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A favor do Banco Central independente

Que venha a desejável autonomia do BCB, lembrando-se de que, tendo a lei 4.595/64 sido recepcionada pela Constituição Federal de 1988 como lei complementar, somente por meio de uma nova lei dessa mesma natureza a mudança poderá ser válida e eficazmente implementada.

segunda-feira, 5 de novembro de 2018

Atualizado em 25 de setembro de 2019 18:07

Notícias do novo governo indicam ser favorável a um Banco Central do Brasil - BCB - independente ou autônomo. O tema tem sido discutido há décadas nos meios jurídicos e econômicos, marcado por uma diferença que existiria entre independência (liberdade total) e autonomia (liberdade segundo um status jurídico legal de controle). É claro que ninguém em são juízo defende uma independência irrestrita, imprópria do ponto de vista jurídico e inviável dentro de qualquer economia à qual alguns chamaram indevidamente de quarto poder (ou quinto, porque se tem atribuído ao MP uma primazia em tal sentido),

Minha preocupação com o assunto vem desde o tempo em que ainda me encontrava como servidor do BCB (1967-1997) e exteriorizada em dois textos que foram publicados, "Os regimes jurídicos e políticos dos bancos centrais. Direito da integração", São Paulo: Cultural Paulista, 2001 e "Bancos Centrais no Direito Comparado", Malheiros Editores, 2005. O assunto volta à baila em obra no prelo, a ser brevemente editada pela Quartier Latin ("Aspectos da Teoria Geral do Direito Bancário"). Na ocasião da elaboração do segundo texto acima citado examinei a estrutura e funções de muitos bancos centrais para o fim de chegar a uma conclusão em favor de sua autonomia como condição para a estabilidade da moeda. Condição não perfeita, mas plenamente eficaz. Entre as instituições estudadas estavam os bancos centrais dos EUA, do Canadá, da Inglaterra, da Alemanha, da Itália, da França, da Nova Zelândia, da Austrália, do Chile, do Brasil, etc.

Tudo tem a ver, como foi dito acima, com a questão da estabilidade da moeda e da instrumentalização jurídica necessária para o fim da realização de sua tríplice função: meio de pagamento, reserva de valor e unidade de conta. Todo e qualquer Estado soberano reserva para si a prerrogativa de emitir a única moeda dotada de curso forçado (circulação a aceitação obrigatória no território nacional) e a maior parte deles tem um banco central responsável pela implantação e garantia dessas funções. Alguns bancos centrais, como é o caso do FED norte-americano, incluem em sua competência a questão do nível de emprego, o que os obriga a atuar com um pé em cada uma dessas canoas, tomando o cuidado para não perder o equilíbrio. Especialmente no tocante ao Brasil entendemos que esta não é a melhor alternativa.

O problema que leva à necessidade de bancos centrais independentes é a inefável vocação gastadora dos Estados, o que os transforma em emissores descontrolados de moeda, a mãe de todas as inflações, como diria alguém. E para botar um freio nisto é preciso que um órgão do Governo, dotado de autonomia em relação a ele, cuide da moeda sem estar sujeito a injunções indevidas. Para tanto alguns parâmetros são colocados como indispensáveis.

Um estudo comparativo dos bancos centrais aponta cinco características básicas, necessárias para que possam exercer eficazmente a sua função de guardião da moeda: (i) execução da política monetária; (ii) emissão de moeda; (iii) banco dos bancos; (iv) banqueiro do governo; e (v) execução da política cambial.

Sob outro ponto de vista, conforme o Tratado de Maastricht e o Protocolo para o Estatuto do Sistema Europeu de Bancos Centrais, nestes se verifica que o objetivo primário de um Banco Central seria aquele correspondente à estabilidade da moeda, do qual derivariam quatro tarefas básicas: (i) definir e implementar a política monetária; (ii) realizar as operações internacionais de câmbio; (iii)) custodiar e administrar as reservas em moeda estrangeira; e (iv) promover as operações do sistema de pagamentos. O câmbio entra nessa novela porque todos os países que se inserem nas trocas internacionais de bens e de serviços necessitam operar com a moeda própria e com outras utilizadas no ambiente internacional dos negócios.

Essas funções dependem da autonomia de tais órgãos que, por sua vez, fica condicionada a alguns fatores essenciais, a principal delas consistente em uma vacina contra a interferência do governo na gestão das políticas a cargo dos Bancos Centrais, fundadas na escolha de diretores independentes daqueles e na existência de mandatos fixos para os seus diretores, não coincidentes com o mandato do presidente da República. Neste sentido, os diretores de bancos centrais não podem ser representantes nem funcionários subalternos do governo central, sujeitos a intromissões indevidas e/ou a demissões voluntariosas, subordinadas estas ao exercício do devido processo legal e fundadas obrigatoriamente na comprovação inequívoca da prática de faltas graves quanto às suas competências.

