1º, I, "c". Esta legislação trouxe, à época, uma abordagem moderna, que visava conciliar interesses econômicos com preocupações urbanísticas, ambientais e de proteção ao consumidor. Isso resultou na necessidade de que os projetos de parcelamento fossem submetidos à análise tanto da Prefeitura Municipal quanto dos registros imobiliários, estabelecendo um equilíbrio entre os diferentes entes administrativos. O termo "parcela" refere-se a uma fração de um todo, portanto, o conceito de parcelamento do solo pode ser definido como a divisão completa ou parcial de uma propriedade em áreas específicas, cada uma com matrícula própria. Essa subdivisão é uma extensão direta do exercício do direito de propriedade e do poder de disposição, conforme estabelecido no Código Civil, artigo 1.228, caput. O parcelamento do solo é classificado em duas categorias: loteamento e desmembramento, ambos registrados por meio da abertura de matrículas individuais para os lotes, destinados à edificação (LRP, art. 167, inciso I, 19, em conjunto com a Lei de Parcelamento do Solo, art. 18). A distinção fundamental entre essas duas modalidades reside no fato de que o loteamento implica na subdivisão de uma gleba em lotes e geralmente envolve a criação de infraestrutura pública, como a construção de logradouros públicos ou a melhoria das vias existentes (LPS, art. 2º, § 1). Em contraste, o desmembramento aproveita a infraestrutura já existente no local, conforme estipulado no mesmo art. 2º, § 2º. O desdobro é uma modalidade de subdivisão de lotes, que embora não esteja prevista na Lei de Parcelamento do Solo Urbano, apresenta-se regulamentado por leis municipais. Na matrícula do imóvel, o desdobro é inscrito por meio de um ato de averbação, conforme estabelecido no artigo 167, inciso II, 4, da Lei de Registros Públicos. Antes da vigência da lei 6.015/1973, o Livro 8 de Registro Especial era utilizado para registrar a propriedade loteada, especialmente para a venda de lotes a prazo, em prestações sucessivas e periódicas, conforme disposto no decreto  4.857/1939. Os compromissos de compra e venda, cessões e promessas de cessão eram averbados à margem desse registro, de acordo com o artigo 167, inciso II, 3, em conjunto com o decreto-lei 58/1937, artigo 4º, alíneas "a" e "b". No Livro 3 - de Transcrições, era efetuada a averbação da inscrição da propriedade loteada, conforme estipulado no decreto-lei, artigo 4º, parágrafo único. Ao longo dos anos, diversas modificações foram realizadas na Lei de Parcelamento do Solo Urbano. A mais recente delas é a lei 14.260/2023, originada da Medida Provisória nº 1.162/2023, que incluiu os artigos 18-A ao 18-F. Esses dispositivos permitem que o loteador, em um loteamento, tenha a opção de submetê-lo ao regime de afetação. A criação do patrimônio de afetação, prevista na Lei nº 4.591/1964 e posteriormente modificada pela lei 10.931/2004, tinha como objetivo principal assegurar a restituição imediata dos adquirentes de fração ideal, vinculada à unidade autônoma, seja ela em construção ou a ser construída. Esse mecanismo garantiria a proteção dos interesses dos adquirentes no caso de insolvência ou quebra da incorporadora.1 A teoria da afetação, desenvolvida no século XIX, surgiu como resposta à teoria da unicidade patrimonial. Essencialmente, a teoria da afetação preconiza a criação de patrimônios especiais, separados do patrimônio geral, destinados ao cumprimento de uma finalidade específica.2 Assim, seu principal objetivo reside na prevenção da possibilidade de que credores comuns tenham acesso a ativos vinculados inequivocamente a uma finalidade específica. Em outras palavras, a teoria da afetação impede que os credores tenham acesso ao patrimônio de uma pessoa quando esse patrimônio está destinado a uma finalidade específica. A aplicação da teoria da afetação no contexto do mercado imobiliário proporciona segurança e confiança no desenvolvimento dos empreendimentos. Isso inclui a contabilização separada, controle e fiscalização dos recursos financeiros destinados à incorporação.3 Por meio da lei 14.620/2023, o legislador decidiu estender essa segurança também aos loteamentos, impondo obrigações de controle contábil, conforme previsto no artigo 18-E da Lei de Parcelamento do Solo (LPS), os quais são cientificados os adquirentes, o Poder Público e a financiadora.4 Portanto, a afetação se caracteriza pela segregação do empreendimento imobiliário, no caso, o loteamento, do patrimônio comum, criando um patrimônio "imputado" voltado especificamente para a realização dos lotes, destinados à edificação e infraestrutura pública. Quanto aos requisitos para essa averbação, a primeira questão que surge é se a afetação pode ser aplicada aos desmembramentos. Com base na diferenciação estabelecida na própria Lei de Parcelamento do Solo Urbano, parece que o legislador não teve a intenção de incluir os desmembramentos nos dispositivos inseridos, uma vez que não há menção específica a eles. Os loteamentos são empreendimentos de maior envergadura do que os desmembramentos, pois envolvem a alteração do espaço urbano com a construção de equipamentos e vias públicas, que são posteriormente transferidos para o Município, de acordo com o artigo 22 da LPS. Portanto, é compreensível a concessão legal dessa faculdade de afetação para os loteadores, mas não necessariamente para outros tipos de parcelamento do solo. Outro aspecto a ser considerado é a maneira de formalização da afetação. Conforme estabelecido no artigo 18-B, a afetação é formalizada por meio de um termo assinado pelo loteador, embora possa ser necessário envolver os titulares de direitos reais de aquisição dos lotes comercializados. Na fase de qualificação, o registrador não poderá recusar o ingresso do termo do patrimônio de afetação com base na existência de ônus reais registrados na matrícula que tenham sido estabelecidos para garantir o pagamento do preço de aquisição do imóvel ou o cumprimento de obrigações relacionadas à implantação do empreendimento, como previsto no artigo 18, parágrafo único, da Lei de Parcelamento do Solo (LPS). O patrimônio de afetação abrangerá tanto o terreno quanto a infraestrutura pública, bem como quaisquer bens e direitos vinculados a ele, conforme estipulado no artigo 18-A, caput, da mesma lei. É importante ressaltar que se trata de loteamento, que pode ser classificado como aberto ou fechado, conforme esclarecido pela lei 13.465/2017.5 É fundamental observar que o patrimônio de afetação não se mescla com outros bens, direitos ou obrigações do patrimônio geral do loteador ou de outros patrimônios de afetação que ele possa ter constituído. No entanto, o loteador será responsável pelas dívidas e obrigações relacionadas ao loteamento específico e pela entrega dos lotes urbanizados aos adquirentes, conforme disposto no artigo 18-A, § 1º, da LPS. A integração da infraestrutura pública, seja ela já construída ou ainda em desenvolvimento, envolve a inclusão de bens públicos na massa patrimonial afetada. Quando ocorre o registro do loteamento, esses bens são transferidos para o domínio do Município, a menos que haja uma afetação pública anteriormente estabelecida. Adicionalmente, é permitida a abertura de matrículas de bens públicos na forma do artigo 195-A da Lei de Registros Públicos, quando concluídas as obras antes do registro do loteamento. A eventual decretação da falência ou da insolvência civil do loteador, por consequência, não atingem o patrimônio afetado, uma vez que não faz parte da massa falida, do mesmo modo que as exceções do art. 49, §§ 3º e 4º da lei 11.101/2005, com as modificações da lei 14.112/2020 (LPS, art. 18-F). A instituição financiadora do empreendimento não se sujeita às obrigações ou responsabilidades do cedente loteador (LPS, art. 18-A, § 7º), tal qual a prevista para grupos econômicos ou financeiros, responsável solidariamente pelos prejuízos gerados aos adquirentes e ao Município (LPS, art. 47). É importante notar que a instituição financeira, bem como a Comissão de Representantes e a Prefeitura, possuem a prerrogativa de designar uma pessoa física ou jurídica para supervisionar a gestão do patrimônio de afetação, bem como o progresso da infraestrutura, de acordo com o disposto no artigo 18-C, tanto em seu caput quanto no § 2º. A lei 14.620/2023 trouxe a possibilidade de o empreendedor ceder seus direitos creditórios provenientes das unidades vendidas do empreendimento, com o objetivo de angariar fundos para a execução das obras e serviços de acordo com o cronograma previamente apresentado à Prefeitura. Os recursos obtidos por meio dessa cessão de crédito são incorporados ao patrimônio de afetação, porém, só podem ser acessados pelo loteador após a conclusão das obras. Cumpre ressaltar que, se o crédito da cessão exceder o valor necessário para o término da infraestrutura do empreendimento, com sua conclusão, o excedente poderá ser disponibilizado para o loteador. O patrimônio de afetação pode ser extinto por várias razões, conforme estipulado no artigo 18-E da LPS, de forma similar às causas de extinção aplicáveis a condomínios edilícios (lei 4.591/1964, artigos 31-A a 31-F). Uma das causas é a averbação do Termo de Verificação e Execução de Obras (TVEO) emitido pelo órgão público competente, seja o Município ou o Distrito Federal, que atesta a conclusão das obras conforme exigido pela legislação municipal, conforme o artigo 18, § 4º da LPS, com a redação dada pela lei 14.118/2021.6 Somente após a emissão do TVEO é que o Município procederá à individualização dos lotes no cadastro imobiliário municipal, em nome dos adquirentes ou compromissários compradores dos lotes comercializados e, nos casos dos lotes não comercializados, em nome do proprietário da gleba, conforme estipulado no artigo 22, § 3º da LPS. Outra causa de extinção é o registro dos títulos de domínio ou de direito de aquisição em nome dos respectivos adquirentes, o que representa a entrega do resultado do empreendimento aos compradores, juntamente com as obrigações legais, responsabilidades tributárias e outros encargos inerentes à propriedade dos lotes. Por fim, a extinção das obrigações do loteador perante a instituição financiadora da obra, por meio de quitação, também pode resultar na extinção do patrimônio de afetação. Até que essa quitação ocorra, a comercialização dos lotes deve contar com a concordância ou o conhecimento da instituição financeira, conforme previsto no contrato celebrado entre o loteador e a credora. Desde a promulgação da Lei do Distrato, tem havido um notável fortalecimento do patrimônio de afetação, o qual se solidificou ainda mais com a promulgação da lei 14.620/2023. Esta última lei foi criada com o propósito de fortalecer a confiança no mercado imobiliário, sobretudo no que concerne ao êxito na conclusão dos empreendimentos. Além disso, essa legislação oferece vantagens ao loteador, como acesso a crédito imobiliário com taxas de juros mais baixas, graças à redução do risco proporcionada pela segregação de seu patrimônio. É importante destacar que, por meio dessa iniciativa, o empreendedor tem a oportunidade de usufruir do regime tributário especial estabelecido na lei 10.931/2004, o que traz benefícios tanto para a sociedade quanto para o desenvolvimento econômico, representando uma medida positiva em vários aspectos. Sejam Felizes! __________ 1 O caso que deu ensejo à inclusão na Lei 4.591/1964 da teoria foi a quebra da Encol. Esta levou a publicação da lei 10.931/2004. 2 ROCHA, Mauro Antônio. O regime de afetação patrimonial na incorporação imobiliária: uma visão crítica da lei. In: IRIB. Acesso em 26/08/2023. 3 Idem  4 Para mais informações desta alteração, consultar KÜMPEL, Vitor F. e BORGARELLI, Bruno A. Loteamento de acesso controla. In Regularização Fundiária Urbana - Estudos sobre a Lei 13.465/2017, coord. Eduardo C. Silveira Marchi; Vitor Frederico Kümpel; e Bruno de Ávila Borgarelli. São Paulo: YK Editora, 2019, p. 241- 250, in verbis: Trata-se de loteamento, em que há "bloqueio de acesso a terceiros não titulares de lotes ou moradores das edificações feitas, tem-se o chamado loteamento fechado". 5 A lei 14.118/2019 instituiu o programa Casa Verde e Amarelo, o qual foi revogado pela lei 14.260/2023. Dentre as alterações, está a inclusão do art. 2º- A da LPS, que albergou no conceito de empreendedor para fins de parcelamento o responsável pela implantação do parcelamento.
O provimento 146 do CNJ, de 26 de junho de 2023, esclareceu, de forma acertada, os limites do termo de dissolução da união estável e partilha e do procedimento de alteração de regime de bens dos companheiros, realizados pelo Oficial de Registro Civil das Pessoas Naturais, expressando a obrigatoriedade de escritura pública tanto na hipótese do art. 108 do CC/02 quanto em outras situações exigidas por lei. Nesse contexto, destaca-se que a lei 14.382/22 inseriu na lei dos registros públicos, como atribuição dos registradores civis, a lavratura de termo declaratório de união estável (art. 94-A), disposição que foi regulada pelo provimento 141/23 do CNJ (que alterou o provimento 37/14 do CNJ), permitindo também a lavratura de termos de dissolução de união estável e do procedimento de mudança no regime de bens, com ou sem partilha. Todavia, as disposições trazidas pelo provimento 141/23 não exigiam expressamente a necessidade de escritura pública para a dissolução de união estável e para a mudança no regime de bens, que envolvessem partilha. Além disso, a redação estabelecia que, no caso de partilha de bens, o valor dos emolumentos do termo declaratório de dissolução de união estável corresponderia ao valor dos emolumentos previstos para a escritura pública do ato (escritura com valor declarado)1. Esse dispositivo recebeu diversas críticas por contrariar o art. 108 do Código Civil, que exige a escritura pública para a validade de negócios jurídicos que visem à constituição, transferência, modificação ou renúncia de direitos reais sobre imóveis de valor superior a trinta vezes o maior salário-mínimo vigente no País e por tratar-se de atribuição típica do Tabelião de Notas, declaratória da distribuição dos bens e de formalização da vontade das partes (art. 6°, I da lei 8.935/94), inclusive, com a fiscalização tributária em caso de excesso de meação. Esse entendimento ecoou em outro artigo dessa coluna2. Em positivo esclarecimento, o provimento 146/23 do CNJ alterou essas disposições, estabelecendo que, nas situações de partilha decorrente da dissolução da união estável, persiste a exigência da escritura pública nas hipóteses legais em que esta se mostra obrigatória, como no caso do art. 108 do Código Civil. Portanto, caso o valor do imóvel seja inferior a trinta salários-mínimos ou não existam bens imóveis, o registrador civil poderá realizar a partilha no próprio termo declaratório, que servirá como título hábil, salvo lei em contrário, a ingressar no registro civil. A discussão persiste se o referido título ingressaria no Registro de imóveis, destaca-se que essa situação é diversa da partilha realizada em divórcio ou inventário extrajudicial, que exige escritura pública independentemente do valor, nos termos do CPC. Sendo assim, no caso de partilha decorrente de dissolução de união estável em que o patrimônio imobiliário tenha valor declarado ou venal acima de trinta salários-mínimos, o título hábil para a operação é a escritura pública, lavrada por Tabelião de Notas. Ressalva-se que continua possível a lavratura do termo declaratório de dissolução de união estável pelo registrador civil nesses casos, com o intuito de declarar o fim desta, provando a cessação dos deveres entre os companheiros, desde que sem a partilha dos bens (que exigirá a escritura pública), para fins registrais. Do mesmo modo, no requerimento de alteração de regime de bens de união estável com proposta de partilha, caso o patrimônio imobiliário partilhável tenha valor acima de trinta salários-mínimos, faz-se necessária a apresentação de escritura pública ou declaração dos companheiros de que por ora não desejam realizá-la3. Por exemplo, na hipótese de os companheiros promoverem a mudança do regime da comunhão universal para a separação total convencional. A mudança do regime de bens da união estável não é regulada pelo CC, que diferentemente, no caso do casamento, exige autorização judicial, em rito de jurisdição voluntária, com pedido motivado de ambos os cônjuges, apurada a procedência das razões invocadas e ressalvados os direitos de terceiros4. Consequentemente, para a alteração do regime de bens dos companheiros, vigora a liberdade de forma, salvo disposição legal em contrário, que é o caso do art. 108 do CC. Portanto, nas hipóteses da lei, a escritura pública é forma essencial à validade do ato de partilha decorrente de dissolução ou alteração do regime de bens na união estável. Ademais, nos "considerandos" do provimento 146 do CNJ, o Corregedor Nacional de Justiça, Exmo. ministro Luis Felipe Salomão, fundamenta a alteração na "importância de deixar clara a obrigatoriedade de escritura pública na hipótese do art. 108 do CC mesmo no caso de partilha decorrente de dissolução de união estável registrada no Cartório de Registro Civil das Pessoas Naturais". A partir disso, infere-se que, em verdade, a exigência de escritura pública na hipótese do art. 108 do CC nunca foi dispensada para a partilha decorrente de dissolução e alteração do regime de união estável, diante de uma interpretação sistemática do ordenamento jurídico, evidenciando tratar-se de alteração de caráter interpretativo. Em outra importante mudança, estabeleceu-se que, enquanto não for editada legislação específica estadual, o valor dos emolumentos devidos ao registrador civil pelo termos declaratórios de reconhecimento ou dissolução de união estável será de 50% do valor previsto para o procedimento de habilitação de casamento5. Foi suprimida a exceção da redação anterior, que estabelecia que, em caso de partilha de bens, o valor dos emolumentos corresponderia ao da escritura pública desse ato jurídico. No Estado de São Paulo, considerando as situações em que não há partilha ou que não se enquadrem no art. 108 do CC, a opção pelo termo declaratório é menos onerosa ao usuário do que a escritura pública. Também, em importante alteração6, evidenciou-se a necessidade de prévia homologação pelo STJ no caso de sentença estrangeira e reestabeleceu-se a obrigatoriedade do registro de título estrangeiro referente à união estável no Registro de Títulos e Documentos (que era dispensada pela redação anterior), como condição para a produção de efeitos legais no país, em harmonia com o art. 148 da lei dos registros públicos. Tal alteração também se compatibiliza com a decisão do plenário do Conselho Nacional de Justiça nos autos da consulta 0009075-58.2021.2.00.0000, no sentido da obrigatoriedade do registro de documentos estrangeiros apostilados no Cartório de Registro de Títulos e Documentos. Desse modo, o provimento 146/23 do CNJ promoveu precisas alterações no provimento 37/14 relacionadas à união estável, harmonizando-o com a legislação, e expressando a necessidade de observância do art. 108 do CC para a partilha de bens e a obrigatoriedade de registro no RTD de títulos estrangeiros, coroando a interpretação sistemática do ordenamento jurídico. ----- 1 Redação anterior do art. 1°-A, § 6º, I do Provimento n° 37/2014 do CNJ. 2 KÜMPEL, V. F.; MADY, F. K., A busca pela natureza jurídica do termo declaratório de união estável. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/coluna/registralhas/387810/a-busca-pela-natureza-juridica-do-termo-declaratorio-de-uniao-estaveldeclaratorio-de-uniao-estavel. Acesso em: 14 de agosto de 2023. 3 Art. 9°-B, V do Provimento n° 37/2014 do CNJ. 4 Art. 1639 do Código Civil. 5 Nova redação do art. 1°-A, § 6º, I do Provimento n° 37/2014 do CNJ. 6 Art. 2°, § 3º do Provimento n° 37/2014 do CNJ.
