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O direito durante e pós covid-19 - Parte 1

Uma analogia entre o direito em tempos de covid-19 e o direito do segundo pós-guerra. Um retorno cíclico ao problema da oposição ou à união entre o direito e a moral num Brasil em que as desigualdades se avolumam.

terça-feira, 19 de maio de 2020

Atualizado às 10:59

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Uma das principais polêmicas que envolvem o conceito de direito ao longo dos tempos tem sido a relação entre o direito e a moral. De acordo com a concepção positivista, o conceito de direito deve ser determinado independentemente de elementos morais. Nesse caso não existe conexão necessária entre o direito e a moral1, de forma que "todo e qualquer conteúdo pode ser direito"2. Por outro lado, as teorias não positivistas se preocupam com o conteúdo do que é ou não direito, de forma que um suposto direito aberrantemente injusto não pode ser considerado direito.

Para o pensamento positivista, predominante no período anterior ao segundo pós-guerra, o direito positivo não deveria se ocupar com questões sobre a moralidade ou imoralidade do direito positivo, a justiça ou injustiça do texto legal. Havendo uma prescrição legal, ela deveria ser observada, independentemente de questionamentos sobre sua moralidade ou justiça. Essa filosofia terminou por legitimar atos bárbaros, mesmo que de forma involuntária.3

O positivismo jurídico passou por uma crise decorrente do segundo pós-guerra, oportunidade em que se verificou que a referida doutrina, que separava o direito e a moral, promovendo a obediência cega à lei, terminou por legitimar, mesmo que involuntariamente, uma das maiores catástrofes mundiais: as atrocidades praticadas durante a segunda guerra mundial.4

Não se está admitindo que a escola positivista deliberadamente apoiou e legitimou juridicamente práticas nazistas, mas, por outro lado, com seu ideal de manter afastada, no ato de interpretação do direito, a discricionariedade do intérprete, tentando reduzir este processo à uma operação lógica, sem maiores questionamentos sobre a justiça ou injustiça de determinado texto normativo, acabou por aceitar como direito uma conduta sem questionar se ela guardaria conformidade com valores humanos e sua relação com a justiça.

Idealizado com o objetivo precípuo de evitar arbítrios do intérprete do direito, cometidos a partir de decisões altamente discricionárias5, o positivismo se via tomado por um grave problema: a obediência à lógica da legalidade que autorizava aberrantes injustiças, como aquelas praticadas durante o regime nazista, como se pode citar "[...] o §2 do 11º Decreto da Lei de Cidadania do Reich, de 25 de novembro de 1941 (RGBl. [Reichsgesetzblat, Diário Oficial do Reich] I, p. 722) que privava da nacionalidade alemã os judeus emigrados", por motivos racistas6. Nesse caso, o positivismo lógico se mostrava insuficiente para resolver a situação, ante a aberrante injustiça desencadeada pela aplicação texto legal, cuja literalidade foi superada pelo Tribunal Constitucional Alemão por meio de decisão exarada em 1968, enquanto ainda vigorava formalmente (e veio a ser considerado nulo, posteriormente) o texto de lei racista:

O direito e a justiça não estão à disposição do legislador. A ideia de que um legislador constitucional tudo pode ordenar a seu bel prazer significaria um retrocesso à mentalidade de um positivismo legal desprovido de valoração, há muito superado na ciência e na prática jurídica. Foi justamente a época do regime nacional-socialista na Alemanha que ensinou que o legislador também pode estabelecer a injustiça (BVerfGE [Bundesverfassungsgericht, Tribunal Constitucional Federal] 3, 225 (232)). Por conseguinte, o Tribunal Constitucional Federal afirmou a possibilidade de negar aos dispositivos "jurídicos" nacional socialistas sua validade como direito, uma vez que eles contrariam os princípios fundamentais da justiça de maneira tão evidente que o juiz que pretendesse aplicá-los ou reconhecer seus efeitos jurídicos estaria pronunciando a injustiça, e não o direito (BVerfGE 3, 58 (119); 6, 132 (198)). O 11º Decreto infringia esses princípios fundamentais. Nele, a contradição entre esse dispositivo e a justiça alcançou uma medida tão insustentável que ele foi considerado nulo ab initio (cf. BGH, RzW [Bundesgerichtshof, Rechtsprechung zur Wiedergutmachungsrecht, Decisões do Supremo Tribunal de Justiça alemão sobre o direito de reparação], 1962, 563, BGHZ [Entscheidungen des Bundesgerichtshofes in Zivilsachen, Decisões em matéria cível do Supremo Tribunal de Justiça alemão] 9, 34 (44);10, 340 (342); 16, 350 (354); 26, 91 (93)). Esse decreto tampouco se tornou eficaz por ter sido aplicado durante alguns anos ou porque algumas das pessoas atingidas pela "desnaturalização" declararam, em seu tempo, estarem resignadas ou de acordo com as medidas nacional-socialistas. Pois, uma vez estabelecida, uma injustiça que infrinja abertamente os princípios constituintes do direito não se torna direito por ser aplicada e observada.7

