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Crítica à tutela da incapacidade civil

Nosso sistema normativo de tutela da incapacidade civil está claramente assentado em presunções predeterminadas que não guardam mínima justa causa.

quinta-feira, 12 de dezembro de 2019

Atualizado às 14:04

Por força de disposição expressa no art. 123, inc. II, da lei 13.146/15 (Estatuto da Pessoa com Deficiência - EPD)1, foram revogados - 'retirada a voz' - os incisos I, II e III, do art. 3º do CC/02, assim, a persistir somente como hipótese legalmente prevista neste Codex de incapacidade absoluta aos menores de 16 (dezesseis) anos de idade.

Dessa ordem, deixaram de serem situações-tipo de incapacidade plena: i-) das pes- soas que por doença ou deficiência mental, não tivessem o necessário discernimento para a prática dos atos da vida civil; ii-) das pessoas que, por causa transitória, não podiam exprimir adequada- mente sua vontade.

Isso porque o espírito orientador do aludido EPD, fora de emancipar as pessoas  com deficiência do estigma social - antes normatizado nos revogados incs. II e III do art. 3º do CC/022-, na medida em que tratava de modo uniforme aquelas como absolutamente incapazes pa- ra todos os atos da vida civil indistintamente, cenário esse que além de causar imprecisão acerca da real limitação do deficiente, impedia no caso concreto de se aferir sobre quais espectros da vida so- cial poderia ele atuar com volição válida, a melhor se hamonizar com a Convenção Interamericana das Pessoas com Deficiência, notadamente ao conceito de deficiência do seu artigo 1º (Convenção incorporada ao ordenamento jurídico pátrio mediante o decreto Legislativo 198/01)3.

Não obstante esse notável avanço legal sobre o tema ao impedir um tratamento nor- mativo discriminatório às pessoas com deficiência, no nosso sentir a tutela da incapacidade civil do CC/02 continua a apresentar sérios e graves equívocos.

Analisado o enumerado de casos qualificados como de incapacidade relativa do art. 4º do CC/02, se verifica de modo nítido a impropriedade terminológica e de catalogação pelo legis- lador ordinário, que persiste mesmo com o EPD.

No tocante à terminologia empregada nos incisos do aludido artigo, pode-se perce- ber uma clara indiferença de substância entre os itens II e III do art. 4º do CC, tendo em vista que, ambos tratam, igualmente, daquelas pessoas que apresentam o discernimento reduzido.

Ora, aqueles que não podem de modo transitório ou permanente manifestar sua vontade com higidez, necessariamente têm um tirocínio menor em relação aos que são considera- dos plenamente capazes, porquanto desprovidos de causa que reduza a capacidade de externar vontade (inc. III do art. 4º do CC/02).

Na mesma senda se afiguram os adictos em álcool e/ou demais substâncias tóxicas, ao passo que também durante o período de redução do tírocínio por essas, outrossim se qualificam como impossibilitados de expressarem vontade regular de forma transitória ou permanente, a de- pender da intensidade do grau da adicção e seus efeitos na situação jurídica subjetiva (CC, art. 4º, inc. II).

Desta feita, os mencionados incisos II e III do art. 4º do CC/02, em essência, con- templam o mesmo desenho de fato de incapacidade relativa, a não passar assim de mero exercício legisferante tautológico pelo legislador, além de gerar inequívoca confusão de enquadramento normativo e efeitos afluentes no caso concreto de modo totalmente desnecessário.

Para além disso, excetuadas as hipóteses de cunho objetivo (art. 3º, cabeça; art. 4º, incs. I e IV, todas do CC/02), as restantes acima vistas, em razão de serem manifestamente subjetivas, detém por natureza variação do grau de incapacidade da pessoa a cada caso concreto, a não serem, portanto, passíves de serem qualificadas de forma predeterminada como o fez a lei.

Todas essas hipóteses subjetivas se situam na mesma conjectura: somente as provas coligidas na instrução processual terão aptidão para precisar o grau correto de incapacidade con- soante a dosimetria adotada pela legislação, qual seja, relativa ou absolutamente incapaz.