O art. 176-A da Lei dos Registros Públicos, que dispõe sobre a abertura de matrícula para situações de aquisição originária da propriedade imobiliária, teve nova redação pela recente lei 14.620/23. Contudo, esse dispositivo já sofreu uma série de alterações ao longo dos últimos anos; observa-se, então, seu histórico, para que se passe à análise dos efeitos da atual redação em vigor. A primeira inserção do dispositivo se deu pela Medida Provisória 700 de 2015, que perdeu a eficácia após o período de vigência da MP, que não foi convertida em lei1. Em 2021, uma nova redação foi efetivamente inserida na Lei dos Registros Públicos pela lei 14.2732 (que vigorava até recentemente). Com a lei 14.620/23, parte do texto da MP 700 de 2015 foi retomado, passando o dispositivo a vigorar com a seguinte redação: Art. 176-A. O registro de aquisição originária ensejará a abertura de matrícula relativa ao imóvel adquirido, se não houver, ou quando: (Redação dada pela Lei nº 14.620, de 2023) I - atingir parte de imóvel objeto de registro anterior; ou (Incluído pela Lei nº 14.620, de 2023) II - atingir, total ou parcialmente, mais de um imóvel objeto de registro anterior.       (Incluído pela Lei nº 14.620, de 2023) § 1º A matrícula será aberta com base em planta e memorial descritivo do imóvel utilizados na instrução do procedimento administrativo ou judicial que ensejou a aquisição.      (Redação dada pela Lei nº 14.620, de 2023) § 2º As matrículas atingidas deverão, conforme o caso, ser encerradas ou receber averbação dos respectivos desfalques, dispensada, para esse fim, a retificação do memorial descritivo da área remanescente. (Redação dada pela Lei nº 14.620, de 2023) § 3º (VETADO). (Redação dada pela Lei nº 14.273, de 2021)    Vigência § 4º Se a área adquirida em caráter originário for maior do que a constante do registro existente, a informação sobre a diferença apurada será averbada na matrícula aberta. (Redação dada pela Lei nº 14.620, de 2023) § 4º-A. Eventuais divergências entre a descrição do imóvel constante do registro e aquela apresentada pelo requerente não obstarão o registro. (Incluído pela Lei nº 14.620, de 2023) § 5º O disposto neste artigo aplica-se, sem prejuízo de outros, ao registro de: (Redação dada pela Lei nº 14.620, de 2023) I - ato de imissão provisória na posse, em procedimento de desapropriação; (Incluído pela Lei nº 14.273, de 2021)    Vigência II - carta de adjudicação, em procedimento judicial de desapropriação; (Incluído pela Lei nº 14.273, de 2021)    Vigência III - escritura pública, termo ou contrato administrativo, em procedimento extrajudicial de desapropriação. (Incluído pela Lei nº 14.273, de 2021)    Vigência IV - aquisição de área por usucapião ou por concessão de uso especial para fins de moradia;      (Incluído pela Lei nº 14.620, de 2023) V - sentença judicial de aquisição de imóvel, em procedimento expropriatório de que tratam os §§ 4º e 5º do art. 1.228 da Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002 (Código Civil).       (Incluído pela Lei nº 14.620, de 2023)            Pontua-se, inicialmente, o que é a aquisição originária da propriedade imobiliária. Para Caio Mário da Silva Pereira, propriedade originária seria aquela que nunca esteve sob o domínio de alguém, ou seja, nunca teve titular anterior, transmitindo-se, portanto, sem qualquer relação causal, já que nunca houve nenhuma sobre aquela coisa3. Contudo, crê-se que a melhor definição de aquisição originária se dá sob o critério de encadeamento das relações jurídicas entre os titulares do bem, e não sob o da existência de titulares prévios. Assim, pelo critério da relação causal entre titulares, na aquisição originária, não há uma causalidade entre a titularidade anterior e a nova situação da coisa, ou seja, não houve uma relação volitiva entre o titular antecedente e o titular posterior que ensejou a transferência. Nesse caso, por inexistir vontade das partes na relação, a transmissão da propriedade ocorre de forma desvinculada da situação anterior da coisa, sendo desconsideradas as relações jurídicas anteriores à titularidade atual. Diferentemente, na aquisição derivada, mantém-se a sucessão das relações jurídicas de transmissão da propriedade, existindo uma causalidade volitiva que gera a transferência do titular anterior para o posterior, como é o caso da compra e venda. Nesse caso, a propriedade é transmitida com todos os seus ônus, na medida em que a causalidade volitiva foi elemento essencial para essa mudança de titularidade4. Como visto, o art. 176-A trata da primeira hipótese, de aquisição originária, em que inexiste o encadeamento das relações jurídicas para a transmissão da propriedade imóvel. O rol previsto no §5º, inclusive, elenca as situações de desapropriação, expropriação, usucapião e concessão de uso especial para fins de moradia, nas quais não há a causalidade para a aquisição. É importante frisar, contudo, que esse rol é exemplificativo, na medida existem outras hipóteses de aquisição de propriedade originária, tais como a acessão e a carta de adjudicação ou arrematação em processo judicial de execução5, que não estão previstas nessa lei. Para a adjudicação e arrematação, parece não haver impactos práticos o fato de tal situação não ter sido elencada no art. 176-A, na medida em que inexiste, a princípio, modificação de área do bem executado por dívida. Além disso, a aquisição por esse meio é um pouco mais complexa, pois, embora não se aplique o princípio da continuidade registral (e, por isso, um dos fundamentos para se tratar de uma forma de aquisição originária), permanece o princípio da especialidade objetiva e, ainda, pode haver determinação judicial para o não cancelamento de eventuais ônus já pendentes sobre o bem6. A acessão, contudo, é uma forma de aquisição da propriedade por meio da aderência ou soma ao solo de um bem, ampliando o volume e o valor daquele7. Há, portanto, uma alteração de área do bem imóvel originário, podendo ser enquadrada na hipótese do inciso I do art. 176-A, pois, nesse caso, atinge parte de imóvel objeto de registro anterior (quando o imóvel que sofreu a acessão já tiver matrícula). Parece, então, que o legislador se preocupou essencialmente com as formas de aquisição originárias que geram impacto na especialização objetiva do bem, e se observa rol do art. 176-A é exemplificativo, na medida em que existem outras formas de aquisição não derivada no Ordenamento. Ainda, vale observar que, muito embora o artigo tenha elencado os títulos que adentrarão a serventia extrajudicial para a regularização da propriedade, não é o seu registro necessariamente que constitui a aquisição originária. O art. 1.245 do Código Civil prevê que a propriedade de bem imóvel se transmite por ato entre vivos mediante registro do título translativo no Registro de Imóveis. Frise-se, contudo, que esse título "translativo" bem se adequa às situações em que há a causalidade na transmissão do domínio, que dependem, em regra, desse registro na serventia, que terá efeito constitutivo. No entanto, as situações de aquisição originária tendem a se formar por outros meios, sem a existência de títulos translativos, e seu ingresso no Registros de Imóveis tem efeitos declaratórios. Observe-se a título de exemplo. A usucapião é um caso clássico, na medida em que a aquisição se dá quando cumpridos todos os requisitos para a espécie adotada. A acessão se dá de forma natural, quando ocorre a incorporação do volume ao bem. Na desapropriação, a transferência ocorre com o pagamento pelo Poder Público. Tanto é verdade, inclusive, que a mesma lei 14.620/23 transformou em direito real, previsto no rol do art. 1.225 do CC, os direitos oriundos da imissão provisória na posse, quando concedida à União, aos Estados, ao Distrito Federal, aos Municípios ou às suas entidades delegadas e a respectiva cessão e promessa de cessão. Assim, os direitos de imissão provisória na posse nos casos de desapropriação apenas poderiam se constituir como direito real, bem como servir de título para a abertura de matrícula, se a propriedade do bem já estivesse efetivamente transmitida ao Poder Público. A maior finalidade do art. 176-A, portanto, parece ser facilitar a regularização da propriedade adquirida por meio originário, que, muitas vezes não condiz com a área do bem inicialmente descrito na matrícula ou se dá sobre área ainda não constante no fólio registral8. Na aquisição originária, naturalmente, é quase impossível se observar a especialidade objetiva para a área que foi adquirida, pois ela varia muito de acordo com cada caso concreto. Assim, o dispositivo facilita que o registrador promova a regularização, prevendo que não será obstado o registro mesmo que existam eventuais divergências entre a descrição do imóvel constante do registro e aquela apresentada pelo requerente. Além disso, facilitou-se também a regularização de outros imóveis que tiverem sido afetados pela aquisição originária, permitindo-se que ele promova averbações com facilidade para adequar as áreas de outros bens que tenham sido desfalcados ou, até mesmo, tomados por completo pela nova aquisição. Por fim, após a análise, apresenta-se o seguinte questionamento: além das hipóteses já previstas de aquisição originária da propriedade no Ordenamento, a lei 14.620/23 inovou ao definir novas situações para os imóveis adquiridos no âmbito do Programa Minha Casa Minha Vida, no art. 10, §§ 2º e 3º? Art. 10. Os contratos e os registros efetivados no âmbito do Programa serão formalizados, prioritariamente, no nome da mulher e, na hipótese de ela ser chefe de família, poderão ser firmados independentemente da outorga do cônjuge, afastada a aplicação do disposto nos arts. 1.647, 1.648 e 1.649 da Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002 (Código Civil). [...] § 2º  Na hipótese de dissolução de união estável, separação ou divórcio, o título de propriedade do imóvel adquirido, construído ou regularizado no âmbito do Programa na constância do casamento ou da união estável será registrado em nome da mulher ou a ela transferido, independentemente do regime de bens aplicável. § 3º Na hipótese de haver filhos do casal e a guarda ser atribuída exclusivamente ao homem, o título da propriedade do imóvel construído ou adquirido será registrado em seu nome ou a ele transferido, revertida a titularidade em favor da mulher caso a guarda dos filhos seja a ela posteriormente atribuída. [...] Explica-se: a Lei prevê transferência integral do imóvel adquirido por um casal, no âmbito do Programa Minha Casa Minha Vida, para a mulher, no caso de dissolução de união estável, separação ou divórcio, ou para o homem, quando a ele for atribuída a guarda unilateral de eventuais filhos do casal (e, ainda, uma possibilidade de reversão para a troca da guarda). Assim, independentemente do regime de bens, quando ocorrer a dissolução da união estável, divórcio ou separação, não haverá a partilha do imóvel proporcional entre os ex-cônjuges (na forma prevista no Código Civil), mas sim a transferência integral pelo critério de gênero ou de atribuição de guarda. Aplica-se, portanto, uma determinação do Estado em detrimento das regras tradicionais da comunhão e do regime de bens. Parece, assim, inexistir a relação de causalidade volitiva para essa transferência da fração ideal do imóvel entre os cônjuges, na medida em que a transmissão ocorre por determinação legal. Não é possível, pelo critério adotado, aferir relação volitiva entre os cônjuges para essa transferência, visto que o próprio regime de bens - que seria uma escolha feita pelo casal - não é respeitado para a situação de aquisição no Programa Minha Casa Minha Vida; em outros termos, não se pode verificar uma vontade nem pela escolha do regime de bens, cujas regras não serão aplicadas. Trata-se de uma aquisição de propriedade por imposição legal sob o critério de gênero ou de guarda dos filhos. Sejam felizes! _____________ 1 Art. 2º A Lei nº 6.015, de 31 de dezembro de 1973, passa a vigorar com as seguintes alterações: "Art. 176-A. O registro de aquisição originária ensejará a abertura de matrícula relativa ao imóvel adquirido se não houver ou quando: I - atingir parte de imóvel objeto de registro anterior; ou II - atingir, total ou parcialmente, mais de um imóvel objeto de registro anterior. § 1º A matrícula será aberta com base em planta e memorial descritivo do imóvel utilizados na instrução do procedimento administrativo ou judicial que ensejou a aquisição. § 2º As matrículas atingidas deverão, conforme o caso, ser encerradas ou receber averbação dos respectivos desfalques, dispensada, para este fim, a retificação do memorial descritivo da área remanescente. Art. 176-B.  O disposto no art. 176-A aplica-se, sem prejuízo de outros, ao registro:     I - de ato de imissão provisória na posse, em procedimento de desapropriação;           II - de carta de adjudicação em procedimento judicial de desapropriação;                  III - de escritura pública, termo ou contrato administrativo em procedimento extrajudicial de desapropriação;  IV - de aquisição de área por usucapião ou por concessão de uso especial para fins de moradia; e  V - de sentença judicial de aquisição de imóvel em procedimento expropriatório de que tratam os § 4º e § 5º do art. 1.228 da Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002 - Código Civil.  Acesso disponível em: https://www.congressonacional.leg.br/materias/medidas-provisorias/-/mpv/124368 [13-08-2023] 2 Art. 176-A. O registro de aquisição originária ou de desapropriação amigável ou judicial ocasionará a abertura de matrícula, se não houver, relativa ao imóvel adquirido ou quando atingir, total ou parcialmente, um ou mais imóveis objeto de registro anterior.    § 1º A matrícula será aberta com base em planta e memorial utilizados na instrução do procedimento administrativo ou judicial que ensejou a aquisição, os quais assegurarão a descrição e a caracterização objetiva do imóvel e as benfeitorias, nos termos do art. 176 desta Lei.    § 2º As matrículas atingidas serão encerradas ou receberão averbação dos desfalques, caso necessário, dispensada a retificação da planta e do memorial descritivo da área remanescente.   § 4º Na hipótese de a área adquirida em caráter originário ser maior do que a área constante do registro existente, a informação sobre a diferença apurada será averbada na matrícula aberta. 3 PEREIRA, Caio Mário da. Instituições de Direito Civil. 18. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2003. v. IV. p. 115. 4 KÜMPEL, Vitor Frederico - FERRARI, Carla Modina. Tratado Notarial e Registral. 1. ed. São Paulo: YK, 2020. vol. 5. Tomo 1. p. 156-157. 5 KÜMPEL, Vitor Frederico - FERRARI, Carla Modina. Tratado cit. Tomo 1. p. 923; Tomo 2. p. 2038. 6 KÜMPEL, Vitor Frederico - FERRARI, Carla Modina. Tratado cit. Tomo 2. p. 2038. 7 KÜMPEL, Vitor Frederico - FERRARI, Carla Modina. Tratado cit. Tomo 1. p. 923. 8 Nesse sentido: OLIVEIRA, Carlos Eduardo Elias de. Novo Direito Real com a lei 14.620/23: uma atecnia utilitarista diante da imissão provisória na posse. In Migalhas, 17-07-2023, disponível em https://www.migalhas.com.br/coluna/migalhas-notariais-e-registrais/390037/novo-direito-real-com-a-lei-14-620-23 {13-008-2023]  
terça-feira, 15 de agosto de 2023

A caducidade incide sobre o pacto antenupcial?

A nomenclatura "pacto" é utilizada para referir-se ao acordo de vontades em que os interesses das partes são comuns, em oposição ao conceito de "contrato", em que os interesses dos contratantes são contrapostos, normalmente caracterizados por uma relação sinalagmática. O Código Civil de 2002, em uma única oportunidade, utiliza a palavra "pacto" exatamente com o objetivo de distinguir dos contratos em geral, na medida em que o pacto é o acordo de vontade em que os interesses são comuns ou paralelos. O contrato é a convergência de interesses contrapostos em que, na maioria dos casos, caracteriza-se pelo sinalagma. O pacto antenupcial é o instrumento jurídico que visa regular as diretivas basilares do futuro casamento e, consequentemente, fundamentais à estabilidade e proteção das relações econômicas da família, como um negócio jurídico sui generis do Direito de Família. Por diversos motivos, pode decorrer grande lapso de tempo entre a confecção do pacto antenupcial no Tabelionato de Notas e a celebração do casamento no Registro Civil das Pessoas Naturais. Com tal desiderato, este artigo busca investigar se há um prazo de caducidade para o pacto antenupcial, ou seja, um limite temporal após a sua confecção para que o casamento se realize, ou se o pacto tem vigência sine die. Ademais, questiona-se a possibilidade de confecção de vários pactos concomitantes para a adoção de um e a possibilidade de confecção de pacto pós-nupcial, para fins de homologação judicial. Dentre as poucas regras estabelecidas pelo CC, destaca-se que o pacto antenupcial é nulo se não for feito por escritura pública, e ineficaz se não lhe seguir o casamento (art. 1653 do Código Civil). O pacto antenupcial não é essencial para o aperfeiçoamento da sociedade conjugal, podendo as partes optar pelo implícito regime da comunhão parcial de bens ou se sujeitar à separação obrigatória nas hipóteses taxativamente previstas pelo art. 1.641. Como exposto acima, após a celebração do casamento, é possível o pacto pós-nupcial, desde que homologado pelo juízo em sede de jurisdição voluntária, podendo o mandado ter força de escritura pública diante da mutabilidade mitigada do artigo 1.639 do Código Civil. Retornando a questão originária, existe ou não um prazo de vigência para o pacto antenupcial? Existem duas grandes teses sobre o assunto: Em uma primeira corrente, defendida por Carlos Roberto Gonçalves1 e Caio Mário2, entende que não há prazo de caducidade para o pacto antenupcial, pois a caducidade é norma de exceção e a lei nada estabelece. Também, vigora a autonomia da vontade, com os negócios por prazo indeterminado valendo até que sejam denunciados ou na ocorrência de situação convencionada ou prevista em lei, não sendo possível sua restrição sem previsão legal ou voluntária. Conforme a primeira tese, afora a hipótese em que as partes fixem um prazo no próprio pacto, ele vigorará caso admitido por ocasião da habilitação do casamento, independentemente de prazo ou condições. Porém, uma segunda corrente, adotando a técnica da analogia, defende a aplicação do prazo de noventa dias de eficácia da certidão de habilitação, ou seja, o mesmo que garante eficácia para a certidão de habilitação do casamento, constante do art. 1.532 do Código Civil, de modo antecedente ao casamento, valendo-se da dicção do artigo 1.640, parágrafo único, do Código Civil, que dispõe o seguinte: "poderão os nubentes, no processo de habilitação, optar por qualquer dos regimes que este código regula. Quanto à forma, reduzir-se-á a termo a opção pela comunhão parcial, fazendo-se o pacto antenupcial por escritura pública, nas demais escolhas." Essa interpretação sistemática considera esse prazo de 90 dias uma presunção temporal de manutenção da vontade firme dos nubentes em contrair o matrimônio, entendendo que, por outro lado, caso ultrapassados os 90 dias, mostra-se necessária uma nova manifestação de vontade, a reafirmar a vontade de se casar. Com base no art. 1.640, parágrafo único, do Código Civil, entendia-se que só valia se iniciasse a habilitação, no processo de habilitação, por 90 dias. Assim, para essa corrente, no Código Civil de 2002 e no de 1916, após decorridos esses 90 dias sem a celebração do casamento, será ineficaz o pacto, por presunção de alteração da vontade, sendo necessária nova escritura pública de confirmação do pacto, lavrada antes do casamento e observando-se esse prazo. Nessa linha, a respeito da redação do artigo 1.653 do Código Civil de 2002, expõe Maria Alice Zaratin Lotufo que "o pacto será ineficaz se não lhe seguir o casamento, o que nos leva a entender que esse prazo, o do tempo que os nubentes têm para se casar após a habilitação e que, conforme art. 1.532 é de 90 dias (...)"3. Filiando-se ao entendimento do limite temporal de 90 dias, a 2ª Vara de Registros Públicos de São Paulo, no âmbito de Pedido de Providências em que foi apresentado para habilitação do casamento no Registro Civil de Pessoas Naturais um pacto antenupcial lavrado após esse prazo, entendeu necessária a celebração de nova escritura pública, aplicando em analogia o prazo de validade da habilitação de casamento, "após o qual os atos praticados perdem seu efeito, devendo ser repetidos, para conferir segurança jurídica aos nubentes, a terceiros e ao Estado"4. Por conseguinte, a validade da convenção não pode ser indeterminada, pois o que nele se fez constar pode perder a validade fática e vir a refletir efeitos jurídicos indesejados para os consortes ou para terceiros, daí a previsão de ineficácia, preservando a higidez do negócio jurídico. Como curiosidade, destaca-se que o projeto de Código das Obrigações, apresentado em 1963 por Caio Mário (e que nunca entrou em vigor), trazia, em seus arts. 163 a 167, um prazo de três meses para a realização do casamento após a lavratura do pacto, sob pena de ser o instrumento invalidado. A própria 2ª Vara dos Registros Públicos de São Paulo reformulou o entendimento, e passou a decidir que não se aplica prazo para o pacto antenupcial5. O nosso entendimento é aquele que, por cautela, o registrador civil, em qualquer caso, deve verificar se a vontade do pacto é a mesma vontade das partes, isso é, em qualquer situação em que as pessoas apresentem o pacto em que já se tenha ultrapassado os noventa dias - fora do período de habilitação -, deve verificar se as cláusulas presentes são aquelas queridas pelas partes. Desse modo, há três entendimentos a respeito da caducidade do pacto antenupcial pela demora na celebração do casamento: a) a inexistência de prazo para a celebração do casamento; b) a aplicação analógica do prazo de 90 dias para sua celebração; c) a necessidade de verificação da higidez da manifestação de vontade e do escopo protetivo da família em cada caso concreto, sem limites temporais absolutos. Em nosso entendimento, em primeiro lugar, não há prazo determinado para o pacto antenupcial, ademais, as pessoas podem livremente celebrar quantos pactos quiserem, podendo apresentá-los na habilitação até o momento da celebração, caso se trate de restrição de regime de bens. Ainda, é possível revigorar o pacto antenupcial confeccionado antes de um casamento, desde que seja a vontade das partes, na medida em que a lei não estabeleceu nenhuma limitação, não existindo obrigação legal de confecção de um novo pacto não utilizado. Mostra-se inegável que o casamento celebrado após o decurso de grande lapso de tempo da celebração do pacto antenupcial tem a aptidão de desvirtuar os interesses apostos, em razão de mudanças fáticas e jurídicas. Porém, defendemos que a melhor análise deve ocorrer diante das mudanças em cada caso concreto, diante da interpretação teleológica de permanência da vontade e proteção da família. Assim, deve-se investigar se a vontade manifestada no pacto permanece hígida diante da situação fática e jurídica no momento da celebração do casamento, podendo ser presumida a alteração na vontade após decorrido longo período de tempo de sua lavratura, como em um casamento celebrado décadas depois. Observe-se que para haver caducidade, é necessário a existência de lei ou ato de vontade com expresso termo de incidência ao pacto. Seria perfeitamente cabível, na habilitação de casamento, a alteração de um pacto antenupcial para um conteúdo mais restritivo, no entanto, em caso de ampliação do conteúdo do pacto, tal mudança não seria possível, na medida em que alguém poderia apresentar uma causa suspensiva - muito embora no edital não conste -, com necessidade de uma nova habilitação express.  Sejam felizes! __________ 1 GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito civil brasileiro. Parte geral. 8. ed. São Paulo: Saraiva, 2010. v. 1. 2 PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil: Direito de Família. (atual. Tânia da Silva Pereira). 17ª. ed., Rio de Janeiro: Forense, 2009, v. 5, p. 189. 3 LOTUFO, Maria Alice Zaratin. Curso avançado de direito civil. São Paulo: RT, 2000, p.100. 4 2ª VRP/SP. Processo nº 1020127-64.2022.8.26.0100. Juiz de Direito: Marcelo Benacchio. DJe de 16.03.2022 - SP. 5 Processo nº 1091877-29.2022.8.26.0100, juiz Marcelo Benacchio, j. 05.12.2022, Dj. 08.12.2022.
