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Violência obstétrica

Não se pretende debater os benefícios do parto normal e nem os inconvenientes da cesariana e sim a análise jurídica da medida proferida judicialmente.

domingo, 20 de abril de 2014

Atualizado em 17 de abril de 2014 11:15

A decisão da Justiça do Rio Grande do Sul, determinando que uma mulher grávida de 42 semanas fosse submetida a uma cesariana contra sua vontade, reacendeu o debate do direito da mulher decidir a respeito do próprio parto. A médica que atendeu a paciente optou pela realização da cesariana com a justificativa de que o bebê estava sentado e que poderia ser asfixiado durante o parto normal, além do que a gestante havia feito duas cesarianas, circunstância que poderia comprometer seu útero. A gestante se recusou, assinou o termo de responsabilidade e deixou o hospital. A médica, no entanto, procurou o Ministério Público que, com base na argumentação e documentos apresentados, pleiteou a medida que foi judicialmente concedida. Várias manifestações deflagraram em todo país em solidariedade à gestante que se viu obrigada a ter o filho por via cirúrgica.

Não se pretende neste espaço debater os benefícios do parto normal e nem os inconvenientes da cesariana e sim a análise jurídica da medida proferida judicialmente, ora em comento.

O tema carrega especial interesse, pois enfrenta o problema da autonomia da vontade do paciente, um dos princípios que compõem o tripé bioético.

Na relação médico-paciente, após ter sido diagnosticada determinada moléstia, nasce o conflitante dilema que se estabelece entre o profissional da saúde, preparado tecnicamente para o exercício de seu mister e o paciente, que integra esta relação como parte interessada em definir os procedimentos diagnósticos e terapêuticos a serem adotados.

O atual Código de Ética Médica, introduzido pela resolução do Conselho Federal de Medicina, que levou o número 1931/2009, traz em seu capítulo IV uma regulamentação destinada à proteção dos Direitos Humanos e, taxativamente, estabelece no artigo 24: Deixar o médico de garantir ao paciente o exercício do direito de decidir livremente sobre sua pessoa ou seu bem-estar, bem como exercer sua autoridade para limitá-lo.

Mais adiante, no artigo 31, veda ao médico desrespeitar o direito do paciente ou de seu representante legal de decidir livremente sobre a execução de práticas diagnósticas ou terapêuticas, salvo em caso de iminente risco de morte.

A indagação reiterada constantemente procura saber até onde alcança a autonomia da vontade do paciente. É sabido que o médico é dotado de conhecimento especializado sobre determinada área e sua palavra é de vital importância para a solução da enfermidade apresentada e o procedimento a ser adotado de forma eficaz, com baixo ônus financeiro e um tempo diminuto.

Pode, às vezes, não coincidir com a opinião do paciente, que opta por um determinado procedimento, em razão da liberalidade existente no "Pacient Self-Determination Act", da lei americana. Esta parceria de decisão que se forma a respeito do tratamento mais adequado nada mais é do que a conjugação das alternativas de ações apresentadas pelo médico e a escolha livre e autônoma do paciente.

Se, por ventura, for anunciada somente uma possibilidade para o atendimento, em razão de um quadro que possa colocar em risco a saúde ou a vida do paciente, não há que se falar no exercício do direito da autonomia da vontade. E, se ocorrer a recusa ao procedimento sugerido, pode até ser invocada a tutela judicial para autorizar a prática do ato.

No caso ora em discussão, a documentação médica recomendava a realização da cesariana, tanto para proteger a mãe como o nascituro, que corriam risco de morte. O nascituro, conforme se extrai do regramento pátrio, apesar de não ser detentor de capacidade jurídica, pois a adquire com o nascimento com vida, desde a concepção recebe a proteção jurídica da lei civil e penal, compreendendo o nascer com dignidade, saúde e a tutela estatal necessária.

No instante em que ocorre o atendimento, forma-se entre paciente e médico um dever jurídico e um dever contratual. Essa vinculação acarreta uma dependência de proteção, de confiança onde fica expresso o cuidado especial que a ocorrência exige. O dever jurídico surge em razão da própria obrigação advinda do exercício médico. O contratual não é somente aquele que brota de uma disposição escrita entre as partes, mas compreende também aquele em que o médico se apresenta como um profissional garantidor e protetor daquela vida humana. A partir desta premissa fica legitimado a lançar mão de meios judiciais para fazer prevalecer um procedimento adequado para o paciente, sem qualquer visão paternalista ou absolutista e sim com o compromisso do bem-estar daquele que necessita de assistência à saúde, escudado pela ética da responsabilidade médica.

O direito à vida ou à saúde foi erigido à categoria de primeira geração e cabe ao Estado estabelecer sistemas protetivos para sua defesa. Aplica-se o pensamento esboçado por Foucault quando estruturou a finalidade da biopolítica: o poder do Estado é cada vez menos o direito de fazer morrer e cada vez mais o direito de intervir para fazer viver.

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* Eudes Quintino de Oliveira Júnior é promotor de Justiça aposentado, mestre em Direito Público, com doutorado e pós-doutorado em Ciências da Saúde. Advogado e reitor da Unorp - Centro Universitário do Norte Paulista.



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