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O futuro da faculdade de direito

O incentivo à pesquisa, com a criação de programas de bolsas compatíveis com o mercado, são recursos que devem fazer parte da missão da faculdade de direito do futuro.

terça-feira, 17 de setembro de 2019

Atualizado às 11:27

O mundo mudou. Saímos de um mundo totalmente offline e analógico e partimos para o mundo totalmente conectado pela nuvem. O mundo do direito, no entanto, ficou anos luz atrás. A metodologia de ensino, as grades de matérias, os temas propostos e até os nomes dos sujeitos das questões de prova (Tício e Mévio), permanecem os mesmos há quase meio século. O objetivo do presente texto é provocar o leitor sobre a necessidade de mudanças no ensino jurídico no Brasil.

O famigerado sistema em que o aluno passa 5 (cinco) horas de um dia assistindo o professor falar incessantemente, por óbvio, não é atraente para o jovem millenial, de modo a desestimular o aprendizado do estudante de direito. Assim como seus futuros clientes, o estudante de direito do ano de 2019 está acostumado ao dinamismo e aos desafios. A faculdade de direito do amanhã tem que estar pronta para acomodar essas ambições. Mas como?

Para começo de conversa, a arquitetura e organização das salas de aula devem ser mudadas e organizadas com o objetivo de fomentar a discussão e o diálogo entre os sujeitos. Salas sem carteiras fixas, com mesas redondas, recursos audiovisuais ou que de qualquer forma incentivem a aplicação de debates e a interação entre os alunos, via método socrático ou com técnicas de design thinking, devem ser implantadas. A advocacia é - e nunca deixará de ser - a arte do convencimento. Dar o palco ideal aos estudantes é fomentar o desenvolvimento de tais skills. :

Para além da disposição das salas de aula, tendo em vista que o direito é uma ciência eminentemente prática. A faculdade de direito do amanhã deve, sobretudo, investir nos estudos e nas análises de casos práticos, proporcionar a resolução de casos interdisciplinares, apoiar a participação de tribunais simulados, de competições acadêmicas, das oficinais de advocacia pro-bono, em projetos e discussões ocorridas no âmbito dos núcleos de pesquisa, em projetos envolvendo graduação e pós-graduação ao mesmo tempo ou ainda de intercâmbios internacionais ou de parcerias com instituições de ensino estrangeiras, etc. É por meio da práxis que o profissional do direito deve ser forjado. Se estamos no momento em que as experiências são mais importantes que os currículos, é essencial que se proporcione isso aos alunos dentro da faculdade de direito.t

Uma forma de ensino a partir casos práticos é aquela que parte do estudo e da análise de julgados. Suponhamos que a matéria em estudo seja Direito do Consumidor. Por que não abordar o tema, trazendo à sala de aula, julgados de um Tribunal que abordem os assuntos de direito material objeto da disciplina? Entender os direitos básicos do consumidor e os deveres dos fornecedores com base naquilo que o Poder Judiciário tem entendido como certo ou errado tende a fixar, com muito mais precisão, os ensinamentos na cabeça dos estudantes.

O fomento à participação dos alunos às competições acadêmicas também é um método que traz excelentes resultados. No mundo jurídico brasileiro e internacional, consolidaram-se nessa categoria a Competição Brasileira de Arbitragem organizada pela CAMARB (que já está em sua 10ª edição, a qual será realizada em São Paulo, na sede do Ibmec/SP) e o The Annual Willem C. Vis International Commercial Arbitration Moot (cuja 27ª edição acontecerá ainda no ano de 2019), competição internacional de arbitragem. Competições mais recentes como a de Processo Civil organizada pelo Instituto Brasileiro de Direito Processual - IBDP são bons exemplos da irradiação dessa verdadeira metodologia de ensino, uma vez que é difícil encontrar um engajamento tão grande entre os alunos do que nesses eventos que costumam reunir milhares de alunos e centenas de instituições.

