COLUNAS

  1. Home >
  2. Colunas

Família e Sucessões

Desafios contemporâneos do direito de família e sucessões.

Flávio Tartuce
Como desenvolvido no meu último texto publicado por este canal, pendia no Supremo Tribunal Federal o julgamento a respeito da inconstitucionalidade do art. 1.641, inc. II, do Código Civil, que impõe o regime da separação obrigatória de bens para a pessoa maior de setenta anos (STF, Agravo no Recurso Extraordinário n. 1.309.642/SP, com a Relatoria do Ministro Luís Roberto Barroso ? Tema 1.236). Em 1º de fevereiro deste ano de 2024, logo na volta das atividades da Corte após o recesso, a questão acabou por ser julgada, concluindo o Tribunal e de forma unânime que o regime da separação obrigatória de bens nos casamentos e uniões estáveis envolvendo pessoas com mais de setenta anos pode ser alterado pela vontade das partes, pelo exercício da autonomia privada, desde que seja feito por escritura pública, a ser lavrada no Tabelionato de Notas. De forma totalmente surpreendente, portanto, em afirmação não defendida por qualquer doutrinador de que se tenha notícia ou por qualquer Tribunal Brasileiro, inclusive no Superior Tribunal de Justiça, o Supremo Tribunal Federal inaugurou a tese segundo a qual o art. 1.641, inc. II, do Código Civil é norma dispositiva ou de ordem privada ? e não norma cogente ou de ordem pública, como antes se sustentava de forma unânime ?, podendo ser afastada por convenção entre as partes. Apesar da afirmação dos Ministros, quando do julgamento, no sentido de que manter essa obrigatoriedade da separação obrigatória de bens desrespeitaria o direito de autodeterminação das pessoas idosas, a verdade é que não se declarou inconstitucional o preceito, como parte considerável da doutrina entendia, fazendo com que a norma continue em plena vigência no ordenamento jurídico brasileiro. Com o devido respeito ? aos julgadores e aos que cantaram vitória com o decisum, em prol da liberdade ?, entendo que, por continuar a ser a regra geral no nosso sistema civil, a vontade das pessoas idosas continua sendo aviltada. Ademais, a única possibilidade de se afastar a previsão extrajudicialmente é pela escritura pública, lavrada em Tabelionato de Notas, o que está na contramão da tendência de redução das burocracias para os atos existenciais familiares, percebida, por exemplo, com a entrada em vigor da lei 14.382/2022, conhecida como Lei do SERP (Sistema Eletrônico de Registros Públicos). Sem falar que, pelos seus custos, a escritura pública não é acessível para grande parte da população. A Corte também entendeu que, além da opção da escritura pública, as pessoas acima dos setenta anos que sejam casadas ou vivam em união estável até a data do julgamento podem alterar o regime de bens por meio de uma ação judicial, nos termos do art. 1.639, § 2º, do Código Civil e do art. 734 do Código de Processo Civil, e, em todos os casos, a alteração produzirá efeitos patrimoniais apenas para o futuro, ou seja, efeitos ex nunc e não ex tunc. Nesse contexto, para os casamentos e uniões estáveis firmados antes do julgamento, as partes podem manifestar imediatamente ? perante o juiz ou o Tabelião ? a sua vontade de mudança para outro regime, caso da comunhão parcial, por exemplo, que é o adotado pela grande maioria da população brasileira. Quanto à modulação dos efeitos da decisão, julgou-se que, em respeito à segurança jurídica, ela somente passa a valer para os casos futuros, sem afetar os processos de herança ou divisão de bens que já estejam em andamento. Foi incluída na decisão do Ministro Relator a seguinte ressalva: "a presente decisão tem efeitos prospectivos, não afetando as situações jurídicas já definitivamente constituídas". Ao final, a tese de repercussão geral fixada para o Tema n. 1.236, para os fins de atingir todos os processos judiciais em curso e os futuros, de todas as instâncias, e até eventual mudança da lei, foi a seguinte: "nos casamentos e uniões estáveis envolvendo pessoa maior de 70 anos, o regime de separação de bens previsto no artigo 1.641, II, do Código Civil, pode ser afastado por expressa manifestação de vontade das partes mediante escritura pública". Pois bem, como já adiantei, trata-se de uma conclusão inédita, não encontrada nas páginas da doutrina e em outros julgados, porque até aqui se afirmou que a separação do maior de setenta anos era totalmente obrigatória, sem a possibilidade de convenção em contrário, por ser o art. 1.641, inc. II, do Código Civil norma cogente ou de ordem pública. Como separação obrigatória entende-se algo peremptório, que não admite escolhas, que não oferece opções para as partes, que não aceita outros caminhos de planejamento ou convenção pelos consortes ou conviventes, excluindo totalmente o exercício da autonomia privada. O que o Supremo Tribunal Federal passou a dizer é que não se tem mais, no caso do art. 1.641, inc. II, do Código Civil, uma separação realmente obrigatória, pois, muito além da possibilidade de se alterar o regime de bens por meio de uma ação judicial, as partes podem afastar o regime e escolher outro por meio de uma escritura pública. Não se pode negar, portanto, que a separação de bens do maior de setenta anos deixou de ser uma separação obrigatória. Passou a ser uma separação legal, mas obrigatória não é mais, uma vez que as partes podem convencionar em sentido contrário, afastando a previsão. Sendo assim, passamos a ter no sistema civilístico duas separações legais: a obrigatória ? prevista nos incisos I e III do art. 1.641 do Código Civil; e a não obrigatória ? que está no inciso II do mesmo dispositivo, para os maiores de setenta anos. Além disso, temos agora dois regimes legais ou supletivos, na ausência de previsão em sentido contrário em pacto antenupcial ou contrato de convivência, e com a possibilidade de serem afastados por escritura pública. Para as pessoas em geral, esse regime é o da comunhão parcial de bens, como está no art. 1.640 do Código Civil ? para o casamento ?, e no art. 1.725 do Código Civil ? para a união estável. Para as pessoas maiores de setenta anos, o regime que vale como regra geral é a separação legal de bens, na linha do que foi definido pelo Supremo Tribunal Federal, em seu julgamento. A existência de dois regimes legais confirma a minha afirmação de contínuo aviltamento à vontade dos maiores de setenta anos. Parece-me que a nova decisão, portanto, altera a nossa realidade jurídica a respeito do tema, devendo a matéria ser repensada pelas Cortes Brasileiras pela doutrina, em dois aspectos principais que trago para debate, sem prejuízo de outros que poderão surgir no futuro. O primeiro deles diz respeito à Súmula n. 377 do Supremo Tribunal Federal, que remonta ao ano de 1963 e segundo a qual, "no regime de separação legal de bens, comunicam-se os adquiridos na constância do casamento". Como se sabe, na interpretação que hoje predomina no Superior Tribunal de Justiça, a sumular somente tem incidência para a divisão dos bens havidos pelo esforço comum, tendo decidido a sua Segunda Seção que, "no regime de separação legal de bens, comunicam-se os adquiridos na constância do casamento, desde que comprovado o esforço comum para sua aquisição" (STJ, EREsp 1.623.858/MG, relator Ministro Lázaro Guimarães (Desembargador convocado do TRF 5ª Região), Segunda Seção, DJe 30/05/2018). O próprio Tribunal da Cidadania ampliou a aplicação da ementa para a união estável, também com a necessidade dessa comprovação do esforço, editando a sua Súmula n. 655: "aplica-se à união estável contraída por septuagenário o regime da separação obrigatória de bens, comunicando-se os adquiridos na constância, quando comprovado o esforço comum". Ora, o que sempre fundamentou a permanência da Súmula n. 377 do Supremo Tribunal Federal no sistema após a entrada em vigor do Código Civil de 2002 foi a conclusão de se tratar de uma separação obrigatória, peremptória, regida por norma cogente ou de ordem pública, sem a possibilidade de se estabelecer o contrário. Foi justamente por isso, e pela vedação do enriquecimento sem causa, que me alinhei aos doutrinadores que defenderam a permanência da sumular no nosso ordenamento jurídico, o que gerou as decisões posteriores do Tribunal da Cidadania. Com a decisão do STF em estudo, esse pilar do sistema é alterado. Isso porque, se há a possibilidade de as partes com idade superior a setenta anos preverem ou convencionarem o contrário da separação de bens, escolhendo outro regime, ou alterarem o regime judicialmente, não há que se falar mais em aplicação da sumular, pois ela era justificada pela falta de opções de outros caminhos de escolha aos cônjuges ou conviventes. Se essa posição não prevalecer na jurisprudência, é preciso, ao menos, que as Cortes Brasileiras, especialmente o STJ, debatam e digam se isso foi alterado ou não. Em outras palavras, é preciso que o Tribunal da Cidadania analise se houve ou não a superação do seu entendimento anterior pacificado, o chamado overruling, nos termos da parte final do art. 489, §1º, inc. VI, do Código de Processo Civil, segundo o qual "não se considera fundamentada qualquer decisão judicial, seja ela interlocutória, sentença ou acórdão, que: (...) deixar de seguir enunciado de súmula, jurisprudência ou precedente invocado pela parte, sem demonstrar a existência de distinção no caso em julgamento ou a superação do entendimento". Para tanto, a propósito, o próprio Tribunal poderá realizar audiências públicas com a oitiva de especialistas sobre a temática, como está no art. 927, § 2º, do próprio Estatuto Processual: "a alteração de tese jurídica adotada em enunciado de súmula ou em julgamento de casos repetitivos poderá ser precedida de audiências públicas e da participação de pessoas, órgãos ou entidades que possam contribuir para a rediscussão da tese". Ora, se o quadro fático e jurídico que criou e consolidou o sistema anterior de precedentes e a jurisprudência a respeito da temática ? com a aplicação da Súmula n. 377 do STF, o julgamento do EREsp 1.623.858/MG pelo STJ e a sua Súmula n. 655 ?, foram alterados com a nova decisão da Corte Suprema com o que foi prolatado no Tema 1.236, é mais do que necessário rever as balizas anteriores e discutir novamente o assunto, a fim de se manter a jurisprudência estável, íntegra e coerente, como impõe o art. 926 do Código de Processo Civil. Reitero que a jurisprudência brasileira, sobretudo do Superior Tribunal de Justiça, precisa dizer novamente se a Súmula n. 377 ainda é aplicável, mesmo com a possibilidade de afastamento do regime de separação por escritura pública ou por uma ação judicial de mudança do regime de bens. A outra questão de relevo diz respeito à sucessão hereditária, sobretudo quanto à concorrência dos descendentes com o cônjuge ou convivente do falecido. Como está previsto no art. 1.829 do Código Civil ? na correta leitura após a decisão do Supremo Tribunal Federal que reconheceu a inconstitucionalidade do art. 1.790 do Código Civil (Temas n. 498 e 809) ?, a sucessão legítima defere-se na ordem seguinte: aos descendentes, em concorrência com o cônjuge ou convivente sobrevivente, salvo se casado este ou se viver em união estável com o falecido, "no regime da comunhão universal, ou no da separação obrigatória de bens (art. 1.640, parágrafo único); ou se, no regime da comunhão parcial, o autor da herança não houver deixado bens particulares". Como se pode notar, é afastada a concorrência sucessória dos descendentes com o cônjuge ou convivente do de cujus no "regime da separação obrigatória de bens". Porém, como defendi neste texto, não há mais uma autêntica separação obrigatória no caso do inciso II do art. 1.641, pois os cônjuges ou conviventes podem convencionar em sentido contrário, o que traz a conclusão pela concorrência em casos tais, assim como se dá na separação convencional de bens e como restou decidido pela Segunda Seção do Superior Tribunal de Justiça (STJ, REsp 1.382.170/SP, relator Ministro Moura Ribeiro, relator para acórdão Ministro João Otávio de Noronha, Segunda Seção, julgado em 22/04/2015, DJe 26/05/2015). Sendo assim, entendo que esse tema também deverá ser revisto pela jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, como sustentei a respeito da Súmula n. 377 e a superação de entendimento, sobretudo porque não havia essa opção de convencionar ao contrário antes do novo julgamento do Supremo Tribunal Federal. Como se retira de outro acórdão do Tribunal da Cidadania, na contramão da nova decisão em estudo, "o que não se mostra possível é a vulneração dos ditames do regime restritivo e protetivo, seja afastando a incidência do regime da separação obrigatória, seja adotando pacto que o torne regime mais ampliativo e comunitário em relação aos bens" (STJ, REsp 1.922.347/PR, relator Ministro Luis Felipe Salomão, Quarta Turma, julgado em 07/12/2021, DJe de 01/02/2022). Ou, ainda, entre os acórdãos mais remotos: "a norma do art. 258, parágrafo único, II, do Código Civil, possui caráter cogente. É nulo e ineficaz o pacto antenupcial firmado por mulher com mais de cinquenta anos, estabelecendo como regime de bens o da comunhão universal" (STJ, REsp 