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As coisas que tenho a dizer sobre o regime democrático

Atado aos cânones estatutários, qualquer advogado engajado com seus deveres profissionais deve nortear-se pela CF/88, que deve defender, assim como a ordem jurídica do Estado democrático de direito, os direitos humanos e a justiça social.

sexta-feira, 14 de maio de 2010

Atualizado em 13 de maio de 2010 16:23


As coisas que tenho a dizer sobre o regime democrático

Jayme Vita Roso*

Atado aos cânones estatutários, qualquer advogado engajado com seus deveres profissionais deve nortear-se pela Constituição (clique aqui), que deve defender, assim como a ordem jurídica do Estado democrático de direito, os direitos humanos e a justiça social. É o quadripé a que está atado ontologicamente. Essa tarefa lhe compete, como corolário da exclusividade de inscrição na OAB.

Através da Constituição, consensualiza-se que a ordem jurídica ancora-se no Estado democrático de direito sobre o qual se erigem as garantias individuais e as coletivas, inclusive as metajurídicas, interagindo-se os três Poderes: Executivo, Legislativo e Judiciário, para a arquitetura adquirir caráter próprio e peculiar do modelo jurídico adotado por opção no trajeto percorrido durante o percurso do árduo processo pré-constitucional.

Demarcadas as premissas dos deveres da OAB, que tem como plano rebatido os advogados regularmente inscritos, àqueles que são verdadeiramente os profissionais do direito e não bacharéis desta ciência, cabe-lhes, por corolário, pugnar pela boa aplicação das leis, pela rápida administração da justiça pelo aperfeiçoamento da cultura e das instituições jurídicas.

A democracia tem sua práxis peculiar. Tanto mais peculiar, segundo a história de sua implantação pelo regime republicano utilizado segundo o modelo norte-americano, respingado pela ideologia revolucionária francesa ou pela tradição inglesa na arte de ser/estar governo, ou mesmo um modelo híbrido de tudo que existe institucionalizado.

Há um processo autofágico das democracias, a partir da revolução bolchevista, ocorrida nos estertores da Primeira Guerra Mundial. Lacerante essa conflagração, decepou muitos paradigmas, constrangendo milhões de pessoas emigrarem em busca de uma quimérica mobilidade social em outros países e outros continentes. Atiçados pelos pungentes problemas humanos e sociais, tanto o fascismo como o nazismo, ambos socialistas, ofereceram-se como opções ao comunismo. Enquanto isso, a calamitosa crise econômica de 1929, de per si, sedimentou as bases para outra guerra, permeada por motivações étnicas ou racistas e por causas econômicas, na etiologia do pathos do capitalismo. Outra guerra: modificações no modelo capitalista, com a ascendência no poder mundial do Estado americano, graças ao seu famoso way of life e dos seus sonhos. Só que estes sonhos sustentavam um sistema feroz e dominador, que nenhuma lei antitruste conseguiu extinguir no cerne; sistema hipócrita, porque, enquanto in God we trust, o país apresentava-se como campeão da democracia, porém, entranhado de desigualdades raciais e sociais de causar pasma.

Se Goethe apregoava que "o pessimista se condena a ser expectador", a metamorfose nas raízes e nos costumes da sociedade ocidental acelerou-se, a ponto de valores e de paradigmas seculares sucumbirem varridos pelas ondas do progresso tecnológico, induzido pelo neocapitalismo pós-guerra.

De outro lado, o multiculturalismo, a imigração e as mestiçagens são resultantes da globalização que não se resume, menos se restringe à abertura de umas fronteiras físicas, porque ela ingressa no cerne, na medula e no coração das sociedades e, sobretudo, nas consciências.

É o começo de um mundo, no dizer de Jean-Claude Guillebaud, "quer nós queiramos ou não, seremos plurais e mestiços. Resta-nos tirar partido, sem demagogia e sem xenofobia" (Le commencement d'um monde, p. 10, Éditions du Seuil, Paris, 2008).

Até agora, não conseguimos quebrar as amarras com a ideologia do "inimigo interno" (criado pelo senador McCarthy), do "choque de civilização" ou do "eixo do mal" (David Frum, neo-conservador canadense, membro da equipe de W. Bush) ou do "fim da história" (Fukuyama): ela nos ata aos ideólogos norte-americanos comprometidos. Transmitem-nos pelas cadeias televisivas e pela subserviência dos jornais e das revistas e dos demais meios de comunicação brasileiros, o que não se passa no verdadeiro imaginário norte-americano, fazendo todos sucumbir à fantasiosa proteção nuclear que podem dar. A diabolização do terrorismo é parte integrante de um processo que, a partir do Patriot Act de 2001, engolfa qualquer crítica, até as responsáveis. Há o temor do enquadramento, da detenção sem culpa, ou mesmo por indícios incoerentes.