É evidente que governos autoritários têm ojeriza a bancos centrais autônomos, pois eles impedem (ou mínimo tornam muito difícil) interferências indevidas na economia, para o fim da implantação de ditaduras declaradas (ou disfarçadas como quase perfeitas democracias, como já se disse). Mas governos que sejam gastadores inveterados não se animam de forma alguma com bancos centrais independentes, pois estes atrapalham os seus planos, havendo quem defenda que um pouco de inflação faz bem para as economias, pois seriam geradoras do aumento da atividade econômica e, consequentemente, de empregos. Que o digam a Alemanha da década de vinte do século passado e a Venezuela de hoje. E mesmo o nosso Brasil em tempos sarneyanos.

Inflação somente pode ser considerada boa para quem tenha condições de migrar com o seu dinheiro para terras mais seguras, como é o caso de moedas fortes, ouro, pedras preciosas e outros ativos que não sejam contaminados pela depreciação do valor da moeda. Do lado da sociedade desbancarizada e sem acesso a arbitragens monetárias, o prejuízo é tão maior quanto mais for a dependência de moeda em espécie. Nesses momentos os fiscais do Sarney somente servem para fazer espuma na cerveja.

Devidamente construída, a autonomia dos bancos centrais é perfeitamente compatível com o regime democrático (o qual, na verdade, ajuda a cimentar), segundo um desejável equilíbrio entre os poderes constitucionais e a organização econômica interna.

Tudo isto está misturado com o funcionamento eficaz do sistema financeiro interno, também sujeito à competência dos bancos centrais e, como natural, ao regime do crédito que, irresponsavelmente alargado, é uma mola para a inflação.

Nos termos da lei de Reforma Bancária o BCB goza de uma autonomia relativa, dependente de aperfeiçoamento para que possa ficar ao largo de tentativas de sua captura pelo governo central. Ainda que sua atuação tenha se pautado em boa parte de sua história por certo grau de autonomia, em alguns momentos ela se viu arranhada por intromissões do governo em sua agenda interna e, mais comumente, por um jogo realizado fora dos seus muros, querendo isto dizer, no âmbito do Ministério da Fazenda, ou mesmo um pouco acima dele. Todos nos lembramos das pedaladas fiscais e da adoção de uma tal de contabilidade criativa, práticas que foram engendradas para fins políticos e que redundaram em desastres monetários e econômicos de diversa espécie. Quem assim fez terminou derrapando na manteiga, e causando um estrago bastante sério na economia, cujos efeitos perdurarão durante muito tempo ainda.

O governante sério sabe que governar é perigoso e que os recursos que ele deseja para os seus projetos sempre serão escassos. E, sendo assim, quando existem barreiras à sua atuação eventualmente irresponsável e danosa, ele mesmo se sente seguro quando sabe que o ordenamento jurídico/econômico se protege por meio de um adequado sistema de freios e de contrapesos. No nosso caso aqui se trata da existência de amarras contra a irresponsabilidade monetária, da qual os bancos centrais devem cuidar, mesmo que, do ponto de vista fiscal, governo e legislativo não se preocupem com os efeitos de uma política expansionista total ou parcialmente desequilibrada.

Portanto, que venha a desejável autonomia do BCB, lembrando-se de que, tendo a lei 4.595/64 sido recepcionada pela Constituição Federal de 1988 como lei complementar, somente por meio de uma nova lei dessa mesma natureza a mudança poderá ser válida e eficazmente implementada.

Napoleão Bonaparte, que sabia das coisas, e mesmo tendo uma cabeça imperialista, disse certa vez que "Je veux que la Banque (...) soit dans la main du Gouvernement mais qu'elle ný sois pas trop". ("Eu desejo que o Banco esteja sob o controle do Governo, mas não muito" - trad. Livre - de acordo com Geneviève Iacono, "Le nouveau status de la Banque de France, une étape vers l'union economique et monetaire", Recueil Dalloz, Sirey 89, março/94.

Esse não muito é precisamente o campo da autonomia a ser buscada e que venha finamente.

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*Haroldo Malheiros Duclerc Verçosa é sócio de Duclerc Verçosa Advogados Associados. Professor Sênior de Direito Comercial da Faculdade de Direito da USP.

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