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Condução coercitiva do Lula

Gustavo Henrique Righi Ivahy Badaró

Não há atos processuais penais atípicos. Não se cria uma medida cautelar alternativa à prisão, não prevista em lei.

segunda-feira, 7 de março de 2016

Atualizado às 11:00

Em outros contextos, no qual manifestei minha opinião política, sabendo que seria alvo de críticas - se fundadas, sempre bem-vindas - e ataques pessoais - normalmente desrespeitosos - o fiz porque parto do princípio que, em determinadas situações, calar-se é ser conivente com o estado de coisas atual.

Minha divergência ideológica com a esquerda é sabida de quem me conhece. Minha profunda repugnância pelos métodos utilizados nos Governo Lula e Dilma, também.

Isso, contudo, não me impede de, como sempre, buscar fazer uma análise jurídica o mais isenta e impessoal, na medida em que isso seja possível.

Meu posicionamento parte de duas premissas noticiadas. A primeira, de que no referido ato, a condição do ex-presidente era de investigado, e não de testemunha. A segunda de que, quando intimados para comparecer a outros atos de investigação, o ex-presidente não deixou de comparecer.

Da decisão do Juiz Sérgio Moro, que decretou a condução coercitiva lê-se: "A condução coercitiva para tomada de depoimento é medida de cunho investigatório. Medida da espécie não implica cerceamento real da liberdade de locomoção, visto que dirigida apenas a tomada de depoimento. Mesmo ainda com a condução coercitiva, mantém-se o direito ao silêncio dos investigados".

Passo à questão em si. Em tese, em dois contextos se poderia "decretar" uma condução coercitiva: (i) no caso de testemunha que regularmente intimada, deixa de comparecer a ato processual; (ii) como uma medida cautelar atípica, alternativa à prisão.

Desde já, antecipo a minha conclusão, em relação à condução coercitiva do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Se foi decretada com a primeira natureza, o ato foi ilegal. Se foi decretada com a segunda finalidade, mais que ilegal, o ato fere a Convenção Americana de Direitos Humanos, que não admite medidas cautelares restritivas da liberdade, não previstas em lei (CADH, art. 7.2)

A condução coercitiva, como ato contra o faltante a ato processual que tinha o dever de comparecer, é disciplinada em vários dispositivos do Código de Processo Penal. Em nenhum deles, observe-se, na fase de investigação. Todos referem-se ao poder do juiz na fase processual.

O CPP prevê a condução coercitiva, da testemunha que intimada, deixar de comparecer, sem motivo justificado (CPP, art. 218).

O mesmo se aplica ao acusado que é intimado para audiência de interrogatório, mas não atende à intimação, deixando de comparecer (art. 260, par. ún.). Tem se considerado válida tal previsão, mesmo diante da garantia do direito ao silêncio (CR, art. 5, caput, LXIII), na medida em que o interrogatório teria uma etapa de qualificação (CPP, 187, § 1º). Ainda que se possa admitir, com alguma restrição, tal linha interpretativa, o certo é que não se justificará a condução coercitiva, primeiro, se não houve desatendimento de comparecimentos anteriores, segundo, se todos os dados de qualificação já são conhecidos e estão disponíveis, hipótese em que a medidas seria totalmente desnecessária.

Também se pode determinar a condução coercitiva do perito, em situação semelhante (CPP, 278).

No procedimento dos crimes dolosos contra a vida, em sua primeira fase, o § 7º do art. 411, traz previsão genérica de que o juiz poderá determinar a condução coercitiva "de quem deve comparecer" à audiência e a ela falte. No caso, pela cabeça do artigo, poderiam ser conduzidos o ofendido, as testemunhas, os peritos e o acusado. Já na segunda fase, podem ser conduzidas coercitivamente, caso não compareçam, as testemunhas (art. 461, § 1º)

Regra semelhante prevê a condução coercitiva do faltante, no procedimento sumário (CPP, art. 535).

Desnecessário argumentar que o ex-presidente não estava em nenhuma dessas situações. Ainda que se queira aplicar a regra de condução coercitiva do interrogatório judicial à oitiva do investigado no inquérito policial ou investigação preliminar, o certo é que os dados qualificativos do ex-presidente já eram conhecidos sendo a medida desnecessária. Por outro lado, tendo ele nessa condição o direito de permanecer calado, não se poderia determinar a medida com vista ao interrogatório de mérito (CPP, art. 187, § 2º).

Restaria a possibilidade de a medida ter sido decretada com uma medida cautelar alternativa à prisão, de natureza atípica. Nesse caso, a possibilidade de colidência com o direito à não autoincriminação é ainda mais clara. Uma medida cautelar decretada para que o acusado esteja disponível para ser colaborar com a investigação choca-se, frontalmente, com a garantia constitucional.

Vejo, porém, um problema maior, ao qual venho alertando há muito. O processo penal se submete a um princípio de legalidade. Não há atos processuais penais atípicos. Não se cria uma medida cautelar alternativa à prisão, não prevista em lei. Se necessidade há, se o ordenamento tem uma lacuna que prejudica o funcionamento da persecução penal, isso deve ser resolvido legislativamente. Nem mesmo o argumento de que a analógica seria - in bonam partem - convence. Se a adequação cautelar é para uma medida intermediária e menos gravosa que a prevista em lei, o caminho é não decretar a mais gravosa. Pois exagerada. E não criar algo intermediário, sob a pseudo-justificativa que seria "mais benéfico". Mais benéfico é nenhuma medida, ou outra, legalmente prevista, ainda menos grave que a que se busca criar.

Não desconheço que parte da doutrina trabalha, ao meu ver, equivocadamente, com um alegado "poder geral de cautela" do processo civil, que seria aplicável por analogia no processo penal. Discordo desse ponto de vista. Contra a possibilidade de analogia da lei processual penal (art. 3º do CPP), sobrepõe-se o art. 7.2 da CADH: "2. Ninguém pode ser privado de sua liberdade física, salvo pelas causas e nas condições previamente fixadas pelas Constituições políticas dos Estados-partes ou pelas leis de acordo com elas promulgadas."

Se fosse só isso, o cabimento ou não da medida dependeria do ponto de vista interpretativo de cada um. Os que aceitam, contra os que não aceitam, a cautelar atípica.

Não desenvolverei mais meus argumentos, que podem ser consultados em meu artigo: "As novas medidas cautelares alternativas à prisão e o alegado poder geral de cautela no processo penal: a impossibilidade de decretação de medidas atípicas", publicado em: As novas medidas cautelares alternativas à prisão e o alegado poder geral de cautela no processo penal: impossibilidade de decretação de medidas atípicas. Revista do Advogado. nº 113, set. 2011, p. 71-82.

Ao que parece, contudo, da leitura que se faz do ato decisório, o juiz Sérgio Moro não está decretando medida cautelar, mas uma medida de apoio para um ato de investigação, uma condução para que o conduzido vá depor. Tanto assim, que se o fosse espontaneamente, a medida não seria executada. Basta isso, para que de cautelar não se trate.

Estou, portanto, com aqueles que acham que o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva sofreu um ato ilegal e abusivo.

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*Gustavo Henrique Righi Ivahy Badaró é advogado do escritório Badaró Advogados Associados.

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