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Dez comandos judiciais que não combinam com o CPC/15

Decisões que materializam verdadeiros retrocessos processuais e não se coadunam com processo civil contemporâneo.

sexta-feira, 4 de maio de 2018

Atualizado em 3 de maio de 2018 08:28

CPC/15 ressignificou alguns princípios e remodelou o sistema processual, fazendo ruir antigos dogmas. Também promoveu relevantes alterações que impactam diretamente a conduta dos sujeitos processuais, entre eles o juiz.

Neste breve ensaio, selecionamos dez pronunciamentos judiciais que, definitivamente, não fazem mais sentido à luz do CPC/15, embora se propaguem até hoje (dois anos após a sua vigência). Sabemos que existem muitos outros exemplos e não temos a menor pretensão de exaurir o tema. Pelo contrário, este artigo é um convite para novos debates e reflexões sobre o assunto.

Em razão das limitações editoriais, vamos apresentar, neste texto, apenas uma concisa explicação sobre cada um desses pronunciamentos.

  1. "Mantenho a decisão pelos próprios fundamentos." - Esse comando judicial chega a irritar. De um lado, revela a desídia do julgador e sua falta de cooperação (art. 6º do CPC/15)1 e, de outro, viola frontalmente o dever de fundamentação judicial, cerceando, a reboque, o direito de defesa da parte. Ora, se o juiz deve fundamentar as suas decisões, enfrentando de forma concreta os argumentos apresentados pelas partes capazes de infirmar a sua conclusão (arts. 11 e 489, § 1º, IV, do CPC/15), e se as partes têm o direito de influir na convicção do julgador (art. 369 do CPC/15), não pode o magistrado proferir comando genérico dessa natureza (art. 489, § 1º, III, do CPC/15)2. O mais grave é que muitas vezes esse tipo de decisão é proferida após um pedido de reconsideração em que a parte apresenta vários argumentos novos (e, portanto, até então não enfrentados pelo juiz) ou mesmo depois da oposição de embargos de declaração, no qual se alega a existência de vícios do art. 1.022 do CPC/15 que precisam ser enfrentados. Trata-se, portanto, de decisão nula!
  2. "O juiz é o único destinatário das provas, cabendo apreciá-las livremente". Nada mais démodé. Primeiro, porque as provas pertencem ao processo (princípio da comunhão ou solidariedade das provas)3 e se destinam não apenas ao juiz, mas também às próprias partes4, beneficiando ou prejudicando qualquer delas, independentemente de quem as tenha produzido, podendo, eventualmente, ser utilizadas em outros processos (prova emprestada)5. Segundo, porque o artigo 369 do CPC/15 estabelece que as partes têm o direito de empregar todos os meios legais, bem como os moralmente legítimos, para provar a verdade dos fatos em que se funda o pedido ou a defesa e influir eficazmente na convicção do juiz. Nesse particular, vale lembrar, ainda, que o CPC/15 excluiu o advérbio "livremente" que constava do art. 131 do CPC/73, corroborando a necessidade de a apreciação da prova ser contemplada na fundamentação judicial6, à luz da moldura e dos elementos do caso concreto.

  3. "Ao magistrado vinculado". Esse despacho era muito comum em duas situações: diante da ausência ocasional do magistrado prolator da decisão embargada e quando os autos eram "conclusos para sentença", mas o magistrado em exercício não havia realizado a audiência de instrução e julgamento. Ocorre que o CPC/15 extirpou do ordenamento processual civil7 o princípio da identidade física do juiz (não há dispositivo correlato ao art. 132 do CPC/73). Logo, o juiz que concluir a audiência não precisará, necessariamente, julgar a lide. Da mesma forma, ao menos em tese, não faz sentido "convocar" aquele magistrado que prolatou a decisão embargada para examinar os embargos de declaração8. Até porque, a competência e o dever de cooperação não são do juiz propriamente dito, mas do órgão jurisdicional que profere a decisão embargada9. É bem verdade que, em alguns casos, pode ser conveniente que o próprio prolator da decisão reexamine os alegados vícios apontados no decisum, pois, via de regra, quem proferiu a decisão tem melhores condições de aquilatar a existência de eventual contradição ou obscuridade (arts. 1.022, I, c/c 489, § 1º, do CPC/15). Porém, essa remessa ao "magistrado vinculado" não pode ser feita de forma automática, sem fundamentação mínima. No caso de mero erro material e omissão (art. 1.022, II e III, do CPC/15), parece não haver justificativa relevante para tal vinculação. A retificação de erro material - que, inclusive, pode ocorrer a qualquer tempo10 -, não envolve qualquer atividade interpretativa. Por sua vez, o suprimento de omissão demanda apenas a análise de algo que ainda não foi apreciado. Assim, determinar automaticamente a remessa dos autos (ou a abertura de vista) ao juiz prolator da decisão embargada (que pode, por exemplo, estar de férias) viola frontalmente a duração razoável do processo (arts. 5º, LXXVIII, da CF e 4º, 6º, 139, II, do CPC/15) e a eficiência processual (art. 8º do CPC/15), verdadeiros cânones do processo civil.