terça-feira, 8 de agosto de 2023

Avanço ou retrocesso: os escritos particulares

A Medida Provisória 1.162, de 14 de fevereiro de 2023, aprovada com alterações pela lei 14.620, de 13 de julho de 2023, inaugurou mais uma rodada de modificações em diversos diplomas legais, dentre os quais: a Lei dos Registros Públicos (lei 6.015/1973). Analisar-se-á, neste espaço, as nuances do art. 221, inc. II da lei 6.015/1973 e a sua mutação redacional. O vocábulo "título", em uma primeira acepção, significa a causa de um direito, a sua razão de existir com o negócio jurídico base contido em seu substrato material. Em segunda acepção, porém, pode conter outro significado, como o próprio documento escrito, substrato do direito originado  de um negócio jurídico.1 Apesar de existirem outras acepções, estas duas são as que interessam ao artigo. Em âmbito registral imobiliário, é considerado título material a  causa para o registro de atos e negócios jurídicos constitutivos, modificativos, translativos e extintivos de direitos reais e outros com previsão expressa em lei. Isto é, consiste no instrumento no qual se exterioriza o direito real, ou o ato ou o negócio jurídico imobiliário. Em sentido formal, o título se confunde com documento, equiparando-se à segunda acepção. Logo, pode ser definido como o papel escrito ou o arquivo eletrônico que contém um ato com efeitos jurídicos. A sua função, então, é comprobatória da existência de atos   e negócios jurídicos com aptidão à produção de efeitos. Em relação a esta segunda categoria, os títulos aptos para ingresso no fólio  real estão elencados no rol do art. 221 da Lei dos Registros Públicos. Pelo objeto do presente artigo, examinar-se-á os instrumentos particulares (LRP, art. 221, II), cuja redação anterior à Medida Provisória 1.162/2023 era: "Somente são admitidos registro: (...) II - escritos particulares autorizados em lei, assinados pelas partes e pelas testemunhas, com as firmas reconhecidas". No sentido da redação do artigo, os instrumentos particulares eram hábeis para serem aceitos como válidos a ingressar no fólio real quando: i. autorizados por lei; ii. com o reconhecimento de firma na assinatura das partes e das testemunhas. Tratava-se, portanto, de exceção à regra da forma pública. Esta é a razão de ser  necessária a previsão em Lei. O Código Civil, de 2002, nada dispôs sobre a participação de testemunhas no ato ou negócio praticado, segundo o texto do art. 221 do novel  diploma.2 O Código de Processo Civil, de 2015, por sua vez, exige as testemunhas para a configuração de títulos executivos extrajudiciais (CPC, art. 784, III). A divergência legislativa quanto à obrigatoriedade da presença e assinatura de duas testemunhas no documento foi fonte de divergência jurisprudencial em São Paulo. Argumenta-se, de um lado, pela aplicação do princípio tempus regit actum para fins de dispensar as testemunhas do título, ante a regra do Código Civil de 2002. Assim, após a vigência do Código Civil, a participação de testemunhas era prescindível, considerando-se revogada tacitamente a redação da Lei dos Registros Públicos, conforme interpretação do disposto no art. 2º, § 2º, da LINDB.3  De outro lado, argumenta-se que o art. 221, inc. II e art. 169, inc. III, ambos da Lei 6.015/1973, são regras especiais e, por isso, em atenção ao critério da especialidade, não foram revogadas pelo codex civil no que tange à assinatura das duas testemunhas. Ressalte-se que o título emitido do Sistema de Financiamento Habitacional, e, em São Paulo, em caso das  cédulas de crédito rural, industrial, à exportação e comercial, inclusive a Cédula de Crédito Bancário, eram exceções ao reconhecimento de firma. Contudo, o cancelamento, por averbação da quitação do débito, exigia o reconhecimento da firma do credor ou seu representante, comprovando-se a autenticidade do  documento.4 Com a publicação da Medida Provisória nº 1.162, de 14 de fevereiro de 2023, a redação do inciso II do art. 221 da Lei dos Registros Públicos foi alterada no seguinte sentido: "Somente são admitidos registro: (...) escritos particulares autorizados em lei, assinados pelas partes, dispensados as testemunhas e o reconhecimento de    firmas, quando se tratar de atos praticados por instituições financeiras que atuem com crédito imobiliário, autorizadas a celebrar instrumentos particulares com caráter de escritura pública". Em interpretação gramatical, manteve-se a sistemática anterior para o ingresso dos escritos particulares autorizados em lei, assinados pelas partes, porém, no caso de instituições financeiras que concedam crédito imobiliário, que tenham autorizada a celebração de instrumento com força de escritura  pública, o reconhecimento de firma e as testemunhas são dispensáveis. Deste modo, pelo critério cronológico e especial, prevalece o sentido da   Lei dos Registros Públicos sobre o Código Civil, ressalvadas às instituições autorizadas a emitir título com força pública. Por fim, com a conversão da Medida Provisória na lei 14.620 de 13 de julho de 2023, a redação do inciso II do art. 221 foi novamente alterado, estabelecendo o seguinte: "Somente são admitidos a registro: escritos particulares autorizados em lei, assinados pelas partes e pelas testemunhas, com as firmas reconhecidas". Deste modo, a regra é assinatura das partes e o reconhecimento de firma para que o instrumento particular seja admitido para registro, de forma que os registradores de imóveis deverão seguir estes requisitos para os títulos prenotados a partir de então. Como exceção ao reconhecimento de firma e assinatura das testemunhas, o §5º do art. 221, da LRP, incluído pela Lei nº 14.620/2023, prevê: "os escritos particulares a que se refere o inciso II do caput deste artigo, quando relativos    a atos praticados por instituições financeiras que atuem com crédito imobiliário autorizadas a celebrar instrumentos particulares com caráter de escritura pública, dispensam as testemunhas   e o reconhecimento de firma". Sendo assim, as instituições financeiras, contanto que atuem com crédito imobiliário,  e tenham autorização para firmar instrumentos particulares, dispensam as testemunhas e o reconhecimento de firma. O direito material é sufragado pela formalidade imposta para atos de registro em que as partes sejam desprovidas das qualidades supramencionadas. Porém, o ingresso de títulos formais deveria ser facilitado, na esteira da Lei de Liberdade Econômica e da Lei nº 14.382/2022, valorizando-se o direito material, que rege a necessidade de formalidades. Considera-se o entendimento do Conselho Nacional de Justiça, que decidiu: "lei 13.726/2018 (Lei de Desburocratização) - Incidência aos Serviços de Registros de Imóveis - Os serviços de autenticação, reconhecimento de firma e outros praticados nas serventias brasileiras, por encerrar uma relação de natureza privada do cidadão com o cartório, não estão incluídos, para fins de dispensa, na lei 13.726/2018, muito menos com a possibilidade de serem praticados com isenção de emolumentos - Aplicação uniforme em todo o território nacional - Decisão em caráter normativo"5 Por todo o exposto, é possível observar que houve um retrocesso com relação ao que já havia sido, de alguma forma, solucionado pelas jurisprudências administrativas, persistindo a dissonância entre o Código Civil e a lei especial. Como lege ferenda, propõe-se a previsão redacional do art. 221, II da LRP, da seguinte maneira: "Somente são admitidos registro: II. escritos particulares autorizados em lei, assinados pelas partes com as firmas reconhecidas", em prestígio ao Código Civil e aos direitos materiais. A forma está garantida pelo reconhecimento de firma ou assinatura eletrônica com certificado digital, atualmente, a depender se o título for físico ou eletrônico.  Sejam Felizes. __________ 1 DE PLACIDO E SILVA, Oscar Joseph. Vocabulário jurídico. 18ª ed. rev. e atual. por Nagib Slaibi Filho e  Geraldo Magela Alves. Rio de Janeiro: Forense, 2001, p. 2.116. 2 "Art. 221 do Código Civil de 2002: "O instrumento particular, feito e assinado, ou somente assinado por quem esteja na livre disposição e administração de seus bens, prova as obrigações convencionais de qualquer valor; mas os seus efeitos, bem como os da cessão, não se operam, a respeito de terceiros, antes de registrado no registro público. Parágrafo único. A prova do instrumento particular pode suprir-se pelas outras de caráter especial". 3 CSMSP, Apelação Cível nº 0022843-24.2015.8.26.0554, rel. Des. Manoel Pereira. Cf. Apel. nº 0022843-24.2015.8.26.0554, rel. Manoel de Queiroz Pereira Calças, j. 4-8-2016. Em outro julgado constou: "embora altamente recomendável, não há exigência - legal ou normativa - de que o instrumento particular esteja rubricado por aqueles que participaram do negócio jurídico." (CSMSP, Apel. Cív. nº 0026786-24.2013.8.26.0100, rel. Hamilton Elliot Akel, j. 18-3-2004). 4 A lei 13.986/2020 revogou o item 13 do inciso I do art. 167 da Lei de Registros Públicos, portanto, atualmente, as cédulas de crédito rural não são hábeis a registro.  5 CNJ - Pedido de Providências n. 0002986-87.2019.2.00.0000 - Ministro Humberto Martins.
A Corregedoria Nacional de Justiça publicou, no dia 16 de março de 2023, o Provimento nº 141/2023, que facilitou a alteração de regime de bens na União Estável. A norma altera o Provimento nº 37/2014 do CN-CNJ, para se adequar às determinações da lei 14.382, de 2022. Sucessivamente, foi publicado o Provimento nº 146/2023 do CN-CNJ, de 26 de junho de 2023, com o fim de aclarar os limites do instrumento do termo de dissolução da união estável e partilha ou alteração de regime de bens, emitido pelo oficial de registro civil das pessoas naturais, em relação à escritura pública declaratória de dissolução da união estável com partilha de bens, conforme o art. 108 do CC/2002. O referido provimento também evidenciou a necessidade do registro do título estrangeiro de união estável ou a sua dissolução no Registro de Títulos e Documentos, para produzirem efeitos perante terceiros, dentro do território nacional (art. 129, "6º", da LRP). O Código Civil de 2002, em seu art. 1.725, estabeleceu que na união estável, salvo contrato escrito entre os companheiros, aplica-se às relações patrimoniais, no que couber, o regime da comunhão parcial de bens. Logo, é possível afirmar que a entidade familiar na união estável, configurada pela convivência pública, contínua e duradoura e estabelecida com o objetivo de constituição de família, regulamenta as relações patrimoniais entre os companheiros de modo informal. Na ausência de convenção escrita, serão aplicadas as regras do regime de comunhão parcial de bens   do casamento. Portanto, para que se estabeleça um regramento diverso, o acordo entre os companheiros deve ser realizado pela forma escrita, bem como a sua alteração no curso da relação de fato, daí que o art. 9º-A do Provimento nº 37/2014 do CN-CNJ permite a alteração do regime de bens no registro de união estável diretamente perante o registro civil das pessoas naturais, desde que o requerimento tenha sido formalizado pelos companheiros pessoalmente perante o registrador ou por meio de procuração por instrumento público. Segundo o autor DE PLACIDO E SILVA, o regime de bens - ou matrimonial -, é o "conjunto de regras e princípios reguladores da situação jurídica dos bens dos consortes, durante a vigência da sociedade conjugal, e das relações de ordem econômica havidas entre eles e os terceiros, que, com eles, contratarem".1 Conforme analisado, o art. 1.725 do Código Civil esclarece que o regime da comunhão parcial de bens é aplicado para as relações patrimoniais entre os companheiros no que for cabível. Ressalva-se a existência de contrato escrito, o qual permite outras formas de regulamentação do aspecto econômico entre    os companheiros, ou entre eles e terceiros com quem contratarem. Cumpre ressaltar que, segundo a doutrina de GUSTAVO TEPEDINO, o uso do termo "regime de bens" na união estável é aplicado por "empréstimo", ou "analogia".2 O regime de bens está vinculado ao ato-condição solene, pressuposto para sua validade e eficácia: o casamento; que se justifica pela ampla publicidade perante terceiros, dada pelo registro no Livro Auxiliar do Registro de Imóveis, bem como a averbação, no Livro 2, de bens imóveis dos consortes (CC, arts. 1.653 e 1.657). Daí, o legislador ter aplicado o regime da comunhão parcial de bens às uniões estáveis, no que couber. Exemplo disso é a outorga conjugal, que gera a anulabilidade do negócio, nas hipóteses  de alienação ou oneração de bens imóveis, bem como, pleitear, como autor ou réu acerca destes bens e todas as situações que possam colocar em risco a estabilidade econômica da entidade familiar, salvo o regime da separação total de bens convencional (CC, arts. 1.647 c.c. 1.649). De outro lado, a necessidade de outorga convivencial não é oponível a terceiros, porque na união estável há preponderantemente uma informalidade no vínculo entre os conviventes, que não exige qualquer documento, caracterizando-se apenas pela convivência pública, contínua e duradoura, segundo entendimento consolidado do Superior Tribunal de Justiça.3 Esta é a razão do art. 9º-A, §1º, do Provimento 37/2014 do CN-CNJ ter incluído a ressalva de que na averbação da alteração se consigne a advertência de "a alteração do regime de bens não prejudicará terceiros de boa-fé, inclusive os credores dos companheiros cujos créditos já existiam antes da alteração do regime." Para tanto, exige que ambos os companheiros requeiram a alteração das relações patrimoniais entre si diretamente perante o registro civil das pessoas naturais, seja aquele em que está no assento ou qualquer outro. Mais uma vez, a Central de Informações do Registro Civil - CRC - é o mecanismo base para encaminhar o requerimento processado em oficio de pessoas naturais diverso daquele   em que assentada a união estável. Recebido o procedimento, caberá ao oficial de registro civil confrontar com o assento da união estável no Livro E, bem como qualificar o título, com fulcro na lei (LRP, art. 198, caput).4 A averbação da alteração patrimonial exige, além do requerimento conjunto, a existência do registro da união estável no Livro E do Registro Civil das Pessoas Naturais, em que os companheiros têm residência. Ademais, a apresentação de certidão do distribuidor cível e execução fiscal do local de residência dos últimos cinco anos (estadual/federal); certidão dos tabelionatos de protestos do local de residência dos últimos cinco anos; certidão da Justiça do Trabalho do local de residência dos últimos cinco anos; constituem requsitos para instrução do procedimento para a prática do ato registral.5 A certidão de interdições perante o 1º ofício de registro civil das pessoas naturais do local da residência dos interessados dos últimos cinco anos também é um dos documentos que instruem o pedido, de forma que se a certidão for positiva, a alteração do regime patrimonial dos conviventes deverá se processar pela via judicial.6 Sob ecos do recente artigo escrito nesta coluna7, o Provimento 37/2014 do CN-CNJ - com as alterações dada pelo Prov. 146/2023-, em seu art. 9º, § 3º, dispõe que se no requerimento de alteração de regime de bens houver proposta de partilha de bens - respeitada a obrigatoriedade de escritura pública nas hipóteses legais, como na do art. 108 da lei 10.406, de 10 de janeiro de 2002 (Código Civil) -  e/ou quando as certidões do distribuidor cível e execução fiscal, dos tabelionatos de protestos, certidão da Justiça do Trabalho forem positivas, os companheiros deverão estar assistidos por advogado ou defensor público, assinando com este o pedido. Para instrução do procedimento de alteração de regime patrimonial, o oficial exigirá a apresentação de proposta de partilha de bens, ou declaração de que por ora não desejam realizá-la, ou, ainda, declaração de que inexistem bens a partilhar, a fim de respeitar os limites do termo declaratório de dissolução da união estável.8 Não se tem clareza se o termo declaratório de alteração de regime patrimonial, com partilha, é hábil para ingresso no fólio real. Caso se entenda que sim, o oficial de registro de imóveis deverá verificar, antes de qualificar a partilha, se a forma ad solemnitatem foi respeitada, visto que está na essência de certos atos a escritura pública, o que ocorre com as hipóteses contidas no art. 108 do CC. Não cabe ao oficial de registro civil das pessoas naturais, no momento da qualificação do requerimento, com os documentos e dados contidos no procedimento registral, verificar incompatibilidades com art. 1.641, inc. II do CC. A Súmula 655 do Superior Tribunal de  Justiça, exige o exame no início do relacionamento entre os companheiros. Igualmente, não é permitido que se altere para outro regime, no caso de já seguirem o regime da separação obrigatória de bens, em decorrência de um deles ser pessoa idosa (maior de 70 anos). A averbação de alteração do regime de bens no registro da união estável informará o regime anterior, a data de averbação, o número do procedimento administrativo, o registro civil processante e, se houver, a realização da partilha.9 Os efeitos decorrentes do novo regime patrimonial serão gerados a partir da respectiva averbação no registro da união estável, não retroagindo aos bens adquiridos anteriormente em nenhuma hipótese, em virtude dessa alteração. Contudo, observa-se que, se o regime escolhido for o da comunhão universal de bens, os seus efeitos atingem todos os bens existentes no momento da alteração, ressalvados os direitos de terceiros, ou outra hipótese agasalhada pela jurisdição.10 Assim, bens anteriormente alienados ou onerados não serão atingidos retroativamente pela alteração, tampouco às relações jurídicas, pois limita-se a reger o regime patrimonial, com base nos bens existentes, segundo o entendimento do Superior Tribunal de Justiça.11 Contudo, nada impede que os consortes efetivem a averbação de alteração do regime patrimonial, e, no dia seguinte alterem o regime novamente por instrumento particular. Não se pode falar em estabilidade dos efeitos contra terceiros do estado de fato entre duas pessoas que mantém uma relação contínua, pública e duradoura, para fins de constituírem uma entidade familiar (CC, art. 1.723, caput, c.c. 1.725). Inexistindo lei estadual específica sobre a cobrança de emolumentos do processamento do requerimento de alteração de regime patrimonial, o registrador civil deverá usar valor do procedimento de habilitação de casamento.12 O direito material é que concede o tom para o direito formal dos registros públicos, e não o  inverso, tal qual ocorre pelo princípio da instrumentalidade das formas dentro do direito processual civil (CPC, art. 198). A relação entre os companheiros não está vinculada a forma específica, pois, a finalidade das regras da união estável, previstas na Constituição Federal (art. 226, 3º) e no Código Civil (arts. 1.723 a 1.727), é a de proteger aqueles que optem por uma relação sem as formalidades e o regramento do casamento.  Sejam felizes. __________ 1 DE PLACIDO E SILVA, Oscar Joseph. Vocabulário jurídico 18ª ed. rev. e atual. por Nagib Slaibi Filho e Geraldo Magela Alves. Rio de Janeiro: Forense, 2001, p. 1.792 2 TEPEDINO, Gustavo. Controvérsias sobre regime de bens no Código Civil. In: Revista dos Advogados da Associação dos Advogados de São Paulo, no 98, ano XVIII, julho de 2008, p 111. 3 Por exemplo, o REsp. nº .1.592.072/PR, Rel. Min. Marco Aurélio Bellizze, DJe. 18/12/2017. 4 §§6º e 8º do art. 9-A do Provimento nº 37/2014, incluído pelo Provimento nº 141/2023. 5 Art. 9-B do Provimento nº 37/2014, incluído pelo Provimento nº 141/2023. 6 Art. 9º-A, §2º, do Provimento nº 37/2014, incluído pelo Provimento nº 141/2023 7 KÜMPEL, V. F.; MADY, F. K., A busca pela natureza jurídica do termo declaratório de união estável.  8 CPC, art. 733 c.c. art. 108, e Prov. 37/2014 do CN-CNJ, art. 9º-A, § 7º 9 Prov. 37/2014 do CN-CNJ, com as alterações do Prov. 141/2023 do CN-CNJ, art. 9º-A, § 5º. 10 Prov. 37/2014 do CN-CNJ, com as alterações do Prov. 141/2023 do CN-CNJ, art. 9º-B, inc. V 11 STJ, REsp. nº 1.845.416/MS, rel. Min. Nancy Andrigh, j. 17.08.2021. 12 Prov. 37/2014 do CN-CNJ, art. 9º-A, § 7º.
A adjudicação compulsória extrajudicial, inserida no art. 216-B da lei 6.015/1973, pela lei 14.382/2022, ainda é tema em ebulição, cuja repercussão prática vem sendo discutida. Vários aspectos, inclusive, foram abordados no XXII Congresso Paulista de Direito Notarial em Campos do Jordão, que ocorreu em maio de 2023 e, na coluna de hoje, iremos expor alguns deles com a nossa opinião. Inicialmente, questiona-se acerca da possibilidade de a notificação já ser realizada pelo tabelião de notas quando da lavratura da ata notarial. Não se vislumbra qualquer impedimento para que o próprio Tabelião de Notas realize a notificação extrajudicial do promitente vendedor, pelo contrário. A notificação efetuada pelo Tabelião também é dotada de fé-pública e tem plena validade para os procedimentos extrajudiciais. O Tabelião de Notas é profissional extremamente capacitado e indicado para efetivar a notificação. Além disso, realizar a notificação antes de se promover o restante do procedimento tem muito sentido para fins de economia das partes e facilitação do procedimento dentro das serventias extrajudiciais. É mais lógico que a prova do inadimplemento pelo promitente vendedor notificado que não outorgar escritura pública definitiva ocorra antes do restante do procedimento. Se o promitente vendedor responder à notificação com o consentimento expresso, o tabelião poderá promover a lavratura da escritura definitiva e os demais atos para a adjudicação extrajudicial compulsória serão desnecessários, uma vez que o compromissário comprador terá a documentação necessária para promover o registro da transferência da propriedade. Quanto à competência do Tabelião de Notas para a realização da notificação, bem como da lavratura da ata notarial, é adequado aplicar-se a regra legal dos arts. 8º e 9º1 da lei 8.935/1994 e do Provimento nº 100 do CNJ. O procedimento da adjudicação compulsória já foi regulamentado nas normas de alguns estados e pode-se observar alguns formatos para sua aplicação. Em São Paulo, nas NSCGJ, Capítulo XX, Seção XVI, de cuja leitura se extrai a repetição do texto legal da LRP com alguns acréscimos acerca da realização da notificação do promitente vendedor e diligências. Não há qualquer previsão sobre suspensão do prazo da prenotação. No estado de Pernambuco, o novo Código de Normas, por outro lado, prevê, uma possibilidade de prorrogação do prazo da prenotação até sua rejeição ou acolhimento. Art. 1691. O  requerimento,  juntamente  com  todos  os  documentos  que  o  instruírem,   será   autuado   pelo   oficial   do   registro   de   imóveis   competente,   prorrogando-se  os  efeitos  da  prenotação  até  o  acolhimento  ou  rejeição  do  pedido. § 1º Todas as notificações destinadas ao requerente serão efetivadas na pessoa do seu advogado, inclusive por e-mail ou aplicativo de mensagens. § 2º A desídia do requerente, previamente dela alertado com prazo de 20 dias úteis para diligenciar, poderá acarretar o arquivamento do pedido, com perda da eficácia da prenotação, nos termos do art. 205 da Lei 6.015/1973.          Nesse caso, percebe-se que é possível iniciar o procedimento no RI, ganhando-se os efeitos da prenotação, para, após, juntar os demais documentos exigidos pela lei. Ou seja, poder-se-ia valer-se dos efeitos da prenotação, já protocolando o requerimento no RI, para que depois o advogado consiga a documentação faltante, como a lavratura da ata notarial (que pode levar alguns meses para confecção), não perdendo a prioridade. Outro ponto de debate é quanto à caracterização da mora do promitente vendedor para a outorga da escritura pública definitiva após o pagamento integral de preço pelo compromissário comprador. Como se sabe, a mora nas obrigações pode ser ex re ou ex persona. No primeiro caso, a mora se constitui pelo próprio descumprimento da obrigação, independente de interpelação ou notificação da pessoa em mora; na segunda hipótese, a mora apenas se constituí após a interpelação ou citação promovida pela parte contrária. Muito embora a mora do promitente vendedor, que não outorga a escritura pública definitiva após o adimplemento de todas as parcelas, constitua-se ex re, ou seja, independentemente de interpelação ou citação, para que o compromissário comprador promova o procedimento de adjudicação compulsória extrajudicial, é imprescindível a notificação. Isso não significa que a mora do compromissário comprador se torna ex persona nos compromissos de compra e venda, mas, para a aplicação do procedimento em específico, a notificação faz-se um requisito necessário pela própria previsão legal. O regime jurídico do compromisso de compra e venda também foi alvo de discussões. É possível que esse contrato se constitua sob a égide das seguintes legislações: decreto-lei 58/1937, que dispõe sobre o loteamento e a venda de terrenos para pagamento em prestações; lei 4.591/1964, sobre o condomínio em edificações e as incorporações imobiliárias; o próprio Código Civil de 2002; e a lei 6.766/1979, sobre o parcelamento do solo urbano. A controvérsia existe sobre a aplicabilidade da adjudicação compulsória extrajudicial para os compromissos de compra e venda constituídos em âmbito do parcelamento do solo urbano, regidos pela lei 6.766/1979, por conta da disposição do art. 26, §6º: Art. 26, § 6º. Os compromissos de compra e venda, as cessões e as promessas de cessão valerão como título para o registro da propriedade do lote adquirido, quando acompanhados da respectiva prova de quitação. Verifica-se que o próprio texto legal autoriza o registro da transferência da propriedade definitiva ao compromissário comprador independentemente da outorga de escritura pública definitiva pelo promitente vendedor, desde que seja apresentada a prova de quitação junto do título. Dessa forma, seria desnecessário o procedimento de adjudicação compulsória, bastando a apresentação do contrato e da prova de pagamento diretamente pelo compromissário comprador. Contudo, não parece adequado restringir a aplicação da adjudicação compulsória extrajudicial aos compromissos regulamentados pela lei 6.766/1979 por uma questão simples: não é em todo caso concreto que o registrador consegue verificar a prova da quitação na documentação apresentada pela parte. Para tais casos, não parece haver qualquer impedimento legal para a aplicação da adjudicação compulsória extrajudicial. O texto do art. 216-B da LRP aduz que o procedimento é aplicável a "imóvel objeto de promessa de venda ou de cessão", sem restringir o regime jurídico que regula a promessa de compra e venda em questão. Assim, entende-se viável a utilização da adjudicação compulsória extrajudicial inclusive para os contratos firmados em âmbito de parcelamento do solo urbano, podendo o compromissário comprador tanto se utilizar do art. 26, §6º da referida lei quanto da adjudicação compulsória extrajudicial, se necessário ao caso concreto. Além disso, cumpre relembrar a mesma situação para a hipótese do art. 41 da referida lei: Art. 41. Regularizado o loteamento ou desmembramento pela Prefeitura Municipal, ou pelo Distrito Federal quando for o caso, o adquirente do lote, comprovando o depósito de todas as prestações do preço avençado, poderá obter o registro, de propriedade do lote adquirido, valendo para tanto o compromisso de venda e compra devidamente firmado. Outro ponto de discussão é com relação a qual tipo de direito se constitui a adjudicação compulsória extrajudicial: direito subjetivo ou potestativo. Surge a controvérsia por conta do entendimento de que, se tratasse de direito subjetivo, incidiria prazo prescricional para o compromissário comprador promover o registro da transmissão da propriedade; assim, perdendo-se o prazo, o promitente vendedor cobraria um valor a mais do compromissário comprador para realizar a outorga da escritura definitiva. Contudo, entende-se que a adjudicação compulsória extrajudicial está na esfera dos direitos potestativos, cabendo o procedimento ainda que a quitação do contrato tenha sido efetuada há muitos anos. A intenção é poder abarcar os contratos que permaneceram quitados, mas sem a outorga da escritura definitiva remanescentes ainda dos anos 1980-1990 (e mais recentes), facilitando a regularização da propriedade imobiliária para o compromissário comprador que não mais dependeria do promitente vendedor para regularizar um contrato há muito tempo já quitado. Por fim, discute-se o momento do recolhimento do ITBI. Nos termos do art. 216-B, no momento da solicitação do requerimento da adjudicação compulsória já seria necessário apresentar o comprovante do recolhimento do imposto. Contudo, entende-se que a dicção legislativa deveria ser adequada para que o ITBI fosse recolhido apenas após a qualificação positiva pelo registrador de imóveis, visto que o fato gerador do ITBI é a transferência da propriedade imóvel e que os documentos apresentados para a adjudicação compulsória extrajudicial podem ser devolvidos. Parece ideal que, após a qualificação positiva, o compromissário comprador fosse intimado para promover o pagamento do ITBI em prazo determinado. Aguardaremos a repercussão prática do instituto para observar com mais detalhes os efeitos de sua utilização. Sejam felizes! __________ 1 Lei 8.935/1994: Art. 8º É livre a escolha do tabelião de notas, qualquer que seja o domicílio das partes ou o lugar de situação dos bens objeto do ato ou negócio. Art. 9º O tabelião de notas não poderá praticar atos de seu ofício fora do Município para o qual recebeu delegação. Provimento nº 100 do CNJ, para atos eletrônicos: Art. 19. Ao tabelião de notas da circunscrição do imóvel ou do domicílio do adquirente compete, de forma remota e com exclusividade, lavrar as escrituras eletronicamente, por meio do e-Notariado, com a realização de videoconferência e assinaturas digitais das partes. § 1º Quando houver um ou mais imóveis de diferentes circunscrições no mesmo ato notarial, será competente para a prática de atos remotos o tabelião de quaisquer delas. § 2º Estando o imóvel localizado no mesmo estado da federação do domicílio do adquirente, este poderá escolher qualquer tabelionato de notas da unidade federativa para a lavratura do ato. § 3º Para os fins deste provimento, entende-se por adquirente, nesta ordem, o comprador, a parte que está adquirindo direito real ou a parte em relação à qual é reconhecido crédito. Art. 20. Ao tabelião de notas da circunscrição do fato constatado ou, quando inaplicável este critério, ao tabelião do domicílio do requerente compete lavrar as atas notariais eletrônicas, de forma remota e com exclusividade por meio do e-Notariado, com a realização de videoconferência e assinaturas digitais das partes. Parágrafo único. A lavratura de procuração pública eletrônica caberá ao tabelião do domicílio do outorgante ou do local do imóvel, se for o caso. Art. 23. Compete, exclusivamente, ao tabelião de notas: [...] § 1º Tratando-se de documento atinente a veículo automotor, será competente para o reconhecimento de firma, de forma remota, o tabelião de notas do município de emplacamento do veículo ou de domicílio do adquirente indicados no Certificado de Registro de Veículo - CRV ou na Autorização para Transferência de Propriedade de Veículo - ATPV.
