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Atum, ameixas, ervilhas e títulos executivos extrajudiciais

No rol do artigo 784 há atuns, ameixas e ervilhas. Talvez seja melhor repensar a arrumação da prateleira.

segunda-feira, 19 de fevereiro de 2018

Atualizado em 16 de fevereiro de 2018 13:22

Agrupar itens, classificar objetos, organizar coisas sob um mesmo rótulo identificador é algo tão comum e importante que fazemos isso diariamente sem que sequer percebamos. Pode-se dizer, já me desculpando pelo excesso, que é um ato quase atribuível ao sistema nervoso parassimpático, tal como a respiração e os batimentos cardíacos. Aliás, não por acaso, existe uma ciência chamada taxonomia (do grego antigo t???? táxis, arranjo e nomia ??µ?a, método) que cuida das técnicas de classificação sistemática de coisas diferentes em categorias comuns.

Se pararmos para pensar, veremos que dentro de casa fazemos isso de modo espontâneo, por exemplo, quando organizamos o armário ou prateleira da despensa para colocar biscoitos de um lado, enlatados de outro, alimentos à granel de outro, os perecíveis na geladeira, e por aí vai. Até mesmo com os aplicativos do smartphone a gente se preocupa em organizar para facilitar o nosso manuseio.

Não há dúvida alguma que classificar e agrupar itens sob categorias comuns torna mais prática, mais simples, mais fácil, mais otimizada e operativa a nossa vida cotidiana. A organização da nossa rotina passa pelo exercício da taxonomia.

Entretanto, é preciso ter em mente um alerta. É que muitas vezes os itens agregados numa mesma categoria não possuem uma afinidade substancial, senão apenas pela única característica que usamos para os aglutiná-los numa mesma categoria.

Veja, por exemplo, quando decidimos juntar na mesma prateleira da despensa, as latas de atum, as de ameixas secas e as de ervilha. Todos são alimentos enlatados, e só. Eis aí o nosso critério de aglutinação. No entanto, são substancialmente diferentes, na sua origem, nas suas propriedades, nas qualidades que possuem, na textura, na cor, no sabor, no prazo de validade, etc. Não fosse o fato de serem alimentos enlatados, seriam diferentes em todo o resto.

Aproximando o nosso discurso do objeto da nossa conversa de hoje, é preciso perceber que o Código de Processo Civil, sob a rubrica ''títulos executivos extrajudiciais'', organizou e agrupou num só artigo (art. 784) um rol expletivo de documentos representativos de um ato ou fato jurídico que possuem aptidão para instaurar um processo de execução (eficácia executiva). Obviamente que tal atitude não foi propriamente uma inovação do CPC de 2015, pois em 1973 o então CPC vigente já tinha feito isso (art. 585), e também no CPC de 1939 (art. 298 que cuidava dos documentos com aptidão para dar início às ações executivas), e se voltarmos ainda mais no tempo veremos as ações decendiárias nas ordenações Filipinas, e por aí vai.

Todavia, à semelhança do atum, da ameixa e das ervilhas e, a despeito de que todos os documentos ali listados no artigo 784 são ''título executivos extrajudiciais'', a grande verdade é que se resolvêssemos fazer uma análise minudente e comparativa entre os títulos ali descritos, e, mais propriamente, das suas origens, da sua substância, de como foram confeccionados, etc., certamente veríamos que em inúmeros itens não seriam coincidentes a ponto de fazer com que fossem colocados na mesma vala comum, tal como estão.

Observe que não é o fato de serem todos eles taxados de títulos executivos extrajudiciais e terem aptidão executiva que os tornam idênticos entre si como se fossem farinha do mesmo saco. Não mesmo. Há diferenças substanciais e, em alguns casos as dessemelhanças são muito maiores do que as semelhanças e, com sinceridade franciscana, talvez nem merecessem estar organizados na mesma categoria. É preciso ficar atento a isso porque estas diferenças entre os conteúdos dos títulos extrajudiciais certamente influenciarão o modo de ser e de se desenvolver (o conteúdo e o debate) dos embargos eventualmente opostos pelo executado. O novel inciso VIII do artigo 784 é a gota que fez derramar o copo, espalhando o problema da heterogeneidade dos títulos executivos extrajudiciais sob a perspectiva da bilateralidade, da autonomia da vontade e do efetivo contraditório de como são confeccionados.

