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Julgamento "antecipado" e julgamento parcial do mérito

No quarto texto da série que esmigalha o novo CPC, causídico analisa questões atinentes ao julgamento "antecipado" e parcial do mérito.

sexta-feira, 4 de março de 2016

Atualizado em 3 de março de 2016 10:03

1. Julgamento "antecipado" do mérito

É inexplicável o modo de enumeração das hipóteses de julgamento conforme o estado do processo nos arts. 354 e 355 do CPC/15, como já o era nos arts. 329 e 330 do CPC/73. O art. 354 reúne casos de negativa da resolução do mérito (mediante a menção ao art. 485) e de resolução do mérito, quando se reconhece haver prescrição ou decadência (art. 487, II) ou se homologa ato de disposição de vontade (art. 487, III). O art. 355, por sua vez, trata de outra hipótese de resolução de mérito, quando há acolhimento ou rejeição do pedido (art. 487, I).

Nada justifica essa bipartição das hipóteses de resolução de mérito no julgamento conforme o estado do processo (isso é tanto mais evidente no caso do acolhimento da prescrição ou decadência - em que se tem uma hipótese específica de rejeição do pedido, por acolhimento de fato impeditivo ou extintivo do direito do autor). Tal idiossincrasia legislativa já ocorria no Código anterior e permaneceu no CPC/15. De todo modo, ela é irrelevante, pois não afeta o regime jurídico aplicável a tais hipóteses.

1.1 Hipóteses de ocorrência

A rigor, todos os casos de resolução do mérito no julgamento conforme o estado do processo apresentam um ponto em comum. Toda vez que, depois da fase postulatória e das eventuais providências preliminares, o processo já estiver em condições de receber resolução de mérito, deverá proferir-se sentença nesse sentido, sem se ingressar na fase de instrução probatória, que, então, será inútil. Isso se tem quando:

(a) o juiz verifica estar configurada a prescrição da pretensão ou a decadência do direito do autor (art. 354 c/c art. 485, II). Como já foi dito no texto anterior desta série, isso nada mais é do que uma hipótese de rejeição do pedido do autor, em seu mérito. No mais das vezes, a aferição da ocorrência de tais fenômenos independe de provas. Mas, ainda que raro, pode ser necessária investigação probatória para determinar-se, por exemplo, quando efetivamente se deu o termo inicial do prazo prescricional ou decadencial. Nesse caso, obviamente, não caberá a aplicação do art. 354;

(b) se apresenta ao juiz ato de disposição de vontade destinado a compor a lide (reconhecimento do pedido, por parte do réu; renúncia à pretensão, pelo autor; ou transação, por ambas as partes - art. 354 c/c art. 485, III). Nesses casos, também há propriamente resolução do mérito. Ainda que o juiz não julgue propriamente o conflito, o conteúdo da sentença que profere versa sobre o mérito, diz respeito ao objeto do processo. Embora a resolução da lide não tenha, na origem, sido dada pelo órgão jurisdicional, foi por ele chancelada. Ao homologar o ato de disposição de vontade, o juiz toma para si, faz sua, a solução concebida pelas partes. Tais atos de disposição de vontade e sua consequente homologação judicial podem ocorrer a todo tempo no curso do processo. Há requisitos para que eles possam ser homologados (notadamente, a transigibilidade do objeto do processo). De todo modo, caso tais atos se apresentem ao juiz no momento do julgamento conforme o estado do processo e cumpram os requisitos o requisito para tanto, impõe-se, também então, o proferimento de sentença de mérito extintiva da fase cognitiva;

(c) para a solução do mérito da causa, não houver a necessidade de produção de outras provas (art. 355, I). Ou seja, os elementos probatórios constantes dos autos já são suficientes para o juiz formar sua convicção sobre os fatos da lide e resolvê-la. Isso acontecerá quando: (c.1) os aspectos fáticos direta ou indiretamente relevantes são incontroversos, pacíficos (art. 374, II e III) e o juiz não verifica nenhum aspecto que objetivamente o leve a duvidar de sua veracidade a ponto de precisar determinar provas de ofício - resumindo-se a discussão entre as partes às decorrências jurídicas de tais fatos; ou (c.2) a prova já trazida para os autos (que, em regra, até esse momento, será apenas a documental) já é suficiente para o julgamento do mérito;