No que toca aos efeitos substantivos do registro, o sistema de mutação jurídica no Brasil, em regra, é o do título e modo, isto é, a causa da mutação jurídico-real está no próprio título, que será o negócio levado a registro para que ocorra a transferência do direito real. O confeccionador do título que é levado a registro, por natureza, é o Tabelião de Notas, desde a Idade Média, a quem a lei reconhece como probos e verdadeiros e atribui-lhes o poder de juridicizar a vontade das partes com a qualidade de título a ingressar no sistema registral. Nessse sentido, enquanto a atividade notarial instrumentaliza títulos, a atividade registral é responsável por qualifica-los e registra-los. Portanto, não é da essência do registrador formalizar títulos, traduzindo-se em função atípica, aferível também nos procedimentos extrajudiciais de usucapião, previstos no art. 216-A da LRP.1 Ressalte-se assim que lavrar, qualificar e assentar, não é adequado ao registrador. O regime jurídico dos notários e registradores é regulado pela lei 8.935/1994. Tal lei estabelece aos registradores a função de qualificação, registro, averbação e anotação em Livros Públicos (LRP, arts. 3º e 7º-A). Assim, a fé registral gera uma crença na verdade do documento extraído do registro, de que as informações ali contidas são precisas e espelham a verdade dos títulos que a determinaram.2 De outro lado, aos notários foi atribuída a atividade de formalizar juridicamente a vontade das partes; e intervir nos atos e negócios jurídicos que devam ou queiram dar forma legal ou autenticidade, autorizando a redação ou redigindo os instrumentos adequados,  conservando os originais e expedindo cópias fidedignas de seu conteúdo. Logo, a atividade notarial é de meio, cujo interesse é indiretamente difuso e diretamente particular; ao revés, a atividade registral é de interesse diretamente difuso e indiretamente particular.  A escritura pública é o ato por excelência, típico e privativo do tabelião de notas, cuja materialização da vontade das partes gera eficácia tripla, isto é, confere publicidade e segurança jurídica, faz prova plena pré-constituída e solidifica a formação legal dos atos e guarda de documentos. A atividade prevista desde as Ordenações do Reino de Portugal e Algarves, se manteve na Consolidação de Leis Civis, de Augusto Teixeira de Freitas, em seu art. 386, "As escripturas serão lavradas nos Livros de Notas, e não em papel avulso; e para sua solenidade, e validade devem conter.".3 No Código Civil de 1916 (art. 134), bem como no Codex em   vigor (art. 215), a essência é a mesma. A lei 14.382/2022 modificou a sistemática de formalização de uniões estáveis perante os serviços notariais e de registro drasticamente, refletidas na Lei de Registros Públicos, em seus arts. 70-A e 94-A. Dando seguimento na temática da união estável, com base no Provimento nº 141/2023, o qual trouxe alterações no Provimento 37/2014, ambos da E. Corregedoria Nacional do Conselho Nacional de Justiça - CN-CNJ -, passa-se ao exame da natureza do termo declaratório de união estável. O vocábulo termo é plurívoco. Corresponde a inúmeras acepções, porém, como bem esclarece Maria Helena Diniz, para o Direito Privado, é o instrumento no qual certos atos processuais são formalizados; ou a declaração ou o registro, feito pela autoridade competente,   nos autos de algum ato que deva ficar indelével.4 O Provimento nº 37/2014 do CNJ determinava que seriam títulos hábeis para registro ou averbação no Livro E do registro civil de pessoas naturais - relativos à união estável - os seguintes: i. as sentenças declaratórias do reconhecimento e de dissolução da união estável; ii. as escrituras públicas declaratórias de seu reconhecimento; e iii. as escrituras públicas declaratórias de dissolução da união estável nos termos do art. 733 do Código de Processo Civil. A partir da atualização do Provimento nº 37/2014 do CNJ, os termos declaratórios de reconhecimento e de dissolução de união estável foram incluídos no rol do art. 1º, §3º, previsto na referida norma administrativa, por força do art. 94-A, caput, da lei6.015/1973, incluído pela lei 14.382/2022. Portanto, a lei 14.382/2022 foi quem criou e inseriu o termo declaratório como título, de forma que o Provimento nº 141/2023 apenas deu contornos para um título já existente. Ressalte-se que a lei criou um título complexo, mas que deveria ser simples, isto é, um mero termo singelo, a ser declarado e assentado no Livro E. Qualquer outro contorno diferente disso, isto é, de maior complexidade, deveria ser realizado mediante sentença ou escritura publica. A união estável é a relação de fato, configurada na convivência pública, contínua e duradoura, a qual objetiva uma entidade familiar (CC, art. 1.723). O CPC, em seu art. 405, prescreve que o documento público faz prova não apenas da sua formação, mas também dos fatos que o escrivão, o chefe de secretaria, o tabelião ou o servidor declarar que ocorreram em sua presença. A eficácia, deste modo, é probatória da formação e dos fatos narrados perante o oficial de registro do relacionamento entre duas pessoas.5 Não tem, contudo, a eficácia perante terceiros, como se demonstrou em artigo da série anterior. Conforme mencionado, o art. 94-A, caput da Lei de Registros Públicos não delimita os contornos deste termo declaratório, tampouco se seria aplicável às dissoluções de união estável. O Código de Processo Civil, em seu art. 733, permite a extinção consensual de união estável mediante  escritura pública somente nos casos em haja consensualidade na decisão dos companheiros, inexistência de filhos menores ou nascituros. Exige  também, para tanto, a assistência de um advogado ou defensor público. Portanto, o Provimento nº 141/2023 surgiu com uma série de problemas, como a independência do termo em relação ao registro; e a concessão de poder ao registrador para trabalhar todos os regimes, além da questão da certificação eletrônica. Nos termos do artigo 70, §6º da lei 6.015/1973, não constará do assento de casamento convertido a partir da união estável a data do início ou o período de duração desta, salvo no caso de prévio procedimento de certificação eletrônica de união estável realizado perante oficial de registro civil. Nesse sentido, a certificação eletrônica é utilizada na hipótese de conversão da União Estável em casamento, de forma que seria responsabilidade do registrador a mera aferição de existir no sistema eletrônico uma União Estável entre as mesmas partes e por ocasião da conversão, constar a referida data na conversão. O procedimento para a formalização do termo declaratório, inicia-se com a rogação dos companheiros perante qualquer oficial de registro civil das pessoas naturais (LRP, art. 13), o qual deverá colher a declaração conjunta, expressa, única e  voluntária (Prov. 37/2014 da CN-CNJ, art. 1ª-A e §§). Isto porque, é requisito a inexistência de termo anterior, o que poderá ser verificado pelo registrador na Central de Informações de Registro Civil - CRC. O termo declaratório deve ficar arquivado na serventia, preferencialmente na forma eletrônica, em classificador próprio e, em ato posterior e imediato, inserido na plataforma da CRC (Prov. 37/2014, art. 1º-A, §§ 1º, 2º e 5º). Uma das principais características do Termo é a sua informalidade, isto é, sua formalização é facultativa. Tendo em vista que o Código Civil estabeleceu a união estável como uma relação duradoura, o oficial de registro deverá, com base no princípio da isonomia no tratamento dos interessados e na razoabilidade, o critério adotado deverá ser igual para todas as declarações formalizadas. (CF, arts. 5º, caput e 37, caput). Importa observar que o Termo Declaratório não poderia ser de dissolução, na medida em que o Código de Processo Civil de 2015 não lhe deu esse poder, muito menos a Lei nº 14.382/2022; também não poderia envolver imóveis acima de trinta salários mínimos e trabalhar qualquer questão que não fosse ope legis. Ademais, não poderia ser autônomo, isto é, se desvincular do registro, na medida em que o artigo 94-A da Lei nº 6.015/1973 pressupõe que o Termo é confeccionado pelo registrador e assentado imediatamente, indicando, assim, que está atrelado a um procedimento para o ato de registro. Outra questão que merece análise é se o termo declaratório seria título hábil ao registro no Livro 3 - Auxiliar do Registro de Imóveis das disposições patrimoniais estabelecidas   pelos companheiros (CC, art. 1.657 do CC, c.c. o Provimento 37/2014 do CN-CNJ, art. 9ª-D, § 6º). É possível dizer que o termo em si não é título hábil, mas sim a certidão do Livro E decorrente do termo, desde que com contornos muito básicos. Quanto aos emolumentos, eles serão pagos no valor de 50% de procedimentos de habilitação para o casamento (Prov. 37/2014 do CN-CNJ, § 6º, inc. I) e será emitida a certidão do termo, autenticada pelo oficial, eficaz como o seu original (CPC, art. 425, III). Para a dissolução de união estável, se envolver partilha de bens, o termo declaratório corresponderá ao valor dos emolumentos previstos para a escritura pública do mesmo ato jurídico, estabelecido em tabela própria. Como bem alertou o E. Corregedor Nacional de Justiça, Ministro Luís Felipe Salomão, em seu voto, no Pedido de Providências nº 0004621-98.2022.200.0000, "parece evidente que a escritura pública declaratória e o termo declaratório de união estável são instrumentos distintos.", cabe às partes decidirem qual dos instrumentos consubstanciará a existência de relação entre companheiros ou a sua dissolução, cujos efeitos serão sentidos no futuro. O Termo Declaratório, por lei, deveria ser um título registral, vinculado, facultativo e gerar uma certidão do assento, mas nunca do termo. Pelo Provimento nº 141/2023, se tornou um título registral autônomo (não vinculado), aberto (podendo ser confeccionado em qualquer cartório), com status superior à Escritura Pública, e fazendo prova plena, podendo fixar regime e dissolução com presença de advogado, além de ter convertido o registrador civil em tabelião de Notas, o que acabou por subverter o sistema.  Sejam Felizes! Até o próximo registralhas! __________ 1 Tema já abordado em Usucapião Extrajudicial; (F.K. Mady; e S. L. Ferreira da Rocha. In: Direito Ambiental e Urbanístico v. 1 (ago./set. 2005)-.- Porto Alegre: LexMagister, 2005- Bimestral v. 91 (ago./set. 2020). 2 V. F. Kümpel; e C. M. Ferrari. Tratado de direito notarial e registral - vol. 3, 2ª ed., São Paulo, YK Editora, 2022, p. 114 a 120 3 A. Teixeira de Freitas, Consolidação das Leis Civis, 3ª ed. aum., Rio de Janeiro: Livreiro Edictor do Instituto Histórico, 1876, p. 488 4 Dicionário jurídico - Q - Z, 3ª ed. rev., atual, e aumentada, São Paulo, Ed. Saraiva, 2008, p. 626-627. 5 O Supremo Tribunal Federal decidiu no Recurso Extraordinário 1.045.273/SE, cujo Tema de Repercussão Geral nº 529, versou sobre o reconhecimento jurídico de duas uniões estáveis concomitantes, com a atribuição de efeitos previdenciários nas duas relações e o respectivo rateio. Com a seguinte tese se firmou, em 02 de agosto de 2021, que: "É incompatível com a Constituição Federal o reconhecimento de direitos previdenciários (pensão por morte) à pessoa que manteve, durante longo período e com aparência familiar, união com outra casada, porquanto o concubinato não se equipara, para fins de proteção estatal, às uniões afetivas resultantes do casamento e da união estável".
Em 16 de março de 2023 foi publicado o Provimento nº 141 da E. Corregedoria Nacional de Justiça do Conselho Nacional de Justiça - CN-CNJ - que surgiu com a finalidade de alterar o Provimento nº 37/2014 do CN-CNJ, para atualizá-lo conforme a lei 14.382, de 27 de junho de 2022. Dentre as finalidades, a norma visa regulamentar o termo declaratório ou de dissolução de união estável perante o Registro Civil das Pessoas Naturais (art. 94-A da lei 6.015/1973 c.c. art. 733 do CPC), como também a alteração de regime de bens na união estável, a sua conversão extrajudicial em casamento, bem como o procedimento de certificação eletrônica, para aferir a data de início e fim da relação convivencial. A união estável é definida como relação pública, contínua e duradoura entre duas pessoas com a finalidade de constituir uma entidade familiar (art. 226, § 3º da CF/1988 c.c. art. 1.723, caput, do CC/2002). O seu registro no Livro "E" do Registro Civil das Pessoas Naturais da sede da Comarca ou Primeiro Subdistrito é facultativo para os conviventes (art. 1º do Prov. 37/2014 da CN-CNJ). A primeira regulamentação da norma constitucional que trata da união estável foi por meio da lei 8.971/1994, que definiu como companheiros o homem e a mulher que mantivessem união comprovada, na qualidade de solteiros, separados judicialmente, divorciados ou viúvos, por mais de cinco anos, ou com prole (concubinato puro). Posteriormente, a lei 9.278/1996 alterou esse conceito, não dispondo acerca dos pressupostos de natureza pessoal, tempo mínimo de convivência e existência de prole.1 O Código Civil de 2002, inseriu o título referente à União Estável nos arts. 1.723 a 1.727, não sendo estabelecido período mínimo de convivência, apenas se fazendo menção a "convivência pública, contínua e duradoura e estabelecida com o objetivo de constituição de família". As mudanças decorrentes da lei 14.382/2022 acresceram na Lei nº 6.015/1973 situações novas e situações que antes apenas eram reguladas no âmbito administrativo, como é o caso do registro da União Estável e a conversão da União Estável em casamento. Ademais, o Provimento nº 141 criou um instituto que até hoje não se encontra presente em nenhuma lei, que é a mudança de regime de bens. Na verdade, a lei 14.382/2022 criou uma "escritura registral", na medida em que trata de uma outra forma de titulação em relação ao termo declaratório. Nesse sentido, além de incluir a União Estável registrada e a conversão da União Estável em casamento, estabeleceu o termo declaratório sem passar pelo crivo do tabelião de notas.2 Nos termos do Provimento nº 37/2014, que regia o registro da União Estável, os títulos que autorizavam o registro eram: i. sentença declaratória de reconhecimento e dissolução, ou extinção; ii. ou a escritura pública de contrato e distrato envolvendo união estável, conforme determinava o artigo 733 do Código de Processo Civil. Assim, foi criada uma antinomia, na medida em que o Código de Processo Civil apenas dispõe sobre a Escritura Pública e sentença, enquanto a lei 14.382/2022 criou a figura do termo declaratório, que até teria sentido se mantivesse atrelado à registrabilidade. Pelo texto da lei, o registrador do primeiro registro, deveria lavrar o termo e registrá-lo de forma simples, e não operacionalizando todos os direitos e obrigações da União Estável. Atualmente, o termo declaratório se tornou complexo e solto, podendo produzir efeitos jurídicos sem previsão legal para tal, de forma que nunca foi considerado um documento autônomo, mas sim vinculado à escritura ou sentença. Apesar de o Provimento nº 141/2023 do CNJ arrolar quatro espécies de títulos admitidos para registro ou averbação, na verdade, o melhor seria dividi-los em três, quais sejam: i. sentenças (declaratórias de reconhecimento e dissolução); ii. escrituras públicas (declaratórias de reconhecimento e declaratórias de dissolução); e iii. termos declaratórios de reconhecimento e de dissolução de união estável formalizados perante o oficial de registro civil das pessoas naturais, exigida a assistência de advogado ou de defensor público no caso de dissolução da união estável nos termos da aplicação analógica do art. 733 da lei 13.105, de 2015 (Código de Processo Civil) e da Resolução nº 35, de 24 de abril de 2007, do Conselho Nacional de Justiça.3 Ainda, observe-se que o referido termo pode ser: i. declaratório (com ou sem data anterior); ii. de distrato (com ou sem certificação eletrônica) iii. de reconhecimento sem registro; e iv. de distrato sem registro, com data ou sem data. No Brasil, o sistema de mutação jurídica, por regra, é do título e modo, de forma que a causa da mutação jurídico-real está no título, notadamente um contrato, que será o negócio levado a registro para que ocorra a transferência do direito real4. O Termo de Declaração de União Estável e de Distrato de União Estável, que pode ser levado a registro ou averbação sem passar pelo crivo do Tabelião de Notas, obra contra o sistema, na medida em que não é competência do registrador confeccionar títulos, cuja essência é da função notarial. Antes de lavrar o ato notarial, a prudência notarial exige que o tabelião inicie a profilaxia real, que não se refere apenas a vícios intrínsecos e formais que possam eivar o título, mas diz respeito à satisfação de vontade das partes e ao esclarecimento quanto a todos possíveis efeitos reais ou hipotéticos do ato que está sendo praticado. O termo declaratório, conforme o Provimento nº 141/2023 é um documento público, registral, facultativo e autônomo, e pode ser simples (em que o próprio registrador lavra) ou complexo (cumulado com a certificação eletrônica, em que há retroatividade de prazo). O confeccionador de títulos, por natureza, é o tabelião de notas, desde a Idade Média. A fé pública tabelioa é a presunção legal da verdade de que certos agentes públicos, a quem a lei reconhece como investidos (probos e verdadeiros), e atribui-lhes o poder de juridicizar a vontade das partes com a qualidade de título a ingressar no sistema registral, sem que se possa, em muitas ocasiões, fazer a indagação da verdade intrínseca dos referidos títulos.5 Não é sem sentido que a parte geral do Código Civil contempla o artigo 215, referente à Escritura Pública. O notário, particular em colaboração com o poder público, delegatário de serviço, goza da referida fé pública administrativa na lavratura de atos, contratos, bem como no reconhecimento de firma, autenticação, entre outros6. A referida fé tem uma missão preventiva, de profilaxia jurídica. Portanto, destruir-se-á todo um sistema constituído ao longo de séculos, com funções distintas entre o notário e registrador, na medida em que passou para este a função de confeccionar o termo declaratório que, inclusive, tem mais força do que a Escritura Pública, na medida em que é autossuficiente e o registro no Livro E é facultativo e pode fixar prazo distinto do da lavratura do ato. A doutrina e a jurisprudência administrativa interpretavam o termo declaratório como o documento preparatório, facultativo, porém vinculado ao ato registral, para o registro no Livro E do Registro Civil de Pessoas Naturais antes de sua regulamentação, devido à falta de previsão nos incisos do art. 94-A da Lei de Registros Públicos, como título hábil para o registro.7 A união estável é o estado de fato, cujo registro em Livro independentemente do título hábil, não altera sua natureza informal. Isto porque, basta a configuração da affectio maritalis, durante determinado período de tempo, para existir a União Estável. O registro visa mais a tutela das próprias partes do que o terceiro de boa-fé, na medida em que a situação de fato se extingue pela mera separação do casal. Já no casamento, há uma presunção de manutenção. A regra geral é que a união estável, no registro, tem eficácia ex nunc, a não ser na hipótese da judicialização de seu reconhecimento, na qual a dialética processual garantirá a aferição da data de início por parte da jurisdição.  