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Dia de doar: o impacto restritivo de regras bancárias nas doações

Laís de Figueirêdo Lopes e Thais Tozzini Ribeiro

Em tempos de escassez de recursos, de necessidade de enfrentamento a enorme desigualdade vigente e acirrada pela crise econômica e política em nosso país, não deve ser outra a postura das instituições democráticas senão remover os obstáculos normativos indevidos.

quarta-feira, 4 de dezembro de 2019

Atualizado em 12 de dezembro de 2019 10:43

O Terceiro Setor movimenta recursos, emprega pessoas e gera riquezas materiais e imateriais para o país. Mesmo havendo uma compreensão mais ampla da sociedade de que as organizações da sociedade civil são importantes, muitas vezes, o campo permanece invisível quando da formulação de regras que as impactam. Dia 3 de dezembro é o dia de doar, data em que se realizam mobilizações e campanhas para estimular e aumentar a arrecadação de recursos para as organizações da sociedade civil. Chamamos atenção neste artigo publicado em referência a data sobre a necessidade de aperfeiçoamento de normas do sistema financeiro que dificultam ainda mais a árdua tarefa de captar recursos para a manutenção e ampliação de projetos e atividades das organizações.

Faz parte da agenda regulatória das organizações da sociedade civil a criação de campo jurídico próprio, com o reconhecimento das suas especificidades, diferenciando o Terceiro Setor do Estado e do mercado. Embora em campo doutrinário tal diferenciação seja assentada e estejamos avançando no ordenamento jurídico e na jurisprudência para a constituição de um Direito do Terceiro Setor, com constância, há regulações que tentam enquadrar indevidamente as organizações como entidades predominantemente públicas ou como entidades eminentemente privadas com fins lucrativos, apagando suas características específicas de privadas sem fins lucrativos com finalidades de interesse público. Assim como não se deve comparar as organizações aos órgãos públicos quando se trata de execução de projetos em parceria com a administração pública - razão de ser da lei 13.019/14, por exemplo - não se deve equiparar no sistema bancário as referidas entidades com as empresas. 

Muitas entidades privadas sem fins lucrativos historicamente organizam campanhas de mobilização de recursos junto a indivíduos com a emissão de boletos bancários para recebimento de doações no sistema de "mala direta". O boleto bancário, também chamado de boleto de pagamento, está regulamentado na Circular BACEN 3.598/12, que dispõe sobre a sua emissão, preenchimento, apresentação e necessidade de prévio registro. No Brasil, com a nova Plataforma de Cobrança da Federação Brasileira de Bancos, as organizações da sociedade civil passaram a ter dificuldades em colocar em prática essa modalidade de captação de recursos diante da impossibilidade de envio de boletos bancários sem valor definido, ou seja, com valor a ser preenchido pela pessoa doadora.

A norma bancária buscou proteger, do recebimento de boletos para pagamento sem lastro e sem valor previamente definido, os consumidores vulneráveis como as pessoas idosas. Acabou por impactar as campanhas de captação de recursos via mala direta, visto que passou a exigir que a emissão e apresentação do boleto estivesse condicionada a uma manifestação prévia de vontade do pagador, o que aumentou consideravelmente a quantidade de dados do pagador que devem ser inseridas no boleto, ainda que este só venha trazer uma proposta não vinculante.

O envio de um boleto cadastrado a uma pessoa no intuito de estimular que esta venha a doar não configura conduta ilícita, não viola direitos e nem causa, em si, nenhum prejuízo na vida daquele que o recebeu. Isso porque a doação é sempre um ato voluntário e a emissão de boleto em nome de uma pessoa com fins de arrecadar dinheiro para uma causa social ou ambiental não é uma cobrança e muito menos uma dívida. Por se tratar de doação, há o animus donandi como elemento essencial. O potencial doador difere em muito da lógica do consumidor. t

No entanto, ao receber um boleto preenchido para pagamento ou tomar conhecimento da existência de uma "cobrança" com "vencimento futuro" ao consultar o extrato de conta bancária, há quem sinta desconforto e insegurança, por desconhecimento das "regras do jogo". A ausência de clareza gera uma imensa barafunda: confunde-se doador com consumidor, doação com prestação de serviço e cadastro do boleto com uma dívida a vencer.

Adicionalmente às novas regras para emissão de boletos o Débito Direto Autorizado (DDA) deixou o cenário ainda mais confuso. O serviço de apresentação eletrônica de boletos a pagar, oferecido aos clientes pelos bancos, via internet, telefone ou caixa eletrônico, permite a visualização de todos os boletos registrados no CPF do titular da conta, despertando uma falsa impressão de que são devidos. Ocorre que o DDA não é um instrumento de débito automático de cobrança. O cliente deve optar por realizar o pagamento quando e se lhe for conveniente, podendo, por isso mesmo, efetuar ou não a doação "solicitada" via boleto bancário, ao decidir pagar ou não o referido título.  