102.059/SP, relator Ministro Barros Monteiro, Quarta Turma, julgado em 28/05/2002, DJ de 23/09/2002, p. 366). Os dois julgados do Tribunal da Cidadania, como se pode notar, colidem frontalmente com a tese final exarada no julgamento do Tema n. 1.236, a demonstrar a discordância dos dois Tribunais Superiores a respeito da temática, a confirmar a necessidade de se rediscutir a temática. Como outro aspecto fundamental que gostaria de trazer para debate para a civilística, e com o devido respeito ao que está sendo fixado pelo STF quanto à modulação de efeitos, penso que a nova tese não atingir os processos de inventário ainda em curso, e com partilha ainda não encerrada, representa uma situação de total injustiça e de verdadeira afronta à estabilidade e à segurança. Isso porque, na linha dos últimos julgados colacionados, os cônjuges e conviventes viviam em um sistema em que não havia a opção de se convencionar o contrário ao regime de separação obrigatória. Dito de outra forma, não havia qualquer opção de planejamento familiar e sucessório, ao contrário do que está sendo afirmado agora pela Corte Suprema ? de forma inédita, reitere-se. Se tivessem antes essa opção, muitos cônjuges e conviventes a teriam adotado, não podendo agora ser prejudicados. Entendo, nesse contexto, que a ressalva no sentido de que "a presente decisão tem efeitos prospectivos, não afetando as situações jurídicas já definitivamente constituídas" não tem o condão de atingir os processos em curso com partilhas ainda não efetivadas, pois as situações jurídicas não estão definitivamente constituídas nessas hipóteses. Lembro, a propósito, que, no próprio julgamento da inconstitucionalidade do art. 1.790 do Código Civil, o caminho adotado foi o de que o novo entendimento deve ser aplicado aos inventários judiciais em que a sentença de partilha não tenha transitado em julgado e às partilhas extrajudiciais em que ainda não haja escritura pública. Penso que a solução deve ser a mesma para o Tema n. 1.236, o que ainda pode ser reavaliado pela própria Corte Suprema. Como última observação, não se pode negar que a nova decisão do Supremo Tribunal Federal intensifica e traz mais desafios para a proposta de Reforma do Código Civil, ora em discussão. Como destaquei em meu texto anterior, as subcomissões de Direito de Família, de Direito Contratual e de Direito das Sucessões nomeadas no âmbito do Senado Federal sugeriram o fim do regime da separação obrigatória de bens. Sem dúvidas que seria mais fácil para o nosso trabalho que a separação obrigatória do maior de setenta anos tivesse sido retirada do sistema por julgamento do STF, assim como ocorreu com a separação judicial (Tema n. 1.053). De todo modo, não tendo sido esse o caminho adotado, a Relatoria Geral, formada por mim e pela Professora Rosa Maria de Andrade Nery, pretende levar para os debates finais duas propostas para votação pela Comissão de Juristas. A primeira delas, adotada por mim e seguindo as citadas subcomissões, é de retirada da separação obrigatória do sistema, em todas as hipóteses, fazendo com que as questões relativas a fraudes sejam resolvidas pelos institutos da Teoria Geral do Direito Civil, e de acordo com as peculiaridades do caso concreto, sem sacrificar a vontade de todas as pessoas com idade superior a setenta anos. É mantida e até ampliada, ademais, a hipoteca legal em favor dos filhos, sobre os imóveis do pai ou da mãe que passar a outras núpcias ou estabelecer união estável, antes de fazer o inventário do casal anterior (art. 1.489, inc. II, do Código Civil). A segunda proposta, da Professora Rosa Nery, é no sentido de retirar a imposição do regime da separação obrigatória de bens para a pessoa com idade superior aos setenta anos, mantendo-se apenas para as atuais previsões do art. 1.641, incs. I e III, presente uma causa suspensiva do casamento e nos caso de pessoas que dependem de suprimento judicial para se casar. Inclui-se ainda um novo art. 1.641-A na codificação privada, prevendo que "é vedado o regime da comunhão universal de bens no casamento ou na união estável para os maiores de 80 anos, que tenham herdeiros necessários". Caberá, ao final, à Comissão de Juristas, nas votações que ocorrerão em abril, decidir qual a melhor solução. Sucessivamente, caberá ao Parlamento Brasileiro, dentro do regime democrático, adotar um desses caminhos ? ou mesmo um outro ?, sendo certo que a temática representa um dos maiores desafios do Direito de Família e do Direito das Sucessões na atualidade, não tendo encontrado a necessária estabilidade nos vinte anos de vigência do Código Civil de 2002.
Iniciado o ano de 2024, o tema de maior debate do Direito Civil Brasileiro da atualidade, sem dúvida alguma, diz respeito à Reforma do Código Civil. Como destaquei no meu último texto publicado neste canal, em 24 de agosto de 2023 o Presidente do Senado Federal, Rodrigo Pacheco, nomeou e formou uma Comissão de Juristas para empreender os trabalhos de atualização e de reforma do Código Civil Brasileiro de 2002. Essa comissão tem a presidência do Ministro Luis Felipe Salomão e a vice-presidência do Ministro Marco Aurélio Bellizze, ambos do Superior Tribunal de Justiça, cabendo a mim a Relatoria Geral, ao lado da Professora Rosa Maria Andrade Nery. O prazo para o desenvolvimento dos trabalhos é de cento e oitenta dias, com a possibilidade de eventual prorrogação. Foram formados nove grupos de trabalho, de acordo com os livros respectivos do Código Civil e com a necessidade de inclusão de um capítulo específico sobre o Direito Digital. As composições das subcomissões, com os respectivos sub-relatores, foram as seguintes: a) Parte Geral - Professor Rodrigo Mudrovitsch (relator), Ministro João Otávio de Noronha, Professora Estela Aranha e Juiz Rogério Marrone Castro Sampaio; b) Direito das Obrigações - Professor José Fernando Simão (relator) e Professor Edvaldo Brito; c) Responsabilidade Civil - Professor Nelson Rosenvald (relator), Ministra Maria Isabel Gallotti e Juíza Patrícia Carrijo; d) Direito dos Contratos - Professor Carlos Eduardo Elias de Oliveira (relator), Professora Angelica Carlini, Professora Claudia Lima Marques e Professor Carlos Eduardo Pianovski; e) Direito das Coisas  - Desembargador Marco Aurélio Bezerra de Melo (relator), Professor Carlos Vieira Fernandes, Professora Maria Cristina Santiago e Desembargador Marcelo Milagres; f) Direito de Família  - Juiz Pablo Stolze Gagliano (relator), Ministro Marco Buzzi, Desembargadora Maria Berenice Dias e Professor Rolf Madaleno; g) Direito das Sucessões - Professor Mario Luiz Delgado (relator), Ministro Cesar Asfor Rocha, Professora Giselda Maria Fernandes Novaes Hironaka e Professor Gustavo Tepedino; h) Direito Digital - Professora Laura Porto (relatora), Professora Laura Mendes e Professor Ricardo Campos; i) Direito de Empresa - Professora Paula Andrea Forgioni (relatora), Professor Marcus Vinicius Furtado Coêlho, Professor Flavio Galdino, Desembargador Moacyr Lobato e Juiz Daniel Carnio. Importante destacar que desde o início dos nossos trabalhos temos contado com o enorme apoio dos servidores do Senado Federal, Lenita Cunha e Silva, Leandro Augusto de Araújo Cunha Teixeira Bueno e Gabriel Udelsmann. Foram realizadas, em 2023, três audiências públicas, em São Paulo (OABSP, em 23 de outubro), Porto Alegre (Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, em 20 de novembro) e Salvador (Tribunal de Justiça da Bahia, em 7 de dezembro). Além da exposição de especialistas e dos profundos debates ocorridos nesses eventos, foram realizados outros eventos privados em 2023 e muitos já estão agendados para este início de 2024. Vale repetir, a demonstrar o espírito democrático dos trabalhos, que foram abertos canais para envio de sugestões pelo Senado Federal e oficiados mais de quinhentos institutos jurídicos, e muitos enviaram suas importantes contribuições. Em dezembro de 2023 foram consolidados os textos dos dispositivos sugeridos por cada um dos grupos de trabalho, com cerca de 1.800 páginas, e enviados para a revisão dos relatores gerais, que neste momento preparam os textos para consolidação e votação, que ocorrerão em abril de 2024. Foram também nomeados quatro consultores para auxiliar nos nossos próximos trabalhos, os Professores Ana Cláudia Scalquette, Layla Abdo Ribeiro de Andrada, Maurício Bunazar e Vicente de Paula Ataíde Junior. Ainda em dezembro foi incluído mais um membro na comissão, o Professor Dierle José Coelho Nunes, para o grupo de trabalho sobre Direito Digital. Está prevista outra audiência pública para o mês de fevereiro de 2024, a quarta delas, no Senado Federal, com a participação do Ministro da Suprema Corte Argentina Ricardo Luis Lorenzetti, presidente do grupo de trabalho que elaborou o Novo Código Argentino, de 2014, tido como um verdadeiro Supercódigo, pela amplitude dos temas que trata. Por certo, ainda há um longo caminho a percorrer, sem falar nos debates das propostas que ocorrerão no Parlamento Brasileiro.   De todo modo, apesar de termos meras propostas para debates, ainda longe de um anteprojeto, procurarei trazer em meus textos deste ano de 2024 a exposição de algumas sugestões que possivelmente devem prosperar ao final, tendo em vista os trabalhos empreendidos até aqui, o perfil da Comissão de Juristas e os debates que permearam os assuntos nos últimos vinte anos, seja na doutrina ou na jurisprudência. Pois bem, uma das inovações que possivelmente será proposta ao final, estando na pauta das Comissões de Direito de Família, de Direito das Sucessões e de Direito Contratual, é o fim do regime da separação legal ou obrigatória de bens, previsto, atualmente, no art. 1.641 do Código Civil. Nos termos desse comando, o regime é imposto aos cônjuges em três situações: a) nos casos de pessoas que contraírem o casamento com a inobservância de suas causas suspensivas (art. 1.523 do CC); b) no caso da pessoa maior de 70 anos, tendo sido essa idade alterada dos originais 60 anos, por força da Lei n. 12.344/2010; e c) nos casos de todos os que dependerem de suprimento judicial para casar, por exemplo, as pessoas com idade entre 16 e 18 anos. Em relação ao seu inciso II, sempre foi forte a corrente doutrinária que sustenta a sua inconstitucionalidade, por trazer situação discriminatória ao idoso, tratando-o como incapaz para o casamento. Tem-se afirmado que tal previsão não visa a proteger o idoso, mas seus herdeiros, tendo feição estritamente patrimonialista, na contramão da tendência do Direito Privado contemporâneo, de proteger a pessoa humana. Reconhecendo doutrinariamente essa inconstitucionalidade, o Enunciado n. 125 da I Jornada de Direito Civil trouxe como proposta, já no ano de 2003, a revogação do comando. Foram as suas justificativas: "A norma que torna obrigatório o regime da separação absoluta de bens em razão da idade dos nubentes (qualquer que seja ela) é manifestamente inconstitucional, malferindo o princípio da dignidade da pessoa humana, um dos fundamentos da República, inscrito no pórtico da Carta Magna (art. 1.º, inc. III, da CF/1988). Isso porque introduz um preconceito quanto às pessoas idosas que, somente pelo fato de ultrapassarem determinado patamar etário, passam a gozar da presunção absoluta de incapacidade para alguns atos, como contrair matrimônio pelo regime de bens que melhor consultar seus interesses". Ainda no âmbito da doutrina, vários autores defendem a inconstitucionalidade da previsão, caso de Maria Berenice Dias, de Pablo Stolze Gagliano e de Rolf Madaleno, que compõem a subcomissão de Direito de Família na Comissão de Juristas. Também sustento essa inconstitucionalidade em meus livros e artigos sobre o tema. Na jurisprudência, dois acórdãos sempre são citados, com a mesma conclusão, um do Rio Grande do Sul e outro de São Paulo, pela eminência de seus relatores (TJRS, Apelação 70004348769, 7.ª Câmara Cível, Rel. Maria Berenice Dias, j. 27.03.2003; e TJSP, Apelação Cível 007.512-4/2-00, 2.