Em uma segunda hipótese, a escritura pública, que consta expressamente como data de início a data da confecção do ato notarial, com cláusula expressa no instrumento. A certificação eletrônica, segundo a lei 14.382/2022, deveria ser a mera aferição, por parte do registrador, de existir no sistema eletrônico uma União Estável entre as mesmas partes registrada e por ocasião da conversão, constar a referida data na conversão. Porém, o provimento nº 37 passou a criar um procedimento administrativo autônomo, no qual o registrador faz o papel da jurisdição e fixa uma data de início da União Estável, com todas as dificuldades para aferir a data de origem da referida união. São características do termo declaratório de união estável, ser documento formal, expresso, autônomo e uniforme, pois prevê a presença de ambos os conviventes em seu requerimento junto ao oficial de registro civil de sua livre escolha. (Prov. 37/2014 do CN-CNJ, art.  1º-A). Conforme mencionado, se o termo declaratório é autossuficiente e o registro no Livro E é facultativo, o termo é dotado de maior fé pública do que a escritura pública, como também economicamente parece mais atrativo, pois o valor dos emolumentos será 50% do procedimento de habilitação (Prov. 37/2014 do CN-CNJ, art.  1º-A, § 6º, inc. I), com margem para realização do procedimento de certificação eletrônica para definição precisa da data de início da relação convivencial.8 Outra questão correlacionada é que o registro no Livro E do Registro Civil de Pessoas Naturais não tem a oponibilidade erga omnes produzida pelo Registro Imobiliário, pois não gera obrigação a terceiros de consultar a sua base de dados. Ademais, o Registro Civil é fragmentado, estabelecido conforme o domicílio dos conviventes, não tendo uma base fixa e sólida de consulta, como o Registro Imobiliário. Por fim, o registrador civil deve resguardar a proteção de dados, o que leva muitas vezes a óbices à consulta por terceiros. O registro de imóveis tem por presunção e ficção o conhecimento por parte de terceiros, que não podem alegar o desconhecimento das informações ali apresentadas. A consulta é livre e imotivada à sua base de dados matricial. Todos os terceiros são obrigados a consultar, na medida em que os direitos reais têm como essência a característica da oponibilidade perante todos. No registro civil das pessoas naturais, os dados assentados devem ser informados e provados a terceiros, como o seu estado civil. A publicidade é informativa de seus assentos. O registro em Livro E gera eficácia perante terceiros, apenas quando o próprio titular informa os dados ali presentes, ou são obrigados a apresentar assentos reflexos, como por exemplo, casamento, com anotação do assento. Por consequência, obriga a anotações nos demais Livros do acervo registral, porém, não gera oponibilidade contra todos. Como o casamento tem presunção de veracidade, os cônjuges separados de fato devem fazer prova de que não mais estão casados, pois, estar-se-á diante de relação jurídico-formal. Por isso, as partes exigem a apresentação das certidões de separação e divórcio averbadas no assento de casamento, ou a de óbito, para entabularem relações jurídicas com aquele que foi casado, ou a declaração de separado de fato e prova dessa circunstância (CC, art. 1.547). A união estável no Livro E não tem estes contornos. Após o seu registro, os conviventes não têm a obrigação, por lei, de averbar esta dissolução no registro da união estável, pois a relação é fática e informal por essência e, portanto, não se presume (CC, art. 1.723). Feita estas considerações, o termo declaratório consistirá em afirmação, por escrito, de ambos os companheiros perante o ofício de registro civil das pessoas naturais de sua livre escolha, com a indicação de todas as cláusulas admitidas nos demais títulos, inclusive a escolha de regime de bens (CC, art. 1.725), e de inexistência de lavratura de termo declaratório anterior entre as mesmas partes. O termo passou a ser um título autônomo, por isso que a norma administrativa requer a prevenção da existência de termos anteriores. Trata-se, dessarte, de documento público, registral, com "status" maior que a própria escritura pública, fazendo prova plena (CC, art. 215, caput). A analogia com o art. 733 do CPC, realizada pelo Provimento, determina que são requisitos do termo de dissolução da união estável a participação de advogado ou defensor público, a definição dos bens comuns que se transmutarem em condomínio, ou ainda que devam ser partilhados. Ademais, deve constar de seu corpo, ou não, o acordo para pagamento de pensão alimentícia e a manutenção ou alteração do nome dos companheiros.9 O oficial de registro, após a formalização do termo, deve arquivá-lo em pasta própria, preferencialmente eletrônica, e abrir oportunidade para os companheiros optarem pelo registro no Livro "E", ou não. Caso optem pelo registro, o oficial deve enviar o título para o Registro Civil das Pessoas Naturais, ou então, caso tenha esta atribuição, fazer o registro. Inúmeras decorrências práticas do termo declaratório e os seus efeitos ainda serão levantadas pela doutrina. De fato, a inovação administrativa, apesar de conceder o amplo acesso a este meio de prova, de contornos ainda não definidos por completo, acabou por subverter o sistema, que sempre concedeu ao tabelião, a função de confeccionar títulos, respaldado na profilaxia notarial. Cabe sempre reflexão e só o tempo poderá gerar maturação com outras considerações apresentadas pela comunidade juridica. Sejam felizes! __________ 1 Art. 1º da lei 9.278/1996. 2 Art. 94-A da lei 6.015/1973, incluído pela lei 14.382/2022. 3 Art. 1º, §3º do Provimento nº 141/2023. 4 KÜMPEL, Vitor Frederico. Sistemas de transmissão imobiliária sob a ótica do registro, São Paulo, YK Editora, 2021. 5 KÜMPEL, Vitor Frederico, FERRARI, Carla Modina. Tratado Notarial e Registral: Tabelionato de Notas, 2ª ed., São Paulo, YK Editora, 2022. 6 Art. 6º da lei 8.935/94 7 2ª VRPSP - Pedido de Providências: 1089074-73.2022.8.26.0100 - MM. Juiz da 2ª Vara de Registros Públicos de São Paulo. Marcelo Benacchio - Data de Julgamento: 30/09/2022 Data DJ: 30/09/2022 8 Isto não foi aceito pelo Superior Tribunal de Justiça para a escritura pública, o que se refletiu no Provimento 37/2014 do CN-CNJ, art. 1º, § 4º, inc. II e III. Para constar a data de início da relação, devem os companheiros adotar a data da lavratura do ato notarial, somada à declaração de que esta reflete a verdade. 9 No Pedido de Providências, nº 0004621-98.2022.2.00.0000, proposto pela Associação de Direito de Família e das Sucessões - ADFAS -, no C. Conselho Nacional de Justiça, do teor da decisão do Corregedor Nacional, Min. Luís Felipe Salomão se extrai, do obiter dictum, o seguinte: "(...) parece evidente que a escritura pública declaratória e o termo declaratório de união estável são instrumentos distintos, que não se excluem, cuja faculdade de escolha é do cidadão, de acordo com a sua conveniência e oportunidade. Sobre a presença de advogado na lavratura dos títulos extrajudiciais de dissolução da união estável - escritra pública e termo declaratório - em observância interpretação complementar e por analogia às normas, há disposições legais que não permite a prática de determinados jurídicos sem a presença de advogado ou defensor público e que outros envolvendo interesses de incapazes e nascituros, não podem ser praticados no âmbito extrajudicial (CPC, art. 733, caput e §§)".
A Medida Provisória 1.162/2023, foi publicada em 14 de fevereiro de 2023, com o objetivo de restabelecer o conceito do Programa Minha Casa, Minha Vida e modificar outras legislações correlatas à implementação da política habitacional, como aquelas que tratam dos fundos financiadores - leis 8.677, de 1993, e 10.188, de 2001 -, bem como aquelas que cuidam de modernizar a formalização e o registro dos atos que envolvem o crédito imobiliário - leis 6.015, de 1973, 9.514, de 1997, 14.063 de 2020, e 14.382, de 2022 -, e, por fim, a medida "propõe revogar o programa antecessor instituído pela lei 14.118, de 2021, que poucos efeitos promoveu na direção de atender famílias de mais baixa renda". Uma das consideráveis mudanças ofertadas pela Medida Provisória nº 1.162/2023 foi o artigo 10, caput, e §§ 2º e 3º,1 que dispensa a vênia entre os cônjuges, ou entre os companheiros, na contratação de financiamentos para a aquisição ou melhoria de imóveis para moradia. Veja-se: "Art. 10. Os contratos e os registros efetivados no âmbito do Programa serão formalizados, preferencialmente, no nome da mulher e, na hipótese de ela ser chefe de família, poderão ser firmados independentemente da outorga do cônjuge, afastada a aplicação do disposto nos art. 1.647, art. 1.648 e art. 1.649 da lei 10.406, de 10 de janeiro de 2002 - Código Civil."  No Direito Romano, caso o casamento não seguisse a conuentio in manum, o patrimônio dos cônjuges deveriam ser distintos, havendo assim, uma independência entre eles. Ressalte-se que também, na época, vigorava o denominado matrimonia cum manu, que com base no princípio da absorção, o patrimônio que a mulher tinha ao casar era incorporado ao patrimônio do pater famílias. Por sua vez, no casamento sine manu, os bens trazidos pela mulher continuavam sob sua administração e domínio.2 As Ordenações Afonsina, Manuelina e Filipinas previam o casamento pela comunhão universal total de bens, e permitiam aos nubentes a livre estipulação do regime de bens. Com a entrada em vigor do Código Civil de 1916, estabeleceu-se quatro regime de bens, quais sejam: comunhão universal, comunhão parcial, separação de bens e o dotal. Por sua vez, sob a égide da Constituição Federal de 1988, o Código Civil de 2002 suprimiu o regime dotal, e manteve a comunhão universal, parcial e separação, inovando com a participação final nos aquestos. Quanto à disponibilidade do patrimônio e sua administração, o Código Civil de 2002 separa os atos em que cada cônjuge pode realizar livremente, sem que haja necessidade de autorização do outro (art. 1.642 do CC/2002) e aqueles em que o cônjuge não pode praticar sem o consentimento do outro (art. 1.647 do CC/2002). Nesse sentido, com o intuito de proteger o patrimônio familiar, a lei confere maior proteção aos casos de considerável valor econômico, exigindo, portanto, a anuência do cônjuge para a prática de determinados atos. Tal anuência é denominada de outorga uxória ou marital, que se caracteriza como uma forma de controle dos atos do cônjuge, nos regimes de comunhão, para proteção dos frutos comuns e benfeitorias. Cumpre notar que a vênia conjugal não existia em Roma e nem na Idade Média, sendo observada, pela primeira vez, nas Ordenações Filipinas. Dessa forma, a outorga ou vênia conjugal é apresentada como uma maneira de proteger a esfera patrimonial do cônjuge não participante de ato jurídico, além de desempenhar um papel voltado a evitar desgastes patrimoniais que comprometa a seara das pessoas que constituem a entidade familiar.3 Trata de instituto restritivo do poder de administração do casal, imposto por lei para a prática de certos atos. Sem a autorização do cônjuge ou companheiro, não estará legitimado o outro consorte a efetivar certos atos ou negócios jurídicos, ressalvado o regime da separação convencional, ou suprimento da vênia pelo autoridade judicial (CC, art. 1.647 e 1.648) Conforme mencionado, o artigo 10 da Medida Provisória 1.162/2023 dispensa a vênia conjugal na contratação de financiamentos para a aquisição ou melhoria de imóveis para moradia. Coordenadamente, a mulher é preferente para formalização do contrato e o registro no fólio real, no âmbito dos programas sociais definidos na lei 14.118/2021, art. 13, e Medida Provisória 1.162/2023 art. 10. Cabe o exame da função da vênia conjugal no casamento e na união estável para se verificar a vulnerabilidade criada para o patrimônio da família. Se a outorga conjugal, ou a autorização na união estável, visa à proteção do patrimônio familiar, não está arrimada à norma constitucional afastá-la de contratos relevantes, os quais versem sobre imóveis.4 Observe-se uma confusão do legislador entre o instituto da vênia conjugal e da aquisição conjunta, na medida em que a situação da vênia matrimonial está ligada ao fato de uma das partes ser proprietária e a outra apenas consentir nas transmissões ou onerações feitas pelo único titular. Portanto, afastar a aplicação dos artigos 1.647 a 1.649 nada tem a ver com a copropriedade, tendo relação direta apenas com a propriedade exclusiva de um e a autorização de outro para alienação ou oneração. Frisa-se que a vênia conjugal é necessária para os casos de alienação e não para a aquisição jurídico-real de bens imóveis. As restrições impostas nos artigos 1.647 a 1.649 do Código Civil cabem nos regimes em que há patrimônio comum do casal, quais sejam, o regime da comunhão universal e da comunhão parcial. Em relação ao regime de separação legal ou obrigatória de bens, os aquestos se comunicarão, justificando a exigência de outorga uxória, tendo em vista a adoção da Súmula nº 377 do STF, em que se comunicam os bens adquiridos na constância do casamento. Já na separação convencional, em que o intuito é exatamente a separação do patrimônio do casal, de forma que, desde o primeiro momento, a aquisição do imóvel no âmbito do Programa é realizada em nome apenas de um deles ou em condomínio por ambos, não é razoável que o patrimônio se transfira para um deles além das proporções anteriormente estabelecidas. Até mesmo na comunhão universal ou parcial, a restrição à outorga conjugal se mostra um problema, na medida em que implica em enriquecimento sem causa, quebrando a expectativa de divisão de patrimônio com o divórcio. Ainda, o § 2º do artigo 10 da Medida Provisória 1.162/2023, prevê a hipótese de o título de propriedade do imóvel adquirido, construído ou regularizado no âmbito do Programa na constância do casamento ou da união estável, ser registrado em nome da mulher ou a ela transferido, independentemente do regime de bens aplicável, nos casos de dissolução da união estável, separação ou divórcio. Assim, se pressupõe previamente que o casal não tem capacidade ou maturidade para exercer o seu poder conjunto de decisão, o que fere o livre planejamento e vedação a interferência do Estado ou de terceiros na comunhão de vida instituída pela família.5 Não há como predeterminar qual dos cônjuges ou companheiros terá renda ou patrimônio. De igual forma, não é possível pressupor se o casal será homoafetivo ou não. Posto isso, apesar da boa intenção do legislador ao promover uma maior proteção à mulher, criou uma nova forma de aquisição da propriedade com base no gênero6, e descumpriu as regras do Código Civil acerca do regime de bens, confundindo os institutos da vênia conjugal com a copropriedade. Sugere-se, para uma interpretação mais adequada, que os contratos e registros sejam efetivados em nome da mulher (autopercepção). No caso de casal homossexual (duas mulheres), automaticamente se instituiria um condomínio entre elas. Ainda, se o homem for comprovadamente o guardião, o título da propriedade do imóvel construído ou adquirido será registrado em seu nome ou, no caso de ambos anuírem expressamente que contribuíram para a aquisição do bem, o registro seria ser efetivado na titularidade dos dois, em condomínio. Portanto, não há qualquer relação com a vênia conjugal, a não ser em caso de alienação do bem. O próximo artigo da coluna seguirá com nova análise sobre a Medida Provisória 1.162/2023. Sejam felizes! __________ 1 Ressalte-se que o artigo 14 da lei 14.118/2021 previa parte dessa redação em seu artigo 14: "Nas hipóteses de dissolução de união estável, separação ou divórcio, o título de propriedade do imóvel adquirido, construído ou regularizado pelo Programa Casa Verde e Amarela na constância do casamento ou da união estável será registrado em nome da mulher ou a ela transferido, independentemente do regime de bens aplicável, excetuadas as operações de financiamento habitacional firmadas com recursos do FGTS. (Revogado pela Medida Provisória nº 1.162, de 2023) Parágrafo único. Na hipótese de haver filhos do casal e a guarda ser atribuída exclusivamente ao homem, o título da propriedade do imóvel construído ou adquirido será registrado em seu nome ou a ele transferido, revertida a titularidade em favor da mulher caso a guarda dos filhos seja a ela posteriormente atribuída. (Revogado pela Medida Provisória 1.162, de 2023) 2 Cf. ALVES, José Carlos Moreira. Direito Romano. 6 ed. Rio de Janeiro: Forense, 1997 e NADER, Paulo. Curso de Direito Civil. Rio de Janeiro: Forense, 2006. v. 5. 3 MATOS, Ana Carla Harmatiuk, PEREIRA, Jacqueline Lopes. Outorga conjugal e aval no casamento. Revista Brasileira de Direito Civil - RBDCivil | Belo Horizonte, v. 18, p. 103-123, out./dez. 2018. 4 DINIZ, Maria Helena. Código civil anotado. 17ª ed., 2ª tiragem, 2014, p. 1275. 5 CF, art. 226, § 7º, c.c. CC, art. 1.513 e 1.539, caput 6 KÜMPEL, Vitor Frederico, SÓLLER, Natália. Análise crítica da Medida Provisória 1.162/23 - Parte I, Migalhas. 28 mar. 2023, disponível aqui.