Com a lacuna na regulação sobre os "boletos de doação", as organizações estão sujeitas a denúncias de indivíduos que alegam terem sido enganados sob a ótica do direito do consumidor. Em sites como o "reclame aqui" há mensagens nesse sentido, o que fere a reputação de organizações que desenvolvem trabalho sério e relevante. A reclamação de indivíduos gera preocupação nas organizações e encarece o custo da operação para mobilização de recursos. Isso porque precisam dispender tempo para monitoramento e defesa da organização com o intuito de mitigar esse risco reputacional. A jurisprudência dos Tribunais vem se consolidando no sentido de que essas situações envolvendo débitos em DDA somente podem ser consideradas como um "mero aborrecimento" rotineiro aos indivíduos e, por conta disso, não ensejam indenização por danos morais.

De toda forma, considerando que para esse tipo de doação há um liame inexorável com a reputação do donatário e que este tema precisa ser resolvido, uma regulação mais específica dentro do sistema bancário vem sendo pleiteada pela Associação Brasileira dos Captadores de Recursos (ABCR) para esclarecer que a doação não tem a mesma natureza jurídica do pagamento de uma conta. Tramita atualmente no Congresso Nacional o PL 3384/19 - "Marco Bancário da Doação" - que busca prever a doação como uma forma específica de movimentação financeira, para garantir a criação de arranjos adequados para o seu processamento. Sem dúvida o projeto de lei merece ser debatido e receber apoio de parlamentares que se preocupam com a sustentabilidade financeira da sociedade civil brasileira. 

A arrecadação de recursos para causas sociais e ambientais serve a atividades de extrema relevância para a sociedade. É necessário ter um tratamento jurídico bancário diferenciado para o reconhecimento das peculiaridades das organizações da sociedade civil que são clientes "sociais" importantes pelo trabalho que desenvolvem e pelos recursos que mobilizam. Capacitar e designar pessoas especializadas sobre as demandas existentes no campo da sociedade civil organizada também pode ajudar a formular soluções operacionais nos bancos enquanto a regulação não é modificada. 

Em tempos de escassez de recursos, de necessidade de enfrentamento a enorme desigualdade vigente e acirrada pela crise econômica e política em nosso país, não deve ser outra a postura das instituições democráticas senão remover os obstáculos normativos indevidos. Tal medida, sem dúvida, fortalece o tecido associativo e, consequentemente, o Estado Democrático de Direito. E os impactos positivos induzidos podem ser muito mais produtivos em termos econômicos pelo potencial de geração de riquezas sociais e ambientais que as organizações geram. Regulamentar os boletos de doação emitidos por organizações da sociedade civil é um tema que deve ser endereçado pelo sistema bancário e pelas autoridades públicas correspondentes, em especial, o Banco Central do Brasil.

O suporte financeiro é o que possibilita o trabalho concreto e o engajamento dos cidadãos por meio de suas 820 mil organizações na luta diária pela promoção e defesa dos direitos no Brasil. De acordo com a pesquisa "Word Giving Index" elaborada pela Charities Aid Foundation em outubro de 2019, o Brasil está na 74ª posição dos 126 países que compõem o ranking referente a quantidade de doações efetuadas de 2009 a 2018, atrás de países como Uganda, Filipinas e Irã. E o ranking considera doações em dinheiro, trabalho voluntário e ajuda a estranhos. É preciso aumentar a generosidade e a solidariedade já presentes no povo brasileiro e não as restringir.

Não podemos deixar que as organizações tenham limitado o seu acesso a doações, sejam criminalizadas e deixem de exercer a sua função de crítica e de controle social das políticas públicas por ausência de financiamento, por lacunas de regulações que não as reconhecem ou mesmo por autoridades públicas que não as respeitam. Incentivar a cultura de doação no país requer empenho do Estado em relação a disponibilização de recursos, normas claras que estimulem as doações e abracem as singularidades das organizações da sociedade civil, e a abstenção de atitudes de seus agentes que sejam persecutórias. Os indivíduos também podem fazer sua parte. Além do alerta sobre a necessidade de melhoria do sistema, fica o convite com o mote do dia de hoje e dos demais vindouros: doar para as organizações da sociedade civil brasileiras como forma de reconhecer e agradecer a cidadania ativa do nosso país, que o torna melhor, mais sustentável, justo e solidário.

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t*Laís de Figueirêdo Lopes é sócia do escritório Szazi, Bechara, Storto, Reicher e Figueirêdo Lopes Advogados, e doutoranda em Direito Público pela Universidade de Coimbra.





t*Thais Tozzini Ribeiro
é advogada do escritório Szazi, Bechara, Storto, Reicher e Figueirêdo Lopes Advogados.

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