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Mais uma (des)medida para regulamentação do transporte individual por aplicativos

Daniel Pinheiro Longa e Giuliana Cesani de Oliveira

A regulamentação estabelece uma série de obrigações aos prestadores de serviço de transportes por aplicativo. Com a entrada em vigor da lei, a atividade passou a ser alvo da incidência de tributos municipais, sofrendo a fiscalização direta dos Municípios e do Distrito Federal.

quinta-feira, 11 de abril de 2019

Atualizado em 10 de abril de 2019 09:48

Em março de 2018 entrou em vigor a lei 13.640, alterando a Política de Mobilidade Urbana estabelecida pela lei 12.587/12. A finalidade da alteração legislativa foi promover a regulamentação do serviço de transporte por aplicativo, medida que há muito vem sendo almejada pelo poder público, mas que encontrou diversos entraves por conta de decisões judiciais proferidas pelo Brasil.

A regulamentação estabelece uma série de obrigações aos prestadores de serviço de transportes por aplicativo. Com a entrada em vigor da lei, a atividade passou a ser alvo da incidência de tributos municipais, sofrendo a fiscalização direta dos municípios e do Distrito Federal. Os prestadores de serviço agora também estão obrigados a contratar o Seguro de Acidentes Pessoais a Passageiros (APP) e do Seguro Obrigatório de Danos Pessoais causados por Veículos Automotores de Vias Terrestres (DPVAT), além de ser necessário que esses se inscrevam como contribuinte individual do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS).

A lei ainda condiciona a autorização do serviço por aplicativo somente ao motorista que (i) possuir Carteira Nacional de Habilitação na categoria B ou superior, com expressa menção à prática de atividade remunerada; (ii) conduzir veículo que atenda à idade máxima e às características exigidas pelas autoridades de trânsito; (iii) emitir e manter o Certificado de Registro e Licenciamento de Veículo (CRLV); e (iv) apresentar certidão de antecedentes criminais.

Acontece que, mesmo com a promulgação da lei federal, não é certo que os problemas judiciais oriundos dessas tentativas regulamentadoras venham a cessar. Isso porque, com a entrada em vigor do diploma legislativo em questão, os Municípios e o Distrito Federal se tornaram responsáveis pela regulamentação e fiscalização do transporte remunerado privado e individual de passageiros.

Sem adentrar no mérito dessas medidas, e mesmo nos custos oriundos da regulamentação - que certamente irão encarecer a prestação dos serviços - o fato é que a constitucionalidade da nova lei promulgada é extremamente questionável.

O artigo 22 da Constituição Federal estabelece que é competência privativa da União, sobre a qual os demais entes federativos não podem dispor, legislar sobre "diretrizes da política nacional de transportes", bem como matérias de "trânsito e transporte" em geral. A única exceção apresentada pela Constituição Federal refere-se a questões específicas destas matérias, que podem ser regulamentadas pelos Estados, por meio de lei complementar exercendo sua competência legislativa suplementar. Todavia, não há qualquer previsão constitucional permitindo que os Municípios legislem sobre matéria de transporte, sobretudo estabelecendo diretrizes gerais - como a lei em comento parece estabelecer - mesmo que a legislação municipal se atenha aos limites deste ente federativo.

Portanto, a regulamentação desse serviço pelos municípios e Distrito Federal representa clara afronta ao princípio federativo da repartição de competências legislativas. Nem mesmo a competência suplementar conferida aos municípios para legislar sobre assuntos de interesse local autoriza a criação de normas cuja matéria seja de competência exclusiva da União.

Vale dizer ainda que o serviço de transporte privado individual de passageiros não deve ser considerado serviço público. No caso, simplesmente estão ausentes os requisitos da essencialidade e do monopólio, o que afasta a atividade dos chamados "serviços públicos" ou de "utilidade pública".

O caráter essencial do serviço é afastado pela própria lei 13.640/18. Essa estabelece a necessidade de prévio cadastramento, tanto de passageiros quanto de motoristas, nas plataformas tecnológicas que operam sob o regime jurídico privado. Ao impor novas definições à Política de Mobilidade Urbana, a lei 13.640/18 é clara ao classificar os serviços de transportes por aplicativos como serviços de transporte individual privado de passageiros. Portanto, esse serviço se inclui entre aqueles que estão na modalidade "não aberto ao público", sobre os quais não poderia a União dispor, e muito menos delegar aos municípios a competência para regulá-los. Portanto, notória a afronta à competência privativa da União estabelecido pelo diploma legal, devendo essa ser declarada inconstitucional.

Ademais, os efeitos práticos dessa regulamentação podem ser extremamente problemáticos. Considerando que cada município pode regulamentar o transporte por aplicativo de uma maneira diferente, poderia se antever situações estapafúrdias, na qual um motorista que roda no município de São Paulo poderia não estar apto a dirigir no município de Guarulhos ou dentro do ABC Paulista em razão da legislação local. Essa lógica poderia prejudicar de forma exacerbada a mobilidade em regiões metropolitanas e grandes centros urbanos, e até inviabilizar a própria atividade em razão do excesso de regulamentação a ser cumprida em cada um dos cerca de 5.500 municípios brasileiros.

O fato é que o serviço prestado pelos motoristas através de aplicativos enquadra-se nos preceitos estabelecidos no artigo 170 da Constituição Federal, que garante a ordem econômica e a livre iniciativa no país. A relação aqui firmada deve ser regida pelos ditames da ampla concorrência e firmada dentro de uma lógica de direito privado, e não por uma extensa e burocrática regulamentação pública - a ser elaborada de forma individualizada por cada município do país.  

Dessa forma, não caberia aos Estados, e muito menos aos municípios, regulamentar os serviços de transporte por aplicativo. Ainda que se argumentasse que a matéria é de interesse local, este fato não pode se sobrepor a um interesse amplo da União e ao texto expresso da Constituição Federal do Brasil.

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*Daniel Pinheiro Longa é advogado do escritório Cescon Barrieu Advogados. 

*Giuliana Cesani de Oliveira é advogada. 





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