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Uber e a Mobilidade Urbana

Sérgio Branquinho Bispo

Evidencia-se a inércia do Poder Público sobre a crescente demanda pelas modalidades alternativas de transporte público, que não organiza a ampliação das concessões de licenças para a exploração do serviço de transporte privado de passageiros.

quarta-feira, 3 de junho de 2015

Atualizado em 2 de junho de 2015 15:36

Dentre as preocupações mais frequentes da civilização moderna estão a ocupação especial, as relações interpessoais, o desenvolvimento sustentável e a mobilidade urbana, haja vista a velocidade e a intensidade da inserção das pessoas no atual circuito econômico-social, que a cada dia aumenta sua abrangência, atingindo indivíduos cada vez mais jovens e mais velhos, e alterando numérica e qualitativamente o perfil dos cidadãos envolvidos, bem como o trato com os elementos acima elencados.

Nesse contexto, considerando os grandes centros urbanos como os melhores parâmetros para aferir a velocidade e qualidade das relações interpessoais, observamos o crescimento desenfreado das demandas de mobilidade urbana e de acessibilidade, aliado às deficiências na prestação dos serviços de transporte público, como um grande ponto de retenção ao desenvolvimento social, chegando, na maioria dos casos, a ser atentatório à dignidade da pessoa humana.

De outra banda, temos que a tecnologia da informação tem envidado incessantes esforços na criação de programas e aplicativos que facilitem o acesso dos usuários às mais diversas necessidades do dia a dia, primando pela qualidade e pela conveniência pessoal de cada indivíduo na adequação, à sua agenda, da utilização dos serviços disponíveis.

No que diz com a mobilidade urbana, esse movimento tecnológico parece reproduzir o caminho trilhado por grandes centros urbanos de países mais desenvolvidos, nos quais a necessidade de tornar mais singelo e inteligível o deslocamento pessoal fez com que a população abrisse mão da individualidade para priorizar meios de transporte coletivo, que atendessem às suas necessidades e aos seus anseios de mínimo conforto.

Esse é o caso de Londres, por exemplo, onde, além de uma vasta e eficiente linha de transporte público, envolvendo redes de trens, metrôs, ônibus e táxis, ainda conta com o incentivo ao uso de bicicletas e da carona compartilhada.

No Brasil, essa preocupação com a mobilidade urbana toma proporções especialmente preocupantes, tendo em vista o fluxo diário de pessoas nos grandes centros urbanos, e a reconhecidamente péssima qualidade dos serviços de transporte público, que além de não cumprirem com seu propósito em termos de planejamento, ainda relegam a população a condições degradantes, e a alto custo.

Como consequência da fragilidade do sistema de transporte público, potencializamos a resistência aos meios populares, promovendo a crescente utilização dos veículos particulares individuais, fato que agrava o engessamento do fluxo viário, na franca contramão das tendências que atendam ao desenvolvimento sustentável e às políticas de mobilidade urbana.

Nessa senda é que se afigura louvável o esforço de mitigar a individualidade em prol do alívio do trânsito urbano, com a retirada de veículos das ruas mediante a utilização coletiva dos meios de transporte públicos e privados.

Essa foi uma postura que chegou a ser incentivada em centros urbanos de trânsito saturado, para que pessoas que tivessem a mesma origem e o mesmo destino se revezassem em seus automóveis, de modo a otimizar o fluxo de veículos, e reduzir o consumo de combustível, a poluição do meio ambiente e o aquecimento global.

Retomando as soluções tecnológicas surgidas para viabilizar a logística da mobilidade urbana, ganham destaque aplicativos como o Uber e similares, por meio dos quais os usuários cadastrados ofertam o transporte privado mediante um custo de utilização.

Mas quando se fala nessa solução tecnológica de otimização do serviço de transporte, exsurge o problema da regulamentação do mesmo serviço, dos veículos e dos condutores, condição exigida para os demais prestadores de serviço no seguimento de transporte urbano, como é o caso dos taxistas e dos concessionários e motoristas de linhas de ônibus.

Como é sabido, a Constituição da República assegura a todos o livre exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, observadas as qualificações profissionais que a lei estabelecer.