De se acrescer ainda, que quaisquer dessas hipóteses podem sequer representar incapacidade alguma, a ser obviamente possível, mesmo em sendo o portador de estado pessoal previsto nesses enunciados normativos, plenamente capaz, noutros termos, absolutamente capaz para a prática de todos os atos exigidos pela vida social civil.

Desse modo, em que pese a evolução propiciada pelo Estatuto da Pessoa com Defici- ência como acima sublinhado, continua a estar inquinado de erros técnicos graves o CC/02 na tutela da (in)capacidade, ao que explicita de modo preestabelecido situações subjetivas naturalmente indeterminadas como somente de incapacidade relativa, pois, v.g., o ébrio habitual, no plano fático, poderá ser capaz, ou incapaz nas duas modalidades legais.

Conosco o prof. Flávio Tartuce: "Quanto aos ébrios habituais e os viciados em tóxicos, será visto que são considerados relativamente incapazes. Dependendo da sua situação, afirmávamos, nas edições anteriores deste livro, que poderiam ser tidos como absolutamente incapazes. Agora, após a Lei 13.146/2015, serão sempre relativamente incapazes se houver alguma restrição, pois não existem mais no nosso sistema pessoas maiores que sejam absolutamente incapazes, reafirme-se. Apesar dessa afirmação, fica a dúvida se não seria interessante retomar alguma previsão a respeito dos maiores absolutamente incapazes, especialmente para as pessoas que não têm qualquer condição de exprimir vontade e que não são necessariamente pessoas deficientes. O presente autor entende que sim, havendo proposição nesse sentido no citado Projeto de Lei 757/2015, com nosso apoio. Cite-se, a esse propósito, justamente a pessoa que se encontra em estado de coma profundo, sem qualquer condição de exprimir o que pensa. No atual sistema, será enquadrada como relativamente incapaz, o que parece não ter sentido técnico-jurídico." (Manual de Direito Civil - versão digital, 7ª ed., São Paulo: Método, 2017, p. 75).

Nesse contexto, apura-se do sítio da Câmara Federal, que o referido PL de 757/15, de nova numeração 11091/184, não corrige essas distorções no tratamento legal da incapacidade, mas somente disciplina de modo mais pormenorizado o recente instituto da decisão apoiada e as regras de tutela e curatela, a se omitir sobre as situações de maior preocupação técnica após a alteração do art. 3º do CC/2002 pelo EPD, a ser necessário se reavivar no plano normativo hipóteses de cabimento de incapacidade absoluta aos maiores de 18 (dezoito) anos.

Com efeito, urge a adoção de mudança da disciplina normativa vigente para tutelar a incapacidade daqueles maiores dezoito anos de idade, tendo em vista que um portador de seja qual elemento for, que lhe impossibilite cabalmente de exarar seu assentimento, se encontra hoje totalmente desprotegido no plano da invalidade absoluta de seus atos - que o são por excelência -, a terem no máximo, por um exercício de improvisação legal, amparo nas disposições concernentes aos relativamente incapazes, fato esse que é claramente lhes prejudical diante do regime jurídico bem distinto entre as nulidades absolutas das de índole relativa, a se frisar que é um fato jurídico que a invalidade absoluta abriga maior condão de salvaguarda aos seus destinatários.

Diante do articulado, conclui-se que nosso sistema normativo de tutela da incapacidade civil está claramente assentado em presunções predeterminadas que não guardam mínima justa causa, porquanto os casuísmos nele previsto refogem totalmente à realidade fática, a qual somente é aferível do contexto personalíssimo de dado indivíduo, para se desvelar se ele seria capaz ou incapaz e em qual grau, além de ser imperativo uma inovação normativa para restabelecer hipóteses de incapacidade absoluta aos maiores de idade a fim de resguardar àqueles que estejam plenamente impossibilitados de externalizar de modo regular seu consentimento para a prática dos atos da vida civil.

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2 -  Redação revogada:
Art. 3 º São absolutamente incapazes de exercer pessoalmente os atos da vida civil: 

I - os menores de dezesseis anos;
II - os que, por enfermidade ou deficiência mental, não tiverem o necessário discernimento para a prática desses atos; 

III - os que, mesmo por causa transitória, não puderem exprimir sua vontade.

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*André Riolo Tedesco é advogado. Ex-assessor de desembargador federal. Ex-chefe de gabinete de desembargador federal.

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