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Mudanças infralegais no setor de gás: decreto do gás para crescer

Talvez seja o momento de agentes e reguladores ponderarem se há necessidade de uma (totalmente nova) "lei do gás", ou se a atual poderia ser alterada de forma mais pontual.

quarta-feira, 26 de dezembro de 2018

Atualizado em 7 de outubro de 2019 16:32

O presidente da República assinou em 17 de dezembro de 2018 o decreto 9.616 ("decreto"), que busca, dentro do modelo regulatório estabelecido pela lei do gás de 2009 (lei 11.909, de 4 de março de 2009), estabelecer diretrizes à Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis - ANP para a regulamentação de alguns aspectos do setor de gás.

O decreto altera, amplia e exclui dispositivos do decreto 7.382 de 2 de dezembro de 2010, que regulamentou a lei do gás no que diz respeito às atividades de transporte, importação, exportação, estocagem, acondicionamento, escoamento da produção, processamento, tratamento, liquefação, regaseificação, distribuição e comercialização de gás natural. Entrou em vigor em 18 de dezembro de 2018, data de sua publicação, mas depende, em grande parte, de regulamentação da ANP para que tenha efeitos concretos.

Contexto regulatório

O decreto é resultado da iniciativa gás para crescer, lançada pelo Governo Federal em 24 de junho de 2016, com o objetivo de estudar e elaborar propostas para manter o adequado funcionamento do setor de gás, diante de um cenário de redução da participação da petróleo brasileiro S.A. - Petrobras nesse mercado.

Foram realizadas consulta pública e reuniões de subcomitês estabelecidos para discutir os gargalos do setor do gás, sob diferentes aspectos e visões, iniciativa que resultou em amplo debate entre os mais diversos agentes, associações e demais partes interessadas no setor.

A expectativa era de que o principal e mais concreto resultado do gás para crescer seria uma nova lei do gás, com mudanças mais profundas no modelo regulatório vigente. O assunto está sendo discutido na Câmara dos Deputados no âmbito do projeto de lei 6.407/13, que já conta com algumas propostas de textos substitutivos refletindo contribuições do gás para crescer.

Havia grande expectativa no final de 2017 que o projeto de lei pudesse ser aprovado ainda naquele ano. Não foi. Havia grande expectativa no final deste ano também, mas ainda não foi desta vez.

Com isso, mudanças infralegais tornaram-se a alternativa mais viável no curto prazo, resultando na edição do decreto. A ANP também lançou recentemente a tomada pública de contribuições 6/18, com o objetivo de coletar contribuições, dados e informações sobre promoção da concorrência e desverticalização na indústria de gás natural, assim como o aumento da oferta de gás natural ao mercado.

Alterações do decreto

As principais alterações resultantes do decreto foram as seguintes:

(a) introdução do conceito de "sistema de transporte de gás natural", sendo possível que a malha de transporte dutoviário seja organizada em sistemas formados por gasodutos interconectados e por outras instalações de transporte, nos termos da regulação da ANP;

(b) previsão de que os serviços de transporte de gás natural serão oferecidos no regime de contratação de capacidade por entrada e saída, em que a entrada e a saída poderão ser contratadas de forma independente (isto é, diferentes carregadores). Nesse caso, as tarifas nos sistemas de transporte de gás natural devem ser estruturadas pelos transportadores, considerados os mecanismos de repasse de receita entre eles, conforme regulação da ANP;

(c) ainda no tocante às tarifas, foi expressamente previsto que as novas modalidades de serviço de transporte de gás natural não prejudicarão os direitos dos transportadores decorrentes dos contratos vigentes na data de publicação. Salutar também a previsão de que a regulação da ANP poderá estabelecer incentivos em relação à receita máxima permitida aos transportadores, para a adequação dos contratos de serviço de transporte de gás natural vigentes com vistas a organizar os sistemas de transporte a serem cobertos com a oferta das novas modalidades de serviço;

(d) competência da ANP para classificar gasodutos não enquadrados nas definições existentes, "escoamento de produção", "transferência" e "transporte" -- incluídos os que conectam unidades de processamento ou de tratamento de gás natural ou de instalações de estocagem a instalações de transporte ou de distribuição --, observado o monopólio dos Estados para explorar diretamente, ou mediante concessão, os serviços locais de gás canalizado;

(e) nova competência à ANP para disciplinar os critérios de autonomia e independência, tanto para transportadores novos quanto existentes, para o exercício da atividade de transporte de gás natural em relação às atividades da indústria de gás que não podem ser exercidas por esses agentes, com vistas à promoção da livre concorrência, da transparência das informações, do acesso não discriminatório aos gasodutos (open access) e do uso eficiente das infraestruturas;

(f) mudança na disciplina do plano decenal de expansão da malha de transporte dutoviário do país - PEMAT, ao estabelecer que o ministério de Minas e Energia - MME considerará os estudos de expansão da malha dutoviária do país desenvolvidos pela empresa de pesquisa energética - EPE, mas que a EPE elaborará os estudos considerando os planos de investimentos dos transportadores, as informações de mercado e as diretrizes do MME. Espera-se, portanto, redução do papel central do Estado no planejamento do setor, havendo maior preponderância para as informações de mercado e planos de investimentos dos próprios transportadores;

