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O Tribunal Marítimo

João Luís Aguiar de Medeiros e Luis Cláudio Furtado Faria

A importância do Tribunal Marítimo vem crescendo em decorrência do aumento do número e do tráfego de embarcações e do volume de negócios envolvendo transporte marítimo e fluvial.

segunda-feira, 6 de julho de 2015

Atualizado às 09:32

I. - Origem histórica

Durante a Revolução de 1930, com os ânimos acirrados e na iminência de um golpe de Estado, um navio a vapor alemão chamado "BADEN", registrado em Hamburgo, zarpou do porto do Rio de Janeiro ao anoitecer transportando mercadorias e numerosa tripulação em direção ao porto de Buenos Aires. Ignorando a sinalização da Fortaleza Santa Cruz para retornar ao porto, o BADEN, no jargão da navegação, "forçou a barra" da Baía de Guanabara, recebendo dois tiros de advertência, disparados do Forte do Leme, na praia de Copacabana. Ao insistir na manobra e aumentar a velocidade, o BADEN foi então alvejado por um tiro de canhão que destroçou o mastro principal, obrigando-o a retornar. O incidente, que causou repercussão internacional à época, deixou 15 tripulantes mortos e diversos feridos.1

Na ausência de um Tribunal administrativo especializado no Brasil, o incidente foi processado e julgado perante o Tribunal Marítimo da Alemanha. O Tribunal alemão, após ouvir o depoimento do comandante do BADEN, atribuiu a responsabilidade principal do incidente à Fortaleza de Santa Cruz, que não teria feito uso da sinalização internacional, impedindo que o comandante do BADEN interpretasse adequadamente a ordem de retorno ao porto. O Tribunal também responsabilizou a guarnição do Forte do Leme, por não ter tentado contato via rádio antes de efetuar os disparos que atingiram o navio. Ao comandante alemão, foi atribuída apenas responsabilidade subsidiária pelo incidente, por não ter parado o navio ao receber sinalização cujo significado ignorava.

A decisão do Tribunal Marítimo alemão foi vista como tendenciosa pelas autoridades brasileiras à época e, no ano seguinte, foi editado o decreto 20.829/31, que instituiu o Tribunal Marítimo no Rio de Janeiro, com competência administrativa para apreciação dos incidentes e fatos da navegação em todo o território nacional. Desde a sua criação, a importância do Tribunal Marítimo vem crescendo em decorrência do aumento do número e do tráfego de embarcações e do volume de negócios envolvendo transporte marítimo e fluvial. Assim, é oportuno entender o funcionamento desse órgão administrativo, a sua competência e a forma de atuação.

II. - Organização e jurisdição

O Tribunal Marítimo, com sede no Rio de Janeiro, localizado na Praça XV, no Centro da Cidade, é um órgão administrativo, autônomo, auxiliar do Poder Judiciário e vinculado ao Ministério da Marinha no que se refere ao provimento de pessoal e recursos necessários ao seu funcionamento. Em relação às esferas de poder, o Tribunal Marítimo é órgão integrante do Poder Executivo.

O Tribunal Marítimo, nos termos da lei 2.180/54, é composto por sete juízes, sendo: (i) um Presidente, Oficial-General do Corpo da Armada; (ii) dois Juízes Militares, Oficiais da Marinha, na inatividade; (iii) quatro Juízes Civis, dos quais dois devem ser bacharéis em Direito especializados em Direito Marítimo e Internacional, um especialista em armação de navios e navegação comercial e um Capitão da Marinha Mercante.

Estão sujeitas à jurisdição do Tribunal Marítimo embarcações mercantes de qualquer nacionalidade em águas brasileiras. Merece destaque a jurisdição do Tribunal Marítimo sobre as embarcações empregadas em operações relacionadas à pesquisa científica marinha, prospecção, exploração, inclusive de petróleo, produção, armazenamento e beneficiamento dos recursos naturais, nas águas interiores, no mar territorial, na zona econômica exclusiva e na plataforma continental brasileiros.

III. - Competência

O Tribunal Marítimo exerce duas funções principais que merecem destaque. A primeira delas consiste nas atividades que dispõem sobre o registro da propriedade naval, direitos reais sobre embarcações. O Tribunal Marítimo funciona, nessa atividade, como órgão mantenedor do registro das embarcações que se encontram em território nacional e também dos gravames que incidem sobre essas embarcações, tais como a hipoteca naval.

A segunda função do Tribunal Marítimo consiste no julgamento administrativo dos acidentes e fatos da navegação marítima. Nesses processos administrativos, que possuem natureza sancionatória e punitiva, cabe ao Tribunal Marítimo definir a natureza, as causas, as circunstâncias e a extensão do ilícito administrativo, processando e punindo administrativamente os seus responsáveis, bem como propondo, se cabível, medidas preventivas para evitar a ocorrência de novos ilícitos (art. 74, da lei 2.180/54).