ª Câmara de Direito Privado Rel. Des. Cézar Peluso, j. 18.08.1998). Ademais, tem-se afirmado que o aumento da idade para os 70 anos, conforme a Lei n. 12.344/2010, não afastou o problema, mantendo-se integralmente a tese de inconstitucionalidade. Dois projetos de leis anteriores, do mesmo modo, já propunham a revogação da norma. O primeiro era o Estatuto das Famílias, então proposto pelo Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM). O segundo, no Senado Federal, o Projeto de Lei n. 209/2006, de autoria do Senador José Maranhão, estava amparado no parecer da Professora Silmara Juny Chinellato, Titular de Direito Civil da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Em outubro de 2022, o Supremo Tribunal Federal reconheceu repercussão geral a respeito da afirmação de inconstitucionalidade desse art. 1.641, inc. II, do Código Civil. Isso se deu nos autos do Agravo no Recurso Extraordinário 1.309.642/SP, com a Relatoria do Ministro Luís Roberto Barroso (Tema 1.236). Foram realizadas as audiências com oitiva das partes e dos amigos da Corte em 2023, e o início do julgamento do tema está marcado para a volta do recesso, em fevereiro de 2024. Em verdade, enorme será a contribuição do Supremo Tribunal Federal para a Reforma do Código Civil se reconhecer essa inconstitucionalidade, da mesma forma como se deu a respeito do tema do fim da separação judicial (Tema n. 1.053), julgado no ano passado. Além do citado problema de inconstitucionalidade, a verdade é que o regime da separação obrigatória de bens, em todos os incisos do art. 1.641 do vigente Código Civil, revelou-se absolutamente anacrônico, excessivamente limitador da liberdade, distante da realidade contemporânea e só gerou problemas nos últimos anos, além de uma desnecessária e excessiva judicialização. Um dos problemas iniciais enfrentados disse respeito à permanência ou não da Súmula n. 377 do Supremo Tribunal Federal, que remonta à década de 1960, e que prevê a comunicação dos bens havidos durante o casamento nesse regime. Muito se debateu, no âmbito da doutrina e da jurisprudência, se essa sumular deveria ser aplicada na vigência da codificação privada de 2002, vencendo a corrente que respondia positivamente. Definida por doutrina e por jurisprudência a permanência da sumular no ordenamento jurídico, seguiram-se debates sobre os bens que se comunicam, com prova ou não do esforço comum. Sucessivamente, discutiu-se, novamente na doutrina e na  jurisprudência, por anos a fio e com muito afinco, a sua incidência ou não para a união estável, e novamente com quais limites. Ao final, em 2022, surgiu a Súmula n. 655 do Superior Tribunal de Justiça, in verbis: "aplica-se à união estável contraída por septuagenário o regime da separação obrigatória de bens, comunicando-se os adquiridos na constância, quando comprovado o esforço comum". Nos últimos anos, destaco ainda o surgimento da tese de afastamento da Súmula n. 377 por convenção dos consortes, incentivada pelo saudoso Mestre Zeno Veloso, afirmação que acabou por ser adotada em julgamento do Superior Tribunal de Justiça: "no casamento ou na união estável regidos pelo regime da separação obrigatória de bens, é possível que os nubentes/companheiros, em exercício da autonomia privada, estipulando o que melhor lhes aprouver em relação aos bens futuros, pactuem cláusula mais protetiva ao regime legal, com o afastamento da Súmula n. 377 do STF, impedindo a comunhão dos aquestos" (STJ, REsp 1.922.347/PR, 4.ª Turma, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, j. 07.12.2021, DJe de 01.2.2022). Com o devido respeito, debates técnicos profundos, desnecessários em muitos casos, e com questões técnicas complicadas até para os mais experientes juristas, nunca se justificaram, ainda mais quando distantes da realidade e da compreensão pela sociedade. Assim, por bem, pelo menos no meu entendimento, a subcomissão de Direito de Família, além de outras interessantes propostas para o tema de regime de bens, resolveu propor a revogação do art. 1.641 do Código Civil no todo. Vejamos as suas justificativas: "O Direito Patrimonial também teve especial assento na sugestão da Subcomissão, com destaque para uma diagnose diferencial mais clara e assertiva entre os pactos, seja conjugal (casamento), seja convivencial (união estável), prestigiando-se, com isso, a autonomia privada nas relações de família: 'A primeira alteração procedida no âmbito dos regimes de bens e dos pactos conjugais ou convivenciais foi a de estender seus efeitos jurídicos tanto ao instituto do casamento como ao da união estável e permitir que os pactos conjugais e/ou convivenciais possam ser estipulados tanto antes como depois do casamento ou da instituição da união estável, permitindo, destarte, que, depois da celebração do casamento ou da constituição de uma união estável, se faça possível a alteração do regime de bens, mediante escritura pública pós-conjugal ou convivencial, sem a intervenção judicial, mas cujos efeitos nunca serão retroativos (ex tunc), sempre ex nunc, sem retornar ao passado, mesmo no caso da mudança para o regime da comunhão universal, ressalvados sempre os direitos de terceiros' (trecho de justificativa). O Estado precisava dar mais espaço à vontade de quem pretende autodeterminar o seu próprio destino. Suprimiu-se todo o confuso regramento do regime de participação final nos aquestos, bem como a injustificada, senão inconstitucional, separação obrigatória de bens". Ainda de acordo com a subcomissão de Direito de Família, "foi proposta a revogação de todo o artigo 1.641, com consequente ajuste redacional no art. 1.654. Com a revogação, o instituto da separação obrigatória de bens em razão da idade ou da pseudoconfusão de bens por não haver sido feito a partilha ou o inventário de um relacionamento anterior, deixa de existir em nosso sistema. A normatização revogada discrimina as pessoas no tocante à sua capacidade de discernimento, apenas porque septuagenários, assim como é incoerente impor um regime obrigatório de separação de bens por supor que pudessem ser confundidos os bens da relação afetiva anterior com o novo relacionamento conjugal ou convivencial, sabido que toda classe de bens goza de fácil comprovação quanto à sua aquisição, quer se tratem de imóveis, móveis, semoventes, automóveis, depósitos e aplicações financeiras, constituições de sociedades empresárias etc.". Como se pode perceber, portanto, a ideia não é só revogar o inciso II do art. 1.641, mas todo o dispositivo, o que conta com o meu apoio, já manifestado nas citadas audiências públicas, com os fins de destravar o Direito Civil, expressão que tenho utilizado com frequência. Exatamente na mesma linha posicionou-se a subcomissão de Direito das Sucessões, sobretudo porque retirou do art. 1.829 a menção ao regime da separação obrigatória de bens, com os fins de excluir a concorrência sucessória do cônjuge - e do companheiro - com os descendentes. Na redação projetada, o dispositivo passaria a ter a seguinte redação: "a sucessão legítima defere-se na ordem seguinte: I - aos descendentes, em concorrência com o cônjuge ou com o companheiro sobrevivente, salvo no regime de separação de bens; II - aos ascendentes, em concorrência com o cônjuge ou com o companheiro sobrevivente, salvo no regime de separação de bens; III - ao cônjuge ou ao companheiro sobrevivente; IV - aos colaterais até o quarto grau". A separação de bens mencionada é a convencional, decorrente de pacto antenupcial ou contrato de convivência, a única que persistirá no sistema. Também se almeja incluir um novo parágrafo único no preceito, prevendo que nos casos de concorrência sucessória, como na comunhão parcial de bens, "a concorrência do cônjuge ou companheiro com descendentes ou ascendentes recairá somente sobre os bens comuns". Pressinto que a nova redação desse art. 1.829 será um dos principais temas de debates da Comissão de Juristas na votação que ocorrerá em abril. Por fim, também houve a retirada do regime da separação obrigatória de bens pela subcomissão de Direito Contratual. Isso se deu, principalmente, no tratamento da venda de ascendente para descendente. Na atual redação do art. 496 do Código Civil, está previsto que é anulável a venda de ascendente a descendente, salvo se os outros descendentes e o cônjuge do alienante expressamente houverem consentido. O parágrafo único do comando estabelece que, "em ambos os casos, dispensa-se o consentimento do cônjuge se o regime de bens for o da separação obrigatória". Com o novo texto sugerido, sem prejuízo de outros aperfeiçoamentos necessários, o caput do preceito passaria a prever que "é anulável a venda de ascendente a descendente quando o preço for inferior ao valor de mercado do bem, salvo se os outros descendentes e o cônjuge ou companheiro do alienante expressamente houverem consentido". Em continuidade, o seu novo § 1.º estabeleceria o consentimento do cônjuge ou do companheiro se o regime de bens for o da separação, mais uma vez prevista apenas aquela de origem convencional. Espera-se, portanto, que essa proposta de modificação do sistema civilístico, retirando-se do Código Civil a separação obrigatória de bens, seja adotada pela Comissão de Juristas e, sucessivamente, pelo Parlamento Brasileiro. Não há, no meu entender, mais qualquer justificativa para essa indesejada limitação da autonomia privada dos cônjuges e dos companheiros, que só gerou profundos e graves problemas nos últimos anos.
Como se tornou comum nos últimos anos, nesta última coluna Família e Sucessões do Migalhas de 2023 farei uma breve retrospectiva do intenso ano que se passou, expondo as principais mudanças legislativas, os eventos, os debates doutrinários, os principais julgados, e trazendo também uma perspectiva do que deve vir nos próximos anos. Do ponto de vista legislativo, em outubro de 2023, surgiu nova alteração no tratamento do complicado tema da guarda dos filhos. O art. 1.584, § 2.º, do Código Civil foi modificado, passando a trazer uma exceção à suposta obrigatoriedade da guarda compartilhada em virtude da ocorrência de potenciais riscos da prática de violência doméstica, a qualquer um dos membros da entidade familiar. Na sua atual redação, "quando não houver acordo entre a mãe e o pai quanto à guarda do filho, encontrando-se ambos os genitores aptos a exercer o poder familiar, será aplicada a guarda compartilhada, salvo se um dos genitores declarar ao magistrado que não deseja a guarda da criança ou do adolescente ou quando houver elementos que evidenciem a probabilidade de risco de violência doméstica ou familiar". Como tenho salientado, o tema da guarda de filhos vivencia hoje um verdadeiro caos doutrinário e jurisprudencial, diante das confusas e hesitantes redações dos arts. 1.583 e 1.583, após a lei 13.058/2014, como de forma contundente alertou José Fernando Simão, quando da realização de audiência pública, no Congresso Nacional, que à época discutia a elaboração dessa norma. Não se sabe ao certo, se o sistema trata de guarda compartilhada ou alternada; se é possível exercer a guarda à distância; se ela é obrigatória ou não, entre outras questões, sendo urgente que o processo de Reforma do Código Civil, ora em curso, trate do tema e como ora já se projeta. Seja como for, a nova norma de 2023, em certa medida, confirmou a afirmação de que a guarda compartilhada não é mesmo obrigatória, sobretudo pela locução final incluída no §2º do art. 1.584 da codificação privada. No que diz respeito aos procedimentos, foi acrescentado também um art. 699-A ao Código de Processo Civil, prevendo que nas ações de guarda, antes de iniciada a audiência de mediação e conciliação, o juiz indagará às partes e ao Ministério Público se há risco de violência doméstica ou familiar, fixando o prazo de cinco dias para a apresentação de prova ou de indícios pertinentes. Em certa medida, as alterações legislativas confirmam parte do entendimento jurisprudencial. A título de exemplo, analisando a questão e confirmando a fixação de guarda unilateral, do Superior Tribunal de Justiça, destaco: "É direito da criança e do adolescente desenvolver-se em um ambiente familiar saudável e de respeito mútuo de todos os seus integrantes. A não observância desse direito, em tese, a coloca em risco, se não físico, psicológico, apto a comprometer, sensivelmente, seu desenvolvimento. Eventual exposição da criança à situação de violência doméstica perpetrada pelo pai contra a mãe é circunstância de suma importância que deve, necessariamente, ser levada em consideração para nortear as decisões que digam respeito aos interesses desse infante. No contexto de violência doméstica contra a mulher, é o juízo da correlata Vara Especializada que detém, inarredavelmente, os melhores subsídios cognitivos para preservar e garantir os prevalentes interesses da criança, em meio à relação conflituosa de seus pais. Na espécie, a pretensão da genitora de retornar ao seu país de origem, com o filho - que pressupõe suprimento judicial da autorização paterna e a concessão de guarda unilateral à genitora, segundo o Juízo a quo - deu-se em plena vigência de medida protetiva de urgência destinada a neutralizar a situação de violência a que a demandante encontrava-se submetida" (STJ, REsp 1.550.166/DF, 3.