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A distinção entre sociedades simples e empresárias e os problemas decorrentes da falta de inscrição das mesmas no registro próprio

A distinção entre as duas espécies de sociedades - simples ou empresárias - é feita pelo objeto.

segunda-feira, 11 de maio de 2020

Atualizado em 15 de maio de 2020 11:24

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Constitui uma honra e ao mesmo tempo um prazer para mim colaborar para uma revista da AASP editada em mais do que justa homenagem ao meu querido amigo e mestre Walter Ceneviva, que foi também conselheiro e diretor de nossa querida Associação.

Todavia, isto implica também grande carga de responsabilidade para o signatário deste escrito.

Explico.

Em 2010, o meu ex-orientando (e ex-presidente da AASP no ano de 2017), Marcelo Vieira von Adamek, organizou uma obra em homenagem a mim, às escondidas, para a qual colaboraram 56 autores. Foi uma completa e inesperada surpresa.

Entre os ilustres colaboradores achava-se o homenageado, que escreveu um delicioso artigo, intitulado "Erasmo: entre Ruy Barbosa e Oscar Peterson"1.

No mencionado artigo, seguindo o exagero do título, o meu mestre exaltou as qualidades de advogado, professor e pianista bissexto que eu supostamente ostentaria, em tons vivíssimos...

Contando toda a nossa convivência, desde que nos conhecemos na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, o homenageado referiu-se, carinhosamente, ao meu queridíssimo e saudoso avô, Noé Azevedo - que inclusive havia assinado a sua carteira da OAB, na condição de presidente da entidade na ocasião -, e ainda ao meu professor de teoria musical, o também saudoso maestro Olivier Toni, a quem conhecera na Rádio Gazeta2 - e por aí vai, estendendo-se o escrito por sete longas páginas permeadas de elogios à minha pessoa.

Não tenho competência para retribuir tudo isso, com a vivacidade de estilo e a verve do homenageado. Daí a carga de responsabilidade a que me referi de início...

De toda forma, porém, vou relembrar algumas passagens de minha convivência com o mestre Walter Ceneviva.

Conhecemo-nos, de fato, na Pontifícia Universidade Católica, onde o homenageado, então, era professor de Direito Civil. Eu fui um de seus assistentes, durante o biênio 1981-1982.

O meu querido amigo era um excelente professor,3 conseguindo atrair a atenção das turmas, nas chamadas aulas magnas,4 não só pelo seu notável saber jurídico, mas também pela sua imensa simpatia. Esta, aliás, é porventura a maior qualidade do homenageado. Nunca o vi de cara amarrada, está sempre sorridente, de bem com a vida. Conviver com ele é um imenso prazer!

Certamente em vista disso, não havia qualquer ato de indisciplina ou desatenção por parte dos alunos. Todos ficavam encantados com o grande mestre. A sua memória e capacidade de trabalho são prodigiosas. O homenageado corrigia pessoalmente as provas (não delegando esse trabalho para seus assistentes), e todas de uma vez,5 consumindo nessa tarefa os dias de domingo e, por vezes também, as madrugadas inteiras de domingo para segunda. Nas segundas-feiras, distribuía cópias para os alunos, lembrando-se, quando indagado por eles, das provas de cada um!

Outra curiosa qualidade do homenageado é o seu completo controle do tempo. Quando eu era conselheiro da nossa AASP, fui encarregado de apresentar, no início de uma palestra, o ilustre advogado para os presentes. Antes de começar a palestra, o homenageado disse: "Eu vou falar por 43 minutos". Tirou o relógio do pulso, colocando-o bem afastado sobre a mesa.

Quando terminou a palestra, pegou o relógio, conferiu o tempo, e disse para o auditório: "Como os senhores podem verificar, eu falei exatamente por 43 minutos". É fantástico!

Mas o querido amigo não se destacou apenas como professor e grande advogado. Foi também colunista do jornal Folha de S.Paulo, além de autor de várias obras jurídicas, dentre as quais se destacam talvez, pela profundidade dos temas, Direito Constitucional brasileiro, Plebiscito: direito e dever e Segredos profissionais. Mas a mais conhecida, que se acha já na 20ª edição - esgotada! -, é sem dúvida a Lei dos Registros Públicos comentada.

E o homenageado, além de tudo, é parecerista também. Certa vez tive um problema intrincadíssimo de registro imobiliário e o mestre Walter solucionou a questão com um parecer de uma clareza e simplicidade admiráveis. Resolveu a minha vida...