Os acidentes e fatos da navegação que são de competência do Tribunal Marítimo estão definidos nos arts. 14 e 15 da lei 2.180/54. Consideram-se acidentes da navegação, dentre outros, o naufrágio, encalhe, colisão, abalroação, incêndio, avaria ou defeito no navio. Fatos da navegação consistem, dentre outros, no mau aparelhamento ou impropriedade da embarcação para o serviço, má alocação da carga que cause risco à navegação, recusa injustificada de socorro à embarcação em perigo, e todos os fatos que ponham em risco a embarcação e seus passageiros, bem como o emprego da embarcação para prática de ato ilícito.

A competência do Tribunal Marítimo abrange, em todas as hipóteses legalmente previstas, matérias relacionadas à segurança da navegação, à salvaguarda da vida humana no mar e à prevenção de acidentes e fatos da navegação. Desde que estritamente limitado à sua competência, todavia, o Tribunal Marítimo poderá decidir questões paralelamente a outros órgãos administrativos (p.ex., IBAMA, INEA, ANP, CADE), sem que isso implique em qualquer infração legal. Nesses casos, porém, deverá haver especial atenção aos limites da competência de cada órgão, a fim de que não haja usurpação de competências entre os mesmos.

IV. - Processos administrativos punitivos e disciplinares relacionados a acidentes ou fatos da navegação

O processo administrativo no Tribunal Marítimo, de acordo com o disposto no art. 41, da lei 2.180/54, pode se iniciar por iniciativa privada ou pública. A instauração por iniciativa privada se dá mediante representação da parte interessada. A instauração por iniciativa pública, por sua vez, ocorre por atuação do próprio Tribunal Marítimo, mas, principalmente, por meio de Representação oferecida pela Procuradoria Especializada da Marinha ("PEM").

A PEM, instituída pela lei 7.642/87 e subordinada ao ministro da Marinha, atua nos processos de competência do Tribunal Marítimo em todas as suas fases, sendo responsável por oferecer acusação, nos casos de sua iniciativa, materializada em uma Representação, a qual é dirigida contra possíveis responsáveis por acidentes ou fatos da navegação.

A Representação, via de regra, tem origem em inquérito administrativo prévio instaurado pela autoridade competente para apurar acidentes e fatos da navegação no local em que ocorreram (por exemplo, a Capitania dos Portos do local do acidente ou fato da navegação). Tão logo concluído, as peças do inquérito são encaminhadas ao Tribunal Marítimo e, posteriormente, à PEM para o oferecimento de Representação ou promoção de arquivamento, dependendo da existência ou não de indícios de atos ilícitos.

Em ambos os casos, caberá ao juiz relator decidir a respeito do parecer proferido pela PEM. Caso a Representação seja aceita ou a promoção de arquivamento seja rejeitada, o juiz relator dará prosseguimento ao processo com a determinação de citação do acusado para se defender, no prazo de 15 (quinze) dias contados do recebimento da citação (art. 56, lei 2.180/54).

Ao processo administrativo punitivo e disciplinar no Tribunal Marítimo aplicam-se as mesmas garantias constitucionais de um processo judicial, devendo ser respeitados os princípios do contraditório e da ampla defesa, assegurados pelo art. 5º, incisos LIV e LV, da Constituição Federal. O julgamento deve ser fundamentado, aplicando-se o disposto no art. 93, IX, da Constituição Federal. Com certa frequência, todavia, o Tribunal Marítimo recorre aos usos e costumes, os quais possuem especial relevância em Direito Marítimo, para fundamentar as suas decisões.

As decisões do Tribunal Marítimo possuem natureza administrativa, sendo passíveis de reexame pelo Poder Judiciário. Note-se, todavia, que, de acordo com o disposto no artigo 18 da lei 2.180/54, "as decisões do Tribunal Marítimo quanto à matéria técnica referente aos acidentes e fatos da navegação têm valor probatório e se presumem certas, sendo porém suscetíveis de reexame pelo Poder Judiciário." O Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, recentemente, invocou esse dispositivo legal para privilegiar decisão proferida pelo Tribunal Marítimo. Confira-se a ementa do julgado:

"INDENIZATÓRIA. ABALROAMENTO ENTRE EMBARCAÇÕES. TRIBUNAL MARÍTIMO. DECISÃO CORROBORADA PELA PROVA PRODUZIDA NO JUDICIÁRIO. Apelação da sentença que condenou a ré a pagar à autora reparação pelos danos materiais decorrentes do abalroamento do navio desta pelo ferryboat daquela. Acórdão unânime do Tribunal Marítimo, concluindo que o acidente foi causado por imprudência do comandante do ferryboat. Acórdão precedido de minucioso inquérito instaurado pela Capitania dos Portos da Bahia e de Laudo de Exame Pericial Indireto. Nos termos do art. 18 da Lei nº 2.180/54, "As decisões do Tribunal Marítimo quanto à matéria técnica referente aos acidentes e fatos da navegação têm valor probatório e se presumem certas, sendo porém suscetíveis de reexame pelo Poder Judiciário." Ausência de qualquer prova hábil a contrariar a conclusão do mencionado acórdão. A extensão do dano, a conduta do preposto da ré e o nexo causal foram amplamente comprovados nos autos, restando inequivocamente configurada a responsabilidade da apelante pela reparação dos prejuízos causados à apelada. Recurso desprovido, nos termos do voto do desembargador relator." (Apelação Cível n. 0322085-50.2010.8.19.0001, Desembargador Relator Ricardo Rodrigues Cardozo, 15ª Câmara Cível, julgado em 31.7.2012)