ª Turma, Rel. Min. Marco Aurélio Bellizze, j. 21.11.2017, DJe 18.12.2017). De todo modo, penso que a expressão "probabilidade de risco de violência doméstica ou familiar" deve ser analisada com cautela pelo julgador. Isso porque o Direito Civil não fixou com clareza, até o presente momento e para os fins de vários institutos privados, a definição de risco. Muito maior será, portanto, o desafio em se dizer o que é a "probabilidade de risco", cláusula geral que demandará tempo e esforço para ser devidamente preenchida pelos magistrados, de acordo com as circunstâncias do caso concreto. Portanto, já vislumbro enormes desafios para a aplicação do novo comando. De todo modo, podem servir de apoio nesse preenchimento dois enunciados doutrinários do IBDFAM, aprovados no seu XIV Congresso Brasileiro, em outubro de 2023, poucos dias antes da entrada em vigor da nova lei. Esse, aliás, foi um dos grandes eventos do ano que se se encerra. O primeiro deles é o Enunciado n. 47, segundo o qual, "constatada a ocorrência de violência doméstica, a decisão que fixar o regime de convivência entre os pais e seus filhos deve considerar o impacto sobre a segurança, bem-estar e desenvolvimento saudável das crianças e adolescentes envolvidos, sopesando o risco de exposição destes a novas formas de violência". A ementa doutrinária traz parâmetros interessantes, que devem ser levados em conta pelo julgador para o eventual afastamento da guarda compartilhada. Além dele, destaco o Enunciado n. 50 do IBDFAM, segundo o qual, "a restrição ou limitação à convivência paterna ou materna em razão da violência doméstica contra a criança ou adolescente não deve ser indiscriminadamente extensiva aos demais familiares vinculados ao agressor, respeitado sempre o superior interesse e vontade da criança ou adolescente". Do ponto em vista da jurisprudência, muitos foram os entendimentos pronunciados no âmbito dos Tribunais Superiores. Entre eles destaco o julgamento, pelo Supremo Tribunal Federal, da inconstitucionalidade do instituto da separação de direito, judicial e extrajudicial, desde a Emenda Constituição n. 66/2010, conhecida como Emenda do Divórcio, que alterou o art. 226, §3º, da Constituição Federal, passando a ter a seguinte redação: "o casamento civil pode ser dissolvido pelo divórcio". O debate foi intensificado pelo fato de o Código de Processo Civil de 2015 ter mencionado a separação judicial e a extrajudicial em vários de seus comandos. No âmbito do Superior Tribunal de Justiça, existiam decisões que entendiam pelo fim da separação de direito desde a Emenda n. 66, como o prolatado pelo Ministro Luis Felipe Salomão, em 2011: "assim, para a existência jurídica da união estável, extrai-se o requisito da exclusividade de relacionamento sólido da exegese do § 1.º do art. 1.723 do Código Civil de 2002, fine, dispositivo esse que deve ser relido em conformidade com a recente EC n.º 66 de 2010, a qual, em boa hora, aboliu a figura da separação judicial" (STJ, REsp 912.926/RS, 4.ª Turma, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, j. 22.02.2011, DJe 07.06.2011). Porém, infelizmente, em contestado aresto de março de 2017, a Quarta Turma do Superior Tribunal de Justiça acabou por concluir que o instituto da separação judicial remanesceria no ordenamento jurídico nacional: "A separação é modalidade de extinção da sociedade conjugal, pondo fim aos deveres de coabitação e fidelidade, bem como ao regime de bens, podendo, todavia, ser revertida a qualquer momento pelos cônjuges (Código Civil, arts. 1.571, III, e 1.577). O divórcio, por outro lado, é forma de dissolução do vínculo conjugal e extingue o casamento, permitindo que os ex-cônjuges celebrem novo matrimônio (Código Civil, arts. 1571, IV, e 1.580). São institutos diversos, com consequências e regramentos jurídicos distintos. A Emenda Constitucional n.º 66/2010 não revogou os artigos do Código Civil que tratam da separação judicial" (STJ, REsp 1.247.098/MS, 4.ª Turma, Rel. Min. Maria Isabel Gallotti, j. 14.03.2017, DJe 16.05.2017). Como não poderia ser diferente, sempre me filiei ao voto vencido do Ministro Salomão, em especial pelas citações à minha posição doutrinária e de muitos outros juristas como Luiz Edson Fachin, Paulo Lôbo, Rolf Madaleno, Zeno Veloso, Álvaro Villaça Azevedo, Maria Berenice Dias, Cristiano Chaves, Nelson Rosenvald, Pablo Stolze Gagliano, Rodolfo Pamplona Filho e Daniel Amorim Assumpção Neves; este último com o forte argumento de que o CPC/2015 não poderia ter repristinado a separação de direito. Cerca de cinco meses depois, mais uma vez lamentavelmente, fez o mesmo a Terceira Turma da Corte, ao julgar da seguinte forma: "a dissolução da sociedade conjugal pela separação não se confunde com a dissolução definitiva do casamento pelo divórcio, pois versam acerca de institutos autônomos e distintos. A Emenda à Constituição n.º 66/2010 apenas excluiu os requisitos temporais para facilitar o divórcio. O constituinte derivado reformador não revogou, expressa ou tacitamente, a legislação ordinária que cuida da separação judicial, que remanesce incólume no ordenamento pátrio, conforme previsto pelo Código de Processo Civil de 2015 (arts. 693, 731, 732 e 733 da Lei n.º 13.105/2015). A opção pela separação faculta às partes uma futura reconciliação e permite discussões subjacentes e laterais ao rompimento da relação. A possibilidade de eventual arrependimento durante o período de separação preserva, indubitavelmente, a autonomia da vontade das partes, princípio basilar do direito privado. O atual sistema brasileiro se amolda ao sistema dualista opcional que não condiciona o divórcio à prévia separação judicial ou de fato" (STJ, REsp 1.431.370/SP, 3.ª Turma, Rel. Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, j. 15.08.2017, DJe 22.08.2017). Essa última votação foi unânime, na Terceira Turma, não havendo qualquer posição em sentido contrário. Apesar do surgimento desses acórdãos superiores, mantive a minha posição em meus livros, aulas e palestras, mesmo com essas derrotas,  até porque o tema pendia de análise pelo Supremo Tribunal Federal que, nos autos do Recurso Extraordinário 1.167.478/RJ, reconheceu a repercussão geral de questão constitucional, o que se deu em junho de 2019 - Rel. Min. Luiz Fux (Tema 1.053). Em suma, apesar dos recentes arestos superiores, prolatados no âmbito do Superior Tribunal de Justiça, compartilhava do entendimento de extinção da separação de direito no Direito de Família brasileiro, conforme constava do voto vencido do Ministro Luis Felipe Salomão. Pois bem, felizmente e depois de treze anos de intenso debate e muitas discussões doutrinárias e jurisprudenciais, o Pleno do Supremo Tribunal Federal finalmente examinou a questão do fim da separação judicial, em novembro de 2023. Por maioria de votos, sete votos contra três, concluiu que ela não persiste mais no sistema jurídico brasileiro, desde a Emenda Constitucional 66/2010. Seguiram o voto do relator Luiz Fux, os Ministros Cristiano Zanin, Dias Toffoli, Edson Fachin - que sempre defendeu essa posição, como doutrinador -, Gilmar Mendes, Luís Roberto Barroso e Cármen Lúcia. Foram vencidos os Ministros Nunes Marques, André Mendonça e Alexandre de Moras, que, apesar de julgarem pela necessidade de uma separação judicial prévia para o divórcio - o que foi unânime -, ainda concluíam pela possibilidade da ação autônoma de separação judicial. A tese final foi assim ementada da seguinte maneira:  "Após a promulgação da EC 66/10, a separação judicial não é mais requisito para o divórcio, nem subsiste como figura autônoma no ordenamento jurídico. Sem prejuízo, preserva-se o estado civil das pessoas que já estão separadas por decisão judicial ou escritura pública, por se tratar de ato jurídico perfeito" (STF, RE 1.167.478/RJ, Tribunal Pleno, Rel. Min. Luiz Fux, Tema 1.053, j. 08.11.2023).  Apesar de a tese mencionar apenas a separação judicial, entendo que ela vale também para a separação extrajudicial. Assim, o instituto da separação de direito, a englobar as duas figuras, foi banido do ordenamento jurídico, sendo inconstitucionais os dispositivos do Código Civil, do Código de Processo Civil e da legislação específica que mencionam a categoria; como sempre defendi em meus livros. Como o julgamento foi prolatado em sede de repercussão geral, tem força vinculativa para novas decisões da primeira e da segunda instância, nos termos dos arts. 489, 926, 927 e 985 do Estatuto Processual. O Superior Tribunal de Justiça também precisará rever a sua posição, passando a prevalecer a posição anterior do Ministro Luis Felipe Salomão, alinhada à maioria dos Ministros do Supremo Tribunal Federal. Espera-se, ainda, que a doutrina vencida se recolha quanto às essas discussões, uma vez que a decisão deve ser cumprida. Como tenho afirmado em minha aulas e palestras, é preciso saber perder, em prol do respeito institucional, da certeza, da estabilidade e da segurança jurídica. Além disso, é preciso cumprir a lei, sobretudo a força vinculativa das decisões judiciais que são precedentes qualificados, como é o caso dessa decisão do STF, e nos termos do que foi consagrado pelo Código de Processo Civil de 2015. Ainda no plano normativo e jurisprudencial, do Conselho Nacional de Justiça, devem ser destacadas duas iniciativas da Corregedoria Geral de Justiça, exercida pelo Ministro Luis Felipe Salomão. A primeira delas diz respeito aos Provimentos n. 141 e 146 do CNJ, que alteraram o Provimento n. 37/2014, para atualizá-lo à luz da Lei n.  14.382/2022, que instituiu o Sistema Eletrônico dos Registros Públicos (SERP), tratando do termo declaratório de reconhecimento e dissolução de união estável perante o registro civil das pessoas naturais e dispondo sobre a alteração de regime de bens na união estável e sobre a sua conversão extrajudicial em casamento. Sucessivamente, como segunda iniciativa a ser mencionada, foi criado, em agosto de 2023, o Código Nacional de Normas (CNN-CNJ), que já incorporou essas previsões, sem prejuízo de muitas outras editadas pelo órgão, com aplicação direta para o Direito de Família e das Sucessões, e sobretudo para a atividade extrajudicial. Como bem destacado pelo Ministro Luis Felipe Salomão, na sua exposição de motivos, "a ideia é que os cidadãos, os delegatários, os magistrados e os demais profissionais do Direito encontrem, neste Código Nacional de Normas, tudo de que o Conselho Nacional de Justiça dispõe em matéria de atos normativos relativamente aos serviços notariais e registrais, ainda que por meio de remissões". E mais, "o objetivo do presente Código Nacional de Normas é colaborar para a adequada sistematização das normas envolvendo os serviços notariais e registrais, tudo em proveito dos cidadãos e dos profissionais do Direito que precisam realizar consultas mais objetivas e seguras". Tive a honra de fazer parte do grupo de trabalho de sua elaboração, ao lado das Juízas Carolina Ranzolin Nerbass, Caroline Somesom Tauk e Daniela Pereira Madeira; bem como do Professor Carlos Eduardo Elias de Oliveira. Sem dúvidas o novo CNN é um marco para a atividade extrajudicial dos Cartórios em nosso País, que deve ser muito incrementada e incentivada nos próximos anos. Como outro ponto a ser destacado, o que deve ser debatido intensamente nos próximos anos, 2023 marcou o início dos trabalhos de Reforma do Código Civil. Em 24 de agosto de 2023, o Presidente do Senado Federal, Rodrigo Pacheco, nomeou e formou uma comissão de juristas para empreender os trabalhos  de atualização do Código Civil de 2002. Como se sabe, o projeto que gerou a atual codificação privada é da década de 1970, estando desatualizada em vários aspectos, sobretudo em questões relativas ao Direito de Família e das Sucessões, sobretudo diante das novas tecnologias. Voltou-se a afirmar, com muita força, que o atual Código Civil "já nasceu velho". A comissão tem a Presidência do Ministro Luis Felipe Salomão e a Vice-Presidência do Ministro Marco Aurélio Bellizze, ambos do Superior Tribunal de Justiça. Tenho a honra de atuar como relator da comissão, ao lado da Professora Rosa Maria Andrade Nery. O prazo para o desenvolvimento dos trabalhos é de cento e oitenta dias, com a possibilidade de eventual prorrogação. Foram formados nove grupos de trabalho, de acordo com os livros respectivos do Código Civil e com a necessidade de inclusão de um capítulo específico e novo sobre o Direito Digital, o que é urgente. As composições das subcomissões, com os respectivos sub-relatores, são as seguintes:   Na Parte Geral, Professor Rodrigo Mudrovitsch (relator), Ministro João Otávio de Noronha, Professora Estela Aranha e Juiz Rogério Marrone Castro Sampaio. Em Direito das Obrigações, Professor José Fernando Simão (relator) e Professor Edvaldo Brito. Em Responsabilidade Civil, Professor Nelson Rosenvald (relator), Ministra Maria Isabel Gallotti e Juíza Patrícia Carrijo. Quanto ao Direito dos Contratos, Professor Carlos Eduardo Elias de Oliveira (relator), Professora Angelica Carlini, Professora Claudia Lima Marques e Professor Carlos Eduardo Pianovski. Em Direito das Coisas, Desembargador Marco Aurélio Bezerra de Melo (relator), Professor Carlos Vieira Fernandes, Professora Maria Cristina Santiago e Desembargador Marcelo Milagres. Em Direito de Família, Juiz Pablo Stolze Gagliano (relator), Ministro Marco Buzzi, Desembargadora Maria Berenice Dias e Professor Rolf Madaleno. No Direito das Sucessões, Professor Mario Luiz Delgado (relator), Ministro Cesar Asfor Rocha, Professora Giselda Maria Fernandes Novaes Hironaka e Professor Gustavo Tepedino. Para o livro especial do Direito Digital, Professora Laura Prado (relatora), Professora Laura Mendes e Professor Ricardo Campos. Por fim, para o Direito de Empresa, Professora Paula Andrea Forgioni (relatora), Professor Marcus Vinicius Furtado Coêlho, Professor Flavio Galdino, Desembargador Moacyr Lobato e Juiz Daniel Carnio. Muito longe de ser um trabalho feito às pressas, no ano de 2023, foram realizadas três audiências públicas, em São Paulo (OABSP, em 23 de outubro), Porto Alegre (Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, em 20 de novembro ) e Salvador (Tribunal de Justiça da Bahia, em 7 de dezembro). Além da exposição de especialistas e debates ocorridos nesses eventos, muitos outros seminários jurídicos foram realizados em reuniões de cada subcomissão, com a participação de seus componentes por todo o Brasil. Foram também abertos canais para envio de sugestões pelo Senado Federal e oficiados mais de quinhentos institutos e instituições jurídicas, que enviaram suas colaborações. Após um intenso trabalho no âmbito de cada grupo, em dezembro de 2023 foram consolidados os textos dos dispositivos sugeridos, com cerca de 1.800 páginas, enviados para a revisão dos relatores gerais. Em 2024, ocorrerão, sem atropelos e conforme as normas regimentais do Congresso Nacional, os debates entre todos os membros da comissão, votação dos textos e sua elaboração final, em meados de abril, para posterior envio ao Presidente do Senado. Após, ainda, ocorrerão as discussões nas Casas do Povo, no Parlamento Brasileiro, com possibilidades de novas emendas e tramitação oficial. Deixarei aqui de expor as principais mudanças, pois o texto ainda está sendo discutido. De todo modo, como afirmei em minhas aulas e palestras de 2023, a ideia central é desburocratizar e destravar o Direito Privado Brasileiro, no que for possível em prol da operabilidade, um dos princípios fundamentais do Código Civil de 2002.  