(d) ocorrer a revelia e seu efeito principal (de presunção de veracidade dos fatos narrados pelo autor) e o revel não comparecer ao processo a tempo de requerer a produção de provas destinadas a demonstrar a inexistência dos fatos constitutivos do direito do autor (art. 355, II, c/c art. 349). Essa hipótese normativa não é mais do que especificação da diretriz genérica estabelecida no inciso I do art. 355: julga-se nesse momento precisamente porque não existem questões de fato controvertidas. Nem sempre a revelia conduz à ocorrência de seu efeito principal (o art. 345 veicula um rol não-exaustivo de exceções a tal efeito). Ocorrendo alguma dessas exceções à presunção de que são verdadeiros os fatos narrados na petição inicial, só se autorizará resolução imediata do mérito se, a despeito da não ocorrência do efeito da revelia, o caso concreto enquadrar-se na hipótese genérica do inciso I do art. 355 (p. ex., a prova documental trazida pelo autor é suficiente para a formação do convencimento do juiz) ou, nos termos do art. 354, houver prescrição ou decadência (art. 487, II) ou ato compositivo da parte (art. 487, III). Por outro lado, mesmo quando ocorre o efeito principal da revelia e estão presentes os pressupostos para julgar-se o mérito, não é de todo impossível que a sentença venha a ser de improcedência do pedido. Basta que dos fatos narrados na inicial não resultem as consequências jurídicas pretendidas pelo autor. Ou, ainda, é possível que o juiz reconheça a existência de algum fato extintivo, impeditivo ou modificativo do direito do autor que seja cognoscível de ofício (objeção material) e independa de prova (como normalmente se dá com a prescrição e a decadência, já citadas acima) ou esteja provado nos autos (a jurisprudência relata casos em que o próprio autor da ação juntou prova do pagamento da dívida cobrada - o que levou o juiz a julgar improcedente o pedido, a despeito da revelia e se seu efeito principal). De resto, também não ficará afastada, obviamente, eventual extinção da fase cognitiva sem resolução do mérito - desde que o defeito que a enseje seja conhecível de ofício e que não tenha ocorrido ou não seja possível sua correção pelo autor (art. 317) nem possa haver o próprio julgamento de mérito em favor do réu (art. 488).

1.2 Terminologia

Apenas os casos descritos em "c" e "d", acima, são expressamente denominados pelo Código de "julgamento antecipado do mérito". Mas, a rigor, as hipóteses expostas em "a" e "b" também implicam tal "julgamento antecipado". Nas hipóteses indicadas em "b" alguém poderia dizer que não há propriamente "julgamento" pelo juiz, mas apenas "resolução" do litígio. No entanto, como visto, ao chancelar o ato de disposição praticado pelas partes ou por uma delas, o juiz toma para si aquele ato como solução da causa. Isso vale tanto quanto o julgamento de acolhimento ou rejeição do pedido - e é o que basta para equiparar tais hipóteses às demais do art. 487.

Questão outra é saber se o nome "julgamento antecipado" é mesmo o mais adequado para qualquer das hipóteses acima. Transmite a falsa impressão de que o ato decisório estaria ocorrendo antes de seu momento oportuno, com uma verdadeira abreviação do devido itinerário processual. Não é o que se dá: decide-se porque não há mais o que ser feito; porque tudo o que era necessário para a resolução do mérito já está nos autos (nos casos "a", "c" e "d", os elementos necessários para a formação de sua convicção; no caso "b", o ato dispositivo). Sob esse aspecto, "julgamento imediato" do mérito talvez seja expressão mais adequada.

1.3 Natureza e recorribilidade do pronunciamento

Havendo integral resolução do mérito, nesse momento, o pronunciamento do juiz tem a natureza de sentença (art. 203, § 1º), contra a qual cabe recurso de apelação (art. 1.009).

2. Julgamento parcial do mérito

É possível o julgamento direto parcial do mérito, ou seja, o fracionamento da solução do mérito. O juiz resolverá parcialmente o mérito quando um ou mais dos pedidos formulados ou parte deles for incontroverso ou estiver em condições de solução imediata. A outra parcela da lide será, então, submetida à instrução probatória.

