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Coisa julgada sobre questão em benefício de terceiro

A coisa julgada limitada apenas às partes é uma forma tradicional que o direito brasileiro estudou o tema. Contudo, o direito processual a cada dia aproxima-se mais do common law, trazendo maior pragmatismo às soluções dos conflitos.

quinta-feira, 27 de junho de 2019

Atualizado em 26 de junho de 2019 12:54

A coisa julgada sobre questão em benefício de terceiro é um tema novo no direito brasileiro, que nos aproxima um pouco mais do common law.

Estamos acostumados a pensar que a coisa julgada limita-se ao pedido e às partes envolvidas na demanda. Este pensamento tem raízes históricas que abordarei em um outro texto. Contudo, pela interpretação dos artigos 503 e 506 do Código de Processo Civil, houve uma modificação importante na forma como se interpreta a coisa julgada.

Se uma questão já foi definitivamente julgada, mediante amplo contraditório e acesso às provas, por que será dado o direito à parte que violou o direito de formular os mesmos argumentos em outra demanda, repetindo suas contestações, somente porque a vítima é outra?

Impedir o relitígio gera previsibilidade de decisões judiciais, não viola a ampla defesa e gera economia ao Poder Judiciário.

A coisa julgada sobre a questão

A coisa julgada sobre questão está regulada no artigo 503 do Código de Processo Civil:

Art. 503. A decisão que julgar total ou parcialmente o mérito tem força de lei nos limites da questão principal expressamente decidida.

§ 1º O disposto no caput aplica-se à resolução de questão prejudicial, decidida expressa e incidentemente no processo, se:

I - dessa resolução depender o julgamento do mérito;

II - a seu respeito tiver havido contraditório prévio e efetivo, não se aplicando no caso de revelia;

III - o juízo tiver competência em razão da matéria e da pessoa para resolvê-la como questão principal.

§ 2º A hipótese do § 1º não se aplica se no processo houver restrições probatórias ou limitações à cognição que impeçam o aprofundamento da análise da questão prejudicial.

Quando uma questão principal depender de uma questão antecedente, esta questão antecedente é prejudicial da principal.

Ricardo Alexandre da Silva (2019), traz exemplo na área de família, envolvendo ação de alimentos. Na demanda movida por quem declara ser filho contra o pretenso pai pleiteando alimentos, para que esses sejam concedidos deve-se, de forma antecedente, ser apreciada questão parental. Decidida a filiação, passa-se a análise do mérito da demanda que é a concessão dos alimentos. Nesse caso, a questão prejudicial é a investigação da paternidade. Havendo decisão sobre essa questão, reconhecendo a paternidade, automaticamente, tanto o pedido de alimentos pode ser apreciado, como também, o filho passa a ter o direito de futuramente se habilitar no inventário do pai, sem a necessidade de nova ação para declarar a paternidade, que já foi reconhecida na ação de alimentos. A questão prejudicial da ação de alimentos faz coisa julgada, estabilizando a relação de parentesco.

Luiz Guilherme Marinoni (2018, p. 26), primeiro autor brasileiro a dedicar uma obra exclusiva sobre o tema, esclarece que "quem é vencido num processo é declarado sem direito; não simplesmente declarado perdedor em face do vencedor".

A coisa julgada tem a autoridade de revelar para a sociedade o entendimento do Poder Judiciário. Assim, para a manutenção do funcionamento do sistema judicial é imperioso identificar e eliminar a litigância desnecessária, sem enfraquecer o coração do processo justo, segundo o autor.

Requisitos para que possa ocorrer a coisa julgada sobre questão

Conforme descrito no art. 503, para que possa aplicar a coisa julgada sobre a questão é fundamental que ocorra de forma concomitante os seguintes requisitos: a) a existência de contraditório prévio e efetivo sobre a matéria; b) a competência do juízo para apreciação da matéria e em razão da pessoa que será afetada pela coisa julgada; c) a ampla liberdade para produção de provas; d) a cognição sobre a questão deve ser exauriente; e) a decisão sobre a questão deve ser expressa e fundamentada.

Quando a coisa julgada pode beneficiar terceiros

O art. 506 do CPC estabelece: "A sentença faz coisa julgada às partes entre as quais é dada, não prejudicando terceiros".

No código revogado a coisa julgada não poderia beneficiar e nem prejudicar terceiros. Nota-se que foi suprimida a expressão "não pode beneficiar", que existia no art. 472 do CPC revogado.

Evidente que o sistema judicial brasileiro caminha para aproximar-se do common law. Os precedentes (stare decisis) já são uma realidade. Por sua vez, a coisa julgada sobre questão (collateral estoppel), inclusive beneficiando terceiros (non-mutual collateral estoppel), após a entrada em vigor do CPC de 2015, deve também ser aplicada, como forma de racionalizar os recursos financeiros dispendidos em um processo, mas, também, para trazer maior previsibilidade das decisões judiciais.