Apesar de grande ganhos, o Direito de Família e Sucessões também sofreu enormes perdas. Entre elas destaco o falecimento do Ministro e Professor Paulo de Tarso Sanseverino, em abril e do Professor Cristiano Chaves de Farias, em novembro. Ambos deixaram um legado de relevo para todo o Direito Civil, que sempre será lembrado e nunca esquecido. Desde 2019, este último ano foi o primeiro em que começamos sem o fantasma pandêmico da Covid, o que fez com que os encontros e eventos jurídicos voltassem com muita força. Entre tantos, destaco a III Jornada de Direito Processual Civil, do Conselho da Justiça Federal e com apoio do Superior Tribunal de Justiça, realizado em Brasília, em setembro, coordenado pelos Ministros Og Fernandes e Mauro Campbell Marques. Com vários enunciados importantes para o Direito de Família e das Sucessões, destaco três: "o foro de domicílio da vítima de violência doméstica tem prioridade para a ação de divórcio, separação, anulação de casamento e reconhecimento ou dissolução de união estável" (Enunciado n. 163); "em casos excepcionais, o juiz poderá dispensar a prova pericial nos processos de interdição ou curatela, na forma do art. 472 do CPC e ouvido o Ministério Público, quando as partes juntarem pareceres técnicos ou documentos elucidativos e houver entrevista do interditando" (Enunciado n. 178) e "nos termos do art. 627, §3º, do CPC, é possível o reconhecimento" (Enunciado n. 179). A última ementa doutrinária, aliás, é de grande interesse para a prática do Direito das Sucessões, com tese que há tempos tenho defendido. O IBDFAM, seja pela Diretoria Nacional seja pelas Estaduais, voltou a fazer grandes eventos presenciais. Destaco novamente o seu XIV Congresso Brasileiro, em outubro, que marcou as despedidas dos Professores Paulo Lôbo e Giselda Hironaka, da Diretoria Nacional e teve a participação de mais de 1.500 participantes em Belo Horizonte, e a aprovação de dez enunciados doutrinários, dois deles aqui antes destacados. O IBFAMSP realizou também muitos eventos, o maior deles do Núcleo o ABCDMR, feito em minha homenagem, em novembro. Após dezoito anos na Diretoria do IBDFAMP, após ter sido vice-presidente e presidente por dois mandatos, despeço-me da entidade, que passa a ser presidida por Ana Paula Copriva, a primeira mulher a exercer o mandato, ao lado de Marcelo Truzzi Otero, como vice-presidente. Sigo no IBDFAM Nacional como presidente da comissão de Direito das Sucessões, recentemente premiada, e como vice-presidente da comissão de Enunciados. Encerrando este texto, gostaria de agradecer ao Migalhas pela oportunidade. Ano que vem esta coluna completa dez anos e a minha coleção de livros de Direito Civil completa vinte anos. Quero agradecer ao Miguel e a toda a sua excelente equipe, deste que é, na minha opinião, o maior e mais importante informativo jurídico do Brasil. Em 2023, os textos aqui publicados - sobretudo os sobre "holdings familiares" -, tiveram enorme repercussão, como nunca visto. Quero agradecer aos Professores Maurício Bunazar e Carlos Elias, que foram meus coautores na coluna. Ano que vem pretende ampliar as coautorias, com muitos outros juristas, tendo como foco principal a Reforma do Código Civil. Desejo a todos os leitores um Feliz Natal! E que 2024 seja tão intenso como foi 2023!
Começamos este texto com um caso concreto, a fim de analisar a polêmica do seu tema central. Suponha-se que um marido tenha doado um apartamento, de um milhão de reais, para a sua esposa. Na época, esse marido tinha um outro imóvel, uma casa também de um milhão de reais. Tempos depois, o marido vende a casa e gasta o dinheiro com viagens de luxo pelo mundo afora. Após acabar o dinheiro, gasto por ele, o casal entra em uma grave crise, se divorcia e a ex-esposa permanece com o apartamento doado como um bem particular. Alguns anos depois, o ex-marido falece, sem deixar qualquer bem aos seus herdeiros. Supondo-se que o falecido tenha deixado dois filhos unilaterais (descendentes apenas dele, e não da esposa), indaga-se: esses filhos podem exigir da ex-madrasta a colação daquele apartamento? O caso acima chama a atenção para uma questão que não está bem explicitada no texto do Código Civil, qual seja a dúvida se o viúvo ou o ex-cônjuge têm ou não o dever de colacionar. A resposta para essa indagação gira em torno dos arts. 544 e 2.002 do Código Civil. De acordo com o primeiro comando, inserido no capítulo da codificação privada que trata dos contratos em espécie, "a doação de ascendentes a descendentes, ou de um cônjuge a outro, importa adiantamento do que lhes cabe por herança". Já o segundo preceito enuncia que "os descendentes que concorrerem à sucessão do ascendente comum são obrigados, para igualar as legítimas, a conferir o valor das doações que dele em vida receberam, sob pena de sonegação". Ainda, consoante o parágrafo único desse art. 2.002, "para cálculo da legítima, o valor dos bens conferidos será computado na parte indisponível, sem aumentar a disponível". Observe-se que os dois dispositivos possuem uma aparente contradição em relação ao cônjuge. O art. 544 do Código Civil prevê que a liberalidade feita ao cônjuge implica antecipação de herança. Todavia, contraditoriamente, o art. 2.002 da Lei Geral Privada não menciona o viúvo como obrigado a colacionar as liberalidades recebidas. Trata-se de um grave lapso do legislador, pois o instituto da colação destina-se exatamente a permitir que os herdeiros necessários - especificamente os descendentes e o cônjuge - igualem os quinhões hereditários (rectius, as legítimas ou reservas, quotas destinadas aos herdeiros necessários). Devem ser levados em conta, para tanto, o monte-mor e as heranças antecipadas em vida por meio de liberalidades. Como lembram Pablo Stolze Gagliano e Rodolfo Pamplona Filho, "a tal processo de conferência de valores, para igualação das legítimas, é dado o nome de colação" (Novo curso de direito civil. 10. ed. São Paulo: Saraiva, 2023. p. 404). Conforme o segundo autor deste texto e João Costa-Neto em seu manual de Direito civil: "disciplinado nos arts. 2.002 ao 2.012 do CC, a colação é instituto destinado a viabilizar que os herdeiros necessários igualem os seus quinhões sobre a legítima, computando, para esse efeito, as liberalidades feitas pelo falecido" (Direito civil. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2023. p. 1489). Definido o instituto, a citada contradição é resolvida pela doutrina majoritária para as hipóteses em que estamos diante de um viúvo, e não de um ex-cônjuge, caso de um divorciado. Como o viúvo é também um herdeiro, é forçoso reconhecer seu dever de colacionar, apesar da omissão do art. 2.002 do Código Civil. Isso, porque o art. 544 da codificação é expresso em categorizar a liberalidade recebida como antecipação do que lhe cabe por herança. Como realçado pelo primeiro autor no volume 6 de sua coleção de Direito civil ao tratar do lapso redacional do retrocitado art. 2.002, "filiamo-nos à corrente doutrinária pela qual o cônjuge também é destinatário do referido dever legal (por todos, DINIZ, Maria Helena. Código ..., 2003, p. 1356; LÔBO, Paulo. Direito ..., 2012, p. 89; DIAS, Maria Berenice. Manual ..., 2011, p. 594; e VELOSO, Zeno. Comentários ..., 2003, p. 413)" (TARTUCE, Flávio. Direito civil. 16. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2023. v. 6: Direito das sucessões. p. 574). Portanto, no exemplo que mencionamos no início deste texto, se não tivesse ocorrido o divórcio do casal, a viúva teria o dever de colacionar o apartamento de um milhão de reais recebido a título de doação do falecido marido, para igualar os quinhões hereditários devidos aos dois filhos dele. Isso sob pena de imposição a ela da pena de sonegados, com a perda dos direitos sobre o imóvel, como está no art. 1.992 do Código Civil, in verbis: "o herdeiro que sonegar bens da herança, não os descrevendo no inventário quando estejam em seu poder, ou, com o seu conhecimento, no de outrem, ou que os omitir na colação, a que os deva levar, ou que deixar de restituí-los, perderá o direito que sobre eles lhe cabia". O problema, porém, reside na hipótese em que, antes do falecimento, tenha ocorrido o fim do relacionamento do casal. A questão, nesse caso, é saber se o ex-cônjuge tem ou não o dever de colacionar as liberalidades recebidas. O exemplo que indicamos no início do artigo realça exatamente essa questão. Pois bem, sobre essa problemática, existem duas correntes bem definidas. A primeira delas afirma que o ex-cônjuge não tem qualquer dever de colação, pois trata-se de instituto reservado apenas a herdeiros necessários, especificamente aos descendentes e ao cônjuge que ainda mantinha vínculo conjugal com o falecido ao tempo da morte. Em síntese, como o ex-cônjuge não é herdeiro por ter rompido o vínculo conjugal antes da abertura da sucessão mortis causa, nada lhe caberia colacionar. O fato de ele ter se divorciado antes da morte seria uma espécie de blindagem às liberalidades recebidas. Só restaria aos filhos unilaterais, no exemplo indicado no início deste texto, o lamento. Nem mesmo lhes sobraria eventual tentativa de invalidação de doação inoficiosa, uma vez que, à época da liberalidade, o falecido havia respeitado os limites da sua parte disponível, em consonância com o art. 549 do Código Civil, que veda as doações inoficiosas, com a seguinte dicção: "nula é também a doação quanto à parte que exceder à de que o doador, no momento da liberalidade, poderia dispor em testamento". A segunda corrente, por sua vez, é pela obrigatoriedade de o ex-cônjuge colacionar a liberalidade recebida, mesmo não sendo herdeiro. Essa colação, porém, seria feita apenas para o ex-cônjuge devolver o eventual excesso do que foi recebido, supondo-se que ele não tivesse se divorciado e ainda fosse herdeiro. A colação não transformará o ex-cônjuge em herdeiro e, portanto, jamais poderá beneficiá-lo com mais bens. A ideia, para essa vertente, é a de que o dever de colação do ex-cônjuge não é para beneficiá-lo com a condição de herdeiro, mas sim para evitar que os descendentes sejam prejudicados pelo simples fato de, antes da morte, o falecido ter se divorciado. Objetiva-se proteger os descendentes do falecido na hipótese de o patrimônio líquido deixado por ele não ser suficiente para aquinhoá-los com uma porção, no mínimo, igual à liberalidade recebida pelo ex-cônjuge. No exemplo citado no início deste texto, como o falecido nada deixou de patrimônio, pois tudo gastou, a ex-esposa teria de colacionar o apartamento de um milhão de reais para igualação de legítimas com os dois filhos unilaterais do falecido. E, considerando-se a atual concorrência sucessória entre os descendentes e o viúvo quanto a bens particulares - nos termos do que está no art. 1.829, inc. I, do Código Civil -, cada um deles deveria ficar com um terço do citado apartamento. Logo, a ex-esposa teria de transferir dois terços do apartamento para repartição entre os dois filhos unilaterais, descendentes somente do autor da herança. Caso, porém, o falecido tivesse partido desta vida em prosperidade financeira, deixando, a título de ilustração, um patrimônio de dez milhões de reais, não haveria qualquer necessidade de a ex-esposa transferir frações ideais do apartamento aos dois filhos unilaterais do falecido. Isso porque os filhos já haverão de receber, a título de herança, cinco milhões de reais, valor muito superior à liberalidade recebida em vida pelo ex-cônjuge. Evidentemente, o ex-cônjuge nada poderá reivindicar a título de herança, pois não é herdeiro. Portanto, a colação será imposta apenas para beneficiar os descendentes do falecido, e não para prejudicá-los. Entre as duas correntes, adotamos, com unanimidade, a segunda e última, fruto de uma interpretação extensiva e sistemática dos arts. 544 e 2.002 do Código Civil e que efetiva, com justiça, equidade e correição, a aplicação do bom Direito.
