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Morte anunciada, por Eudes Quintino de Oliveira Júnior

Morte anunciada

A autonomia do ser humano possibilita a tomada de decisões de acordo com sua vontade, com exceção dos casos de colidência com interesses maiores e tutelados legalmente.

domingo, 9 de novembro de 2014

Atualizado em 7 de novembro de 2014 12:56

Adeus a todos meus queridos amigos e à família que amo.
Adeus, mundo. Divulguem boa energia.
Brittany Mayard

Brittany Mayard, jovem de 29 anos, acometida por um agressivo câncer no cérebro, de forma consciente e voluntária, anunciou ao mundo sua morte, que seria assessorada por uma empresa que cuida de doentes terminais (Compassion & Choices - Compaixão e Escolhas). O evento ocorreu no estado de Oregon (EUA), que permite a prática do suicídio assistido, com acompanhamento por médicos e a utilização de medicamentos para evitar o prolongado sofrimento antes da morte.

Sua decisão foi propagada pelo mundo e detonou sentimentos favoráveis e contrários, tocou o cerne da finitude humana, criando um labirinto de dúvidas e incertezas. Antes que qualquer culpa lhe fosse atribuída, declarou-se inocente pelo seu ato, pois a vida, em razão da gravidade da doença, não tinha mais sentido e a opção pelo suicídio assistido foi justamente para valorizá-la, buscando uma morte digna. Por ter vivido intensamente, relutou muito e travou verdadeiro confronto da inteligência com a realidade em que vivia.

Foi o suficiente para reaquecer o tema do suicídio assistido e provocar discussões éticas, bioéticas, jurídicas e religiosas.

A convivência entre o homem e a morte remonta à história da própria humanidade. O nascer e o morrer são atos reiterados, vinculados, um compreende o outro, como o alfa e o ômega. A vida, por si só, é uma preparação para a morte. Ou se morre de forma repentina ou, em razão de doença que se agrava e assume caráter de irreversibilidade. No primeiro caso, é claro, não há como dispensar qualquer tipo de cuidado à pessoa, preparando-a para o evento final. No segundo, porém, abre-se um campo enorme em razão da dignidade humana e do espírito cristão que habita em cada um, principalmente diante de uma enfermidade incurável. A morte surge, desta forma, como tema central e até mesmo natural, apesar do homem resistir a travar discussão a respeito. O anseio das pessoas é ter uma morte rápida, sem sofrimento e, logicamente, após ter exaurido a vida em sua intensidade. Sêneca, na antiguidade do Império Romano, já proclamava que morrer bem significa escapar vivo do risco de morrer doente.

O direito de autodeterminação se faz presente no suicídio assistido. A autonomia do ser humano possibilita a tomada de decisões de acordo com sua vontade, com exceção dos casos de colidência com interesses maiores e tutelados legalmente. O morrer com dignidade compreende, em situação de sofrimento interminável, transferir a um profissional da saúde não o direito à sua própria vida, mas sim a renúncia ao direito de continuar vivendo em situação angustiante. "Matar-se, em certo sentido, advertia Camus, e como no melodrama, é confessar. Confessar que fomos superados pela vida ou que não a entendemos".1

No Brasil, é terminantemente proibida a prática do suicídio assistido em razão da norma incriminadora disposta no artigo 122 do Código Penal, quando da realização da modalidade de prestar auxílio ao suicida, compreendendo aqui o fornecimento ou viabilização dos meios necessários para a prática do ato. Não se confunde com a eutanásia, que é o ato pelo qual o médico pratica um ato específico para colocar fim à vida humana. "No suicídio medicamente assistido, esclarece o bioeticista Pessini, envolve a participação de um médico, na provisão, mas não na administração direta para ajudar a pessoa a abreviar sua vida"2.

Em países onde a prática é legalizada, como na Holanda, por exemplo, um dos requisitos é o sofrimento intolerável, sem qualquer perspectiva de alívio. No Estado de Oregon, nos Estados Unidos, a lei permissiva do suicídio assistido estabelece as seguintes condições: a) o paciente deve ter um prognóstico de vida de seis meses ou menos; b) o requerimento do paciente deve ser feito por escrito e repetido depois de quinze dias de período de espera; c) o paciente deve ser racional e mentalmente competente. Sua capacidade de julgamento não deve estar afetada por depressão clínica ou outras desordens mentais; d) deve-se obter uma segunda opinião médica; e) o paciente deve ter capacidade para ingerir por si mesmo, sem ajuda, a medicação.

A evolução constante da humanidade vai transformando o pensamento do homem, direcionando-o para uma nova ordem moral, social e ética. Tanto é que os conceitos vão se definindo dentro de uma estrutura dinâmica, que se movimenta em velocidade até mesmo incompatível com sua própria história. Até há pouco tempo rejeitava-se a ortotanásia, modalidade em que se priva o paciente de receber a medicação para a doença, já em fase terminal, suspendendo toda obsessão terapêutica, para conferir a ele cuidados paliativos, para que possa atingir a morte com a dignidade correspondente ao ser humano.

É justamente nos casos em que o paciente não tem qualquer intenção de abraçar o tratamento paliativo ou mesmo uma terapia mais agressiva, com seguidas hospitalizações, sessões quimioterápicas com seus efeitos secundários, convivendo com um sofrimento insuportável, que se abrem as portas para o suicídio medicamente assistido.

É mais um tema que vem à tona e merece ser debatido.

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1Camus, Albert. O Mito de Sísifo. Tradução de Ari Roitman e Paulina Watch. Rio de Janeiro: Editora Record, 2005, p. 19.

2Pessini, Leo. Eutanásia - porque abreviar a vida? São Paulo: Editora Loyola, 2004, p.127.

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* Eudes Quintino de Oliveira Júnior, promotor de Justiça aposentado, mestre em direito público, pós-doutorado em ciências da saúde, advogado e reitor da Unorp - Centro Universitário do Norte Paulista.

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