  4. "Vistos, emende-se a petição inicial, no prazo (.)". Compete ao juiz atuar de modo transparente e pragmático, proferindo comandos claros, alertando as partes sobre as consequências de suas condutas e advertindo-as sobre os defeitos existentes nos atos praticados (deveres de prevenção e esclarecimento). Porém, não basta apontar o vício. É preciso informar adequadamente, de forma objetiva, o que deve ser retificado ou corrigido. O art. 321 do CPC/15 estabelece expressamente que, quando o juiz entender ausentes os requisitos da petição inicial, deve, antes de indeferir a peça, intimar o autor para que, no prazo de 15 (quinze) dias, a emende ou complemente, indicando com precisão o que deve ser corrigido ou complementado. A petição inicial só será indeferida se o autor não cumprir a diligência. Ou seja, não basta que o juiz indique, de forma genérica, a existência de algum defeito a ser sanado na petição inicial. É necessário que ele aponte de forma específica qual é a deficiência a ser corrigida11.

  5. "Indefiro a tutela diante da ausência dos requisitos legais." O juiz não pode invocar motivos que se prestariam a justificar qualquer outra decisão (art. 489, § 1º, III, do CPC/15) e tampouco indeferir (ou deferir) tutelas provisórias lançando mão de conceitos jurídicos indeterminados (art. 489, § 1º, II, do CPC/15). De fato, não podem existir vazios lógicos entre a premissa e a conclusão12. Também não pode o órgão jurisdicional, de maneira a disfarçar o caráter genérico de sua fundamentação, limitar-se a reproduzir ou a parafrasear dispositivos normativos (como o art. 300, caput, do CPC/15, que trata dos requisitos para a tutela de urgência), sem demonstrar sua relação com o caso concreto posto à sua apreciação (art. 489, § 1º, I, do CPC/15).

  6. "Cite-se o réu para contestar no prazo legal." No procedimento comum do CPC/15, a rigor, o réu não deve mais ser citado para apresentar contestação, mas sim para comparecer à audiência de mediação/conciliação, salvo nas hipóteses do art. 334, I e II, do CPC/15. Assim, um despacho automático determinando a citação do réu tem, ao menos em tese, o condão de violar inúmeros dispositivos do novo diploma processual (arts. 3º, §§ 2º e 3º, 139, V, 334, caput, entre outros). É verdade que, em doutrina, alguns autores têm sustentado a possibilidade de dispensa da audiência mediante a oposição solitária de uma das partes13 ou quando as circunstâncias da causa indicam ser altamente improvável a autocomposição (por exemplo, se as partes já tentaram um acordo extrajudicialmente, anteriormente ao ajuizamento da demanda)14, mas tal dispensa precisa ser no mínimo justificada, não podendo o juiz, no procedimento comum, simplesmente determinar a citação do réu para apresentar contestação.

  7. "O julgador não é obrigado a se manifestar sobre cada argumento levantado pela parte (.)" Esse é um clássico do CPC/73, utilizado frequentemente para rejeitar alegações de omissão em sede de embargos de declaração. O CPC/15 adotou regra expressa em sentido contrário: de acordo com o art. 489, § 1º, IV, considera-se não fundamentada a decisão que não enfrentar todos os argumentos deduzidos no processo capazes de, em tese, infirmar a conclusão adotada pelo julgador. Não se pode, por outro lado, rejeitar genericamente os embargos de declaração sob o fundamento de que nenhum de seus fundamentos seria capaz de infirmar a conclusão alcançada na decisão embargada. Insere-se no dever argumentativo do órgão jurisdicional a necessidade de demonstrar concretamente que, mesmo que verdadeira a alegação suscitada nos embargos, a conclusão adotada na decisão embargada restaria inalterada15.

  8. "Conheço de ofício da carência de ação e, desde logo, julgo extinto o processo." O CPC/15, ao incrementar explicitamente o contraditório, para além da clássica noção de bilateralidade (informação-reação), prestigia o aspecto relacionado ao direito que as partes têm de efetivamente influir no convencimento do julgador. Por esta razão, mesmo em relação às matérias de ordem pública, não pode o órgão jurisdicional delas conhecer sem antes ter submetido o assunto ao debate processual. Trata-se da vedação às decisões-surpresa ou de terceira via, que se encontra prevista no art. 10 do CPC/15. O juiz pode, efetivamente, tomar a iniciativa de instaurar a discussão no processo sobre a falta de uma condição da ação, de um pressuposto processual ou mesmo a ocorrência de prescrição ou decadência, mas deve primeiro abrir a possibilidade para que as partes se manifestem sobre o assunto para, somente após oportunizado o contraditório, tomar a sua decisão.

