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A necessária reforma da legislação dos regimes especiais e o devido processo legal

Ricardo Pomeranc Matsumoto e Stefan Lourenço de Lima

Está em gestação no Bacen um projeto de reforma da legislação que trata dos procedimentos administrativos relacionados ao tratamento das instituições financeiras em crise.

quarta-feira, 12 de fevereiro de 2014

Atualizado em 11 de fevereiro de 2014 13:25

Conforme noticia a mídia brasileira, está em gestação no Bacen - Banco Central do Brasil, um projeto de reforma da legislação que trata dos procedimentos administrativos relacionados ao tratamento das instituições financeiras em crise.

Destaque-se que atualmente, a lei 6.024/74 é o principal diploma normativo que disciplina a aplicação das regras de insolvência para instituições financeiras. Sua incidência sobrevém para os casos de intervenções e liquidações extrajudiciais. Juntamente com referida lei, há o decreto-lei 2.321/87, que instituiu no ordenamento o RAET - Regime de Administração Especial Temporária, procedimento este que possibilita a intervenção por parte do Bacen na administração da sociedade bancária, cassando o mandato dos administradores e membros do conselho fiscal, sem que haja, todavia, a interrupção das atividades da instituição. Posteriormente à promulgação do decreto-lei 2.321/87, foi editada a lei 9.447/97, que buscou aperfeiçoar o regime de administração temporária, introduzindo as normas relativas à responsabilidade dos controladores, bem como estabelecendo a indisponibilidade de seus bens. Chamaremos o conjunto desses procedimentos legais de regimes especiais.

Merece aplausos a iniciativa da autoridade monetária, que demonstra seu engajamento e preocupação no aperfeiçoamento das regras do sistema financeiro. Todavia, caso a alteração proposta não reflita uma efetiva democratização dos processos de regimes especiais, assegurando o pleno exercício do direito de defesa e o respeito ao devido processo legal, não será possível se falar em avanço legislativo na matéria.

É certo que não se pode divergir sobre a importância dos mecanismos de intervenção estatal para saneamento de instituições financeiras em crise econômica, visando preservar a estabilidade do sistema financeiro nacional, evitando que corridas bancárias por parte dos depositantes se alastrem de forma descontrolada, provocando eventos capazes de disseminar o risco sistêmico pelo mercado. Difícil divergir, também, do fato de que o amplo tratamento legislativo da matéria, com ao menos três diplomas diversos, forma um sistema normativo desconexo e obsoleto, dotado de princípios que refletem uma conjuntura político-econômica diversa daquela que vivenciamos hoje em dia. A legislação carece atualmente de uma organização uniforme e estruturada, sendo que a sua consolidação em um diploma único de forma sistêmica pode trazer benefícios ao mercado financeiro nacional.

No entanto, elogiando a boa iniciativa do Bacen, é de se considerar que alguns pontos devem ter especial atenção para que a eventual nova legislação seja legítima e não padeça de alguns vícios presentes no atual sistema.

Em primeiro lugar, o projeto deve ser pensado de maneira transparente e com a participação da sociedade, incluindo os operadores do Direito. Um projeto tecnocrata, gerido apenas internamente na autoridade reguladora, que não preste a devida atenção aos interesses e direitos das várias partes envolvidas, dificilmente atingirá uma efetiva melhora do sistema.

Em segundo lugar, o projeto deverá dar especial atenção à obediência ao devido processo legal e aos direitos e garantias fundamentais. Efetivamente, a prática desta atual legislação tem demonstrado um total desrespeito na seara administrativa aos mais simples e comezinhos princípios constitucionais e processuais sobre a defesa dos envolvidos.

Veja-se o caso da lei 6.024. Promulgada em março de 1974, durante um dos períodos mais ameaçadores e sombrios da história política e social deste país, trata-se de um texto dotado de inúmeras imperfeições jurídicas, tanto de ordem material quanto processual, que refletem a mentalidade arbitrária presente naquele período. Os poderes outorgados pela lei 6.024/74 ao Bacen, para administração e coordenação dos procedimentos interventivos ou liquidatórios, em vários casos têm se mostrado de utilização despótica e acabam por suprimir uma gama de princípios processuais conferidos aos acusados que se encontram sob investigação (no caso os antigos controladores e administradores da instituição financeira sob regime especial), princípios estes que se encontram expressamente previstos na CF/88 e na legislação processual, tais como o devido processo legal, a ampla defesa e o contraditório.