A presunção de correção das decisões do Tribunal Marítimo, porém, é meramente relativa, podendo ser desconstituída no Poder Judiciário, caso haja prova em contrário. O STJ já proferiu acórdão nesse sentido. Confira-se:

"CIVIL E PROCESSUAL CIVIL. RESPONSABILIDADE CIVIL. REPARAÇÃO DE DANOS MORAIS. NAUFRÁGIO. MORTE DO FILHO E IRMÃO. ACÓRDÃO DO TRIBUNAL MARÍTIMO EXCULPANDO A EMPRESA RESPONSÁVEL PELA EMBARCAÇÃO. ÓRGÃO NÃO JURISDICIONAL. NÃO VINCULAÇÃO DAS CONCLUSÕES REALIZADAS NO ÂMBITO ADMINISTRATIVO.

(...)

2. As conclusões estabelecidas pelo Tribunal Marítimo são suscetíveis de reexame pelo Poder Judiciário, ainda que a decisão proferida pelo órgão administrativo, no que se refere à matéria técnica referente aos acidentes e fatos da navegação, tenha valor probatório. (...)"

(Recurso Especial no 811769 / RJ, Quarta Turma, Ministro Relator Luis Felipe Salomão, julgado em 12.3.2010)

No âmbito administrativo, contra as decisões proferidas pelo Tribunal Marítimo são cabíveis: (i) embargos de nulidade ou infringentes, contra a decisão final sobre o mérito da causa; (ii) agravo de petição, contra decisões interlocutórias; e (iii) embargos declaratórios, nos casos de decisão obscura, contraditória ou omissa. Tais recursos, via de regra, são julgados pelo órgão colegiado do Tribunal Marítimo.

Por fim, quanto às penalidades, de acordo com a lei 2.180/54, art. 121, o Tribunal Marítimo pode aplicar, dentre outras penalidades, (i) a proibição ou suspensão do tráfego da embarcação; (ii) o cancelamento do registro de armador; (iii) a interdição para o exercício de determinada função; e (iv) a multa de natureza pecuniária.

V - Conclusão

O Tribunal Marítimo possui um papel de destaque para todos aqueles que operam no setor da navegação, exercendo competências extremamente relevantes para essa atividade, tais como o registro da propriedade naval e o julgamento de processos administrativos envolvendo as responsabilidades decorrentes de acidentes e fatos da navegação.

A importância desse órgão vem crescendo ao longo dos últimos anos, em razão do aumento do número de embarcações, resultado do incremento dos negócios que se utilizam ou dependem do transporte por via fluvial ou marítima. Somente na região Sudeste, vale citar, como exemplo, a revitalização do Porto do Rio de Janeiro, o que já acarretou o aumento significativo do número de embarcações na região, fato esse comprovado pela alteração da paisagem e do horizonte das praias da Cidade.

Por se tratar de um órgão especializado, a natureza técnica do seu exame não pode, nem deve, ser desprezada, uma vez que as suas decisões assumem papel primordial na esfera judicial, não obstante a possibilidade de o Poder Judiciário deter sempre a última palavra, por força do ordenamento constitucional vigente.

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1 Um periódico da época assim noticiou o incidente: "O Cargueiro alemão BADEN tentou forçar a barra. Ao anoitecer quase, o cargueiro alemão Baden, tentando forçar a saída da barra, foi admoestado pela fortaleza de Santa Cruz, com dois tiros de pólvora seca. Não obedecendo a intimação, prosseguiu viagem, aumentando a velocidade, quando do forte de Copacabana foi o cargueiro atingido por um tiro cuja bala o alcançou, produzindo grandes avarias e fazendo 15 vítimas. O BADEN retrocedeu ao porto, indo a bordo as autoridades incumbidas das providências precisas. As 15 vítimas, cujos nomes não obtivemos, foram mandadas para o necrotério."
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*João Luís Aguiar de Medeiros é sócio de Pinheiro Neto Advogados.

*Luis Cláudio Furtado Faria é associado sênior da Área Contenciosa de Pinheiro Neto Advogados.


*Este artigo foi redigido meramente para fins de informação e debate, não devendo ser considerado uma opinião legal para qualquer operação ou negócio específico.

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