Destaco, finalmente, a sua qualidade de pai. Estive apenas uma vez na casa dele, não convivi com sua família, de modo que não posso falar isso de ciência própria. Mas posso contar que o homenageado ficava contentíssimo ao dizer que a sua relação com os filhos era "sanguínea", "figadal"! Eles certamente tiveram e devem continuar a ter um grande pai.6

Passo agora ao artigo que escrevi em homenagem ao querido amigo e mestre Walter Ceneviva.

A caracterização das sociedades simples deve partir da distinção entre estas e as sociedades empresárias.

Sabe-se que toda sociedade, nos termos do art. 981, caput, do Código Civil (CC), tem por objeto uma atividade econômica e, por objetivo ou finalidade, a partilha dos resultados entre os sócios.

E é precipuamente essa finalidade de distribuição de resultados econômicos (lucros ou perdas) entre os seus integrantes que distingue as sociedades (simples ou empresárias, tanto faz) das associações, que se configuram, a seu turno, por constituírem uma "união de pessoas que se organizem para fins não econômicos" (art. 53, CC).7

A distinção entre as duas espécies de sociedades - simples ou empresárias - porém (muito embora ambas tenham por objetivo a partilha de resultados entre os sócios), é feita, nos termos do art. 982 do CC, pelo objeto, com a ressalva das sociedades cooperativas, que são sociedades simples pela forma, qualquer que seja o seu objeto, e das sociedades por ações - sociedade anônima e em comandita por ações -, que são sociedades empresárias pela forma, independentemente, também, do seu objeto.8

Não há, portanto, dúvida ou ambiguidade possível: o que define uma sociedade como empresária ou simples é o objeto social,9 salvo as exceções expressas, nos dizeres da lei.10 Ou seja, não há possibilidade de exceções implícitas. E não as há porque as consequências resultantes de uma insegurança jurídica no tocante a essa questão são gravíssimas, como se verá no item seguinte. Não existem, ademais, sociedades "mistas" (empresárias e simples, ao mesmo tempo), pois se o objeto social abranger atividade de sociedade empresária, ainda que em parte mínima, a sociedade se qualifica como tal, eis que a sociedade simples é, por definição, não empresária.

Não há mais fundamento, outrossim, para o critério da "atividade preponderante", que era adotado por uma corrente da jurisprudência no Direito anterior - se a atividade predominante fosse civil, a sociedade assim se qualificaria, se fosse comercial, tratar-se-ia de sociedade mercantil. Tal equivocado critério, aliás, olvidava por completo a proteção que o Direito Comercial sempre se preocupou em outorgar à coletividade, justamente através de institutos como a falência e os correlatos crimes falimentares, destinados a evitar uma crise do crédito, fazendo cessar a atividade do comerciante desonesto (ou mesmo inepto), em benefício da própria classe dos comerciantes e de todos os consumidores.

Se o objeto social abrangesse a mercancia, portanto - ainda que não fosse a atividade preponderante -, deveria a sociedade, a nosso ver, qualificar-se como mercantil, tendo em vista justamente a tutela outorgada à coletividade pelo Direito Comercial. Mas, equivocadamente, uma corrente jurisprudencial assim não entendia. Hoje, tal entendimento, que já não se justificava, é totalmente insustentável. De outra parte, nos termos do parágrafo único do art. 982, a "atividade pode restringir-se à realização de um ou mais negócios determinados".

A realização de negócios determinados, todavia, não desfigura a existência de uma atividade - "sempre uma atividade", como bem lembra Alfredo de Assis Gonçalves Neto (op. cit., n. 75, p. 152). Nessa linha, para o eminente mestre paranaense, estariam, por exemplo, as "sociedades de propósito específico" (SPEs).

Em que consiste, porém, "o exercício de atividade própria de empresário sujeito a registro", obrigado à inscrição no Registro Público de Empresas Mercantis (art. 967), a que se refere o supracitado art. 982 do CC?

Trata-se da atividade prevista no art. 966, caput, do CC.11

Para caracterizar o empresário individual, assim, há de ocorrer uma atividade econômica, organizada (requisito que examinaremos mais adiante), dirigida à produção ou circulação de bens e serviços para o mercado. A sociedade empresária também se caracteriza da mesma maneira.

Essa atividade, de outra parte, deve ter intuito lucrativo, excluída, assim, a atividade de mera benemerência (no tocante ao empresário individual, ele é assim qualificado, a teor do art. 966, por exercer "profissionalmente a atividade"; no tocante às sociedades, o objetivo de lucro, como se demonstrou, é um elemento estrutural, que se extrai do próprio conceito de sociedade, estipulado no art. 981 combinado ainda com o art. 1.008, que julga nula a estipulação contratual que exclua qualquer sócio dos lucros e das perdas).