Repercutiu muito nos últimos dias a decisão proferida pelo Conselho Superior da Magistratura do Tribunal de Justiça de São Paulo, composto pelo Presidente e pelo Vice-Presidente da Corte, pelo Corregedor Geral da Justiça, pelo Desembargador Decano e pelos Presidentes das Seções de julgamento. O julgado foi proferido nos autos da Apelação n. 1007525-42.2022.8.26.0132, originário o processo da Comarca de Catanduva, tendo surgido o dilema no 1º Oficial de Registros de Imóveis e Anexos, daquela localidade. A discussão chegou ao Tribunal Bandeirante diante de insurgência contra decisão do oficial de não registrar contrato ou pacto de convivência com disposições de natureza sucessória. A inviabilidade do registro imobiliário foi confirmada perante o Conselho, de forma unânime, em decisão que vale para todo o Estado de São Paulo, e com a seguinte ementa: "REGISTRO DE IMÓVEIS - DÚVIDA JULGADA PROCEDENTE - ESCRITURA PÚBLICA DE PACTO DE CONVIVÊNCIA EM UNIÃO ESTÁVEL - REGIME CONVENCIONAL DA SEPARAÇÃO TOTAL DE BENS - EXISTÊNCIA DE DISPOSIÇÕES NO PACTO ESTABELECIDO QUE, SEGUNDO O OFICIAL, NÃO COMPORTAM INGRESSO NO REGISTRO DE IMÓVEIS PORQUE ILEGAIS - RENÚNCIA À POSTULAÇÃO DE COMUNICAÇÃO PATRIMONIAL, EMBASADA NA SÚMULA 377 DO STF, QUE APENAS REFORÇA A INCOMUNICABILIDADE DE BENS NA VIGÊNCIA DA UNIÃO ESTÁVEL - NULIDADE NÃO CONFIGURADA - RENÚNCIA AO DIREITO REAL DE HABITAÇÃO - RENÚNCIA TAMBÉM AO DIREITO CONCORRENCIAL PELOS CONVIVENTES - ARTIGO 426 DO CÓDIGO CIVIL QUE VEDA O PACTO SUCESSÓRIO - SISTEMA DOS REGISTROS PÚBLICOS EM QUE IMPERA O PRINCÍPIO DA LEGALIDADE ESTRITA - TÍTULO QUE, TAL COMO SE APRESENTA, NÃO COMPORTA REGISTRO - APELAÇÃO NÃO PROVIDA". Analisando o voto proferido no decisum, pelo Corregedor Geral de Justiça do TJSP Desembargador Fernando Torres de Garcia, de início, constata-se que os então apelantes alegaram que a referência, no pacto ou contrato de convivência, à não aplicação da Súmula n. 377 do Supremo Tribunal Federal estaria justificada "na tendência atual de mudança de entendimento por parte dos Tribunais, no sentido de forçar a comunicação patrimonial mesmo em caso de separação convencional de bens. Aduzem que, por não desejarem tal comunicação, manifestaram expressa renúncia no pacto celebrado, que tem por objetivo não apenas eleger o regime patrimonial de bens dos conviventes, mas também fixar sua livre vontade a respeito". Sobre a possibilidade de essa previsão gerar efeitos após a sua morte, os recorrentes contestaram a conclusão do registrador de imóveis segundo a qual a renúncia ao direito concorrencial do companheiro pudesse ser tida como um pacto sucessório - nos termos do art. 426 do Código Civil -, como uma deliberação de herança de pessoa viva e como uma renúncia de herança a termo, "pois apenas externaram sua vontade de que, no caso de existência de descendentes ou ascendentes, estes herdem a totalidade da herança deixada pelo falecido, honrando o desejo dos conviventes de que o sobrevivente não venha a concorrer com eventuais ascendentes ou descendentes existentes no momento da abertura da sucessão do outro". Também sustentaram os apelantes ser possível a renúncia ao direito real de habitação, por instrumento público e desde que um dos conviventes confirmasse esse seu consentimento, livre e desimpedido, depois do óbito do outro companheiro. Todavia, como se pode perceber da ementa transcrita, de modo correto tecnicamente, o Conselho Superior da Magistratura do Tribunal Paulista, em votação unânime, rechaçou esses argumentos, concluindo haver lesão ao art. 426 do Código Civil. Concluiu, ademais, pela impossibilidade de registro da escritura pública, mesmo com o argumento de que não seria uma "renúncia à pretensão sucessória", mas uma "renúncia à concorrência sucessória" do companheiro com os ascendentes ou descendentes do falecido. Nos termos do voto do Desembargador Corregedor, "ainda que permaneçam os apelantes com o direito à herança quando o convivente herdar com exclusividade, ou seja, se não houver descendentes ou ascendentes do falecido, a renúncia à concorrência sucessória esbarra na vedação legal trazida pelo artigo 426 do Código Civil, que impede o pacto sucessório. Pela mesma razão de direito, é também nula a renúncia ao direito de habitação, uma vez que, em contravenção ao mencionado artigo 426 do Código Civil, se dispôs sobre herança de pessoa viva". Após citar a doutrina de Pontes de Miranda, arrematou o julgador que "não se desconhece a controvérsia doutrinária sobre o tema, bem como a existência de alguns julgados em sentido contrário, mas o fato é que, no sistema dos registros públicos, impera o princípio da legalidade estrita, de sorte que, tal como se apresenta, o título não comporta registro". Como se pode perceber, o julgamento trouxe mais uma vez para debate três questões relevantes sobre o exercício da autonomia privada e o Direito das Sucessões Brasileiro, que devem ser aqui analisadas mais uma vez, sobretudo na perspectiva da impossibilidade de renúncia prévia a direitos sucessórios, prática que, no meu entendimento doutrinário, é ilegal e ilícita, na nossa realidade jurídica vigente. A primeira questão diz respeito ao afastamento da Súmula n. 377 do Supremo Tribunal Federal por pacto antenupcial ou contrato de convivência, o que tem sido admitido por doutrina e jurisprudência, de forma ampla, mas apenas com efeitos inter vivos, e não post mortem. Vale lembrar que, nos termos exatos da ementa da sumular, que remonta à década sessenta do século passado, "no regime de separação legal de bens, comunicam-se os adquiridos na constância do casamento". A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, em sua Segunda Seção, tem aplicado o seu teor, tanto para o casamento quanto para a união estável, desde que comprovado o esforço comum do consorte, para que haja a divisão do patrimônio. Em pacificação a respeito do casamento, decidiu a Segunda Seção da Corte: "no regime de separação legal de bens, comunicam-se os adquiridos na constância do casamento, desde que comprovado o esforço comum para sua aquisição. Releitura da antiga Súmula 377/STF ('No regime de separação legal de bens, comunicam-se os adquiridos na constância do casamento'), editada com o intuito de interpretar o art. 259 do CC/1916, ainda na época em que cabia à Suprema Corte decidir em última instância acerca da interpretação da legislação federal, mister que hoje cabe ao Superior Tribunal de Justiça" (STJ, EREsp n. 1.623.858/MG, relator Ministro Lázaro Guimarães (Desembargador Convocado do TRF 5ª Região), Segunda Seção, julgado em 23/5/2018, DJe de 30/5/2018). Antes disso, a respeito da união estável já havido sido pacificado o seguinte: "apenas os bens adquiridos onerosamente na constância da união estável, e desde que comprovado o esforço comum na sua aquisição, devem ser objeto de partilha" (STJ, EREsp n. 1.171.820/PR, relator Ministro Raul Araújo, Segunda Seção, julgado em 26/8/2015, DJe de 21/9/2015).   No âmbito da doutrina, admitindo o afastamento da sumular no contrato havido entre as partes: "é lícito aos que se enquadrem no rol de pessoas sujeitas ao regime da separação obrigatória de bens (art. 1.641 do Código Civil) estipular, por pacto antenupcial ou contrato de convivência, o regime da separação de bens, a fim de assegurar os efeitos de tal regime e afastar a incidência da Súmula 377 do STF" (Enunciado n. 634, aprovado na VIII Jornada de Direito Civil, em 2018). E mais, originário de proposta formulada por mim: "podem os cônjuges, por meio de pacto antenupcial, optar pela não incidência da Súmula 377 do STF" (Enunciado n. 81, da I Jornada de Direito Notarial e Registral, promovida em 2022). Não se olvide que a própria Corregedoria Geral de Justiça do Tribunal Paulista já havia decidido pela possibilidade de afastamento da Súmula n. 377 por convenção dos cônjuges. Em decisão de dezembro de 2017, concluiu-se que "nas hipóteses em que se impõe o regime de separação obrigatória de bens (art. 1.641 do CC), é dado aos nubentes, por pacto antenupcial, prever a incomunicabilidade absoluta dos aquestos, afastando a incidência da Súmula 377 do Excelso Pretório, desde que mantidas todas as demais regras do regime de separação obrigatória. Situação que não se confunde com a pactuação para alteração do regime de separação obrigatória, para o de separação convencional de bens, que se mostra inadmissível". Como outro marco decisório importante, no final de 2021, surgiu precedente da Quarta Turma do Superior Tribunal de Justiça, na mesma linha, deduzindo que, "no casamento ou na união estável regidos pelo regime da separação obrigatória de bens, é possível que os nubentes/companheiros, em exercício da autonomia privada, estipulando o que melhor lhes aprouver em relação aos bens futuros, pactuem cláusula mais protetiva ao regime legal, com o afastamento da Súmula n. 377 do STF, impedindo a comunhão dos aquestos" (STJ, REsp 1.922.347/PR, 4.ª Turma, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, j. 07.12.2021, DJe 1.