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Uma espúria mancha no acervo paulista

O quadro "O Casamento Desigual", atribuído a Quentin Massys, integra o acervo do Museu de Arte de São Paulo - MASP.

quarta-feira, 19 de março de 2014

Atualizado em 18 de março de 2014 21:35

A perda de propriedade pelas famílias judias, incluindo obras de arte, durante o período nazista é uma importante questão moral e jurídica. Incontáveis famílias e suas propriedades foram dizimadas pelo Holocausto, e a uma tentativa de reconexão com o passado é almejada por meio da recuperação de obras perdidas em confiscos ou em virtude de vendas forçadas.

O quadro "O Casamento Desigual", atribuído a Quentin Massys, integra o acervo do Museu de Arte de São Paulo - MASP. Este quadro estava sob domínio dos herdeiros de Oscar Wassermann, durante o regime nazista, os quais foram compelidos a se desfazer da obra, por meio de um leilão realizado em 1936, com o fito de angariar fundos para pagar a insidiosa taxa Reichsfluchtsteuer. Esta taxa era exigida pelo Estado Alemão das famílias judias para permitir a emigração em razão da persecução racial vigente à época.

A obra permaneceu na Alemanha nos pós-guerra, até ser doada pelo barão Thyssen-Bornemisza em 1965 ao MASP. Segundo relatos, desde 2008, os herdeiros da família Wassermann tentam um contato com o MASP, de maneira amigável, mas sem nenhuma resposta.

Por sugestão nossa, o Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico - CONDEPHAT foi acionado para intervir no caso, o qual afirmou não ter a competência para definir a propriedade da obra. O advogado contratado para representar a família, Henning Kahmann, vem tentando negociar a devolução do quadro aos seus legítimos proprietários, nos termos entabulados pelo que ficou conhecido como Washington Principles1 (princípios concernente às obras confiscadas pelos nazistas publicados no âmbito da Conferência de Washington sobre Propriedades na Era do Holocausto).

Entendemos que a recuperação desta obra artística transborda a questão moral e incide na esfera jurídica, em virtude do vício na cadeia dominial da referida obra, com o consequente dever de identificação e restituição aos seus atuais e legítimos proprietários, nos termos dos citados Princípios.

Esta questão merece uma conduta mais séria e responsável por parte do MASP, que queda silente frente a uma justa e legítima reivindicação sobre o domínio de uma obra que foi extraída de seus proprietários em funestas circunstâncias. Esta não é apenas uma questão de restituição de bens. Estas obras são, muitas vezes, a única ligação das famílias remanescentes aos entes queridos mortos no Holocausto. A pilhagem de bens culturais durante a Segunda Guerra Mundial foi um componente essencial do genocídio nazista, e violou o direito internacional que, de acordo com princípios de Nuremberg, constituiu crime de guerra e crime contra a humanidade.

Deste modo, trata-se de um imperativo que se impõe não só ao MASP mas a todas as esferas governamentais, de dar efetividade ao comandos instituídos pela Convenção de Washington.

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1 https://www.lostart.de/Content/03_Koordinierungsstelle/EN/WashingtonerPrinzipien.html

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* Ari Marcelo Solon é advogado do escritório França Ribeiro Advocacia e professor da Faculdade de Direito da USP.



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