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Duplo acerto da Academia Sueca

Finalmente, a Academia Sueca, depois de uma série de premiações sonâmbulas, acerta duplamente na premiação da literatura e da paz, respectivamente a Mário Vargas Llosa e Liu Xiaoabo.

quarta-feira, 13 de outubro de 2010

Atualizado às 08:01


Duplo acerto da Academia Sueca

Gilberto de Mello Kujawski*

Finalmente, a Academia Sueca, depois de uma série de premiações sonâmbulas, acerta duplamente na premiação da literatura e da paz, respectivamente a Mário Vargas Llosa e Liu Xiaoabo.

Vargas Llosa é velho conhecido nosso, romancista e ensaísta amplamente traduzido em português, colaborador regular do jornal "O Estado de S.Paulo", candidato a presidente do Peru, e volta e meia herói das manchetes em episódios rumorosos, como sua briga com outro Nobel famoso, o escritor colombiano Gabriel Garcia Márquez. Pegaram-se a socos, segundo algumas versões, por questões políticas, segundo as más línguas, por rabo de saia.

Llosa é especial, não só pelo seu brilho como escritor e intelectual, como por sua performance enquanto ser humano, afrontosamente autêntico, sem máscara nem vaidade, "contra vento e maré", nome de uma sua coletânea de ensaios. A premiação de Vargas Llosa faz honra ao homem além de suas obras. Seu pensamento tem por objetivo desmontar os lemas impostos como idéias, tanto na política, como na história e na cultura.

Sua falta de pose chegou a ponto de que ficou sinceramente surpreso ao saber que ganhara o Nobel de literatura. Ao que parece, ele não "preparou" sua premiação, como outro escritor latino-americano que admiro ainda mais do que ele, o mexicano Octavio Paz. O grande Paz mantinha uma rede mundial de cabos eleitorais como seus representantes inclusive no Brasil (os Irmãos Campos, de São Paulo), circunstância que em nada afeta seu mérito como um dos maiores expoentes intelectuais da AL.

Na verdade, Octavio Paz, Jorge Luis Borges e Mário Vargas Llosa formam a trindade sacrossanta do espírito latino-americano. O denominador comum entre os três autores reside na convicção de que a busca individual de cada um deles por sua própria identidade coincide com a busca da identidade de suas respectivas pátrias, o México, a Argentina e o Peru. Em 1923, Borges escrevia:

"Las calles de Buenos Aires

Ya son mi entraña."

No Brasil só na figura de Gilberto Freyre encontramos o correspondente desta realização individual de si mesmo como paralela à consciência da própria sociedade. O indivíduo é tanto mais produtivo espiritualmente, quanto mais imerso na vida da comunidade. Vargas Llosa é tanto mais ele mesmo quanto mais peruano, o mesmo valendo para os demais.

A premiação do chinês Liu Xiaobo como ganhador do Nobel da Paz repercutiu como uma bomba moral no seio do governo de partido único na China. O Estado chinês esperava comprar com o extraordinário boom da economia em seu país, a tolerância internacional para com a dura repressão que exerce sobre os dissidentes políticos. Não foi o que aconteceu. O presidente Obama esqueceu os interesses comerciais e insistiu na libertação imediata do pacífico professor de literatura, no que foi seguido por outros presidentes europeus e por ONGs do mundo inteiro. Só o Brasil se absteve e lavou as mãos. Mas a gritaria internacional de protesto está no ar e pode ocasionas danos irreversíveis ao sistema de poder no antigo Império do Meio. Comprovou-se aquela crença oriental, inclusive budista, de que nada é estanque no universo. Um simples evento cultural, como o Nobel, poderá abalar as relações entre a sociedade e o poder na China.

A opinião pública até hoje adormecida na China, pode ser sacudida e despertar agora, a menos que o "controle dos meios de comunicação" (bela hipocrisia para "censura") consiga abafar a repercussão do prêmio. Mas será sem violência? E a esposa de Liu, será mantida por quanto tempo em prisão domiciliar? E a notícia da premiação, quando chegará aos ouvidos do premiado? Quando da entrega do prêmio, o regime não será novamente incomodado pela exposição mundial de sua obstinação em proibir Liu ou sua mulher de receber as honras em Oslo?

Alguns especialistas em China, como o físico dissidente Fang Li-Zhi, contestam a idéia de que "o desenvolvimento econômico levaria inevitavelmente a uma abertura democrática na China" (Estadão, 11-10-2010). "Inevitavelmente", sem dúvida; mas também "dramaticamente", como todas as transformações históricas. E um drama nunca é tão rápido e instantâneo assim; decorre em vários atos demorados, a serem vividos com "paciência chinesa"; não apresentam resultados de uma hora para outra.

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*Ex-Promotor de Justiça. Filósofo e ensaísta





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