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Deficiência na Suprema Corte

Renato Sant´Ana

A deficiência, assim como a origem étnica ou social, a tendência religiosa ou ideológica, a orientação sexual ou qualquer particularidade, não é condição válida para designar-se um membro da Suprema Corte.

quarta-feira, 11 de junho de 2014

Atualizado em 10 de junho de 2014 16:37

Será válido que a nomeação de um ministro para a Suprema Corte seja produto de um lobby? Ainda, será da ordem democrática que corporações influenciem a designação de um membro do STF? São simples questões que, espera-se, têm o condão de suscitar uma reflexão acerca da escolha daqueles que devem zelar pela ordem constitucional. Examinemos um caso, revestido de aparente ingenuidade e, a partir dele, cada qual abstraia o próprio entendimento sobre o assunto que, sem dúvidas, é da maior relevância para o desejável Estado Democrático de Direito.

Sim, parecia ingênuo. Lá por 2011, surgiu em redes sociais um mal articulado lobby em favor de um juiz, apresentado como alguém que poderia REPRESENTAR as pessoas com deficiência no Supremo Tribunal Federal. O assunto não foi levado a sério ou, ao menos, não foi acolhido por gente sensata. Porém, as circunstâncias atuais fazem que, no mínimo, ponhamos pensamento na matéria: está por abrir uma vaga no STF; vai aposentar-se um ministro odiado por um governo que nomeará seu substituto. Ademais, o lobby de 2011 - oxalá, ainda mal articulado - ressurgiu, inclusive tentando usar (para não dizer "manipular") as entidades que congregam pessoas com deficiência no país. Por isso e muito mais é ocasião de discutir-se a forma de designação dos membros do STF. Enfatizo, o exame de um tema-tópico permite abstrair um entendimento geral.

QUESTÃO ELEMENTAR: que deveria ter em mente o chefe do executivo ao escolher alguém para membro da Suprema Corte?

O reduzido número de 11 ministros compõe o STF. Prima facie, lá deveriam estar os 11 mais distinguidos conhecedores do Direito em nosso país. Porém, desde logo, sabe-se que não necessariamente o maior conhecedor é o mais apto para integrar aquele colégio; tampouco existe meio seguro para estabelecer quem são os maiores conhecedores. Nas condições atuais, a escolha tem um acentuado (talvez excessivo) caráter discricionário.

Na inconveniência e, também, na impossibilidade de exaurir o assunto, apresento dois critérios unicamente: um positivo; outro, negativo. É plausível que esperemos da presidência da República que busque, para futuro membro do STF, alguém que, por um lado, tenha grande saber jurídico e também reúna "experiência pertinente" e, por outro, não carregue (saliente-se) nenhum tipo de "bandeira". Ou seja, alguém com grande cultura jurídica e, no máximo possível, isenção. Tal proposição contém um critério positivo (o saber jurídico e a "experiência pertinente") e um critério negativo (o distanciamento de interesses privados, quer dizer, a inconveniência de nomear alguém que entre na Suprema Corte como representante de corporação, segmento social ou o que seja).

Não há excesso em lembrar um vício em voga no Brasil. Agentes governamentais (das três esferas da federação) e grupos oportunistas - uns e outros em flagrante contubérnio - pretendem estabelecer cotas para solucionar qualquer coisa. Eis dois exemplos: em Minas Gerais, um presidente da denominada Comissão de Enfrentamento ao Crack, com mandato de deputado, propôs ao seu governo estadual reservar 10% (dez por cento) das vagas, nos concursos públicos, para dependentes químicos. Outro: a Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara Federal deu parecer favorável à tramitação de uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC) que cria cotas raciais para deputados federais, estaduais e vereadores (regresso ao pré-Estado). Não existe discussão séria acerca do assunto. E agora aparece uma proposta de "cota informal" para o STF, isto é, sem propor a positivação da norma, pretende-se que o governo adote o critério de reservar uma cadeira na Suprema Corte para o representante de um dado segmento social.

Por ingênuo que pareça, o fato deve, sim, ser objeto de reflexão; afinal, infelizmente, há sinais de que sejamos mais propensos a tornar moda o que não presta e menos a valorizar o que é virtuoso. Reitero, esse exame permite abstrair um entendimento geral. Veja-se a armadilha que o tal lobby oculta.

 

O insidioso argumento da campanha é:

(a) um "representante" dos deficientes no STF concorre para a promoção da igualdade das pessoas com deficiência; e

(b) só o preconceito impediria que tal candidato fosse nomeado. Falsos ambos, mas examino apenas o primeiro.