º.02.2022). Pois bem, o julgado ora em comentário, do Conselho Superior da Magistratura do TJSP, de 2023, só confirmou esse entendimento, no único trecho em que não se seguiu a decisão do registrador de imóveis, in verbis:  "Quanto à cláusula referente à não aplicação da Súmula nº 377 do STF, não assiste razão ao registrador. Com efeito, ao estipularem tal cláusula no pacto em análise, os conviventes sinalizaram que obedecerão à regra da separação de bens e que, no curso da união estável, não haverá incidência dos seus efeitos. Logo, ainda que referida Súmula diga respeito ao regime da separação obrigatória de bens, inexiste nulidade na cláusula que a ela faz referência no intuito de deixar claro que na união estável estabelecida prevalecerá o pacto celebrado, segundo o qual haverá incomunicabilidade absoluta de bens, protegendo o interesse lícito dos conviventes na destinação de seu patrimônio. É preciso dizer que, em verdade, o ideal seria que o pacto houvesse se limitado a prever o regime de bens estipulado para a união estável estabelecida entre os conviventes, deixando as demais disposições para instrumento diverso que, sem necessidade de ingresso no registro imobiliário, viesse a ser oportunamente analisado por exemplo, quando da abertura do inventário daquele que primeiro vier a falecer, caso ainda esteja, à época, vivendo com o companheiro" (TJSP, Conselho Superior da Magistratura, Apelação cível n. 1007525-42.2022.8.26.0132, Relator Corregedor Geral de Justiça Des. Fernando Torres de Garcia, julgado em 22 de setembro de 2023). Entretanto, reitere-se que, na linha do que tem sido afirmado pela doutrina majoritária e em  julgados superiores, não pode esse afastamento da Súmula n. 377 do STF por ato inter vivos gerar efeitos sucessórios, sob pena de sua nulidade absoluta, por caracterizar pacto sucessório e desrespeito ao art. 426 do Código Civil, segundo o qual não pode ser objeto de contrato a herança de pessoa viva. Ingressa-se na segunda questão posta em debate no decisum, sendo a hipótese de violação do último preceito de nulidade absoluta virtual ou implícita, pois a lei proíbe a prática do ato sem cominar sanção (art. 166, inc. VI, segunda parte do Código Civil). A esse propósito, destaco trecho de outra ementa do Superior Tribunal de Justiça:: "É inviável a pretensão de estender o regime de bens do casamento, de separação total, para alcançar os direitos sucessórios dos cônjuges, obstando a comunicação dos bens do falecido com os do cônjuge supérstite. As regras sucessórias são de ordem pública, não admitindo, por isso, disposição em contrário pelas partes. (...). Conforme já decidido por esta Corte, 'O pacto antenupcial que estabelece o regime de separação total de bens somente dispõe acerca da incomunicabilidade de bens e o seu modo de administração no curso do casamento, não produzindo efeitos após a morte por inexistir no ordenamento pátrio previsão de ultratividade do regime patrimonial apta a emprestar eficácia póstuma ao regime matrimonial' (STJ, RESP 1.294.404/RS, Rel. Ministro RICARDO VILLAS BÔAS CUEVA, TERCEIRA TURMA, julgado em 20/10/2015, DJe de 29/10/2015)" (STJ, Ag. Int. no REsp. 1.622.459/MT, Quarta Turma, Rel. Min. Raul Araújo, julgado em 03/12/2019, DJE 19/12/2019).  Sobre a impossibilidade de renúncia à concorrência sucessória do cônjuge ou companheiro com os descendentes - tratada pelo art. 1.829, inc. I, do Código Civil -, a jurisprudência superior também havia concluído que "com a dissolução da sociedade conjugal operada pela morte de um dos cônjuges, o sobrevivente terá direito, além do seu quinhão na herança do de cujus, conforme o caso, à sua meação, agora sim regulado pelo regime de bens adotado no casamento. O artigo 1.655 do Código Civil impõe a nulidade da convenção ou cláusula do pacto antenupcial que contravenha disposição absoluta de lei" (STJ, REsp n. 954.567/PE, relator Ministro Massami Uyeda, Terceira Turma, julgado em 10/5/2011, DJe de 18/5/2011). Como está nesse acórdão e no comando por último aludido, não se pode contrariar, por convenção dos cônjuges ou dos companheiros, disposição absoluta de lei, assim entendida a norma de ordem pública, como a que reconhece o direito sucessório e que tutela a concorrência sucessória do cônjuge e do companheiro, nos termos do que está expresso no art. 1.829 do CC. Acrescento com o art. 166, inc. VI, do Código Civil, segundo o qual é nulo de pleno direito o negócio jurídico que tiver por objetivo fraudar lei imperativa, ou seja, desrespeitar norma cogente. Por isso, o decisum do Tribunal Paulista é irrepreensível nessa parte, não se podendo chancelar convenção ilícita e ilegal; impassível de registro imobiliário. Não se admite no Brasil e neste momento, a renúncia prévia à herança ou a direitos sucessórios, em qualquer regime de bens. A renúncia à herança, como sempre insisto, somente é viável após a morte de alguém, cabível ao herdeiro e desde que respeite as regras de solenidade previstas entre os arts. 1.804 a 1.813 do Código Civil. Sendo a herança um direito fundamental - consoante o art. 5º, inc. XXX, da Constituição Federal, como corolário do direito à propriedade previsto no inc. XXII do mesmo comando superior -, a sua renúncia somente é possível se seguida a estrita legalidade.  De todo modo, não se pode negar que, de lege ferenda, seria interessante incluir exceções à regra geral do art. 426 do Código Civil, com novos parágrafos nesse preceito, um deles admitindo a renúncia prévia à herança por cônjuges e companheiros que vivem sob o regime de separação convencional de bens. Esse tema está sendo intensamente debatido pela comissão de juristas nomeada pelo Senado Federal, para a Reforma do Código Civil. Porém, no atual sistema, reafirme-se que essa renúncia prévia a direitos sucessórios não é possível juridicamente, como está claro no aresto em estudo. Como terceira questão de debate, o julgado paulista não admitiu a renúncia ao direito real de habitação do companheiro, exatamente na linha do que tenho sustentado doutrinariamente, sobretudo no Volume 6 da minha coleção de Direito Civil, publicada pela Editora Forense e atualmente em sua 16ª Edição. Não se aplicou, assim o teor do Enunciado n. 271, da III Jornada de Direito Civil (2004), ao qual não me filio e segundo o qual: "o cônjuge pode renunciar ao direito real de habitação, nos autos do inventário ou por escritura pública, sem prejuízo de sua participação na herança". Mais uma vez se entendeu tratar-se de ofensa ao art. 426 do Código Civil. Como outro argumento a ser considerado, tenho defendido, naquela obra, ser o direito real de habitação irrenunciável por envolver a consagração do direito fundamental à moradia, previsto no art. 6º da Constituição Federal, com plena incidência nas relações privadas, ou seja, com eficácia horizontal. Em comparação que faço com o instituto do bem de família, a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça acabou por consolidar a afirmação de que o bem de família legal é irrenunciável, não sendo possível a figura do bem de família ofertado, como premissa geral. Nessa linha, apenas para ilustrar: "a jurisprudência do STJ tem, de forma reiterada e inequívoca, pontuado que a incidência da proteção dada ao bem de família somente é afastada se caracterizada alguma das hipóteses descritas nos incisos I a IV do art. 3.º da Lei 8.009/1990. Precedentes. O benefício conferido pela Lei n.º 8.009/1990 ao instituto do bem de família constitui princípio de ordem pública, prevalente mesmo sobre a vontade manifestada, não admitindo sua renúncia por parte de seu titular" (STJ, Ag. Rg. no AREsp 264.431/SE, 4.ª Turma, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, j. 05.03.2013, DJe 11.03.2013). Ora, se não se admite o bem de família ofertado pela parte, não é possível, juridicamente, o direito real de habitação legal renunciado. Para encerrar este texto, é preciso fazer duas observações, verdadeiras notas de advertência de relevo, sobretudo para a prática, tendo como pano de fundo o julgado do Conselho Superior da Magistratura Paulista. A primeira observação é a de que a decisão afasta a possibilidade de registro dos pactos e contratos celebrados entre cônjuges ou companheiros de renúncia à herança, à concorrência sucessória e ao direito real de habitação em todo o Estado de São Paulo. Entendeu-se que tais convenções são ilegais, eivadas de nulidade absoluta, a mais grave das invalidades. Isso traz aos advogados e tabeliães dessa unidade da federação uma orientação clara de não elaborarem tais negócios, sobretudo por escrituras públicos, sob pena de uma possível responsabilização do profissional que os recomenda aos seus clientes. Como tenho alertado, há uma constante e infeliz profusão de atos e negócios jurídicos nulos no âmbito sucessório - como se dá com o fenômeno das "holdings familiares" -, e que não trazem qualquer segurança para as partes que o compõe ou celebram. A segunda observação é que a decisão paulista entra em conflito direto com norma da Corregedoria Geral de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, de 19 de dezembro de 2022, inserida no seu novo Código de Normas (Provimento CGJ n. 87/2022). Consoante o seu art. 390, poderão constar nas escrituras públicas de união estável, a serem lavradas pelos Tabelionatos do Rio de Janeiro, cláusulas dispondo sobre regime de bens. E entre essas cláusulas, está expresso no § 3º desse comando que "a cláusula de renúncia ao direito concorrencial (art. 1.829, I, do CC) poderá constar do ato a pedido das partes, desde que advertidas quanto à sua controvertida eficácia". Mais uma vez com o devido respeito, e isso ficou claro com a decisão do Tribunal Paulista, a consequência da previsão da cláusula de renúncia ao direito concorrencial é a nulidade absoluta virtual ou implícita do pactuado (art. 166, inc. VI, segunda parte, do Código Civil), e não a mera ineficácia, como está na norma do Rio de Janeiro. Não se pode falar, portanto, em "controvertida eficácia" da cláusula de renúncia ao direito de herança ou à concorrência sucessória, mas em sua nulidade absoluta, por afronta a normas cogentes ou de ordem pública, que não podem ser afastadas por convenção entre as partes, isto é, pelo exercício da autonomia privada. A clara colisão agora existente entre a decisão paulista e a norma fluminense demostra a urgente necessidade de a questão ser resolvida no âmbito do Conselho Nacional de Justiça, não se podendo aceitar decisões conflitantes sobre o tema, em unidades diversas da federação. Tenho notícias que paulistas já se deslocam para o Estado do Rio de Janeiro, para elaborarem escrituras públicas de renúncia à herança e de afastamento à concorrência sucessória, atos nulos de pleno direito, o que ocasiona uma instabilidade que não pode ser aceita.  Assim mais uma vez -, como está em Nota Técnica do Instituto Brasileiro de Direito Contratual (IBDCONT), que assino com os Professores Marília Pedroso Xavier e Maurício Bunazar -,  o § 3º do art. 390 do Código de Normas da Corregedoria Geral da Justiça do Estado do Rio de Janeiro padece de grave ilegalidade, sendo recomendável a sua imediata revogação expressa ou o seu afastamento pelo Conselho Nacional de Justiça. Tal medida é fundamental para evitar insegurança jurídica e a construção de um Direito Civil "de exceção" no Estado do Rio de Janeiro, que vá na contramão do que tem sido aplicado no restante do território nacional, caso do Estado de São Paulo, em afronta a todos os entendimentos doutrinários e às posições jurisprudenciais, inclusive do Superior Tribunal de Justiça, expostos neste texto.