Atenta aos severos problemas da mobilidade urbana, a Câmara dos Deputados aprovou a PEC 90/11, que insere no rol das garantias sociais o direito ao transporte. O projeto encontra-se atualmente aguardando a apreciação do Senado.

De outra ponta, a CF, em seu art. 30, V, confere aos municípios a organização e prestação dos serviços públicos de interesse local, diretamente ou sob o regime de concessão ou permissão, neles inseridos o transporte coletivo.

Atendendo à determinação da Carta Política, cada ente municipal estabeleceu critérios para a concessão de licenças para a prestação dos serviços de transporte público, coletivo ou individual, que submetem os veículos a vistorias periódicas para a fiscalização das condições de segurança, e os condutores ao cadastramento e credenciamento.

Disciplinando a matéria em âmbito Federal, o art. 231, VIII, do CBT estabelece como infração de natureza média, sujeita à multa e retenção do veículo, o transporte remunerado de passageiros, quando o condutor não for licenciado para esse fim.

Quer dizer, em tese, a legislação brasileira exige que os veículos que atendam ao serviço de transporte público sejam vistoriados periodicamente, e que seus condutores estejam cadastrados e credenciados, para que o serviço prestado confira segurança aos usuários do sistema.

Essa, ao menos, é a justificativa do Poder Público para acoimar de clandestino o serviço oferecido via aplicativos de carona remunerada ou de motorista privativo.

É justamente aí que emerge um paradoxo jurídico: apesar de serem manifestamente credenciados pelas autoridades competentes, os ônibus e táxis, assim como seus condutores, estão efetivamente aptos à prestação de um serviço de qualidade e com segurança para os usuários? E os veículos e condutores que oferecem o serviço de transporte privado pelos aplicativos de carona remunerada ou de motorista privativo, apesar de não estarem credenciados para tal fim, não atenderiam aos critérios idealizados pela legislação brasileira para a circulação de veículos e habilitação de condutores?

O primeiro exemplo não é difícil de contemplar, pois o péssimo estado de manutenção dos ônibus que fazem linhas circulares urbanas, bem como o despreparo de seus motoristas e cobradores, são amplamente conhecidos. No caso dos táxis, as concessões das licenças parecem atender mais às questões negociais e sindicais do que à capacitação e destreza dos taxistas, pois como se permite a exploração do serviço mediante o aluguel da licença e do veículo, dificulta-se a fiscalização da capacitação e idoneidade do condutor, não sendo raros os casos de graves acidentes, ou pior, do cometimento de crimes contra os usuários, tais como roubos e abusos sexuais, entre outros.

Já nos casos de transporte privado, a literalidade das disposições legais pode conduzir ao absurdo da situação em que um indivíduo quer oferecer carona aos moradores de seu bairro, e cobrar pelos custos decorrentes do uso de seu veículo no trajeto, e ser enquadrado pelo exercício clandestino de transporte público.

Outro exemplo poderia se cogitar é quando um grupo de pessoas solicita carona a um condutor de um veículo em que esteja sozinho, mediante a oferta do rateio dos custos do trajeto.

Mas não seria justamente essa a postura que as políticas públicas de mobilidade urbana deveriam incentivar? O uso inteligente dos meios de transporte privado não resolveria, em grande parte, os crescentes problemas relacionados ao tráfego viário urbano?

Foi justamente diante desse conflito aparente de interesses públicos que se concebeu a lei 12.587/12, que institui as diretrizes da Política Nacional de Mobilidade Urbana, objetivando a integração dos diferentes meios de transporte, visando à melhoria da acessibilidade e da mobilidade das pessoas, e fundada sob os princípios da acessibilidade universal, do desenvolvimento sustentável das cidades, e da eficiência, eficácia e efetividade na prestação dos serviços de transporte urbano.

A par de tais objetivos e diretrizes é que se contempla como modalidade de serviço de utilidade pública o transporte individual de passageiros, que nos termos da lei, deverá ser disciplinado e fiscalizado pelo Poder Público, de modo a proporcionar ao usuário as mínimas condições de segurança, conforto, higiene, e modicidade das tarifas.

