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Coisa de índio

Alberto Esteves Ferreira Filho e Andreia de Andrade Gomes

Seja no meio urbano ou na arte feita em ocas, inspirações e referências continuam sendo possíveis, mas reproduzir sem autorização continua sendo ilícito e limite entre tais referências deve ser observado caso a caso.

quarta-feira, 5 de novembro de 2014

Atualizado em 4 de novembro de 2014 16:16

Em recente viagem ao Mato Grosso, para desenvolvimento de uma pesquisa de campo sobre grafismos indígenas, a designer Antonia Souza visitou a aldeia dos Kamayurás, no Alto Xingu, onde notou algo curioso e que lhe chamou a atenção, posteriormente relatado a seus advogados.

Ali acontecia o Kwarup, uma das mais importantes cerimônias do Xingu para homenagear e se despedir dos mortos, que são representados por toras de madeira com o mesmo nome. Os kwarups, presos ao chão, são pintados pelas famílias dos falecidos. Ao final, lançam-se os kwarups às águas para que as almas sejam libertadas, finalizando-se o período de luto.

O cacique anfitrião dos Kamayurás, junto de seu grupo, recebeu diversas outras etnias em sua aldeia. Por tradição, os integrantes de cada uma delas tinham seus corpos pintados com grafismos característicos, representando suas coletividades. Ao ver que alguns índios de diferentes etnias haviam feito desenhos iguais ou muito similares a dos Kamayurás, a irritação deles foi tremenda. Havia uma identificação com algo que não pertencia aos outros, uma apropriação não autorizada de elementos próprios tão intrinsecamente conectados aos Kamayurás. Quanto aos aspectos visuais, um plágio!

Antonia havia levado do mundo "dos brancos" amostras de grafismos usados na cidade, aplicados em estampas de roupa, papéis e artigos de decoração. Ao apresentar seus exemplos, em especial aqueles que eram visualmente parecidos aos desenvolvidos pelos moradores da aldeia, a indignação dos índios foi menor, talvez pela incompreensão do que aqueles suportes representavam, mas certamente porque não sentiram sua honra ofendida.

Voltando ao mundo que muitos não índios consideram civilizado, todo dia uma nova cópia é noticiada. É cópia de cordão, de sapato, de estampa, de layout. O autor, índio ou não, tem todo o direito de se sentir ofendido, de reclamar, de impedir cópias não autorizadas e o aproveitamento parasitário.

Ainda que haja algumas peculiaridades de proteção e forma de exploração previstas em lei, as criações do espírito, ou seja, aquilo que a mente humana puder criar e aplicar, são passíveis de proteção para todos. O Brasil e nada menos que outros 167 países são signatários da Convenção de Berna, que garante um padrão mínimo de proteção autoral ao redor do mundo, sem nem mesmo analisar as legislações locais específicas, inclusive, para os brasileiros, os artigos constitucionais aplicáveis e a lei de direitos autorais.

Vale destacar que para os índios, na forma de seu Estatuto, uma lei federal de 1973, todos os direitos e benefícios da legislação comum lhes serão aplicáveis sempre que possível, inclusive a capacidade de proteção de sua arte.

Sobre o direito moral do autor, é importante observar que ele está intrinsecamente conectado à sua criação, à sua honra, sendo, portanto um direito personalíssimo, que garante a possibilidade de reivindicar sua autoria. Junto dele vem a capacidade de exploração patrimonial, aspecto que pode ser objeto de transferência para terceiros, seja por licença, ou por cessão.

Para os índios, em razão de características sociais e antropológicas peculiares, em especial a ampla capacidade de identificação com a sua coletividade, normas excepcionais permitem que o direito do autor seja, de forma originária, um direito coletivo, sendo atribuído ao grupo. Desta forma, o grupo que poderá decidir sobre a forma de utilizar a obra, deterá direitos para protegê-la contra abusos de terceiros e deverá ser sempre reconhecido como criador.

Os índios, portanto, inclusive grupos étnicos de forma coletiva, poderão se insurgir contra o uso não autorizado de suas obras, como qualquer outro autor, e gozarão dos mesmos direitos, inclusive possibilidade de requerer a apreensão de materiais que reproduza criações de forma não autorizada e ingressar em juízo para obtenção de indenizações por danos patrimoniais e morais.

Inspirações e referências continuam sendo possíveis, sejam elas baseadas no urbano ou na arte feita em ocas. Reproduzir sem autorização continua sendo ilícito e o limite entre tais referências e a real infração deverá ser observada caso a caso.

Entre os brasileiros, índios ou não e todo o resto do mundo, continuaremos com o ímpeto da proteção de autoria em comum, pela simples semelhança de sermos pessoas.

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*Alberto Esteves Ferreira Filho é advogado na área de Propriedade Intelectual do escritório  TozziniFreire Advogados.

*Andreia de Andrade Gomes é sócia na área de Propriedade Intelectual do escritório  TozziniFreire Advogados.

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