Tomemos de análise uma comparação entre os incisos III e IX do artigo 784.

Assim, tomando de exemplo situações jurídicas que já existiam no CPC revogado e que neste foram mantidas, diz o texto dos mencionados incisos que são títulos executivos extrajudiciais, respectivamente: ''o documento particular assinado pelo devedor e por 2 (duas) testemunhas'' e ''a certidão de dívida ativa da Fazenda Pública da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos municípios, correspondente aos créditos inscritos na forma da lei''.

Ora, ambos são documentos representativos de um ato/fato jurídico que, por sua vez, revelam a existência de um credor, de um devedor, de uma dívida e o seu objeto (ou seu quantum). Contudo, substancialmente, tais títulos contêm diferenças tão grandes, mas tão grandes que, dependendo do critério eleito pelo Código para agrupá-los, talvez nem devessem ficar numa mesma prateleira da despensa.

Apenas por curiosidade, o rol de títulos executivos do art. 474 do Código de Processo Civil italiano é bem mais enxuto que o brasileiro, idem para o art. 703 do CPC português e, diga-se de passagem, nem todos os países romanos germânicos atribuem aos títulos de crédito a mesma natureza de título executivo extrajudicial, reservando um procedimento especial para tais documentos. Neste particular o nosso Código se aproximou bastante da Ley de Enjuiciamento Civil Espanhola (art. 517, o que não necessariamente deva ser criticado ou festejado.

Enfim, retornando à nossa comparação entre os incisos III e IX do artigo 784, imaginemos um documento particular que se encaixe na hipótese do inciso III e que tenha sido construído com intenso contraditório, ao longo de meses por meio de tratativas entre os advogados de credor e devedor, com discussões sobre todas as cláusulas ali previstas e que ao final tenha sido assinado por testemunhas presenciais indicadas por ambas partes (e não aquelas testemunhas de plantão que nem sabem o que estão assinando). Pois é, a construção estruturante, paulatina e cooperativa, com o pleno contraditório e com a transparência das vontades expressadas nos documentos projetam-se em cada vírgula do título, de modo que, com todos os méritos, ele merece ter a tal ''eficácia executiva''.

É importante notar que a minudência e coparticipação na feitura do documento cria uma situação jurídica de tal densidade que tal situação acaba por esvaziar, significativa e naturalmente, as possibilidades de um dos transatores alegar, a fortiori, vícios de vontade na elaboração do documento ou de seu conteúdo.

Por outro lado, imaginemos agora o reverso da moeda, qual seja, a hipótese do inciso IX do artigo 784 que diz ser título executivo extrajudicial ''a certidão de dívida ativa da Fazenda Pública da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos municípios, correspondente aos créditos inscritos na forma da lei''.

Ora, prima facie, entendemos que não poderiam estar na mesma prateleira os títulos do inciso III e do inciso IX, até porque, para este último existe um procedimento especial previsto em lei extravagante (lei 6.830) que não se aplica aos demais exequentes. Trata-se de um procedimento com francas vantagens processuais a toda poderosa fazenda pública que, na teoria, as possui em prol do interesse público...

Contudo, é preciso ir além. A dessemelhança substancial entre os citados títulos executivos é ressaltada, inclusive, pelo fato de que enquanto o primeiro foi construído com contraditório entre os transatores, o segundo é quase sempre unilateral ou, quando muito, fruto de um processo administrativo marcado por um contraditório meramente ilustrativo (formal) e que é instaurado e julgado pelo próprio credor, ou seja, totalmente parcial.

