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Do jabuti à jabuticaba

Os jabutis surgiram na calada da noite, na mesma madrugada em que foram votadas as medidas anticorrupção pela Câmara, e hoje estão para serem votados pelo Senado.

terça-feira, 17 de janeiro de 2017

Atualizado em 16 de janeiro de 2017 10:47

Nos últimos tempos, o Congresso Nacional virou um criadouro de jabutis. Os jabutis do Legislativo não têm relação alguma com o simpático animal, parente próximo da tartaruga. São emendas parlamentares que modificam projetos de lei em discussão provenientes de lugar incerto e não sabido. Da mesma forma que o verdadeiro jabuti não sobe em árvore, uma emenda não surge do nada. Alguém a colocou ali, visando atender a interesses nem sempre transparentes.

Um dos mais recentes jabutis foi a inclusão, sem discussão alguma na comissão e em plenário, de dois dispositivos no PL 4238/12, que cria o novo estatuto da segurança privada. Os jabutis surgiram na calada da noite, na mesma madrugada em que foram votadas as medidas anticorrupção pela Câmara, e hoje estão para serem votados pelo Senado.

O primeiro jabuti trata do capital estrangeiro. A lei ainda em vigor (lei 7.102/83) veda a participação do capital estrangeiro em todas as empresas de segurança privada (art. 11). O jabuti, no entanto, proíbe a participação estrangeira apenas no capital votante de empresas de serviço de segurança privada especializadas em transporte de numerário, bens e valores (art. 20, §2º e 4º), liberando o capital estrangeiro para as demais empresas de segurança privada. Ou se limita o capital estrangeiro para todas, ou para nenhuma. Qual o motivo dessa distinção? Não se sabe. Os jabutis costumam ser misteriosos.

O segundo jabuti consegue ser mais inexplicável. O PL 4238/12 proíbe às instituições financeiras de participar do capital de empresas especializadas em segurança privada e de constituir serviços orgânicos (próprios) de segurança privada voltados para o transporte de numerário, bens e valores (arts. 20, §3º e 31). Por que razão bancos não podem ser sócios de empresas de segurança privada ou verticalizar suas atividades para criar serviços próprios de transporte de valores? Não há motivo aparente algum, salvo o suposto interesse de agentes que atuem nesse mercado em reduzir o número de concorrentes. Os jabutis, pelo visto, não contam seus segredos.

No Brasil, a iniciativa privada é livre nos termos da CF (arts. 1º, IV e 170, caput). A liberdade de iniciativa é condicionada pela legislação aplicável à atividade econômica privada desde que esteja de acordo com a Constituição (art. 170, parágrafo único). A liberdade de iniciativa econômica é a liberdade de exercer uma atividade econômica em determinadas condições, objetivadas pela organização jurídica do sistema econômico nacional. A livre iniciativa tem por finalidade garantir o acesso dos agentes econômicos ao mercado e a sua liberdade de atuação. As restrições à atuação dos agentes econômicos privados devem estar fundamentadas no texto constitucional, sob pena de se criar situações de limitação à iniciativa econômica sem qualquer justificativa.

O caso dos jabutis do PL 4238/12 é mais um exemplo de como determinados interesses econômicos agem sem a devida transparência e controle público. Não existe motivo algum que justifique as discriminações em relação ao capital estrangeiro de modo seletivo, não geral, nem que fundamente a proibição de atuação das instituições financeiras no setor. Caso sejam aprovados no Senado sem que se modifique sua redação, os jabutis do PL 4238/12 completarão seu ciclo evolutivo e instituirão uma legislação única no mundo. Os jabutis se transformarão, assim, em verdadeiras jabuticabas.

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*Gilberto Bercovici é professor titular da Faculdade de Direito da USP.

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