Formado este teatro ao ar livre, sem reação, porque o medo tiraniza consciências, passou-se a expandir a necessidade da segurança bem incrementada em escola mundial. Enquanto isso ocorreu, tanto Clinton quanto W. Bush, secundados pelos lenientes governos ocidentais, pelos ditadores orientais, pelos corruptos administradores e pelos pândegos governantes "abaixo do Rio Grande", deixaram correr livres as falcatruas financeiras, iconizadas com a Enron e com as discípulas, espalhando-se por todo o mundo.

Abriram-se os portais e os umbrais para o crime organizado reinar com absolutismo em todos os quadrantes do mundo, com ramificações em vários governos, pervertendo governantes, legisladores, magistrados, advogados, empresários e banqueiros. Quebrados os paradigmas, os valores éticos e cívicos, a família como instituição, as religiões enquanto geradoras de trevas para o desempenho pessoal nas sociedades, é complexa a tarefa de estancá-lo. A conferir, a precisa contribuição de Misha Glenny sobre o crime globalizado (McMafia, Crime without Frontiers, The Blodey Head, Londres, 2008, 426p.)

Será que, diante dessa visão escatológica, ao recordarmos Saviano, com seu "Gomorra", ousaríamos supor, como dizem os irlandeses, que "God often visits us but must of the time we are not at home" (Deus visita-nos com frequência, mas na maioria das vezes não estamos em casa)?

Pois é nessa democracia hipócrita que estamos nos habituando a viver e conviver também no Brasil. Tudo é fingimento. Está nos faltando gente que tenha a independência e a probidade moral/intelectual de Emmanuel Todd, para se questionar como Nicolas Sarkozy tenha podido se tornar presidente da república francesa, afirmando que ele é febril, agressivo, narcisista, admirador dos ricos e da América, bushista, incompetente em economia como em diplomacia, pois, enquanto Ministro do Interior, era capaz de exercer a função de chefe de Estado; suas provocações conseguiram causar incêndio nos arrabaldes (das cidades) como em todo o país (Après la démocratie, p. 11, Gallimard, Paris, 2008). Seguiu-lhe Alain Badiou, com adjetivos cruéis e ofensivos, tais como, vulgar, insignificante e outros tantos (The meaning of Sarkozy, Verso, Londres, 2008, 160p.)

Então, não é a dos outros e nem a que se esperava pelos 8.511.000 km² das terras brasis a que sonho.

Diante da crise global, nunca repetida em 80 anos, como dissertou e comprovou Carlos Alberto Teixeira de Oliveira (MercadoComum, nº 195, p. 58 a 64), nenhuma consciência pode seguir acreditando que o Congresso está aberto e não legisla o que interessa ao país, que o Executivo brinca de esconde-esconde com a quebradeira mundial e que a Suprema Corte continua a justificar como a mais polêmica, controvertida, inconsistente e aberta a dar entrevistas sobre casos em pauta.

Se os advogados quiserem, ou tiverem vontade, ou desvincularem-se dos interessados, ou deixarem de auditar questões sobre seus cuidados e fizerem valer suas vozes, otimisticamente, o país se reencontrará. Preencherão os vácuos deixados pelos políticos profissionais, se nos mostrarmos interessados na sociedade brasileira, em defender aguerridamente a ordem jurídica do Estado democrático de direito, os direitos humanos conspurcados e a justiça social abandonada ao léu, à vontade de qualquer esbirro, com farda ou sem ela.

Os advogados não podem hesitar, mesmo porque denúncias pífias não adiantam nem subsistem. Cá, como na França, como asseverou Todd, graças a esses defeitos que cometemos, se elegeram os três últimos Presidentes.

Concluindo, é nessa mescla ampla de diversidade de sintomas, onde se instalou a verdadeira crise de uma frágil democracia. Identificados os fatores respectivos, desde logo, precisamos combater seus maléficos efeitos. A história nem se repete, nem perdoa os invertebrados éticos. A história é reconstrução.

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*Advogado e fundador do site Auditoria Jurídica



 

 

 

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