(g) necessidade de aprovação pela ANP das tarifas de transporte de gás natural propostas pelo transportador, obedecidos os critérios por ela previamente estabelecidos, para fins de acesso de terceiros (open access);

(h) exclusão da falta de obrigatoriedade de conceder livre acesso (open access) às instalações de estocagem de gás natural diferentes de reservatórios de hidrocarbonetos devolvidos à União e em outras formações geológicas não produtoras de hidrocarbonetos, em que o livre acesso já era previsto. Assim, caberá à ANP regulamentar esse livre acesso;

(i) embora continue não obrigatória a permissão de acesso de terceiros (open access) a gasodutos de escoamento da produção, instalações de tratamento ou processamento de gás natural --- assim como terminais de GNL e as unidades de liquefação e de regaseificação --- foi incluída previsão de que a negativa de acesso que configure conduta anticompetitiva sujeitará os agentes às sanções cabíveis, conforme o disposto na lei 12.529, de 30 de novembro de 2011 (lei de defesa da concorrência). Nota-se, assim, um potencial de maior coordenação entre a ANP e o sistema brasileiro de defesa da concorrência;

(j) no mesmo sentido, foi atribuída competência à ANP para estabelecer as diretrizes para a elaboração conjunta de códigos comuns de acesso, amparados nas boas práticas internacionais, pelos agentes detentores ou operadores de instalações de escoamento, de processamento e de terminais de GNL, com vistas à eficiência global das infraestruturas e a minimização de impactos ambientais. A ANP deverá definir os procedimentos a serem adotados para a solução de conflitos entre agentes econômicos nas hipóteses em que as tratativas de acesso não tiverem êxito, com ênfase na conciliação e no arbitramento; e

(k) por fim, foi incluído artigo incentivando um pacto nacional no setor de gás, ao estabelecer que a União, por intermédio do MME e da ANP, articulará com os Estados e com o Distrito Federal para a harmonização e o aperfeiçoamento das normas atinentes à indústria de gás natural, inclusive em relação à regulação do consumidor livre. Trata-se do embate entre a concessão de serviço público local de gás canalizado, objeto de regulação dos Estados, e as demais atividades da indústria de gás, sujeitas à regulação da União, inclusive o transporte e a comercialização de gás.

Além das disposições indicadas no item 7 acima, foram também revogados diversos dispositivos do decreto 7.382, de 2010, principalmente com o objetivo de diminuir gargalos e limitações no que diz respeito ao processo de concessão de novos gasodutos, regra geral no atual modelo regulatório.

Comentários finais

É sempre importante lembrar que decreto não pode alterar lei e, mesmo uma nova lei, não pode prejudicar o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada. Princípio básico de segurança jurídica, sem a qual não há confiança para os necessários investimentos.

Considerando que o setor de gás, assim como vários outros de infraestrutura no Brasil, é caracterizado por contratos de longo prazo (concessão, fornecimento, transporte, entre outros), o decreto é muito apropriado ao prever expressamente que não haverá prejuízo a direitos existentes e buscar ajustes consensuais e utilização de incentivos para a adequação de contratos, ao invés de ser impositivo sobre essas questões.

É importante que a mesma precaução seja adotada pela ANP, que precisará regulamentar diversas questões com base nas modificações estabelecidas pelo decreto, não sendo possível inovar na regulamentação. Como se diz popularmente, o "diabo mora nos detalhes", e há muitos detalhes que precisarão ser regulados, tal como risco de crédito entre transportadores e carregadores, condições de acesso e normas de independência, entre outros.

Além da tradição de respeito aos contratos existentes no setor de petróleo e gás, independentemente da mudança de regras, é fundamental o compromisso com a segurança jurídica e evitar que qualquer tema seja judicializado.

Da mesma forma, no que diz respeito a eventuais divergências entre regulamentações estaduais e federais, é preciso considerar o disposto nos contratos de concessão firmados com empresas privadas e sociedades de economia mista.

Tendo em vista a aprovação do decreto e, em breve, de regulamentação da ANP sobre essas questões, resta uma ponderação a ser feita. Seria o decreto suficiente ou ainda há necessidade de uma mudança regulatória mais ampla?

Há propostas no substitutivo ao PL 6407/13 que não podem ser objeto de decreto ou de regulamentação da ANP, tal como a mudança do regime de concessão para autorização na atividade de transporte, para citarmos apenas um exemplo. Talvez seja o momento de agentes e reguladores ponderarem se há necessidade de uma (totalmente nova) "lei do gás", ou se a atual poderia ser alterada de forma mais pontual. Novamente, a preocupação é garantir segurança jurídica e evitar quaisquer rupturas e esforços regulatórios em vão.

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*Marcello Portes da Silveira Lobo é sócio do escritório Pinheiro Neto Advogados.

*Marcella L. O. Duffles Amarante é associada do escritório Pinheiro Neto Advogados.










*Este artigo foi redigido meramente para fins de informação e debate, não devendo ser considerado uma opinião legal para qualquer operação ou negócio específico.
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