Portanto, a atividade industrial (produção de bens para o mercado), comercial (destinada a facilitar a circulação dos bens para entrega ao consumidor) e de serviços (transporte, lavanderia, etc.) caracteriza, indisputavelmente, uma atividade empresarial. A sociedade que exercer tais atividades é uma sociedade empresária - e não simples.

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1 Só um dileto amigo poderia imaginar um título desses...

2 O homenageado, além de exímio advogado e professor, foi também celebrado locutor na aludida rádio, apresentando os programas de música erudita que eram transmitidos ao vivo na época, além de ter trabalhado igualmente como locutor na Rádio Record, juntamente com meu saudoso sogro, o então conhecido locutor esportivo Geraldo José de Almeida.

3 Dos mais excelentes entre os inúmeros professores que conheci em toda a minha carreira discente, seja na graduação, seja na pós-graduação (mestrado e doutorado), bem como na carreira docente.

4 As aulas magnas só eram proferidas pelos professores encarregados das matérias e reuniam todas as turmas discentes de cada ano - não me lembro exatamente quantas eram no biênio referido no texto, mas me parece que reuniam quatro turmas.

5 Cerca de 400!

6 O que se nota até pela afetuosa e terna dedicatória constante de sua mais conhecida obra...

7 Cf. CENEVIVA, 2010, p. 317. Vale ressaltar, ainda, que, a par do diverso objetivo ou finalidade, há também outras significativas diferenças entre as associações e as sociedades, como se pode observar da comparação entre o art. 53, parágrafo único, vis-à- -vis o art. 981, e o art. 61, vis-à-vis o art. 1.103, inciso IV.

8 As sociedades cooperativas de crédito, por exemplo, são instituições financeiras regulamentadas pelo Conselho Monetário Nacional, via Res. nº CMN 3.859/2010 e posteriores alterações, e fiscalizadas pelo Banco Central do Brasil. Exercem, indiscutivelmente, atividade empresarial, estando autorizadas, entre outras operações, a realizar captação por meio de depósitos à vista e a prazo, embora somente de associados, desconto de títulos, empréstimos, financiamentos, aplicação de recursos no mercado financeiro, etc. (cf. art. 35 da citada Res. nº 3.859/2010). Não obstante, são sociedades simples pela forma.

9 "Art. 982 - Salvo as exceções expressas, considera-se empresária a sociedade que tem por objeto o exercício de atividade própria de empresário sujeito a registro (art. 967); e, simples, as demais. Parágrafo único - Independentemente de seu objeto, considera-se empresária a sociedade por ações; e, simples, a cooperativa". Importa salientar, desde logo, a abalizada opinião de Alfredo de Assis Gonçalves Neto: "78. Critérios distintivos entre sociedade simples e empresária. Pela dicção do art. 982, parece que há um objeto bem delimitado de sociedade empresária, consistente na atividade própria de empresário, e que o da simples é definido por exclusão, abrangendo toda e qualquer outra atividade que não se enquadre no conceito de atividade empresária. Mas não é assim. Aparentemente residual, é o objeto da sociedade simples que se erige em fator determinante da distinção. Ou seja, para se saber se uma sociedade é empresária ou não, é preciso verificar se a atividade econômica a que se propõe não está excluída do conceito de empresário, segundo as ressalvas dos arts. 966, parágrafo único, e 971. Isso, em outros termos, significa ter por objeto atividade que não se inclua na profissão intelectual ou rurícola. Sendo assim, pode-se dizer, mais corretamente, que será empresária toda a sociedade que não tiver por objeto atividade que seja própria de sociedade simples" (GONÇALVES NETO, p. 155-156, negrito do original).

10 Nesse sentido: VENOSA; RODRIGUES, 2010, n. 10.3, p. 92; GONÇALVES NETO, op. cit., n. 75, p. 153; VERÇOSA, 2006, n. 1.7.6., p. 72-74.

11 "Art. 966 - Considera-se empresário quem exerce profissionalmente atividade econômica organizada para a produção ou a circulação de bens ou de serviços".

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tO artigo foi publicado na Revista do Advogado, da AASP, ano XXXX, nº 145, de abril de 2020.








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*Erasmo Valladão Azevedo e Novaes França é livre-docente da Faculdade de Direito da USP. Professor associado e ex-chefe do Departamento de Direito Comercial da Faculdade de Direito da USP. Advogado em SP.

Associacao dos Advogados de Sao Paulo

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