  9. "Recebo a apelação no duplo efeito. Ao apelado." O CPC/15 aboliu o juízo de admissibilidade da apelação em primeiro grau de jurisdição (art. 1.010, § 3º) que existia no CPC/73. Nesse cenário, não cabe ao juiz receber ou deixar de receber tal recurso, e muito menos declarar os efeitos em que a apelação será recebida. Limita-se o órgão de primeiro grau a, via de regra, abrir prazo para contrarrazões do apelado e, uma vez sendo estas apresentadas ou esgotado o prazo para tal, determinar a remessa dos autos ao tribunal, que é o único competente para apreciar a admissibilidade do recurso. É verdade que, em algumas situações, o juiz poderá exercer juízo de retratação e voltar atrás em sua sentença em virtude da interposição de apelação (arts. 331; 332, § 3º e 485, § 7º do CPC/15). Nesse caso, deverá o juiz apreciar pelo menos a tempestividade do recurso, pois não poderia reconsiderar uma sentença transitada em julgado (Enunciado 293 do FPPC)16. Ainda assim, eventual juízo negativo em primeiro grau não seria definitivo: caso considere a apelação intempestiva, o juiz não pode se negar a processá-la. Simplesmente deixará de exercer o juízo de retratação e encaminhará os autos ao tribunal para que este dê a palavra final a respeito da admissibilidade do recurso.

  10. "Indefiro a penhora on line por violação ao princípio da menor onerosidade." Para não dizer que não falamos da execução, esse é mais um exemplo de pronunciamento que não se admite no atual código processual. Isso porque o art. 805 do CPC/15 estabelece que, caso exista mais de um meio executivo igualmente ou mais eficiente para a satisfação da obrigação, deverá ser determinada a adoção daquele que causar menor prejuízo ao executado. Trata-se de decorrência específica, na execução, do princípio da proporcionalidade, em sua vertente da vedação do excesso17. A menor onerosidade, contudo, não pode ser vista como garantia fundamental ao inadimplemento: é preciso, para que seja aplicada, que se aponte alguma alternativa igualmente ou ainda mais eficiente para a execução e que cause menor sacrifício ao executado. A regra do parágrafo único do art. 805, segundo a qual o executado tem o ônus de identificar qual meio executivo lhe seria menos gravoso, também se aplica ao juiz: não pode o julgador indeferir genericamente a medida constritiva requerida pelo exequente, devendo identificar que outro meio menos gravoso autoriza a incidência da regra da menor onerosidade da execução.

Em resumo, estes são alguns exemplos de comandos judiciais que, definitivamente, não combinam com o CPC/15. Decisões dessa natureza materializam verdadeiros retrocessos processuais e não se coadunam com o processo civil contemporâneo.

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1 Para uma análise mais vertical do tema, ver o nosso MAZZOLA, Marcelo. Tutela Jurisdicional Colaborativa: a cooperação como fundamento autônomo de impugnação. Curitiba: CRV, 2017. V. tb., de forma mais sintética, ROQUE, Andre Vasconcelos. Contraditório participativo: evolução, impactos no processo civil e restrições. Revista de Processo. São Paulo: Revista dos Tribunais, nº 279, p. 19-40, mai. 2018.

2 Nessa linha, o art. 1.021, § 3o, do CPC/15 determina que "é vedado ao relator limitar-se à reprodução dos fundamentos da decisão agravada para julgar improcedente o agravo interno."

3 Também chamado de princípio da "aquisição processual ou da comunidade das provas". NUNES, Dierle; BAHIA, Alexandre; CÂMARA, Bernardo Ribeiro; SOARES, Carlos Henrique. Curso de Direito Processual Civil: fundamentação e aplicação. 2ª ed. Belo Horizonte: Fórum, 2013, p.116.

4 Prova disso é o novo regramento da produção antecipada de prova (art. 381 e seguintes do CPC/15), no qual a prova pode ser produzida apenas para viabilizar a autocomposição ou outro meio adequado de resolução de conflito, bem como para justificar ou evitar o ajuizamento da ação.

5 De acordo com a doutrina, "as provas produzidas poderão ser emprestadas à solução de outro processo em curso, ou utilizadas para evitar o ajuizamento de futuro processo, respeitando-se o contraditório e a ampla defesa". SOUZA, Victor Roberto Corrêa de; SANTOS, Taís Loureiro. O novo CPC e o ônus da prova nas lides previdenciárias: entre a prova plena e a verossimilhança preponderante. Revista de Processo. São Paulo: Revista dos Tribunais, nº. 262, dez./2016, p. 293.