Nos termos do referido julgado, o Tribunal Constitucional Alemão decidiu que, no caso de direito que impunha aberrante injustiça, esse mesmo direito deveria ser desconstituído, prevalecendo os princípios de justiça. A valoração do texto legal posto, como justo ou injusto, ou, ainda, a admissão da existência de uma "ponte" entre o direito e a moral, são algumas das características desse julgado e do direito advindo do segundo pós-guerra.

No Brasil de 2020, durante a pandemia desencadeada pelo covid-19, resta saber se o que é direito comportará uma abertura aos princípios éticos correlacionados à dignidade da pessoa humana, positivados em nossa Constituição Federal, ou, por outro lado, se fechará às regras que apascentam interesses de algumas classes dominantes e, na maioria das vezes, econômicos.

Poderia se ponderar que a jurisprudência do Tribunal Constitucional Alemão depois do segundo pós-guerra era extremamente específica ao desconstruir normas aberrantemente injustas, que ratificariam condutas desumanas e crimes ocorridos durante a guerra, motivo pelo qual a situação não se compararia ao direito influenciado pelo combate ao covid-19, no Brasil de 2020. No entanto, a pandemia tem jogado luzes e desvelado situações que podem ser não comparáveis, mas também não são menos desumanas, não menos terríveis e hoje banalizadas no nosso país como se fossem fatos da vida, situações essas que se degradarão ainda mais durante esse período extremo. Citemos algumas delas:

  • O rendimento médio mensal de trabalho da população 1% mais rica foi quase 34 vezes maior que da metade mais pobre em 2018. Isso significa que a parcela de maior renda arrecadou R$ 27.744 por mês, em média, enquanto os 50% menos favorecidos ganharam R$ 820. Esse número trata da renda das pessoas empregadas, frisa-se. Contando todos os brasileiros, 50% da população, ou seja, aproximadamente 104 milhões de pessoas sobrevivem com menos que R$ 500,00 por mês.8
  • Quase a metade dos brasileiros, aproximadamente 100 milhões de pessoas, não têm acesso à rede de esgoto tratada.9
  • Aproximadamente 60 milhões de pessoas estão inscritas nos cadastros de proteção ao crédito, ou seja, estão extremamente endividadas, com sua capacidade de compra a prazo colapsada.10
  • O nosso país, que está entre as dez maiores economias do mundo, paradoxalmente é o sétimo país mais desigual do mundo11;

Contrastando com esse Brasil miserável, estão 4 (quatro) bancos, que distribuíram R$ 58 bilhões em dividendos e juros sobre capital próprio no ano de 201912, o mesmo setor que fez propaganda segundo a qual apoiaria a população endividada durante a pandemia do covid-19, mas, ao que parece, além de não fazê-lo, aumentaram os juros decorrentes das prestações atrasadas pelos devedores durante esse momento extremo.13

Nesse cenário de uma suposta aberrante injustiça, alguns questionamentos parecem ser necessários sobre o tema, a saber: a) se optará pelo silêncio da obediência cega à lei que legitima esse processo de desigualdade, com lucros exorbitantes para poucos e extrema pobreza para muitos? b) ao contrário, considerando que o ato de dizer o direito tem como pressuposto que esse direito contenha princípios de ética e justiça, com respeito à dignidade humana, deve-se optar por afastar essa injustiça extrema?

O que se propõe é deslocar o foco mais para as perguntas do que para as respostas. Se as perguntas feitas forem corretas, podemos chegar a uma verdade subjetiva, que pode se interconectar com outras verdades, criando não uma unanimidade, mas um caminho que leve a algo próximo de um consenso, que gere uma ação concreta da sociedade e afete positivamente o maior número de pessoas.

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1 ALEXY, Robert. O conceito e validade de direito. In: VALDÉS, Ernesto Garzón Valdés (Org). O conceito e validade de direito. Trad. Gercélia Batista de Oliveira Mendes. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2009, p.3.

2 O sistema jurídico de normas se apresenta como uma ordem que tem caráter eminentemente dinâmico, já que uma norma jurídica vale não porque tem um determinado conteúdo, mas porque encontra validade numa norma fundamental pressuposta. Por isso, todo e qualquer conteúdo pode ser direito. A norma fundamental é o ponto de partida do processo de criação do Direito positivo. Não é uma norma posta pelo costume ou pelo ato de um órgão jurídico, não é uma norma positiva, mas uma norma pressuposta. O fundamento de validade de uma norma jurídica leva à recondução e à norma fundamental. A estrutura da ordem jurídica é piramidalmente escalonada até alcançar a norma fundamental (KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. 8ed. Trad. João Baptista Machado. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2009, p. 221).