Questão: ser pessoa com deficiência é bastante para entender a imensa complexidade do assunto? Ora, a "deficiência" tem de ser reconhecida como fenômeno social de alta complexidade cuja compreensão depende de um olhar multidisciplinar. Não, realmente ter uma deficiência não é bastante, assim como não basta ser mulher para tratar com profundidade as "questões do feminino". Ou alguém dirá que qualquer cantora de funk poderia abordar a matéria com profundidade? Igualmente, não basta ser brasileiro para ter clareza sobre os problemas nacionais. Ou alguém convidaria um apresentador de TV qualquer como conferencista em um evento para analisar problemas conjunturais do país? Está visto o óbvio. Ter uma deficiência não é condição suficiente para compreender o fenômeno.

Segunda questão: será condição necessária? Não, assim como não é preciso ter um tumor para ser competente oncologista, não é necessário ter uma deficiência para alcançar grande conhecimento da matéria: basta ter capacidade e estudar muito. (Já se vê que não se trata de um assunto banal nem de um tema do interesse exclusivo de um grupo.)

Fica claro, pois, que "ser deficiente" não é condição bastante nem condição necessária para ter compreensão profunda do "fenômeno social da deficiência". Eis a armadilha: está havendo, sim, uma tentativa de cooptar as entidades que congregam pessoas com deficiência e seus membros individualmente, além de apelar ao sentimentalismo da sociedade, a tomar posição favorável à designação de um suposto representante das pessoas com deficiência no STF. Ou seja, além de apresentar um critério vicioso de designação dos membros da Suprema Corte, o lobby oculta um engodo. O que qualificaria alguém como legitimo representante das pessoas com deficiência? Ora, por um lado, não é cabível pensar que o segmento social constituído de pessoas com deficiência tenha, sequer, uma identidade como tal: não tem nenhuma característica de "corporação", nenhuma coesão, nem sequer um problema compartilhado por todos, mas interesses difusos, eis que se trata de um contingente notadamente plural, inexistindo convergência prática entre, por exemplo, surdos e paraplégicos. (Isso contraria, sabidamente, o discurso corrente, máxime do governo federal.) Por outro lado, por mais que quisesse, o beneficiário do lobby não representaria ninguém lá. E deveria? Qual é a tarefa de um ministro do STF?

Para quem considerar a "deficiência" assunto ignoto para o STF - no que haverá no mínimo boa dose de razão - oportuno será lembrar a Lei 9868/99, que promove a introdução formal, em nosso ordenamento, da figura do "amicus curiae", contemplando a possibilidade de determinados órgãos ou entidades se manifestarem perante o STF acerca de matéria que, levada a julgamento, requer mais do que conhecimentos jurídicos. Trata-se, portanto, de um instrumento de que se podem socorrer os ministros da Suprema Corte (que não se confundem com oráculos), quando instados a julgar matéria que carregue aspectos para eles estranhos. Nesse panorama, afastada a "ingenuidade" de pretender perfeição, é de afirmar-se: existem, sim, meios democráticos para que qualquer segmento social dialogue com o STF, sendo absolutamente descabida e antidemocrática a proposta de que haja, naquela Corte, representantes (de quem quer que seja).

Em suma, a "deficiência" - assim como a origem étnica ou social, a tendência religiosa ou ideológica, a orientação sexual ou qualquer particularidade - não é condição válida para designar-se um membro da Suprema Corte, dado não garantir nem fazer parte da qualificação exigível a um ministro. Outrossim, é contrário à ordem democrática que um integrante do mais alto colegiado tenha o encargo de representar alguém, já que a tarefa do STF - sem perder de vista demandas sociais - não é conciliar interesses, mas dar respostas técnicas.

Por fim, pequeno desafio aos bacharéis. A formação jurídica subtraiu-nos o direito à ingenuidade. Se existe algo que interessa a toda pessoa de bem é o resguardo do Estado Democrático de Direito. E ninguém deveria ter mais clareza sobre isso que os bacharéis. Até porque no extremo oposto (na supressão da democracia) lugar não há para operadores do direito. Que é que estamos fazendo em defesa da ordem democrática? Parafraseando Nelson Rodrigues, toda indiferença será castigada.

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*Renato Sant'Ana é bacharel em Direito, psicólogo e assessor jurídico da FREC - Federação das Entidades de Cegos do Rio Grande do Sul

 

 

 

 

 

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