Quando a culpa pelo evento danoso já foi decidida em processo anterior, com amplo contraditório e acesso a todos os meios de provas admitidos, essa questão faz coisa julgada entre as partes, mas também se estende em benefício de terceiros. Outro demandante, em outro processo movido contra a mesma demandada, decorrente do mesmo fato, não precisará mais provar a responsabilidade pelo evento danoso, de modo que bastará provar a extensão do dano que sofreu.

Bem vistas as coisas, não se pode dar ao Poder Judiciário poder para decidir duas vezes uma mesma questão, sob pena de violar a otimização da prestação jurisdicional e, principalmente, violar a confiança justificável dos jurisdicionados acerca da estabilidade, da coerência e da isonomia das decisões judiciais transitadas em julgado.

Pela interpretação conjunta dos artigos 503 e 506 do CPC extrai-se que a coisa julgada pode beneficiar terceiros. Não há lógica alguma que se invista tempo, dinheiro e conhecimento, para que causas idênticas sejam rejulgadas diariamente.

Portanto, segundo Daniel Mitidiero, "para que o Direito seja capaz de proporcionar uma sociedade livre, justa e igualitária (arts. 1º, III, 3º, I, e 5º, caput, I e II, CF) é preciso resolver o problema central da vinculação do exercício do poder à ordem jurídica". E completa "esses objetivos, no entanto, só são alcançáveis em uma sociedade pautada pela segurança jurídica" (MITIDIERO, 2018, p. 24).

De modo que o problema que surge é definir a racionalidade, ou não, em se permitir a rediscussão de questão já decidida apenas por terem sido alteradas uma das partes do processo, ou melhor, apenas pelo vencido estar agora litigando com parte que, apesar de estar envolvido no conflito concreto, não participou do processo em que a questão prejudicial à tutela do seu direito foi resolvida.

Questões importantes ainda a serem tratadas

Outros pontos merecem ser abordados, tais como, a correta distinção entre Precedentes, Incidente de Resoluções Repetitivas (IRDR) e Coisa Julgada Sobre Questão. Também deve-se perceber a possibilidade de rescindibilidade da Coisa Julgada sobre Questão. Como também a aplicação do instituto, quando duas demandas estão em tramitação e uma delas transita em julgado; bem como, formas de impedir que uma parte atrase propositadamente o seu processo para se beneficiar do processo da outra parte "wait and see". Todos esses pontos ainda abordarei em outros textos.

Conclusão

A coisa julgada limitada apenas às partes é uma forma tradicional que o direito brasileiro estudou o tema. Contudo, o direito processual a cada dia aproxima-se mais do common law, trazendo maior pragmatismo às soluções dos conflitos.

Conforme descrito no art. 503, para que possa ocorrer coisa julgada sobre a questão é fundamental que ocorra de forma concomitante os seguintes requisitos: a) a existência de contraditório prévio e efetivo sobre a matéria; b) a competência do juízo para apreciação da matéria e em razão da pessoa que será afetada pela coisa julgada; c) a ampla liberdade para produção de provas; d) a cognição sobre a questão deve ser exauriente; e) a decisão sobre a questão deve ser expressa e fundamentada.

Uma vez decidida a questão é possível a sua extensão para beneficiar terceiros, nos termos do art. 506 do CPC.

Impedir a relitigação sobre idêntica questão, beneficiando inclusive terceiros que estão em idêntica situação, é um caminho para desafogar o Poder Judiciário, diminuir custos, criar uma cultura de tratamento isonômico.

Previsibilidade de decisões judiciais, a garantia da ampla defesa, processo justo e contingência econômica, podem conviver harmonicamente.

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MARINONI, Luiz Guilherme. Coisa Julgada Sobre Questão. São Paulo: Thompson Reuters, Brasil, 2018.

MARINONI, Luiz Guilherme; MITIDIERO, Daniel. Ação rescisória: do juízo rescindente ao juízo rescisório. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2017.

MITIDIERO, Daniel. Precedentes: da persuasão à vinculação. 3 ed. São Paulo: Thompson Reuters Brasil, 2018.

SILVA, Ricardo Alexandre da. A Nova Dimensão da Coisa Julgada. São Paulo. Thompson Reuters Brasil, 2019.

TARUFFO, Michele; MITIDIERO, Daniel. A Justiça Civil: da Itália ao Brasil, dos setecentos à hoje. São Paulo: Thompson Reuters Brasil, 2018.

TUCCI, José Rogério Cruz e. Comentários ao Código de Processo Civil: artigos 485 a 538. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2016. (Coleção Comentários ao Código de Processo Civil; v.8. Luiz Guilherme Marinoni e Sérgio Cruz Arenhart, Daniel Mitidiero (Coords)).

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*Guilherme Veiga Chaves é advogado do escritório Gamborgi, Bruno e Camisão Associados Advocacia e mestrando em direito.

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