No dia 14 de fevereiro de 2023 foi publicada a Medida Provisória 1.162/2023 para reformular as regras do Programa Minha Casa, Minha Vida (anterior Programa Casa Verde e Amarela, instituído pela lei 14.118/2021) e alterar outras leis. Algumas disposições que modificaram regras do Direito Civil e do Direito Notarial e Registral merecem uma análise mais aprofundada a fim de se extrair as consequências práticas da Medida proposta. Neste espaço, dedicar-se-á ao estudo do art. 10, §§ 2º e 3º, a saber: Art. 10.  Os contratos e os registros efetivados no âmbito do Programa serão formalizados, preferencialmente, no nome da mulher e, na hipótese de ela ser chefe de família, poderão ser firmados independentemente da outorga do cônjuge, afastada a aplicação do disposto nos art. 1.647, art. 1.648 e art. 1.649 da Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002 - Código Civil. § 1º O contrato firmado na forma prevista no caput será registrado no cartório de registro de imóveis competente, sem a exigência de dados relativos ao cônjuge ou ao companheiro e ao regime de bens. § 2º Na hipótese de dissolução de união estável, separação ou divórcio, o título de propriedade do imóvel adquirido, construído ou regularizado no âmbito do Programa na constância do casamento ou da união estável será registrado em nome da mulher ou a ela transferido, independentemente do regime de bens aplicável. § 3º Na hipótese de haver filhos do casal e a guarda ser atribuída exclusivamente ao homem, o título da propriedade do imóvel construído ou adquirido será registrado em seu nome ou a ele transferido, revertida a titularidade em favor da mulher caso a guarda dos filhos seja a ela posteriormente atribuída. § 4º O disposto neste artigo não se aplica aos contratos de financiamento firmados com recursos do FGTS. Parte dessa redação já vinha prevista no art. 14 da lei 14.118/2021, sobre o Programa Casa Verde e Amarela1. A redação do §2º prevê que, quando o casal (casados ou em união estável) tiver adquirido o título de propriedade de imóvel no âmbito do Programa Minha Casa Minha Vida e dissolver a união ou o vínculo conjugal, o bem será registrado ou transferido para a mulher, independentemente do regime de bens estabelecido. O §3º, por sua vez, aduz que, existindo filhos do casal e a guarda sendo atribuída ao homem, a propriedade, na verdade, será registrada em seu nome. Caso a guarda seja posteriormente atribuída à mulher, a propriedade se reverterá em seu favor. Identifica-se, desde logo, uma série de problemas decorrentes do texto legal. Inicialmente, o estabelecimento de uma real desigualdade de gênero na busca de proteção à mulher. Muito embora se reconheça a boa intenção do legislador em proteger a mulher que, muitas vezes, apenas cuida do lar sem ter condições financeiras para manter seu próprio sustento após o divórcio ou, ainda trabalhando, lhe é atribuída a guarda de filhos menores, criou-se uma nova forma de transmissão da propriedade, ou de sua aquisição, com base no gênero. A igualdade de gênero está consagrada no art. 226, §5º da Constituição Federal, bem como no art. 1.511 do Código Civil, entre outros tantos dispositivos legais. A referida igualdade é substantiva e imputa isonomia de direitos e deveres. A propriedade está intimamente ligada à questão econômica e, no caso do programa em questão, tanto pode o homem quanto à mulher, ou mesmo ambos, ter custeado as parcelas do imóvel. A referida isonomia só implica desigualdade quando visa evitar um enriquecimento sem causa. Ademais, a lei não contemplou situações de casais homoafetivos ou de pessoas não binárias2. Na situação de um casal homoafetivo composto por duas mulheres sem filhos, por exemplo, não se saberia para qual das duas o imóvel seria transferido, criando-se uma discrepância entre elas. Caso elas permanecessem em condomínio equitativo, estariam também em desvantagem em comparação com a mulher do casal heteroafetivo que receberia a integralidade do bem, tudo a denotar que o gênero não pode ser forma de aquisição ou transmissão de propriedade. O mesmo ocorre na situação de um casal composto por dois homens. Caso não tenham filhos, não seria possível determinar para qual deles seria transferida a propriedade, presumindo-se, portanto, o condomínio entre eles; nesse caso, eles são privilegiados em comparação com o homem do casal heteroafetivo, que perderia sua fração sobre o bem. Ainda nesse cenário, se tivessem filhos, caso um deles tenha a integralidade da propriedade por ter a guarda dos menores, se posteriormente houver a reversão em favor do outro, teria ele direito à transferência do bem, na medida em que a lei prevê esse benefício expressamente para a mulher? Ademais, a guarda pode ser alterada inúmeras vezes, de forma que a propriedade seria transferida indefinidamente entre os ex-cônjuges ou companheiros. Também não houve qualquer previsão acerca da pessoa não binária, que acaba ficando desprotegida em qualquer cenário, visto que o texto legal menciona tão somente o casal composto por homem e mulher. Outro problema que se verifica é o descumprimento das regras do Código Civil sobre regime de bens, desconstituindo-se todas as seguranças estabelecidas. O Legislador confunde a copropriedade, situação em que ambos são titulares de domínio, com a situação da vênia matrimonial, em que uma das partes é a proprietária e o outro apenas consente nas transmissões ou onerações feitas pelo único titular. Afastar a aplicação dos art. 1.647 a 1.649 nada tem a ver com a copropriedade (comunhão), tendo relação direta apenas com a propriedade exclusiva de um e a autorização de outro para alienação ou oneração. Parece que o legislador pensou apenas nos regimes de comunhão, nos quais ocorreria a perda da fração de 50% por um dos cônjuges após a quebra do vínculo conjugal. Porém, não é nem um pouco razoável se vislumbrar a aplicação dessa regra para regimes de separação. Na separação convencional, a intenção do casal é, claramente, que não haja qualquer comunicação de patrimônio, de forma que, desde o momento da aquisição do imóvel no âmbito do Programa é realizada em nome apenas de um deles ou em condomínio por ambos (e não comunhão). Com o divórcio, não é razoável que o patrimônio se transfira para um deles além das proporções anteriormente estabelecidas, visto que a intenção da formalização do pacto antenupcial de separação de bens é justamente impedir tal comunicação de patrimônio. Na separação obrigatória, por outro lado, haveria, na verdade, uma quebra da proteção imposta por esse regime. A obrigatoriedade legal de separação visa proteger o patrimônio dos maiores de 70 anos, menores de 18 e daqueles com causas suspensivas da celebração do casamento (art. 1.641, CC); a previsão da possibilidade de transferência da integralidade do bem em favor do cônjuge que se encontra em uma dessas categorias desconstitui totalmente a tutela proposta pelo Código Civil, pouco importando o regime de bens para a aplicação da reversão de patrimônio. É possível observar o problema na hipótese da comunhão universal ou parcial.  Embora nesses regimes já exista o compartilhamento da propriedade desde o início da sociedade conjugal e uma expectativa de divisão de patrimônio com o divórcio, há também um desrespeito, não razoável, às regras da partilha, implicando em nítido enriquecimento sem causa. Imagine-se, ainda, na comunhão parcial, a situação de sub-rogação de patrimônio anterior ao casamento de um dos cônjuges para a aquisição na vigência da união. Seria possível a prova da sub-rogação na aquisição em âmbito do Programa para garantir a propriedade? Nesse caso, violar-se-ia também a regra sobre a preservação do patrimônio anterior ao casamento. Outra problemática é a confusão de institutos: a guarda, que se refere ao direito de família, com o direito real de propriedade. A aquisição da propriedade imóvel entre particulares, nos termos do Código Civil, pode ocorrer exclusivamente por sucessão, comunhão universal, acessão, usucapião ou por registro do título (arts. 1.238 e ss). Neste último caso, necessitar-se-á de título translativo da propriedade, tais como escrituras de dação em pagamento, compra e venda, permuta, doação, instituição de compromisso de compra e venda ou alienação fiduciária em garantia, conferência de bens, etc3. Conforme a Medida Provisória, o título translativo é o gênero e, em caso de dissolução de união estável ou casamento, é o gênero e a guarda independente do título consignar transmissão diversa. Para a aquisição da propriedade imóvel, nos termos do art. 1.245, é necessária a confecção de um título, de caráter obrigacional, que servirá como instrumento hábil para o registro no Registro de Imóveis4. Ainda, importante destacar que, para a transmissão da propriedade, o ato registral adequado a se praticar é o de registro stricto sensu, o qual tem o condão de constituir o direito real e materializar a transmissão da propriedade e a outorga de disponibilidade da coisa5. O ato de registro sctricto sensu somente pode ser praticado por previsão legal. A Lei dos Registros Públicos (lei 6.015/1973) prevê no art. 167, I um rol taxativo de títulos passíveis de registro. Assim, para que a definição de guarda constituísse um título hábil para registro de transmissão de propriedade, seria necessária a inclusão no rol da LRP da sentença que determinasse a guarda ou homologasse o acordo entre os genitores. Sem tal alteração, não é permitido aos registradores de imóveis a prática do ato, visto que eles estão adstritos ao princípio da legalidade. No mais, é importantíssimo analisar a situação da guarda compartilhada. O texto legal da Media Provisória afirma que a propriedade somente será transferida ao homem quando a guarda for atribuída exclusivamente a ele, ou seja, de forma unilateral. Nos termos do art. 1.583 do Código Civil, a guarda é estabelecida preferencialmente de forma compartilhada entre os genitores, podendo o casal, inclusive, estabelecer livremente o regime de visitas e convivência. É plenamente possível, por exemplo, que os menores residam uma semana com o pai e outra semana com a mãe, alternando constantemente. É possível, ainda, que os filhos residam de forma fixa com um deles e recebam visitas do outro. Assim, ainda que os genitores tivessem estabelecido a guarda compartilhada dos menores e eles residissem mais tempo com o homem do que com a mulher, ou ainda residissem de forma fixa com ele, o genitor não receberia a propriedade do imóvel, pois a guarda não lhe foi atribuída de forma unilateral. Se o objetivo do legislador era proteger a moradia do menor mantendo a titularidade do bem com quem ele residisse, o correto seria que a propriedade fosse transferida para o genitor que mais tempo remanescesse com o filho, visto ser a guarda um instituto jurídico com grande incidência fática. Por fim, deve-se considerar os aspectos tributários decorrentes das divisões e transferências. Sobre as transferências de bens imóveis entre vivos, incide o ITBI ou ITCMD (arts. 35 e ss. do CTN) a depender se o excedente das frações for transferido a título oneroso ou gratuito. Assim, sempre que a propriedade se reverter em favor de um único cônjuge, perdendo o outro a sua fração ideal garantida conforme o regime de bens adotado, o adquirente seria obrigado a recolher o ITBI ou o ITCMD. Numa leitura rápida do dispositivo sob comento, como o fato gerador de transmissão é o gênero ou a guarda, e de forma potestativa, parece não haver a incidência tributária, o que é de flagrante inconstitucionalidade. Seguiremos, na próxima coluna, com nova análise sobre a Medida Provisória nº 1.162/2023. Sejam felizes! __________ 1 Art. 14. Nas hipóteses de dissolução de união estável, separação ou divórcio, o título de propriedade do imóvel adquirido, construído ou regularizado pelo Programa Casa Verde e Amarela na constância do casamento ou da união estável será registrado em nome da mulher ou a ela transferido, independentemente do regime de bens aplicável, excetuadas as operações de financiamento habitacional firmadas com recursos do FGTS. (Revogado pela Medida Provisória nº 1.162, de 2023) Parágrafo único. Na hipótese de haver filhos do casal e a guarda ser atribuída exclusivamente ao homem, o título da propriedade do imóvel construído ou adquirido será registrado em seu nome ou a ele transferido, revertida a titularidade em favor da mulher caso a guarda dos filhos seja a ela posteriormente atribuída. (Revogado pela Medida Provisória nº 1.162, de 2023) 2 O gênero não binário já é admitido no RCPN em diversos estados: em São Paulo, pela decisão da 3ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça, no Proc. nº 1001973-14.2021.8.26.0009; na Bahia, pelo Prov. Conjunto nº 8 CGJ/CCI /2022-GSEC; no Rio Grande do Sul, Provimento nº 16/2022 da CGJ. 3 KÜMPEL, Vitor Frederico; FERRARI, Carla Modina. Tratado Notarial e Registral. São Paulo: YK, 2020. vol. 5, t. 1, vol. 1. p. 1069 e ss. 4 KÜMPEL, Vitor Frederico. Sistemas de Transmissão da Propriedade sob a Ótica do Registro. São Paulo: YK, 2020. p. 260. 5 KÜMPEL, Vitor Frederico; FERRARI, Carla Modina. Tratado Notarial e Registral. São Paulo: YK, 2020. vol. 5, t. 1, vol. 1. p. 155.
No apagar das luzes de 2022, foi publicado o artigo intitulado "A adjudicação compulsória na via extrajudicial" nesta coluna1. Neste interregno, o Congresso Nacional afastou certos vetos presidenciais, que tinham como alvo o presente procedimento extrajudicial, previsto no art. 216-B da Lei dos Registros Públicos2. Foram derrubados na sessão de 22/12/2022, os quatro vetos que restavam apreciar da Medida Provisória nº 1.085/2021, transformada na lei 14.382/2022. No presente artigo, examinar-se-á os efeitos da publicação dos vetos, os quais se relacionam à prescindibilidade do registro do compromisso de compra e venda e a exigência de ata notarial para a consecução do registro. O exame iniciará pela problemática do ingresso do título de compromisso de compra e venda, a sua cessão ou promessa de cessão, ou sucessão no fólio real. O projeto original, em seu art. 10 incluía o § 2º ao art. 216-B da Lei nº 6.015, de 31 de dezembro de 1973, ao que se transcreve, in verbis: "§ 2º O deferimento da adjudicação independe de prévio registro dos instrumentos de promessa de compra e venda ou de cessão e da comprovação da regularidade fiscal do promitente vendedor." As razões do veto eram de índole fiscal. O registro dos instrumentos de promessa de compra e venda ou de cessão prescindíveis, bem como a comprovação do pagamento do Imposto de Transmissão de Bens Imóveis e Direitos Reais sobre Imóveis - ITBI e da regularidade do pagamento de tributos federais e contribuições previdenciárias são relevantes nas garantias dadas para o crédito tributário e previdenciário, de acordo com o Ministério da Economia - extinto recentemente3. Não obstante, à razão enunciada subjaz o Direito Civil. A promessa de compra e venda, irretratável e irrevogável, celebrada por instrumento público ou particular, para constituir o direito real à aquisição, oponível a terceiros, depende do registro (CC, art. 1.417). É este direito real pelo qual se agracia a parte a intentar a adjudicação compulsória perante terceiros, se houver modificação nas partes originais do contrato (CC, art. 1.418). O Superior Tribunal de Justiça considera prescindível o seu registro, segundo o teor da Súmula 2394. Porém, o registro, além de  garantir a oponibilidade perante terceiros, gera uma segurança tanto para o compromissário comprador quanto para o promitente vendedor. O primeiro, com o registro, tem constituído o seu direito real de aquisição, o segundo, por sua vez, desonera-se de eventuais encargos decorrentes do imóvel (tributos, condomínio, etc)5. Ainda assim em paralelo, o Congresso Nacional rejeitou o veto da Presidência da República ao § 2º do art. 216-B da Lei dos Registros Públicos, incluído pela lei 14.382/2022, mantendo-se a desnecessidade de prévio registro dos instrumentos de promessa de compra e venda ou de cessão e da comprovação da regularidade fiscal do promitente vendedor6. O requerimento da adjudicação compulsória deverá, ademais, ser instruído com a comprovação da quitação do imposto de transmissão (Imposto de Transmissão de Bens Imóveis e de Direitos Reais - ITBI) ou de a sua isenção pela Municipalidade,. Vale lembrar que o Supremo Tribunal Federal, em julgamento com repercussão geral declarada, no Tema 1124, fixou a tese: "O fato gerador do imposto sobre transmissão inter vivos de bens imóveis (ITBI) somente ocorre com a efetiva transferência da propriedade imobiliária, que se dá mediante o registro"7. O mesmo Tribunal vai reexaminar a possibilidade de incidência do Imposto sobre Transmissão de Bens Imóveis (ITBI) sobre cessão de direitos relativos a compromisso de compra e venda de imóvel. O Plenário, por maioria de votos, acolheu recurso (embargos de declaração) do Município de São Paulo no Recurso Extraordinário com Agravo (ARE) nº 1294969, com repercussão geral (Tema 1124). Com a decisão, a Corte vai rediscutir o mérito da controvérsia levantada pelo Min. Dias Toffoli. Portanto, esta questão tormentosa será objeto de qualificação pelo registrador no procedimento extrajudicial de adjudicação compulsória. Cabe ressaltar, inclusive, que, no caso de impossibilidade de exigência do ITBI do contribuinte, os registradores de imóveis respondem subsidiariamente. A dificuldade da prova da quitação pode ser suprida pelo interessado por meio de procedimento simples de justificação, como previsto para usucapião (LRP, art. 216-A, § 15)8. Cabe a comprovação em procedimento de justificação administrativa perante o registrador de imóveis (CPC, art. 381, § 5º, rito previsto no 382 e 383). Recomenda José Osório de Azevedo Júnior, que no procedimento judicial alguns recibos antecedentes ao último (porque o derradeiro faz presumir quitados os anteriores - art. 322 do CC). Por analogia caberia a mesma solução9. O requerimento conterá, ainda, o pedido de notificação extrajudicial dirigida ao promitente vendedor, abrindo-se prazo de 15 dias úteis para que ele promova à lavratura da escritura pública final,. Caso se mantenha silente, tal ocorrência será certificada pelo Registrador, a fim de que o requerente possa se dirigir a um Tabelionato de Notas para lavrar a ata notarial. Por fim, no que tange à previsão da ata notarial o quadro é paradoxal. A ata notarial atribui segurança jurídica à relação compromissada, por meio da fé pública do tabelião de notas. Esta foi a razão do veto a exigir a ata notarial como requisito à adjudicação compulsória. O art. 11 do Projeto de Lei de Conversão, adotava o inciso III ao § 1º do art. 216-B da lei 6.015, de 31 de dezembro de 1973, a que se transcreve, in verbis: "III - ata notarial lavrada por tabelião de notas da qual constem a identificação do imóvel, o nome e a qualificação do promitente comprador ou de seus sucessores constantes do contrato de promessa, a prova do pagamento do respectivo preço e da caracterização do inadimplemento da obrigação de outorgar ou receber o título de propriedade;" Em contrapartida, pode-se alegar que  a exigência da ata notarial seria antieconômica, encareceria e burocratizaria o procedimento. Como explanado, o título de compromisso de compra e venda é plúrimo, podendo ser elaborado tanto por instrumento público quanto por contrato particular (art. 1.417, CC), ou seja, já é naturalmente desburocratizado. A exigência da ata notarial ao final para a realização da adjudicação compulsória poderia  afastar os interessados, por gerar custos e empecilhos a quem já cumpriu às obrigações pactuadas10. No entanto, o veto foi rechaçado em seu exame posterior pelo Congresso Nacional. Assim, permanece necessária a ata notarial11. A doutrina abalizada de João Pedro Lamana Paiva crê ter sido um avanço para segurança jurídica12. Concorda-se com o pensamento do referido autor, uma vez que a participação do Tabelião de Notas no procedimento é essencial para o equilíbrio do sistema. Para a finalização do compromisso de compra e venda, já é obrigatória a lavratura da escritura pública quando da quitação, para que se promova o registro da transmissão efetiva. O procedimento de adjudicação compulsória extrajudicial serve, justamente, para as hipóteses em que o promitente vendedor se recusa ou não procede à lavratura desta escritura, permitindo que o compromissário comprador vá diretamente no Registro de Imóveis solicitar a adjudicação. A inclusão da obrigatoriedade da ata notarial para que se promova a adjudicação compulsória é condizente com o procedimento comum de registro da transmissão, uma vez que torna compulsória a participação do tabelião de notas nesse processo, para a lavratura de um título que ensejará o registro. A ausência da ata notarial poderia abrir espaço para uma fraude no sistema, fazendo com que o promitente vendedor e o compromissário comprador "combinassem" de não realizarem a lavratura da escritura pública definitiva para que se socorressem da adjudicação compulsória extrajudicial direta, evitando os gastos com os emolumentos notariais. Portanto, a ata notarial não burocratiza o procedimento, mas sim o reequilibra, tornando-o condizente com o registro comum da transmissão pelo compromisso de compra e venda e evita burlas ao sistema do título e modo. Sugere-se, inclusive, como razoável, que seja cobrado por essa ata notarial o mesmo valor de emolumentos cobrados pela escritura pública do respectivo imóvel transmitido. Sejam felizes! Até a próxima coluna! __________ 1 KÜMPEL, V. F.; MADY, F. K. A adjudicação compulsória na via extrajudicial. Publicado em 13.12.2022. Consultado em 06.01.2022. 2 Segundo a notícia publicado na página eletrônica do Senado Federal. 3 As razões enunciadas para o veto foram, in verbis: "A proposição legislativa determina que o deferimento da adjudicação independeria de prévio registro dos instrumentos de promessa de compra e venda ou de cessão e da comprovação da regularidade fiscal do promitente vendedor. Estabelece, ainda, a revogação da a alínea 'b' do inciso I e o inciso II do caput do art. 47 da Lei nº 8.212, de 24 de julho de 1991, os quais dispõem, respectivamente, que será exigida Certidão Negativa de Débito - CND, fornecida pelo órgão competente, nos seguintes casos: I - da empresa: b) na alienação ou oneração, a qualquer título, de bem imóvel ou direito a ele relativo; e II - do proprietário, pessoa física ou jurídica, de obra de construção civil, quando de sua averbação no registro de imóveis, salvo no caso do inciso VIII do art. 30. Contudo, em que pese a boa intenção do legislador, a proposição legislativa contraria o interesse público ao dispensar a comprovação de regularidade fiscal para o exercício de determinadas atividades pelos contribuintes, o que reduz as garantias atribuídas ao crédito tributário, nos termos do art. 205 da Lei nº 5.172, de 25 de outubro de 1966 - Código Tributário Nacional. Ressalta-se que o controle da regularidade fiscal dos contribuintes, por um lado, exerce indiretamente cobrança sobre o devedor pela imposição de ressalva à realização de diversos negócios e, por outro lado, procura prevenir a realização de negócios ineficazes entre devedor e terceiro que comprometam o patrimônio sujeito à satisfação do crédito fazendário. Desse modo, a proposição legislativa está em descompasso com a necessária proteção do terceiro de boa-fé, o que resultaria no desconhecimento pelo terceiro da existência de eventual débito do devedor da Fazenda Pública, sujeitando a prejuízo aqueles que, munidos de boa-fé, fossem induzidos a celebrar negócio presumivelmente fraudulento, a teor do disposto no art. 185 da Lei nº 5.172, de 1966 - Código Tributário Nacional." 4 Transcreve-se o teor do verbete, a seguir: "O direito à adjudicação compulsória não se condiciona ao registro do compromisso de compra e venda no cartório de imóveis". 5 Nesse sentido, vide art. 167, II, 32 da LRP: do termo de quitação de contrato de compromisso de compra e venda registrado e do termo de quitação dos instrumentos públicos ou privados oriundos da implantação de empreendimentos ou de processo de regularização fundiária, firmado pelo empreendedor proprietário de imóvel ou pelo promotor do empreendimento ou da regularização fundiária objeto de loteamento, desmembramento, condomínio de qualquer modalidade ou de regularização fundiária, exclusivamente para fins de exoneração da sua responsabilidade sobre tributos municipais incidentes sobre o imóvel perante o Município, não implicando transferência de domínio ao compromissário comprador ou ao beneficiário da regularização.  6 Segundo a notícia publicado na página eletrônica do Senado Federal, in: https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2022/12/22/congresso-derruba-ultimos-vetos-a-mp-do-registro-de-imoveis 7 STF, RE nº 796.-376-SC, Relator Min. Marco Aurélio; Redator do Acórdão Min. Alexandre de Moraes, j. 05/08/2020, p. 25.08.2020. A norma não imuniza qualquer incorporação de bens ou direitos ao patrimônio da pessoa jurídica, mas exclusivamente o pagamento, em bens ou direitos, que o sócio faz para integralização do capital social subscrito. Portanto, sobre a diferença do valor dos bens imóveis que superar o capital subscrito a ser integralizado, incidirá a tributação pelo ITBI. 8 Diferentemente do procedimento extrajudicial de usucapião, previsto na Lei dose Registros Públicos no art. 216-A, para o registro é desnecessária a verificação da posse ad usucapionem, ou seja, a posse mansa e pacífica, ininterrupta conforme a espécies de usucapião. Basta a existência do título e a comprovação do adimplemento por parte do requerente, para que se supra a manifestação de vontade descumprida. 9 AZEVEDO JÚNIOR, José Osório de. Estudos e Pareceres em Direito Civil, São Paulo: Editora Singular, 2019 fls. 365-375. 10 As razões do veto da Presidência da República são, in verbis: "A proposição legislativa prevê que o pedido extrajudicial de adjudicação compulsória de imóvel objeto de promessa de venda ou de cessão poderia ser realizado no serviço de registro de imóveis da situação do imóvel e que deveria ser instruído com ata notarial lavrada por tabelião de notas da qual constassem a identificação do imóvel, o nome e a qualificação do promitente comprador ou de seus sucessores constantes do contrato de promessa, a prova do pagamento do respectivo preço e da caracterização do inadimplemento da obrigação de outorgar ou receber o título de propriedade. Entretanto, em que pese a boa intenção do legislador, a proposição contraria o interesse público, pois o processo de adjudicação compulsória de imóvel é instruído de forma documental, não havendo necessidade de lavratura de ata notarial pelo tabelião de notas. Assim, tal previsão cria exigência desnecessária que irá encarecer e burocratizar o procedimento, e poderia fazer com que o imóvel permanecesse na informalidade. Ademais, a possibilidade de adjudicação compulsória extrajudicial é um avanço, pois permitirá a entrega da propriedade ao promitente comprador que honrou com suas prestações e não consegue obter a escritura pública definitiva sem a necessidade de o judiciário ser acionado, pois basta a comprovação da quitação por meios documentais, o que pode ser feito diretamente no cartório de registro de imóveis." 11 Segundo a notícia publicado na página eletrônica do Senado Federal. João Pedro Lamana Paiva tem posição distinta daquela aqui defendida, assim disciplinada: "Quanto aos vetos derrubados do artigo 11, pode-se afirmar que modificam positivamente a adjudicação compulsória extrajudicial, pois trazem de volta para o procedimento a necessária figura do Tabelião de Notas, o qual exerce a atividade mais afeita à verificação das questões envolvendo o negócio jurídico de promessa de compra e venda que o requerente pretende efetivar ou, em não sendo possível, adjudicar compulsoriamente seu objeto. A participação do Tabelião não será mera formalidade, mas, muito pelo contrário, servirá para gerar mais segurança e regularidade ao procedimento, agregando a ele o olhar cauteloso acerca da possibilidade ou não de aplicação do instituto, visando a conformação do caso concreto ao título que servirá para integrar o pedido de regularização, de modo similar ao que hoje já ocorre com a usucapião extrajudicial (art. 216-A, I da Lei nº 6.015/73)". (In: Congresso Nacional derruba vetos da Medida Provisória 1.085, transformada na Lei nº 14.382/2022 - Considerações Preliminares. Publicado em 02/01/2023, no sítio eletrônico da ANOREG/RS, página: Artigo - Congresso Nacional derruba vetos da medida provisória nº 1.085, transformada na leu nº 14.382/2022 - Por João Pedro Lamana Paiva - Anoreg RS. Consulta em 04/01/2022. 12 PAIVA, João Pedro Lamana. Congresso Nacional derruba vetos da Medida Provisória 1.085, transformada na Lei nº 14.382/2022 - Considerações Preliminares. Publicado em 02/01/2023, no sítio eletrônico da ANOREG/RS, página: Artigo - Congresso Nacional derruba vetos da medida provisória nº 1.085, transformada na leu nº 14.382/2022 - Por João Pedro Lamana Paiva - Anoreg RS. Consulta em 04/01/2022.