Nesse ponto evidencia-se novamente a inércia do Poder Público, que negligencia a crescente demanda pelas modalidades alternativas de transporte público, e não organiza a ampliação das concessões de licenças para a exploração do serviço de transporte privado de passageiros, relegando ao descaso a necessidade e o anseio da população neste seguimento.

Em face desse hiato regulamentar, observa-se que a execução do transporte privado de passageiros há muito vem sendo proporcionada por inúmeros setores relacionados às relações interpessoais, sendo disponibilizada por estabelecimentos como restaurantes, hotéis, casas noturnas, escritórios de prestação de serviços profissionais, e inúmeros outros, em que motoristas cadastrados pelos próprios estabelecimentos indicam a prestação do serviço, conferindo aos usuários a segurança de serem atendidos por um motorista com um vínculo de confiança previamente estabelecido, e o conforto dos veículos utilizados, que em sua maioria são modelos de luxo e equipados com itens que tornam as viagens significativamente mais seguras e agradáveis.

Pode-se mencionar, igualmente, o caso dos motoristas disponibilizados por restaurantes e bares em todo o Brasil, para conduzirem os veículos dos clientes que ingeriram bebidas alcoólicas, e nessa qualidade estariam desenvolvendo o serviço remunerado de transporte privado, mas em atendimento ao interesse público da mobilidade urbana e da segurança no trânsito.

Quer dizer, à míngua de disciplina, a modalidade de transporte privado de passageiros tem se organizado de forma a atender às diretrizes preconizadas para a Política de Mobilidade Pública, bastando, para tanto, que se tenha um condutor de veículos devidamente habilitado e um veículo licenciado pela autoridade administrativa de trânsito.

Em todo caso, a utilização dos serviços de carona compartilhada ou de outros transportes privativos remunerados parece-nos tratar-se de uma questão de índole meramente pessoal, relacionada à vontade de cada indivíduo no atendimento de seus anseios e necessidades, até porque se consultados, seguramente estariam mais satisfeitos e seguros com a qualidade do veículo de transporte privado.

Não obstante, tendo em vista as dimensões da crescente demanda dos meios de transporte público, não nos parece que os serviços de carona compartilhada remunerada ou de transporte privativo ofereçam concorrência com os serviços de táxi, pois a existência de um não esvazia a necessidade e a demanda do outro, mas se somaria como alternativa ao atendimento dos usuários do transporte público.

Ademais, a disponibilidade dos serviços de transporte coletivo ou de táxi muitas vezes se pauta pelo cronograma de horários ou pela conveniência dos próprios prestadores do serviço, o que, não raras vezes, deixa os cidadãos sem ter alternativa de transporte, afigurando-se absolutamente legítima a busca por uma solução que atenda às suas necessidades específicas nas conveniências de seus horários e locais.

Deve-se ter em vista que a alternativa ainda aliviaria a tensão das vias públicas, a despeito de se ter um veículo particular na prestação do serviço, considerando que tantos outros veículos de propriedade dos eventuais usuários estariam fora de circulação.

Outro aspecto pelo qual convém tratar o tema é o da informalidade da atividade desenvolvida, que como em qualquer seguimento de exploração de atividade econômica, gera uma perda considerável de receitas oriundas dos tributos que deveriam incidir sobre a remuneração dos serviços, caso legalizados.

Aí reside outro ponto de distanciamento total entre os serviços de carona compartilhada ou motorista privativo e os serviços de táxi, tendo em vista que este último confere aos detentores das licenças e aos exploradores do serviço inúmeros favores fiscais, que vão desde a aquisição de veículos para a execução do serviço, até a desoneração parcial dos próprios rendimentos auferidos na própria atividade.

Em resumo, as modalidades de transporte urbano de natureza privativa são uma realidade, se somam aos demais meios de transporte público para o alcance dos objetivos preconizados na Política de Mobilidade Urbana, e estão disponíveis através de aplicativos e programas de dispositivos móveis informatizados, proporcionando aos seus usuários fácil acesso e atendimento eficiente, razões pelas quais merecem do Poder Público o devido reconhecimento e a incorporação às vias regulamentares.

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*Sérgio Branquinho Bispo é assessor Jurídico no STJ e diretor do Instituto Brasileiro de Direito Digital - IBDDIG.

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