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Sobre democracia e advogados

Não existe uma democracia assim ou assado, conforme os interesses do governante do momento. Se assim é, não é democracia.

segunda-feira, 4 de junho de 2018

Atualizado em 23 de setembro de 2019 18:00

Estive em Cuiabá, na sexta-feira da semana passada, onde foi instado a falar sobre advogados e democracia. Penso que foi uma oportunidade para alinhavar ideias em torno de algo realmente fundamental: os advogados são construtores e fiadores da democracia enquanto um sistema político imperfeito, mas o único possível de garantir liberdades civis e assegurar os direitos individuais indisponíveis

Na palestra que fiz em Cuiabá, lembrei que somente na democracia um advogado pode exercer livremente a prerrogativa de ser o arrimo de uma pessoa até que se esgotem todas as possibilidades à ampla defesa e ao contraditório.

Dito deste modo pode parecer elementar demais que a advocacia seja o último bastião em defesa da liberdade. Ou, de outro modo, se conhecemos e aceitamos a democracia com naturalidade, parece que esse sistema político fixou-se entre nós como uma dádiva e não como conquista ou um valor universal construído ao longo de séculos.

Sabemos que a democracia é um sistema vivo, que vem sendo erigido ao longo de pelo menos dois séculos e meio - possivelmente mais, a partir das ideias liberais surgidas no Iluminismo.

Isso nos leva a observar a democracia liberal não apenas como um sistema político com a escolha pelo voto daqueles que nos governam ou legislam segundo interesses da sociedade. No sentido da construção de uma democracia ampla, a liberdade vai além do direito de ser livre somente sob o império da lei. O respeito ao direito, à livre circulação das ideias, a empreender e a agir sem amarras é a pedra basilar da democracia. Assenta-se sobre essa base firme a nossa ação como advogados.

Nós nos guiamos pelo caminho amplo do conceito de liberdade construído em ideias que estão no espírito de leis fundantes desse sistema, como a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, na França revolucionária de 1789, ao pregar que "a liberdade consiste em poder fazer tudo que não prejudique o próximo. Assim, o exercício dos direitos naturais de cada homem não tem por limites senão aqueles que asseguram aos outros membros da sociedade o gozo dos mesmos direitos. Estes limites apenas podem ser determinados pela lei".

A liberdade no sentido de ser garantidora de direitos e deveres em uma sociedade é a argamassa da democracia e matéria-prima essencial ao exercício da advocacia. Observe-se, portanto, que a democracia é o império do direito, no sentido de que sejam respeitados limites decorrente dele, para que alguém não sobreponha sobre outro, de modo arbitrário, os seus interesses.

Por isso, o advogado não é meramente um defensor da lei, mas do Direito, que é o espaço mais adequado da cidadania, ao fim e ao cabo, o respeito aos direitos civis, individuais e indisponíveis das pessoas.

Sob essa visão, a democracia, para existir em qualquer parte do mundo, precisa que haja um absoluto respeito às garantidas individuais do cidadão. Sobre isso, temos no Brasil uma lição formidável de Raymundo Faoro.

Quando a linha dura do regime militar confrontava o general ditador Geisel para que a ditadura fosse ainda mais feroz, Raymundo Faoro foi recebido em audiência pelo general. Faoro queria uma abertura política mais célere, denunciava a monstruosidade da tortura, que precisava ter fim. O general, acuado em seu labirinto de escuridão pela ausência da luz da liberdade, até concordava. Pediu a Faoro que lhe dissesse como acabar com a tortura e as prisões arbitrárias que a alimentavam. O grande brasileiro, disse ao general: "Muito simples. Restabeleça o habeas-corpus".

Faoro apontou o rumo mais simples para a democracia: garantir que uma pessoa não fosse presa de modo arbitrário, sem descaminhos ou atalhos. Democracia é simplesmente o respeito aos direitos das pessoas, às suas garantias individuais, ao império da lei sobre todo o resto.

Democracia é, como ensinou outro herói brasileiro, o advogado Sobral Pinto, um valor universal, que não pode ser rotulado ou tornado simulacro de um sistema político bom. Não existe uma democracia assim ou assado, conforme os interesses do governante do momento. Se assim é, não é democracia. E ponto final!

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*Álvaro Fernando da Rocha Mota é advogado. Procurador do Estado. Ex-Presidente da OAB. Presidente do Instituto dos Advogados Piauienses.

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