Tome-se como exemplo das arbitrariedades o prazo de 5 dias para apresentação de alegações por parte dos ex-administradores do banco, referentes às conclusões apresentadas no relatório elaborado pela comissão de inquérito, conforme previsto no artigo 42 da lei 6.024/74. Além de não haver previsão para contagem em dobro do prazo para apresentação de referida defesa, tal como assegurado pela legislação processual civil quando da existência de procuradores distintos para os réus, o prazo de 5 dias é assaz exíguo para que estes ex-administradores possam se manifestar de maneira satisfatória em relação ao relatório produzido. Fato é que a ausência de parâmetros legais quanto às formas procedimentais leva à desordem, à confusão, à incerteza, sendo certo que a correta regulamentação processual representa uma garantia ao processo e aos indivíduos envolvidos em referidas situações.

Com efeito, enquanto o Bacen, por meio de sua comissão de inquérito instalada, possui o prazo de 120 dias para conclusão de seus trabalhos (prazo este que, na maioria das vezes, é prorrogado por mais 120 dias, tal como faculta o §2º do artigo 41 da lei), aos ex-administradores é facultado um curtíssimo prazo para apresentar suas explicações, tarefa esta que exige previamente uma completa análise das demonstrações financeiras, contratos de operações realizadas, correspondências, depoimentos e demais documentos juntados aos autos da investigação, inviabilizando assim o pleno exercício do direito de defesa. Ademais, a comissão de inquérito tem no mais das vezes se furtado a obrigação de prestar informações e autorizar acesso aos autos pelos acusados, privilegiando alguns agentes do processo em detrimento de outros, sem qualquer preocupação com o princípio da isonomia assegurado pela Constituição Federal.

Como agravante de tal situação, tenha-se em mente a dimensão que as instituições financeiras assumiram contemporaneamente, configurando-se na realidade como grandes conglomerados empresariais, dotados de distintas áreas operacionais, tais como banco comercial, banco de investimentos, corretagem, distribuição de títulos e valores mobiliários, securitização, asset management, atuando ativa ou passivamente em milhares de operações financeiras das mais diversas espécies, fato este que reforça a complexidade da análise da documentação elaborada. De tal modo, exíguos 5 dias para apresentar uma manifestação de suma importância dentro de uma fase fundamental no procedimento intervencionista mostram-se insuficientes e suprimem as garantias dos acusados na investigação.

Além de tudo, porquanto a legislação não faz menção a nenhum procedimento específico dentre os regramentos processuais existentes (procedimentos administrativos federais, processo civil, etc.), fato é que a autoridade administrativa ilegalmente acaba, não poucas vezes, utilizando-se das regras processuais que melhor lhe convém neste ou naquele momento processual, escolha esta que pode inclusive acarretar a nulidade de todo o procedimento, inutilizando-o para os fins a que se destina, em prejuízo, afinal de contas, da própria autoridade e dos cidadãos-depositantes-credores de uma forma geral, eis que o relatório final de tal procedimento investigativo seria o principal fundamento da ação de responsabilidade contra os ex-administradores da instituição liquidanda, nos termos do artigo 45 da mesma lei.

Assim, é imperioso que a nova lei traga expressamente previsões processuais justas e equânimes, instituindo a aplicação das regras tanto do CPC quanto da lei de Processo Administrativo Federal, como forma de adequar o texto aos princípios do devido processo legal e a outros direitos e garantias fundamentais, que devem ser mandatoriamente observadas pelas autoridades administrativas.

De fato, não se esgota aqui a lista de aperfeiçoamentos que podem ser introduzidos na legislação (outro ponto importante que não cabe nesta pequena reflexão e que será abordado em outro momento está relacionado à necessidade de se dar maior transparência à atuação do Fundo Garantidor de Créditos e à relação muitas vezes nebulosa estabelecida com o Bacen, os interessados e as instituições, bem como aos momentos de conflito de interesse existentes ao assumir a posição de credor e agente participante das soluções adotadas). Enfim, é certo que, após longa vigência, mais do que alterações pontuais, as leis que disciplinam os regimes especiais devem passar por uma completa reformulação, que reflita uma intensa mudança de princípios orientadores, com vistas a proteger o sistema financeiro, mas sem esquecer o respeito efetivo aos princípios constitucionais do devido processo legal, da ampla defesa e do contraditório.

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* Ricardo Pomeranc Matsumoto é advogado do escritório Costa, Waisberg e Tavares Paes Sociedade de Advogados.





* Stefan Lourenço de Lima é advogado do escritório Costa, Waisberg e Tavares Paes Sociedade de Advogados.

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