sexta-feira, 27 de janeiro de 2023

Derrubada de vetos da MP 1.085 - Parte I

No dia 22 de dezembro de 2022, o Congresso Nacional derrubou quatro vetos da Medida Provisória 1.085, transformada na lei 14.382/2022. Na próxima coluna, observar-se-á as derrubadas de vetos relacionados à adjudicação compulsória extrajudicial, porém, neste artigo, serão analisadas as derrubadas dos vetos relacionados ao patrimônio de afetação no regime da incorporação imobiliária. O patrimônio de afetação, instituto extremamente complexo, é, em uma de suas vertentes, aquele ao qual é dada uma finalidade específica, restando segregado dos demais bens e direitos de seu titular, para que cumpra com a função que lhe foi estipulada. Segundo Rizzardo, afetar é "ligar um patrimônio a um empreendimento, a uma obrigação, a um compromisso" até que se finde o motivo para o qual ele foi instituído1. Nesse mesmo sentido, Caio Mário da Silva Pereira afirma, ainda, que afetar o patrimônio seria imobilizá-lo "em função de uma finalidade"2. O patrimônio de afetação no Brasil é amplamente ligado à incorporação imobiliária e foi inicialmente previsto no Ordenamento na Lei das Incorporações Imobiliárias (lei 4.591/1964), inserido pela lei 10.931/2004 que acrescentou à primeira o Capítulo I-A (arts. 31-A a 31-F). Com a inserção dos dispositivos à Lei nº 4.591/1964 tornou-se possível a instituição de patrimônio de afetação na incorporação imobiliária a fim de preservar os imóveis em construção, evitando que eles respondam por dívidas do incorporador que não estejam relacionadas à mesma incorporação à qual o bem pertence. Nasceu do famoso caso da ENCOL, incorporadora que faliu no início dos anos 2000 e prejudicou empreendimentos por todo o Brasil. Portanto, instituto extremamente benéfico ao consumidor. Mais recentemente, a Lei do Distrato (lei 13.786/2018), estimulou a utilização do patrimônio de afetação na incorporação imobiliária. A referida Lei instituiu uma regra específica de retenção de valores para as incorporações submetidas a patrimônio de afetação. Na hipótese de constituição de patrimônio de afetação no empreendimento, o contrato de compromisso de compra e venda poderá elevar a porcentagem de retenção de valores pelo empreendedor, em caso de distrato, para até 50% das parcelas já pagas. Estimula, portanto, o empreendedor a proteger o comprador, garantindo-lhe maior retenção. Desta forma, a instituição do patrimônio de afetação tornou-se muito interessante tanto ao empreendedor quanto ao consumidor. O empreendedor terá o patrimônio destinado à incorporação apartado de seu próprio, de forma que aquele não responderá pelas dívidas deste, existindo maior segurança de que haverá recursos suficientes para o término da obra e menos quebra da empresa responsável. O consumidor, por sua vez, terá mais segurança na aquisição do bem, que estará protegido de eventuais execuções por dívidas do empreendedor, não tendo o adquirente que se preocupar com a perda de seu investimento. Todas essas previsões ampliaram a utilização do patrimônio de afetação nas incorporações imobiliárias brasileiras. Por isso, a importância de analisar a derrubada de vetos sobre o assunto. Contextualiza-se o texto legal da Lei nº 4.591/1964 com a derrubada de vetos: Art. 31-E. O patrimônio de afetação extinguir-se-á pela:    I - averbação da construção, registro dos títulos de domínio ou de direito de aquisição em nome dos respectivos adquirentes e, quando for o caso, extinção das obrigações do incorporador perante a instituição financiadora do empreendimento [...] § 1º Na hipótese prevista no inciso I do caput deste artigo, uma vez averbada a construção, o registro de cada contrato de compra e venda ou de promessa de venda, acompanhado do respectivo termo de quitação da instituição financiadora da construção, importará a extinção automática do patrimônio de afetação em relação à respectiva unidade, sem necessidade de averbação específica. [...] - VETO DERRUBADO § 3º A extinção no patrimônio de afetação nas hipóteses do inciso I do caput e do § 1º deste artigo não implica a extinção do regime de tributação instituído pelo art. 1º da Lei nº 10.931, de 2 de agosto de 2004 - VETO DERRUBADO Apresenta-se, ainda, as razões dos vetos: Razões de Veto §1º: "(...) apesar da boa intenção do legislador, a medida contraria o interesse público, pois extingue o patrimônio de afetação quando do registro da compra e venda, ou seja, em momento anterior à entrega do imóvel, retirando da competência do incorporador a sua obrigação de entrega pronta e gerando um possível passivo de indenizações por obras inacabadas, o que pode trazer fragilidade ao ambiente de negócios." Razões de Veto §3º: "(...) a despeito da boa intenção do legislador, a proposição legislativa incorre em vício de inconstitucionalidade, pois, por emenda parlamentar, foi incluída matéria de conteúdo temático estranho ao objeto originário da Medida Provisória nº 1.085, de 27 de dezembro de 2021, tendo em vista que houve a extensão do regime de tributação diferenciado de que trata o art. 1º da lei 10.931, de 2004, em violação ao princípio democrático e ao devido processo legislativo, nos termos do disposto no parágrafo único do art. 1º, no caput do art. 2º e no caput e no inciso LIV do art. 5º da Constituição. (...) "(...) Ademais, cumpre ressaltar que a alteração destoa dos objetivos dispostos na referida Medida Provisória, que são essencialmente de cunho procedimental, com vistas à modernização, à simplificação e à agilização dos procedimentos relativos aos registros públicos de atos e negócios jurídicos, de que trata a Lei nº 6.015, de 31 de dezembro de 1973 - Lei de Registros Públicos, e de incorporações imobiliárias, de que trata a lei 4.591, de 16 de dezembro de 1964." Entende-se que a derrubada dos vetos foi assertiva. Sobre o §1º, importante destacar, desde logo, que a extinção do patrimônio de afetação de forma alguma desonera o incorporador da sua obrigação de entrega pronta da obra. Conforme exposto, o objetivo do patrimônio de afetação é preservar o comprador da perda do empreendimento por dívidas do incorporador e manter um capital ao incorporador no caso de desistência do comprador. Em nenhum momento a ausência do patrimônio de afetação exime as partes de suas obrigações (entrega da obra por parte do incorporador e pagamento do preço por parte do comprador). Tanto é verdade que é plenamente possível a instituição de uma incorporação imobiliária sem patrimônio de afetação. Outra observação importante é a de que, na verdade, a extinção do patrimônio de afetação já está prevista no próprio caput e inciso I do artigo, e não no §1º. A intenção do §1º, na verdade, parece ser procedimental, evitando a necessidade da dupla averbação - a da construção, registro dos títulos de domínio ou de direito de aquisição e a de extinção do patrimônio de afetação -, bastando a primeira para que se presuma extinta a afetação na matrícula do imóvel. Com relação ao §3º, não haveria um desvio do processo legislativo por se tratar de um tema de tributação. Muito embora a lei tenha indicado a permanência do regime de tributação diferenciado de que trata o art. 1º da lei 10.9313 mesmo no caso da extinção do patrimônio de afetação pelo art. 31-E, I, trata-se de mera regulamentação em conformidade com a lei tributária já existente. Não houve a criação de qualquer regime tributário diferenciado, mas simplesmente a confirmação da vigência do regime de tributação especial das incorporações imobiliárias - que já automaticamente se aplica às incorporações cujo patrimônio é afetado (art. 2º, II da lei 10.931) - ainda que o patrimônio de afetação se extingua pela averbação da construção, registro dos títulos de domínio ou de direito de aquisição em nome dos respectivos adquirentes. O regime tributário em si já havia sido criado pela Lei nº 10.931/2004 e já estava sendo aplicado às incorporações imobiliárias de patrimônio afetado nos termos da Lei nº 4.591/1964. A inclusão do §3º apenas sana a questão sobre o tempo de vigência desta aplicação quando ocorrer uma das hipóteses de extinção do patrimônio de afetação. Voltaremos na próxima coluna com as demais derrubadas dos vetos. Sejam felizes! __________ 1 RIZZARDO, Arnaldo. Condomínio Edilício e Incorporação Imobiliária. 3ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 204, p. 95 2 PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil. 24ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2011. v. 1. p. 333 3 Art. 1º Fica instituído o regime especial de tributação aplicável às incorporações imobiliárias, em caráter opcional e irretratável enquanto perdurarem direitos de crédito ou obrigações do incorporador junto aos adquirentes dos imóveis que compõem a incorporação. Art. 2º A opção pelo regime especial de tributação de que trata o art. 1º será efetivada quando atendidos os seguintes requisitos: I - entrega do termo de opção ao regime especial de tributação na unidade competente da Secretaria da Receita Federal, conforme regulamentação a ser estabelecida; e II - afetação do terreno e das acessões objeto da incorporação imobiliária, conforme disposto nos arts. 31-A a 31-E da Lei nº 4.591, de 16 de dezembro de 1964.
O ano de 2022 foi um ano de readaptação no Brasil pós-pandemia. Embora as restrições impostas por conta da Covid-19 tenham sido retiradas, muitas mudanças permaneceram. Além da mudança de costumes sociais voltados à prevenção e higiene, como uso de máscara, utilização de álcool em gel a todos os momentos, proibição de acompanhantes em muitos locais de saúde, entre outros, a vida profissional, inclusive no meio jurídico, foi marcada pelo "home office" permanente. Muitas empresas mantiveram os funcionários trabalhando à distância de forma definitiva, graças à possibilidade dos sistemas digitais para manter uma equipe em funcionamento à distância. No direito não foi diferente. A lei 14.382, de 27 de julho de 2022, foi, sem dúvidas, a mais impactante para a atividade notarial e registral. Tal lei alterou e inseriu inúmeros dispositivos na lei 6.015/1973 (Lei dos Registros Públicos), e em outras igualmente relevantes para a atividade, tais como a lei 13.465/2017 e a lei 6.766/1979. As novidades por ela trazidas ainda estão sendo amplamente discutidas, mas o que se observa desde já é a priorização que ela trouxe ao sistema eletrônico nas serventias extrajudiciais. O art. 1º instituiu sistema eletrônico de registros públicos (SERP) já com a ideia de unificar e modernizar os sistemas de registros públicos, para criar uma conexão não só entre todas as serventias do país, mas também entre elas e outros órgãos públicos. Além disso, o usuário também poderá solicitar certidões em qualquer serventia, já que todas terão acesso ao mesmo sistema. Por hora, está-se aguardando sua implementação, que deverá ocorrer em 2023. Mas o SERP é apenas um dos aprimoramentos digitais instituídos pela lei 14.382/2022. Foi instituída a recepção de títulos e a conservação dos registros obrigatoriamente em meio eletrônico (art. 1º, §§ 3º e 4º da LRP); a extração de certidões por meio repográfico ou eletrônico e possibilidade de sua impressão pelo usuário garantindo sua autenticidade (art. 19 da LRP). No registro de imóveis, a contagem de prazos para a emissão de certidões e alguns registros também foram reduzidos, justamente pela facilidade de emissão em meio eletrônico (art. 19 e art. 188 da LRP). No RCPN, igualmente houve uma priorização do meio digital para publicações e comunicações (art. 56, caput e §3º da LRP). No casamento, a recepção de documentos e a publicidade à habilitação deverão ocorrer agora em meio eletrônico, além da celebração que poderá ser feita por videoconferência (art. 67 da LRP). Até no Código Civil criou-se a possibilidade do estabelecimento empresarial virtual (art. 1.142 do CC). Mas, além de ressaltar a utilização da tecnologia, a lei 14.382/2022, trouxe várias outras novidades que com certeza vem sendo estudadas com carinho pelos juristas da área: alterações sobre condomínio em edificações e as incorporações imobiliárias; facilitação da mudança de prenome de sobrenome diretamente no RCPN; inserção de Livros no RTD; alterações no procedimento de dúvida registral; criação da adjudicação compulsória extrajudicial; mudanças na fraude à execução e averbações da Lei nº 13.097/2015; entre muitas outras1. O CNJ, em seus Provimentos, foi na mesma linha de utilização ampla da tecnologia. Em 2020 e 2021 já se tinha regulamentado a prática de vários atos notariais e registrais à distância, com utilização do E-Notariado, certificado digital, entre outros. Em 2022, os Provimentos relevantes para o extrajudicial seguiram esse viés. O Provimento nº 127 regulamentou o SIPE (Sistema integrado de pagamentos eletrônicos) para os serviços notariais e registrais e o Provimento nº 134 estabeleceu medidas a serem adotadas pelas serventias extrajudiciais em âmbito nacional para o processo de adequação à Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais, medida imprescindível com o incremento de armazenamento e circulação de informações nos sistemas eletrônicos das serventias. Dentre as demais legislações, não se pode esquecer da lei 14.309, que alterou o Código Civil e a lei 13.019/2014 para permitir a realização de reuniões e deliberações virtuais pelas organizações da sociedade civil, assim como pelos condomínios edilícios, e para possibilitar a sessão permanente das assembleias condominiais (arts. 1.353 e 1.354-A do CC). A lei 14.405, que alterou o Código Civil para tornar exigível, em condomínios edilícios, a aprovação de 2/3 dos votos dos condôminos para a mudança da destinação do edifício ou da unidade imobiliária, e a lei 14.451, para modificar os quóruns de deliberação dos sócios da sociedade limitada previstos nos arts. 1.061 e 1.076. Por fim, deve-se destacar a lei 14.398, que instituiu o documento de identidade de notários e registradores e de escreventes de serventias extrajudiciais. A ideia é que o documento siga o modelo de outros documentos profissionais, tais quais os emitidos para advogados, médicos e jornalistas, a fim de valorizar a categoria2. Agora, aguardamos o ano de 2023 com mais novidades positivas na atividade notarial e registral e a implementação do SERP. Desejo a todos um excelente fim de ano com muito estudo, foco e dedicação plena a aqueles que trabalham no extrajudicial e/ouse preparam para os concursos de outorga de delegação e que vem tornando a atividade notarial e registral um destaque na vida da sociedade brasileira. Sejam felizes! __________ 1 KÜMPEL, Vitor Frederico (coordenador), Breves Comentários à Lei n. 14.382. YK, São Paulo, 2022. 2 ANOREGBR, Titulares e funcionários de cartório passam a ter documento de identidade funcional, in ANOREGBR, disponível aqui [09 de dez de 2022].
terça-feira, 13 de dezembro de 2022

Adjudicação compulsória na via extrajudicial

O Projeto de Lei de Conversão da Medida Provisória 1.085/2021 aprovado, com vetos da Presidência da República, na lei 14.382, de 27 de junho de 2022, realizou inúmeras alterações na sistemática dos Registros Públicos. A finalidade das alterações foi modernizar e simplificar procedimentos e atos na esfera dos registros públicos de atos e negócios jurídicos contidos na lei 6.015, de 31 de dezembro de 1973 (Lei de Registros Públicos), e de incorporações imobiliárias, de que trata a lei 4.591, de 16 de dezembro de 1964. As modificações introduzidas advêm coordenadas com a lei 13.874/2019 (Lei de Liberdade Econômica) e 14.195/2021 (Lei de Melhoria do Ambiente de Negócios). Medidas arrimadas à desjudicialização de procedimentos não litigiosos e entre capazes de direitos disponíveis, iniciada com a Emenda Constitucional 45, de 2004. Criou-se, à época, o Conselho Nacional de Justiça, com competência constitucional para receber e conhecer das reclamações contra serventias e órgãos prestadores de serviços notariais e de registro que atuem por delegação do poder público ou oficializado, do qual deflui o poder de supervisão sobre os serviços registrais. A lei 14.382/2022 introduziu o art. 216-B à Lei de Registros Públicos, e criou a via extrajudicial facultativa para a adjudicação compulsória de imóvel objeto de promessa de venda ou de cessão, cuja efetividade se alcançará por procedimento administrativo no Registro de Imóveis da circunscrição territorial onde localizado o imóvel. O legislador, contudo, trouxe a novidade sem disciplinar as situações objetivas ou procedimento a ser seguido, o que exige do intérprete a integração normativa até a disciplina pela Corregedoria Nacional de Justiça ou pelas Estaduais.  Adjudicação é ato judicial, pelo qual se atribui à propriedade de imóveis entre partes.1 Já compulsória, em linguagem forense é o intuito de compelir alguém com o fulcro de ser praticado um ato., no caso por ato de origem da autoridade jurisdicional.2 Adjudicação compulsória é a substituição da carga volitiva diante do descumprimento de obrigação de fazer do compromissário comprador ou vendedor, cessionários e promitente cessionários, e ainda sucessores, a fim de compulsoriamente suprir esta inação. 3 O compromisso de compra e venda surgiu com o Decreto-Lei 58/1937, em decorrência da disfuncionalidade do art. 1.088 do Código Civil de 1916. O argumento para a adoção do sistema do título e do modo foi colocado a prova pelo tempo. Em verdade o sistema do título não era o ideal para o Brasil por suas características peculiares sendo mais seguro o sistema do título e do modo, em razão de unificar a propriedade do direito no registro. A necessidade de se dar publicidade para os direitos reais, justamente porque eles são, em sua própria natureza, direitos oponíveis a terceiros, foi instaurada em 1916. Era preciso um sistema que evitasse as fraudes e que garantisse a segurança às pessoas interessadas no imóvel. Assim, alçou-se o registro como a pilastra neste contexto, fazendo-o um repositório das informações atuais da situação jurídica dos bens imobiliários. O registro representava instituição que deveria exteriorizar a verdadeira situação do imóvel. O sistema do título, desta forma, poderia ter efeitos negativos, confundindo os interessados quanto à realidade do bem com a publicidade do bem. Com a entrada em vigor da lei 14.382/2022, novos institutos jurídico-registrais foram inseridos em relevantes leis, como aconteceu com a Lei de Registros Público, que incluiu a adjudicação compulsória, via extrajudicial. A desjudicialização criou, ao longo do tempo, institutos extrajudiciais como a adjudicação e usucapião. Ambas são materializadas no registro imobiliário. A diferença está em ser a usucapião forma de aquisição originária da propriedade, e a adjudicação compulsória,. pela via extrajudicial, derivada. Deste modo, depende do título conformado a partir do requerimento e dos documentos instrutórios, a prova do inadimplemento e a inexistência de litígios, para o ingresso na tábula. 4 Se houver terceiros interessados eventualmente prejudicados, o prosseguimento do procedimento será via judicial. Os contratos de arrendamento ou de locação com cláusula de vigência registrada, não impedem o registro da adjudicação compulsória. A propriedade do imóvel dará o direito de dispor ao adquirente, que poderá aguardar o término das relações contratuais para se imitir na posse. Todavia, o exercício do direito de preferência, nestes contratos, é concretizado pelo valor consolidado na via registral. O valor a ser depositado para o seu exercício gera uma medida de incentivo à declaração verdadeira quanto ao valor real do negócio com terceiro. Os contratantes naturalmente, devidamente aconselhados por advogado, aporão o valor real do negócio, independentemente de pagarem maior valor de tributo pela transmissão. Será um incentivo a não sonegação fiscal, porque, do contrário, o direito de preferência dos contratos de arrendamento, parceria agrícola e locação, será exercido pelo valor do negócio oferecido. Ademais, o promitente vendedor é também beneficiado pelo novo procedimento extrajudicial, no Registro de Imóveis. Isso porque, na medida em que houve o pagamento integral e imissão na posse não é razoável imputar obrigações ao alienante, o qual está despido dos poderes dominiais. Pela adjudicação compulsória, o vendedor transmite o imóvel para o compromissário comprador, extinguindo às obrigações a ele relativas, como tributos e contribuições condominiais, imputando-as ao titular de fato do imóvel. Logo, a situação do alienante se afasta da tese do Superior Tribunal de Justiça que aduz: "Havendo compromisso de compra e venda não levado a registro, a responsabilidade pelas despesas de condomínio pode recair tanto sobre o promitente vendedor quanto sobre o promissário comprador, dependendo das circunstâncias de cada caso concreto. 5 Do mesmo Tribunal, o entendimento firmado  na tese de que "o promitente comprador do imóvel e o proprietário/promitente vendedor são contribuintes responsáveis pelo pagamento do IPTU". 6 O oficial de registro de imóveis deverá sempre ficar atento ao eventual conluio entre as partes com o objetivo de não utilizar o instituto como burla à escritura pública, obrigatória (CC, art. 108), desrespeitando a necessidade de o compromisso de compra e venda ser legitimado pelo registro. A fraude é uma questão posta neste artigo, o que deverá ser motivo de atenção do oficial no trâmite, para não tornar o notário figura alheia ao sistema do título e do modo. A simulação é causa de nulidade no atual Código Civil (CC, art. 167), logo, é matéria a ser examinada pelo Registro de Imóveis no procedimento. Em caso de suspeita, deve obstar o procedimento e exigir elementos comprobatórios do contrário e, eventualmente, suscitar dúvida ao Juiz Corregedor Permanente. Assim, a adjudicação compulsória somente pode ter início com o silêncio ou a negativa da outra parte. Não é possível ainda delinear todos os efeitos de um instituto recentemente integrado no sistema nacional. É prematura conclusões mais profundas para um procedimento integrado ao Sistema de Registros Públicos recentemente. Contudo, o tempo dirá sobre a pujança do instituto para compromissários compradores e vendedores. Porém, é crível que o instituto tenha maior aplicabilidade aos compromissários vendedores na medida que não transmitam para a sua titularidade o instrumento para liberação do pagamento de impostos relativos ao imóvel, bem como obrigações propter rem, taxas e despesas. Isso posto, serão imputadas as obrigações para o adquirente, o que representa a grande efetividade a que o procedimento extrajudicial garantirá, tanto ao poder público como para os empreendedores e vendedores. Concluindo, a adjudicação compulsória é mais um mecanismo que visa garantir a efetividade e materialidade do sistema da veracidade no registro de imóveis, materializando a dignidade humana no registro e na publicidade registral. __________ 1 Adjudicação, em sentido geral, é o ato judicial, mediante o qual se estabelece e se declara que a propriedade de uma coisa se transfere de seu primitivo dono para o credor, que, então, assume sobre a mesma todos os direitos de domínio e posse, que são inerentes a toda e qualquer alienação (SILVA, De Plácido e. Vocabulário jurídico. 18ª ed. rev. e atual. por Nagib Slaibi Filho e Geraldo Magela Alves. Rio de Janeiro: Forense, 2001). 2 Como adjetivo, formado do latim compulsorius, de compellere, serve para designar toda ordem judicial, de caráter oficioso, que tem por intuito compelir alguém a praticar um ato processual ou a vir assistir a uma diligência, seja ou não seja parte da demanda do processo. Idem. 3 Vitor Frederico Kümpel e Carla Modina Ferrari, de outro lado, conceituam a adjudicação compulsória é tanto efeito e forma de aquisição da propriedade definitiva, quanto forma de extinção do contrato definitivo, na medida em que o juiz supre a omissão do promitente vendedor em outorgar a escritura definitiva (Tratado de Direito Notarial e Registral. Vol. 5, Tomo II. São Paulo: YK Editora, 2020, p. 1589). 4 Segundo Moacyr Petrocelli de Ávila Ribeiro Inclusão do art. 216-B à Lei nº 6.015/1973. In: Breves Comentários à Lei nº 14.283/2022: conversão da medida provisória nº 1.085/2021; coord. por Vitor Frederico Kümpel; organizadoras Giselle de Menezes Viana, Thaíssa Hentz de Carvalho. São Paulo: YK Editora, 2022, p. 188-189), "(...) pela natureza da adjudicação compulsória - modo derivado de aquisição da propriedade, cuja mutação júri-real somente ocorre com o registro do título...". 5 Tese julgada sob o rito do art. 543-C do CPC/73 - TEMA 886.   6 Tese julgada sob o rito do art. 543-C do CPC/73 - TEMA 122.