3 Como ponderam Luís Roberto Barroso e Ana Paula de Barcellos: "O positivismo pretendeu ser uma teoria do Direito, na qual o estudioso assumisse uma atitude cognoscitiva (de conhecimento), fundada em juízos de fato. Mas resultou sendo uma ideologia, movida por juízos de valor, por ter se tornado não apenas um modo de entender o Direito, como também de querer o Direito. O fetiche da lei e o legalismo acrítico, subprodutos do positivismo jurídico, serviram de disfarce para autoritarismos de matizes variados. A ideia de que o debate acerca da justiça se encerrava quando da positivação da norma tinha um caráter legitimador da ordem estabelecida. Qualquer ordem.

Sem embargo da resistência filosófica de outros movimentos influentes nas primeiras décadas do século XX, a decadência do positivismo é emblematicamente associada à derrota do fascismo na Itália e do nazismo na Alemanha. Esses movimentos políticos e militares ascenderam ao poder dentro do quadro de legalidade vigente e promoveram a barbárie em nome da lei. Os principais acusados de Nuremberg invocaram o cumprimento da lei e a obediência a ordens emanadas da autoridade competente. Ao fim da Segunda Guerra Mundial, a ideia de um ordenamento jurídico indiferente a valores éticos e da lei como uma estrutura meramente formal, uma embalagem para qualquer produto, já não tinha mais aceitação no pensamento esclarecido" (BARROSO, Luís Roberto; BARCELLOS, Ana Paula de. A nova interpretação Constitucional: Ponderação, Argumentação e papel dos princípios. Dos princípios constitucionais: Considerações em torno das normas principiológicas da Constituição. 2 ed. São Paulo: Método, 2008, p. 65-66).

4 MARTINS, Ricardo Marcondes; PIRES, Luiz Manuel Fonseca. Um diálogo sobre a justiça: a justiça arquetípica e a justiça deôntica. Belo Horizonte: Fórum, 2012, p. 67.

5 Uma contradição às bases do seu pensamento é aquela que, segundo o próprio Kelsen defende, o juiz é um criador de direito, relativamente livre, já que a norma individual a ser alcançada é sempre buscada por meio do preenchimento da moldura da norma, numa função voluntária. Admite-se, ainda, a produção de uma norma fora da moldura da norma, criando-se direito novo. Conforme Kelsen declara: "A teoria usual da interpretação quer fazer crer que a lei, aplicada ao caso concreto, poderia fornecer, em todas as hipóteses, apenas uma única solução correta (ajustada), e que a 'justeza' (correção) jurídico-positiva desta decisão é fundada na própria lei. Configura o processo desta interpretação como se se tratasse tão-somente de um ato intelectual de clarificação e de compreensão, como se o órgão aplicador do Direito apenas tivesse que pôr em ação o seu entendimento (razão), mas não a sua vontade, e como se, através de uma pura atividade de intelecção, pudesse realizar-se, entre as possibilidades que se apresentam, uma escolha que correspondesse ao Direito positivo, uma escolha correta (justa) no sentido do Direito positivo. [...] Só que, de um ponto de vista orientado para o Direito positivo, não há qualquer critério com base no qual uma das possibilidades inscritas na moldura do Direito a aplicar possa ser preferida à outra. Não há absolutamente qualquer método - capaz de ser classificado como de Direito positivo - segundo o qual, das várias significações possíveis: possíveis no confronto de todas as outras normas da lei ou da ordem jurídica. Apesar de todos os esforços da jurisprudência tradicional, não se conseguiu até hoje decidir o conflito entre vontade e expressão a favor de uma ou da outra, por uma forma objetivamente válida. [...] A propósito importa notar que, pela via da interpretação autêntica, quer dizer, da interpretação de uma norma pelo órgão jurídico que a tem de aplicar, não somente se realiza uma das possibilidades reveladas pela interpretação cognoscitiva da mesma norma, como também se pode produzir uma norma que se situe completamente fora da moldura que a norma a aplicar representa" (KELSEN, 2009, p. 389-394).

6 ALEXY, op. cit. p. 6.

7 ALEXY, op. cit. p. 8 (reprodução da decisão do Tribunal Constitucional Alemão pelo autor).

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t*Francis Ted Fernandes é sócio de BBFLAW. Advogado atuante nas áreas de mediação, contencioso e arbitragem (direito empresarial, direito civil, do consumidor, direito público e direito constitucional). Mestre em Filosofia do Direito pela PUC-SP. Possui pós-graduação em Administração de Organizações na Faculdade de Economia e Administração da USP-FUNDACE.

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