6 O artigo 371 do CPC/15 é claríssimo a esse respeito: O juiz apreciará a prova constante dos autos, independentemente do sujeito que a tiver promovido, e indicará na decisão as razões da formação de seu convencimento. Não é o caso, neste espaço, de discutir se o CPC/15 abandonou o princípio do "livre convencimento motivado", o que dependeria de conceituar o que se entende por tal princípio. Sobre o ponto, em um sentido e outro, GAJARDONI, Fernando da Fonseca. O livre convencimento motivado não acabou no novo CPC. "O livre convencimento motivado não acabou no novo CPC" e DELFINO, Lucio; LOPES, Ziel Ferreira. A expulsão do livre convencimento motivado do Novo CPC e os motivos pelos quais a razão está com os hermeneutas. Justificando, disponível em clique aqui. Acesso em 24.4.2018.

7 No âmbito do processo penal, o juiz que presidiu a instrução deverá proferir a sentença (art. 399, § 2º do CPP).

8 Fredie Didier Jr. e Leonardo Ribeiro da Cunha destacam que "o CPC de 1973, que previa a regra da identidade física do juiz para julgamento quando tivesse encerrada a instrução, não estabelecia a aplicação da identidade física aos embargos declaratórios. O CPC de 2015, que não prevê a regra da identidade física do juiz, com mais razão não impõe que os embargos de declaração sejam examinados e julgados pelo mesmo juiz". DIDIER JR, Fredie; CUNHA, Leonardo Carneiro da. Curso de Direito Processual Civil. v. 3. Salvador: JusPodivm, 2016, p. 265.

9 MAZZOLA, Marcelo. Cooperação entre órgãos jurisdicionais deve ser princípio que permeia o processo.

10 Enunciado 360 do Fórum Permanente de Processualistas Civis: "A não oposição de embargos de declaração em caso de erro material na decisão não impede sua correção a qualquer tempo".

11 A sistemática também se aplica à ação monitória (art. 700, § 5º), à ação rescisória (art. 968, § 5º), ao mandado de segurança, à reclamação, aos processos coletivos, entre outros.

12 No mesmo sentido GRAMSTRUP, Erik Frederico; THAMAY, Rennan Faria Krüger. Motivação das decisões judiciais. Revista de Processo. São Paulo: Revista dos Tribunais, nº 267, maio/2017, p. 116. Como pondera Humberto Theodoro Jr., técnicas como da proporcionalidade e princípios como a dignidade da pessoa humana, boa-fé, supremacia do interesse público, entre outros, não podem ser vistos como uma forma moderna de se dizer "em nome de Deus". THEODORO JR., Humberto. Breves Considerações sobre a politização do Judiciário e sobre o panorama de aplicação no direito brasileiro - análise da convergência entre o civil law e o common law e dos problemas da padronização decisória. Revista de Processo. São Paulo: Revista dos Tribunais, nº. 189, nov./2010, p. 9

13 Nesse sentido, TARTUCE, Fernanda. Mediação nos conflitos civis. 2 ed. São Paulo: Método, 2015, p. 295 e 298; SCARPINELLA BUENO, Cassio. Manual de direito processual civil. São Paulo: Saraiva, 2015, p. 272; CÂMARA, Alexandre Freitas. O novo processo civil brasileiro. São Paulo: Atlas, 2015, p. 199.

14 GAJARDONI, Fernando da Fonseca. Comentários ao art. 334 in GAJARDONI, Fernando da Fonseca et al. Processo de conhecimento e cumprimento de sentença - Comentários ao CPC de 2015. São Paulo: Método, 2016, p. 82-83.

15 Sobre o ponto, considerando que, na prática, o STJ continua a aplicar o CPC/73 neste aspecto, DELLORE, Luiz. Algo mudou na fundamentação das decisões com o novo CPC?

16 Enunciado 293 do Fórum Permanente de Processualistas Civis: "O juízo de retratação, quando permitido, somente poderá ser exercido se a apelação for tempestiva".

17 Nesse sentido, ROQUE, Andre Vasconcelos. Comentários ao art. 805 in GAJARDONI, Fernando da Fonseca et al. Execução e recursos - Comentários ao CPC de 2015. São Paulo: Método, 2017, p. 160.

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*Marcelo Mazzola é mestre em Direito Processual pela UERJ. Professor de Processo Civil da Escola de Magistratura do Estado do Rio de Janeiro (EMERJ). Advogado e sócio do escritório Dannemann Siemsen Advogados.




*Andre Vasconcelos Roque é doutor e mestre em Direito Processual pela UERJ. Professor Doutor da UFRJ e advogado.




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