terça-feira, 13 de setembro de 2022

Dos editais de proclamas

A lei 14.382, de 27 de junho de 2022, alterou inúmeros dispositivos na lei 6.015, de 2022, a Lei de Registros Públicos, e de inúmeras outras, como na lei 4.591, de 1964; na lei 6.766, de 1979, no Código Civil, dentre outras. Trata-se de resultado do Projeto de Lei de Conversão originado da Medida Provisória 1.085, de 2021, cuja tramitação se deu Congresso Nacional, com emendas, no primeiro semestre de 2022. Tem por objetivo desburocratizar atos e procedimentos no serviço de registros públicos e da criação da plataforma dos serviços única e nacional, a SERP - Serviços Eletrônicos dos Registros Públicos. O presente artigo almeja abordar a questão dos prazos e da forma de publicação dos editais de proclamas, inseridos dentro do procedimento de habilitação para o casamento. Proclamar, do latim proclamare (gritar alto), que significa ato de proclamação, sendo, deste modo, forma de publicação feita em altas vozes ou a notícia que, assim, também se divulga.1 Proclamas, no sentido do Direito Civil, entende-se o edital, em que se divulga o noivado, sendo formalidade preliminar e necessária à celebração do casamento.2 A presente formalidade está inserida no procedimento de habilitação que é a cadeia de atos prévios à celebração do casamento, á feita pessoalmente perante o oficial do Registro Civil, com a audiência do Ministério Público. (CC, art. 1.526).3 A sua função é verificar o preenchimento dos requisitos para a constituição do vínculo matrimonial, quais sejam: a capacidade para a realização do ato (CC, arts. 1.517 a 1.520); a inexistência de impedimentos matrimoniais (art. 1.521) ou de causa suspensiva (art. 1.523); e a dar publicidade, por meio de editais, à pretensão manifestada pelos noivos, convocando as pessoas que saibam de algum impedimento para que venham opô-lo. É a concretização do princípio da publicidade, neste caso, ativa.4 Igualmente cabe-lhe a orientar os nubentes sobre os regimes de bens elegíveis para reger às relações econômicas durante o casamento, bem como fiscalizar e publicizar a futura constituição de entidade familiar (CC, art. 1.528). Logo, a verificação dos impedimentos e causas suspensivas deve ser efetuada pelo oficial de registro civil, como também pelos familiares e coletividade local. O instrumento legal para atingir este desiderato é o edital de proclamas, somado à declaração de duas testemunhas e dos próprios nubentes (CC arts. 1.525 e 1.526). Trata-se de ato dentro do procedimento de habilitação, cujo fulcro é promover a publicidade do negócio jurídico  a ser celebrado. Para tanto, deve se dar ciência a sociedade, inclusive ocasionais interessados, para a arguição de eventuais incapacidades, impedimentos ou causas suspensivas, evitando-se, assim, nulidades ou anulabilidades futuras à formação de famílias (CF, art. 226, § 7º). Para que os editais de proclamas cumpram o seu objetivo o Código Civil e a Lei de Registros Públicos impõem certas regras, que devem ser interpretadas em favor dos usuários. A primeira delas é a dupla publicação dos proclamas. Uma é a afixação em local ostensivo da Unidade de Serviço; a outra é a publicação na imprensa local, se houver, certificando-se o ato nos respectivos autos do processo de habilitação e lavrando o registro no Livro - D (LRP, art. 43 e 44).  O código civil em seu art. 1.527, caput, explicita:  "Estando em ordem a documentação e portanto, ultrapassada a primeira fase da habilitação com êxito; o oficial de registro (...)  extrairá o edital, que se afixará durante quinze dias nas circunscrições do Registro Civil de ambos os nubentes, e, obrigatoriamente, se publicará na imprensa local, se houver". Veja: Pelo Código Civil, deve-se afixar os editais e publicá-los na imprensa local. O art. 67, § 1º, da Lei de Registros Públicos aduz: "Se estiver em ordem a documentação, o oficial de registro dará publicidade, em meio eletrônico, à habilitação...". Logo, o comando legal é dar publicidade em meio eletrônico e não na imprensa local como determina o art. 1.528. Terminado o prazo de 15 dias úteis, não havendo oposição de impedimentos ou causas suspensivas, ele "(...) extrairá, no prazo de até 5 (cinco) dias, o certificado de habilitação, podendo os nubentes contrair matrimônio perante qualquer serventia de registro civil de pessoas naturais, de sua livre escolha, observado o prazo de eficácia do art. 1.532 da lei  10.406, de 10 de janeiro de 2002". O parágrafo único do art. 1.527 do Código Civil abre a oportunidade aos nubentes para requererem à dispensa da publicação dos editais. Pela Lei de Registros Públicos, em seu art. 69, alterado pela lei 14.382, de 2022, segundo à dicção da lei, "(...) nos casos previstos em lei, os contraentes, em petição dirigida ao oficial de registro, deduzirão os motivos de urgência do casamento, provando o alegado, no prazo de 24 (vinte e quatro) horas, com documentos." Assim, o registro do casamento na mesma data de seu pedido não se mostra possível, por interpretação lógica do art. 69 da LRP, com o seu art. 67. A dispensa de proclamas seria inútil nas modificações trazidas pela lei nova. Para que seriam as 24 horas úteis para se requerer a dispensa, se é possível o registro do casamento no mesmo  dia do pedido de habilitação? Ademais, os cinco dias úteis para a extração do certificado de habilitação concordam com o prazo para emissão de certidões dos assentos, determinados no art. 13, inc. I, da LRP. Neste caso, se a entrega puder ser antecipada aos nubentes, o registrador tem o dever em fazê-lo. Se houver impedimento ou arguição de causa suspensiva, o oficial de registro dará ciência do fato aos nubentes, para que indiquem, em 24 (vinte e quatro) horas, prova que pretendam produzir, com a remessa dos autos a juízo. Produzidas as provas pelo oponente e pelos nubentes, no prazo de 3 (três) dias se dará ciência para o Ministério Público, e ouvidos os interessados e o órgão do Ministério Público em 5 (cinco) dias, decidirá o juiz em igual prazo.5 Por fim, a contagem dos prazos deve se dar em dias úteis. O art. 9º, caput, da LRP, impõe a nulidade aos registros praticados fora do horário de funcionamento da serventia. Os seus parágrafos devem se estruturar com base no caput, já que buscam todos enunciar exceções à regra (Lei Complementar 95/1998, art. 11, III, "c"). Logo, o § 3º determina a contagem dos prazos de acordo com a legislação processual civil, segundo nova redação dada pela lei 14.382, de 2022, à Lei de Registros Públicos. Ademais, o § 1º determina aos registros o emprego de dias úteis, ressalvadas questões legais ou prazos em meses e anos. A partir de interpretação em favor do usuário do serviço de registros públicos, o casamento, modo de constituição de família formal e solene, deve dar o máximo de publicidade do evento a ser celebrado, qual seja, a contagem do prazo de afixação de proclamas por 15 dias úteis e a extração da certificação de habilitação em até 5 dias úteis, contados do término do prazo de afixação.6 Por esta razão, a V Jornada de Direito Civil, aprovou enunciado do art. 1.527, parágrafo único, do Código Civil, cujo teor reafirma que a publicidade do edital é da essência do casamento. Logo, interpretação pela qual se abafe a sua ocorrência não seria condizente com o presente instituto e os nortes legais.7 Posto isto, o prazo de quinze dias úteis a contar da afixação do edital em cartório (e não da publicação na imprensa),  entregará para os nubentes certidão de que estão habilitados a se casar dentro de noventa dias, sob pena de perda de sua eficácia.8 Trata-se uma característica ontológicas a distinguir da união estável, na esteira do exarado na fixação de entendimento dentro do Tema 809 do Supremo Tribunal Federal e corroborada na jurisprudência pátria.9 O casamento e a união estável são entidades familiares amparadas pela Constituição Federal, o que denota a inexistência de predileção pelo ordenamento jurídico por uma ou outra (CF, art. 226). Todavia, apenas o casamento (e não a união estável) representa ato jurídico formal e solene, pelo qual se presume o conhecimento do estado civil dos contratantes perante terceiros. É atributo que assegura aos interessados ter ciência quanto ao regime de bens, estatuto pessoa, patrimônio sucessório, etc. Deste modo, o edital de proclamas objetiva publicar a constituição de entidade familiar, publicado para quem tiver conhecimento do não preenchimento dos pressupostos tenha um prazo razoável para se manifestar. Portanto, não parece possível a exegese restritiva das partes quando sabidamente existe, no próprio ordenamento jurídico, regra jurídica geral que se amolda perfeitamente à tipicidade do caso , qual seja, o art. 9º, § 3º, da Lei de Registro Públicos, que estabelece a contagem do prazo em dias úteis, como sói a publicidade inerente ao casamento, a sua forma e solenidade. Deveras, é inadequada a utilização de interpretação de que, diante não previsão do Registro Civil das Pessoas Naturais no art. 9º, § 1º expressamente, para o preenchimento de lacuna existente. Ainda mais quando a exegese acaba por limitar ainda mais os direitos subjetivos, já que a adoção de prazo em dias corridos acarreta, inarredavelmente, em extinção mais rápida do direito da parte e da coletividade. __________ 1  SILVA, De Plácido e. Vocabulário jurídico 18ª ed. rev. e atual. por Nagib Slaibi Filho e Geraldo Magela Alves. Rio de Janeiro: Forense, 2001, p. 1.674. 2 Segundo Dr. Márcio Bonilha, a exigência da publicidade dentro do procedimento de habilitação objetiva a "adequada aferição dos requisitos legais, evitando-se a consumação de matrimônios ilegítimos, no quadro dos impedimentos e causas suspensivas existentes, cujas infrações são preventivamente afastadas". (Alvim Neto, José Manuel de Arruda; Clápis, Alexandre Laizo; Cambler, Everaldo Augusto. Lei de Registros Públicos Comentada. 2º edição. Rio de Janeiro: Forense. Edição do Kindle, 2019, p. 245)." 3 Atualmente, o procedimento de habilitação de casamento não conta com a vista do Ministério Público, a não ser que o membro do parquet local exija ou que haja incidente na habilitação. Na maioria dos Estados, o Ministério Público, por ato do PGJ, está dispensado de vista regular nos procedimentos de habilitação. 4 Nas palavras de Walter Ceneviva, o proclama é "forma de publicidade ativa, destinada a, transitoriamente, dar ciência a todos do povo que duas pessoas querem casar-se, propiciando ensejo de serem denunciados os impedimentos. O proclama deve referir, pelo menos: nome, data e local de nascimento, estado civil e domicílio dos pretendentes, nome de seus pais. O registro de proclama é escriturado cronologicamente, com resumo do que constar dos editais expedidos pelo registrador ou recebidos de outros (arts. 43 e 44). (in Lei de Registros Públicos Comentado, Walter Ceneviva, 1999, 13ª ed., p. 153). 5 A norma impõe motivos legais, considerados relevantes pelo legislador para dispensa do proclamas. Isto por causa de sua relevância para publicidade ativa inerente ao casamento. O MMº Juiz de Direito da 1ª Vara de Registros Públicos da Capital do Estado de São Paulo, Marcelo Benacchio, em Pedido de Providências recente, decidiu não ser por qualquer urgência esta dispensa (Processo 1036006-19.2019.8.26.0100, DJe de 07.05.2019 - SP), de modo que a responsabilidade dos oficiais de registradores ampliará com esta modificação legal. 6 A promulgação da Constituição Federal de 1988, com base no art. 226 gerou na doutrina, uma tendência de ampliar o conceito de família, "para abranger situações não mencionadas pela Constituição Federal. Fala-se, assim, em: ¦ Família matrimonial: decorrente do casamento;  Família informal: decorrente da união estável" GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil 3 - Responsabilidade Civil - Direito de Família - Direito das Sucessões. 9ª ed. São Paulo: Saraiva Jur. Edição do Kindle, 2022, p. 614". 7 Enunciado 513 da V Jornada de Direito Civil do Conselho da Justiça Federal, o qual se transcreve: "Art. 1.527, parágrafo único: O juiz não pode dispensar, mesmo fundamentadamente, a publicação do edital de proclamas do casamento, mas sim o decurso do prazo". O fundamento pelo qual se aprovou, é o seguinte: "O caput do art. 1.527 determina que, estando em ordem toda a documentação, deverá ser extraído um edital, com o anúncio do casamento entre os nubentes, com os nomes e qualificações dos mesmos. O edital será afixado no Cartório de Registro Civil, pelo prazo de 15 dias e, obrigatoriamente, na imprensa local, se houver. Por sua vez, o parágrafo único admite que, havendo urgência, o juiz poderá dispensar a publicação. As previsões de urgência vão desde a enfermidade grave de um dos nubentes (art. 1.539, CC), iminente risco de vida de um deles (art. 1.540, CC), bem como gravidez, viagem inadiável, ou outra causa, suscitada pela parte interessada, e avaliada pelo juiz como justo motivo, após manifestação do Ministério Público. Ocorre que, a finalidade da norma é dar ampla divulgação da pretensão de casamento dos nubentes, para fins de oportunizar a oposição de impedimentos matrimoniais (art. 1.522, CC) e das causas suspensivas (art. 1.523, CC) ou, ainda, motivos que causem a nulidade relativa do matrimônio, como o defeito de idade (ausência de autorização dos pais ou responsáveis ou não ter idade núbil, dentre outros). O casamento é ato público, e aberto ao público, tanto que quando o art. 1.534 afirma que a celebração se dará em cartório, de portas abertas, com a presença de testemunhas. De igual modo, se a celebração for em local privado ficará de portas abertas durante o ato. Sendo o matrimônio um ato jurídico complexo, formal (procedimento de habilitação) e solene (celebração), a publicidade é essencial para a validade do ato. Portanto, não se deve compreender a regra do parágrafo único como sendo dispensa da "publicação", mas sim, dispensa do "prazo" de 15 dias previstos no caput do mesmo artigo, de forma que, somente assim, restará coerente a interpretação com o sistema e com o objetivo finalístico da norma". 8 Idem, p. 648. 9 Um exemplo é a anulação decorrente da ausência de outorga conjugal em fiança (Súmula 332 do STJ). A fiança prestada por companheiro sem a autorização do outro convivente não gera anulabilidade, mesmo que formalizada em escritura pública. Foi o entendimento prolatado no REsp 1.299.866-DF, de relatoria do Min. Luis Felipe Salomão, julgado em 25/2/2014.
O ano de 2021 foi marcado por um sentimento de esperança, principalmente com a aplicação das vacinas contra a Covid-19 em todo o mundo, não sendo possível esquecer o impacto devastador da COVID-19 que já ceifou 616 mil pessoas só no Brasil. A pandemia, sem sombra de dúvida, marca o ingresso em uma nova era na qual o distanciamento social é regra, tendo antecipado progresso digital, comunicação à distância, teletrabalho e a otimização de tempo nunca antes verificada na história da humanidade. Além disso, 2021 foi o ano de reabertura e retomada de diversos concursos públicos para outorga de delegação em vários estados do Brasil. O primeiro edital1 foi publicado pelo Tribunal de Justiça do Estado de Mato Grosso do Sul, disponibilizando 60 serventias, sendo 40 para o critério de provimento e 20 para o critério de remoção. Em 14 de julho de 2021, foi a vez do Tribunal de Justiça do Estado de Goiás publicar o edital para Concurso Público de Provas e Títulos para Outorga de Delegações de Notas e de Registros Públicos, disponibilizando 292 vagas. Tanto o estado do Paraná, por meio do Mandado de Segurança nº 0060644-53.2021.8.16.0000, quanto o estado de Santa Catarina, reestabeleceram a retomada das atividades dos Concursos Públicos.2 O Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo divulgou no dia 09 de novembro de 2021 o Edital para o 12º Concurso Público de Provas e Títulos para Outorga de Delegações de Notas e de Registros Públicos do Estado de São Paulo, sem sombra de dúvida, um dos mais importantes dentre as onze edições anteriores tendo em vista a estagnação gerada dos anos de 2019 e 2020, nos quais nenhum edital foi publicado por força da pandemia. No que toca aos concursos de outorga de delegação, além das publicações dos editais, foram realizadas provas presenciais nos certames acima mencionados com absoluto êxito e sem que houvesse notícia de qualquer contaminação ou problemas gerados por força da realização de provas presenciais. Aos poucos, a retomada gradativa vem ganhando força para que as três fases (preambular, escrita e oral) possam ser realizadas de forma presencial, garantindo maior lisura aos concursos que, dificilmente, poderão ser adaptados ao novo modelo virtual de vida. Juridicamente, um dos principais assuntos comentados em 2021 é a PEC nº 471/05, de autoria do Deputado João Campos (PSDB-GO), em trâmite no Congresso Nacional, com o objetivo de alterar a redação do artigo 236 da Constituição Federal3. A referida Proposta de Emenda Constitucional foi aprovada em primeiro turno pela Câmara dos Deputados, em 26 de agosto de 2015. Diante da iminência de uma nova votação, diversos doutrinadores de renomes do direito apresentaram total repúdio em relação ao teor da proposta. Tive a oportunidade de me manifestar em 2013 no artigo "A PEC DA IMORALIDADE"4, por meio do qual explanei os argumentos contrários à "hereditariedade cartorial". Com a Constituição Federal de 1988 e a entrada em vigor da lei 8.935/19945-6, o recrutamento para o poder de gerenciar uma serventia extrajudicial se tornou extremamente meritocrático, por meio de concursos públicos de provas e títulos, essenciais para selecionar os candidatos mais capacitados para a prestação do serviço extrajudicial notarial e registral, diante da necessidade de capacidade técnica e profissional dos titulares da serventia. Dessa forma, uma das tentativas de violação ao art. 236, §3º da Constituição Federal é a PEC nº 471, que busca ressalvar da necessidade de concurso público os atuais responsáveis e substitutos, investidos na forma da lei, aos quais será outorgada a delegação, tentando restabelecer a "hereditariedade cartorial", ferindo inúmeros preceitos constitucionais. Além de exercerem relevante função jurídica social, os oficiais de registro e tabeliães são responsáveis pela qualificação dos títulos, instrumentalização da segurança jurídica e pela prevenção de litígios, seguindo os princípios norteadores da atividade notarial e registral, quais sejam: publicidade, autenticidade, segurança e eficácia dos atos jurídicos. Dessa forma, não poderia alguém, sem o devido preparo específico e necessário para gerir a atividade extrajudicial, assumir o caráter de delegatário.7 Apesar da existência de inúmeros cartórios deficitários, tendo em vista a falta de interesse dos candidatos em tais serventias, o concurso deveria ser aberto para o grupo específico interessado, afim de que os interinos alcancem a aprovação, de forma democrática. O maior argumento apresentado é exatamente o da impossibilidade de ser provido por concurso público "cartório deficitário", ou seja, aquela serventia não escolhida por candidato escolhido em concurso público ou renunciada quando o aprovado verifica da impossibilidade de se manter nela. Tal argumento é falacioso na medida em que o atual interino pode tranquilamente continuar interino da referida serventia, sem qualquer prejuízo para o cidadão, para o Estado e para o próprio interino. Muito pelo contrário, na medida em que o interino sofre um controle mais rigoroso que o titular, sendo por conseguinte, vantajoso para o Estado a mantença do estado de interino, tanto para serventias deficitárias, quanto para aquelas que aguardam a assunção de titular. A aprovação da referida PEC corresponde a um retrocesso, na medida em que efetivar-se-ão os atuais responsáveis ou substitutos que não passaram pelo crivo do concurso público e, portanto, não estão legitimados a exercer o papel de delegatário. Desde a primeira tramitação da PEC, há quase 20 anos, tenho propalado a sua inconstitucionalidade, que será reconhecida de maneira prévia ou mesmo de forma superveniente em sede liminar pelo Supremo Tribunal Federal. Muito embora o assunto seja importante, não pode tirar o verdadeiro foco daquele que busca a aprovação que é o estudo individual ou coletivo, sendo a preparação o elemento central da vida do estudante que visa alta performance para atingir um bom resultado nos concursos de outorga de delegação que proliferarão no ano de 2022. Desejo a todos um excelente fim de ano com muito estudo, foco e dedicação plena a aqueles que se preparam para os concursos de outorga de delegação e que vem tornando a atividade notarial e registral um destaque na vida da sociedade brasileira. Sejam felizes! __________ 1 Edital do V Concurso público para outorga e delegação de serviços notariais e registrais publicado em 18 de janeiro de 2021. 2 Em 04 de agosto de 2021, o Tribunal de Justiça de Santa Catarina publicou o comunicado de retomada do concurso, reestabelecendo as atividades do Concurso Público regido pelo Edital n. 5/2020, com a consequente alteração das datas previstas para a aplicação das provas objetivas. 3 Segundo a Constituição Federal de 1988, temos no art. 236, que os serviços notariais e de registro são exercidos em caráter privado, por delegação do Poder Público e, no § 3ºque o ingresso na atividade notarial e de registro depende de concurso público de provas e títulos, não se permitindo que qualquer serventia fique vaga, sem abertura de concurso de provimento ou de remoção, por mais de seis meses. 4 V.F. Kümpel, A PEC da imoralidade, 10 dez. 2013, in migalhas, disponível aqui. 5 A Resolução nº 81, do CNJ, de 9 de junho de 2009 teve por objetivo a unificação dos concursos públicos em todo o país, sendo de responsabilidade dos tribunais locais organizar e estabelecer o concurso. 6 O artigo 14 da lei 8.935/94, expõe os requisitos para a delegação e o exercício da atividade notarial e de registro: (i) habilitação em concurso público de provas e títulos; (ii) nacionalidade brasileira; (iii) capacidade civil; (iv) quitação com as obrigações eleitorais e militares; (v) diploma de bacharel em direito; (vi) verificação de conduta condigna para o exercício da profissão. 7 Ressalte-se que a PEC, além de ferir o princípio da isonomia, manteria interinos que foram alcançados a essa condição por parentalidade ou por outros interesses locais, ferindo o perfil democrático concebido na Constituição Federal.