Acrescente-se, ademais, como oportunidade de aprendizagem prática, os trabalhos de núcleos de pesquisa e prática jurídica que se engajam também em projetos mais atuais de assessoria jurídica gratuita a entidades e pessoas previamente selecionadas. Essas atividades podem englobar desde a elaboração ou revisão de um programa de compliance, até o auxílio para startups ou jovens empreendedores pela a elaboração de contratos ou acordos de acionistas ou ainda de investimento.

A faculdade de Direito do amanhã deve também incorporar matérias e disciplinas que possam complementar a vida do futuro jurista, aprofundando o estudo de economia, sobretudo de Law and Economics. O estudo de gestão de projetos, de criação de indicadores de desempenho e de gestão de negócios deve ser incentivado. O suporte e o apoio à inovação e ao empreendedorismo também devem compor a grade de matérias optativas ou de contraturno.

O incentivo à pesquisa, com a criação de programas de bolsas compatíveis com o mercado, são recursos que devem fazer parte da missão da faculdade de direito do futuro. Na mesma proporção, a instituição de ensino deve investir no desenvolvimento da pesquisa empírica, lastreada em dados e em casos, para além da pesquisa bibliográfica indutiva, que tanto estamos acostumados. A utilização de inteligência artificial e toda tecnologia disponível não só é essencial, como imprescindível para buscar a informação e ajudar da interpretação dos dados coletados.

Análise de dados, jurimetria e programação são matérias que devem compor o estudo básico de direito. Em um Poder Judiciário tão congestionado como o brasileiro, entender os movimentos macros das teses discutidas, em termos quantitativos, pode ser útil para lidar com a estratégia jurídica a ser implementada em favor do cliente.

O desenvolvimento de skills de argumentação e comunicação, além das de negociação ou de gestão de pessoas ou temperamentos também fazem sentido na faculdade de direito do futuro. Aliás, toda a perspectiva de meios de resolução de conflitos deve ser repensada, seja para capacitar os profissionais para métodos adjudicados mais adequados a litígios empresariais como a arbitragem, seja para formarmos advogados hábeis a solucionar as controvérsias por meio de autocomposição (negociação, mediação), inclusive perante o poder público (leniência, delação premiada, termo de ajustamento de conduta, etc.).

Avançando nas discussões, há que se destacar a necessidade de revisão, pelo Ministério da Educação e Cultura, da regra que impede a implementação da faculdade de direito totalmente EAD - ensino à distância. Depois de quase uma década de convivência com o EAD no Brasil, sobretudo por meio dos cursos preparatórios para concurso ou de pós-graduação, é possível concluir que tal metodologia consolidou-se como uma forma incrível de democratizar o ensino de qualidade ao redor do Brasil. Incontáveis são as instituições de ensino que possuem estrutura, corpo docente e penetração hábeis para instalar uma faculdade de direito de muita qualidade.

A internacionalização deve ser uma meta e um objetivo da faculdade de direito. O intercâmbio entre alunos enriquece a vida universitária, seja à universidade, seja aos universitários. A possibilidade de obtenção de dupla titulação pode ser um diferencial a ser oferecido pelas faculdades.

Por fim, a faculdade de direito não pode perder de vista o fato de que o profissional do direito deve estar pronto para resolver os conflitos da sociedade, devendo preparar o futuro jurista para tanto. As relações e as contratação online devem ser uma realidade, em detrimento das milhões de laudas impressas anualmente pelos advogados ou de volumes de processos físicos nos corredores dos fóruns.

Enfim, mais blockchain, venture capital, data protection e menos enfiteuse, lotes lindeiros e proclamas; mais experiências e discussões práticas e menos aulas expositivas ou com mera leitura do texto de lei.

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*João Paulo Hecker da Silva é sócio do escritório Lucon Advogados, mestre e doutor em Direito Processual pela USP. Coordenador e professor dos cursos de pós-graduação em Direito do IBMEC-SP.

 

*Giovani Ravagnani é mestre em Direito Processual pela USP. Membro do Instituto Brasileiro de Direito Processual e do Centro de Estudos Sociedade e Tecnologia da POLI/USP. Advogado atuante na área cível e empresarial, com foco em resolução de conflitos. Professor em Future Law e no Instituto New Law.

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