Enfim, se a razão histórica de criação dos títulos executivos extrajudiciais é o fato de que alguns documentos reveladores de um crédito se apresentam como ''quase verdade'' então, definitivamente, os títulos do inciso IX estão muito longe disso; e também não se comparam os do inciso VIII e do inciso X com o do inciso IV e, talvez, como o atum, a ameixa e a ervilha, não devessem estar na mesma prateleira.

Não é possível que esqueçamos que uma das significativas razões para se permitir uma tutela jurisdicional diferenciada (tutela evidente) lastreada em títulos extrajudiciais, com contraditório eventual e posterior provocado pelo devedor, é a suposta cognição sumária existente em relação ao conteúdo do título; enfim, uma presunção legal de que o ato/fato jurídico revelado no documento tem grandes possibilidades de ser exatamente como está nele evidenciado, permitindo que se inicie a execução antes mesmo da cognição judicial.

Exatamente por isso, pensamos, não é o efeito (executivo) que a lei empresta ao documento que deveria ser o fator de agregação dos títulos, mas sim a robustez da evidência do conteúdo nele revelado. A substância e não o efeito, é que deveria justificar, com seriedade e cautela, a criação dos títulos executivos extrajudiciais. Bem, venhamos e convenhamos, se algum dia esta foi o genuíno critério de criação dos títulos executivos extrajudiciais, outorgando a estes documentos a mesma eficácia executiva que antes era restrita aos títulos judiciais, então, esse dia já ficou no passado; já não existe mais.

Na verdade, no fundo no fundo, a criação legislativa desordenada de títulos executivos extrajudiciais, muitas vezes impulsionada por motivos políticos inaceitáveis e justificáveis, impõe que saibamos que, embora estejam acomodados na vala comum do artigo 784, os documentos que ali estão arrolados, possuem, entre si, dessemelhanças evidentes acerca da presunção de verdade do que neles está contido. Aliás, a norma de encerramento contida no inciso XII, bastante comum inclusive em legislação alienígena, é claro ao dizer que serão títulos executivos extrajudiciais ''todos os demais, que por disposição expressa, a lei atribuir força executiva''. Logo, por mais incrível que possa parecer, ao longo do tempo, e, desde as minirreformas processuais de 1994, para o nosso incônscio legislador, a eficácia executiva passa a ser, patologicamente, a ''causa e o efeito'' para que um documento revelador de um crédito possa ser um título executivo.

A par do reconhecimento de que a construção da técnica processual da execução imediata lastreada em títulos executivos extrajudiciais é um método genial de se dar efetividade à tutela de um direito evidente, encurtando um longo caminho até a satisfação do direito, por outro lado, é preciso também reconhecer que nos últimos anos a criação fordiana, e muitas vezes irrefletida, de títulos executivos extrajudiciais, acaba por vulgarizar o instituto e fazer com que o que ele tem de melhor seja banalizado.

Essa proliferação descuidada e incauta de títulos executivos extrajudiciais, implica, por outro lado, e de modo inversamente proporcional, a necessária valorização dos embargos do executado.

Portanto, se é para ser assim do jeito que está e para onde está rumando o artigo 784, inflacionado em relação ao revogado artigo 585, então, é melhor que cogitemos retornar às ações executivas de 1939 (um processo especial lastreado no que hoje é título extrajudicial), cujo procedimento tinha liminarmente uma penhora e, logo depois vinha a contestação, seguindo-se o rito ordinário. Ainda, quem sabe, seja melhor transformar o processo de execução em ação sumária com desfecho duplo (procedente ou improcedente) e reconhecendo os embargos à execução, de uma vez por todas, a natureza material e formal de mera defesa do executado.

No rol do artigo 784 há atuns, ameixas e ervilhas. Talvez seja melhor repensar a arrumação da prateleira.

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*Marcelo Abelha Rodrigues é sócio do escritório Cheim Jorge & Abelha Rodrigues - Advogados Associados. Mestre e doutor pela PUC/SP e professor de graduação e mestrado da UFES.

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