A rigor, isso já era possível no CPC/73, muito embora não houvesse previsão expressa a respeito (v. EDUARDO TALAMINI, "Saneamento do processo", em RePro v. 86, 1997, item 20 e seguintes).

2.1 Hipóteses de ocorrência

No CPC/15 explicitou-se tal possibilidade. O art. 354, par. ún., consagra-a no que tange às hipóteses do art. 487, II e II: acolhimento de prescrição ou decadência ou homologação de ato de disposição de vontade relativamente a apenas uma parte do mérito. O art. 356 disciplina a hipótese em que é desnecessária a instrução probatória para o julgamento de uma parcela do mérito.

Então, ocorrendo qualquer das hipóteses acima indicadas no n. 1.1, "a" a "d", apenas em relação a uma parte do mérito, e havendo necessidade de instrução probatória quanto à parcela restante, será possível o julgamento imediato parcial.

Tal fatiamento do mérito pode ocorrer em relação a um ou alguns dos vários pedidos formulados na ação, na reconvenção ou em outras demandas incidentais (como é o caso da denunciação da lide). Por exemplo: o autor formula três pedidos na inicial - e dois deles, por ocasião do julgamento conforme o estado do processo, não apresentam nenhuma controvérsia quanto aos fatos que os embasam, havendo necessidade de provas apenas relativamente ao terceiro pedido. Outro exemplo: as provas documentais reunidas nos autos já são suficientes para elucidar os fatos relevantes para o julgamento do pedido feito pelo autor, sendo necessária somente instrução probatória relativamente ao suporte fático da reconvenção que o réu formulou.

Mas o fatiamento pode ainda incidir sobre uma única pretensão formulada, na medida em que ela seja fracionável, decomponível. Por exemplo: o autor pede a condenação do réu ao pagamento de um milhão de reais, e o réu desde logo reconhece a procedência de duzentos mil reais, defendendo-se quanto ao resto.

2.2 Natureza, eficácia e estabilidade da decisão de julgamento parcial do mérito

O capítulo da decisão que julga parte do mérito não é sentença, pois a fase cognitiva prosseguirá para a instrução probatória do restante do mérito, ainda não julgado. Trata-se de decisão interlocutória (art. 203, § 2º). Por isso, contra ela caberá agravo de instrumento (arts. 356, § 5º, e 1.015 II). O agravo de instrumento, no CPC/15, só cabe em hipóteses taxativas - e essa é uma delas.

Se não for atribuído efeito suspensivo ao agravo contra tal decisão (arts. 995 e 1.019), ela poderá ser desde logo executada provisoriamente - se for o caso, procedendo-se antes à liquidação da condenação. Dispensa-se inclusive prestação de caução para tanto (art. 356, § 2º). Note-se que a solução do mérito dada em sentença, por ser recorrível mediante apelação que em regra tem efeito suspensivo, normalmente não poderá ser desde logo executada. Assim, a decisão interlocutória de mérito possui um regime de eficácia privilegiado, em contraste com o da sentença.

Uma vez transitada em julgado a decisão parcial do mérito - seja porque não se interpôs recurso contra ela, seja porque não tiveram sucesso aqueles interpostos - passa a caber a própria execução definitiva (art. 356, § 3º), mesmo que ainda esteja em curso a fase cognitiva do processo relativamente à outra parcela do mérito. Tanto a liquidação quanto o cumprimento provisório ou definitivo da decisão poderão ser processados em autos apartados (art. 356, § 4º).

Além disso, com o trânsito em julgado da decisão interlocutória de mérito, forma-se coisa julgada material sobre o comando decisório ali contido (art. 502) - independentemente do trânsito em julgado do pronunciamento que resolve a parte restante do mérito.

Em futuro texto, nesta série, discutiremos o cabimento de remessa necessária da decisão interlocutória de mérito, quando desfavorável à Fazenda Pública.

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*Eduardo Talamini é advogado, sócio do escritório Justen, Pereira, Oliveira & Talamini - Advogados Associados. Livre-docente em Direito Processual (USP). Mestre e doutor (USP). Professor da UFPR.

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