Em nossos dois últimos textos - parte I e parte II -, aqui publicados, analisamos três problemas de invalidade comumente encontrados nas chamadas "holdings familiares" à brasileira, aquelas em que, entre tantas outras ilegalidades, acaba por ocorrer o total esvaziamento patrimonial dos membros da família e a destinação do patrimônio para essas pessoas jurídicas. Entre os problemas mais comuns estão: a) a presença de negócio jurídico indireto, a gerar nulidade absoluta por fraude à lei imperativa (art. 166, inc. VI, do Código Civil); b) a configuração de simulação, vício social do negócio jurídico que, pelo vigente Código Civil, ocasiona igualmente sua nulidade absoluta (art. 167 do Código Civil) e c) o desvio de finalidade ou utilização disfuncional da personalidade jurídica, por desrespeito ao art. 49-A, parágrafo único, do Código Civil, a autorizar a desconsideração da personalidade jurídica não só para fins de responsabilização como também para fins de atribuição. Neste terceiro e último texto da série, serão estudadas mais três razões de invalidade dessas "holdings familiares", novamente a ensejar a mais grave das nulidades, todas relacionadas a questões cogentes ou de ordem pública. A primeira razão de nulidade absoluta a ser exposta é a eventual presença de pacto sucessório, vedado pelo art. 426 da codificação privada em vigor, segundo o qual "não pode ser objeto de contrato a herança de pessoa viva". Trata-se da vedação dos pactos sucessórios ou pacta corvina, o que remonta ao Direito Romano. A hipótese, no atual sistema brasileiro, é de nulidade absoluta virtual ou implícita, pois a lei proíbe a prática do ato sem cominar sanção, como consta do art. 166, inc. VII, segunda parte, do Código Civil. Como se sabe, a expressão pacta corvina traz alusão ao corvo, que se alimenta de animais mortos. José Fernando Simão explica que existiram cinco motivos fundamentais a amparar a regra do art. 426, considerada também como norma cogente ou de ordem pública. O primeiro, citado por Bevilaqua, está relacionado a um "surto de sentimentos imorais, porque tomam por base de suas combinações a morte da pessoa de cuja sucessão se trata, sejam os pactos aquisitivos (de succedendo), sejam renunciativos (de non succedendo)" (SIMÃO, José Fernando. Direito civil: contratos. 3. ed. São Paulo: Atlas, 2008 - Série Leituras Jurídicas -, p. 56). Assim, o sentido da norma proibitiva é amplo, vedando-se também atos unilaterais com conteúdo sucessório. O segundo motivo para a existência do art. 426 do Código Civil, apontado por Carvalho Santos, é o de "despertar sentimentos de tentação para a prática de crime, levando o interessado ao extremo da eliminação daquele de cuja herança se trata". Assim, o corvo - o beneficiado - poderia planejar a morte daquele que fez a estipulação contratual, para tirar algum benefício próprio. O terceiro motivo é que tais pactos seriam perigosos, atentando contra a decência pública, o que é defendido por João Luiz Alves, Washington de Barros Monteiro e Maria Helena Diniz. Como quarto motivo, de acordo com Silvio Rodrigues, estaria o fato de que a "sucessão de pessoa viva representa apenas perspectiva futura e distante de um bem, de maneira que o herdeiro, necessitando de dinheiro imediatamente, não podendo suportar o ônus da demora em receber sua herança pode, de maneira atabalhoada e afoita, vender seus direitos futuros por valores inferiores ao real, sofrendo um forte prejuízo material"; há no art. 426 do Código Civil uma norma de proteção do herdeiro (SIMÃO, José Fernando. Direito civil: contratos. 3. ed. São Paulo: Atlas, 2008 - Série Leituras Jurídicas -, p. 56). Por fim, mais uma vez com fundamento em Bevilaqua, sustenta-se, como quinto motivo para essa vedação, que, "ainda que contasse com a concordância da pessoa de quem a sucessão se trata, contrariariam o princípio da liberdade essencial às disposições de última vontade, que devem ser revogáveis, até o momento da morte do disponente. Assim, a justificativa do dispositivo superaria a tradicional noção de votum alicujus mortis e passaria a cuidar do interesse do herdeiro e até mesmo do disponente de quem a sucessão se tratará" (SIMÃO, José Fernando. Direito civil: contratos. 3. ed. São Paulo: Atlas, 2008 - Série Leituras Jurídicas -, p. 56). Não se pode negar que, na atualidade, a norma é contestada por alguns juristas, que pleiteiam maior abertura legislativa para a efetivação do planejamento sucessório no Brasil. E talvez isso ocorra na recente Reforma do Código Civil, de lege ferenda. De todo modo, no momento, trata-se de norma em vigor - existente, válida e plenamente eficaz -, que não pode ser afastada pela convenção das partes, caso contrário haveria afronta a norma de ordem pública. Temos defendido a alteração do art. 426 do Código Civil, com a inclusão de alguns parágrafos de exceção, e talvez isso ocorra em breve. Sendo assim, atualmente, cláusulas de contrato social ou de acordo de sócios que de antemão disciplinam regras sucessórias, muitas vezes com renúncias e prefixação de valores, parecem-nos incontornavelmente eivadas de nulidade, sendo possível também cogitar de sua invalidade, não só pela violação ao art. 426 mas também com base no art. 166, inc. II, do Código Civil. A ilicitude fica clara pelo desrespeito à proteção da herança, tida como um direito fundamental pelo art. 5º, inc. XXX, da Constituição Federal de 1988, assim como ocorre em outros países do modelo romano-germânico. Como outra hipótese de invalidade a ser analisada, neste artigo, a segunda, sabe-se que um dos fundamentos do nosso sistema sucessório é manter a intangibilidade da legítima ou reserva, com vistas não só à proteção dos herdeiros como também à subsistência do nosso Direito das Sucessões. Nesse contexto, em matéria de Direito Contratual, segundo o art. 549 do Código Civil, é nula a doação quanto à parte que exceder o limite de que o doador, no momento da liberalidade, poderia dispor em testamento. Essa doação, que prejudica a legítima - quota dos herdeiros necessários -, é denominada doação inoficiosa. Como herdeiros necessários, sempre é importante lembrar que na literalidade do art. 1.845 do Código Civil estão previstos os descendentes, os ascendentes e o cônjuge. Porém, com conhecida decisão do Supremo Tribunal Federal, de reconhecimento da inconstitucionalidade do art. 1.790 da codificação privada, e equiparação sucessória da união estável ao casamento, pensamos que ali também deve ser incluído o companheiro (Informativo n. 864 da Corte, com repercussão geral de maio de 2017). Cabe esclarecer que se trata de consequência sucessória do decisum que, indiretamente, repercute no plano contratual. De todo modo, talvez a Reforma do Código Civil em curso retire esse tratamento do cônjuge e do companheiro como herdeiros necessários. Sobre a doação inoficiosa, portanto, o caso é de nulidade absoluta textual (art. 166, inc. VII, do Código Civil), mas de uma nulidade absoluta parcial, eis que atinge tão somente a parte que excede a legítima. Assim, como tem decidido o Superior Tribunal de Justiça há tempos, "a doação ao descendente é considerada inoficiosa quando ultrapassa a parte que poderia dispor o doador, em testamento, no momento da liberalidade. No caso, o doador possuía 50% dos imóveis, constituindo 25% a parte disponível, ou seja, de livre disposição, e 25% a legítima. Este percentual é que deve ser dividido entre os 6 (seis) herdeiros, tocando a cada um 4,16%. A metade disponível é excluída do cálculo" (STJ, REsp 112.254/SP, 4.ª Turma, Rel. Min. Fernando Gonçalves, j. 16.11.2004, DJ 06.12.2004, p. 313). Não se olvide que a Corte tem entendido que o valor a ser apurado com o fim de reconhecer a nulidade deve levar em conta o momento da liberalidade. Assim, "para aferir a eventual existência de nulidade em doação pela disposição patrimonial efetuada acima da parte de que o doador poderia dispor em testamento, a teor do art. 1.176 do CC/1916, deve-se considerar o patrimônio existente no momento da liberalidade, isto é, na data da doação, e não o patrimônio estimado no momento da abertura da sucessão do doador. O art. 1.176 do CC/1916 - correspondente ao art. 549 do CC/2002 - não proíbe a doação de bens, apenas a limita à metade disponível. Embora esse sistema legal possa resultar menos favorável para os herdeiros necessários, atende melhor aos interesses da sociedade, pois não deixa inseguras as relações jurídicas, dependentes de um acontecimento futuro e incerto, como o eventual empobrecimento do doador" (STJ, AR 3.493/PE, Rel. Min. Massami Uyeda, j. 12.12.2012, publicado no seu Informativo n. 512). Entretanto, tratando-se de doações sucessivas, praticadas por meio de vários atos continuados, tal regra não só pode como deve ser mitigada. Como pontua, entre os clássicos, Pontes de Miranda, "se houve diferentes doações, todas - desde que houve herdeiros necessários - se computam, para saber se há violação da porção disponível. Não se levam em conta as doações que foram feitas ao tempo em que o doador não tinha herdeiros necessários; mas somam-se os valores das que se fizeram em todo o tempo em que o doador tinha herdeiros necessários" (PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de direito privado. Rio de Janeiro: Borsoi, 1972. t. XLVI, p. 250-251). No mesmo sentido, Agostinho Alvim leciona que, "quando várias doações são feitas, o ponto de partida, para o cálculo da inoficiosidade, é a primeira. Do contrário, o doador iria doando, cada vez metade do que tem atualmente, e todas as doações seriam legais até extinguir a fortuna" (ALVIM, Agostinho. Da doação. São Paulo: RT, 1963, p. 184-185). Todo esse raciocínio, como não poderia ser diferente, deve ser aplicado às "holdings familiares", em especial quando a integralização de capital ou de recursos é feita de forma sucessiva, com vistas a lesar a legítima de algum ou alguns herdeiros necessários, cuja proteção envolve normas de ordem pública. A impossibilidade de disposição, por qualquer bem, que exceda a reserva está prevista de forma peremptória no art. 1.789 do Código Civil, in verbis: "havendo herdeiros necessários, o testador só poderá dispor da metade da herança". Além dessas duas causas de invalidade neste artigo estudadas - o pacto sucessório e a lesão à legítima -, é comum se verificar uma causa de invalidade relacionada com algum aspecto subjetivo familiar, como a situação em que se pretende retirar direitos de filhos havidos fora do casamento, em claro desrespeito ao princípio da igualdade entre filhos, previsto no art. 226, § 7º, da Constituição Federal e no art. 1.596 do Código Civil. Ademais, temos visto, na nossa experiência prática, atos que almejam uma "blindagem patrimonial" e de suposto planejamento, como transações, permutas e dações em pagamento desproporcionais realizadas entre marido e mulher ou entre pais e filhos, de forma simulada, com o intuito de excluir outros membros da família. Tais atos engendrados são até comuns em nosso País, pela quantidade de casos concretos que nos chegaram para análise nos últimos anos. Um deles, inclusive, foi objeto de parecer jurídico publicado em revista científica, escrito pelo primeiro autor deste texto (TARTUCE, Flávio. Dação em pagamento: simulação. Revista de Direito Privado, São Paulo: RT, n. 56, out./dez. 2013). Mais recentemente, também como objeto de parecer, analisamos hipótese fática patológica de um grande empresário que esvaziou todo o seu patrimônio durante três décadas, destinando a uma pessoa jurídica, por atos sucessivos, bens de valor considerável e sempre preservando a legítima, considerando-se os atos de disposição isoladamente. Ao final, o único herdeiro necessário, seu filho, recebeu apenas um quinto daquilo a que teria direito, em clara fraude à legítima. Ao final, houve composição entre as partes, diante dos riscos que a ação de invalidade poderia ensejar para a entidade. Também podemos destacar a situação concreta, analisada por estes autores em conjunto, de montagem de uma "holding familiar" de esvaziamento total patrimonial, em desatendimento a todas as hipóteses analisadas nos nossos três textos, com claro intuito de, depois de constituída, excluir um membro da família da administração das empresas, visando a efetivação de vinganças, deixando o excluído à míngua, totalmente sem bens. Como pudemos expor nos três artigos que escrevemos, muitas são as razões para decretar a invalidade das "holdings familiares", no modelo que infelizmente tem sido "vendido" em nosso país, sobretudo nas redes sociais e por profissionais do Direito. Todas as razões elencadas geram a nulidade absoluta do ato de constituição, bastando uma delas para que se tenha a desconstituição do negócio jurídico, com efeitos ex tunc. Ademais, a nulidade não convalesce pelo decurso do tempo (art. 169 do Código Civil), cabendo a qualquer interessado a alegação da nulidade absoluta, mesmo ao Ministério Público, podendo ainda haver a decretação de ofício pelo julgador (art. 168 do Código Civil). Como está claro pelos textos, não é possível superar todas as razões que ora apresentamos. Esperamos, portanto, que as palavras que lançamos possam servir para uma mudança de consciência dos profissionais da área jurídica, para que esses atos nulos cessem na nossa realidade prática. Pare encerrar, lembramos que é preciso ter responsabilidade na construção de um Direito Privado que seja eficiente mas que, ao mesmo tempo, tenha lastro jurídico. Atos e negócios jurídicos nulos não podem ser admitidos pelos profissionais do Direito e devem ter sua disseminação estancada, sob pena de se sacrificar o próprio sistema jurídico e de gerar incerteza, insegurança e injustiça para a sociedade.
Em nosso último texto, publicado neste canal, começamos a estudar os problemas de invalidade das chamadas "holdings familiares", sobretudo no modelo que tem sido efetivado no Brasil, que busca efetivar o total esvaziamento patrimonial dos bens dos membros da família por meio de sua destinação para essas pessoas jurídicas. Naquele trabalho inicial foram destacados dois problemas de invalidade na constituição dessas pessoas jurídicas, ambos dizendo respeito à violação de normas cogentes ou de ordem pública e que, por isso, são causas de nulidade absoluta, a mais grave das invalidades. O primeiro problema - e talvez o mais grave de todos, em nossa visão compartilhada - é o de que a constituição dessas sociedades patrimoniais pode configurar negócio jurídico indireto voltado à fraude a leis imperativas, a gerar a sua nulidade (art. 166, VI, do Código Civil). O segundo problema jurídico está associado à presença de simulação, vício social do negócio jurídico que, pelo vigente Código Civil, ocasiona igualmente a nulidade absoluta do negócio jurídico (art. 167). No presente texto, o segundo da série que pretendemos desenvolver, é analisado outro sério problema de invalidade que geralmente atinge as "holdings familiares" de esvaziamento patrimonial: o desvio de finalidade ou utilização disfuncional da personalidade jurídica. Como é notório, embora haja um sem-número de teorias que buscam desvendar a natureza da personalidade da pessoa jurídica, prevalece, atualmente, a que a enxerga como realidade técnica, pondo em relevo seu caráter essencialmente instrumental. É esse caráter instrumental que, de modo radical, diferencia a pessoa jurídica da pessoa humana. Jorge Manuel Coutinho de Abreu, professor da Faculdade de Direito de Coimbra, faz notar que as pessoas jurídicas, por não contarem com a carga ético-axiológica típica da pessoa humana, podem ter a sua personalidade estendida, limitada ou fracionada (Curso de direito comercial. 6. ed. Coimbra: Almedina, 2019. v. 2. p. 163).   Em um esforço de síntese e clareza, pode-se apontar algo que, embora óbvio, não foi ainda levado às últimas consequências em nossa realidade jurídica: a personalidade da pessoa jurídica, sendo mero instrumento, só pode ser analisada, seja do ponto de vista teórico, seja na solução de problemas jurídicos concretos, funcionalmente. Isso implica que a tutela da personalidade jurídica sempre deverá ser precedida de um juízo consistente em determinar, in casu, se os fins perseguidos são lícitos e quem é titular imediato dos interesses em jogo. Em se constatando a ilicitude dos fins ou que - exceção feita atualmente à sociedade limitada unipessoal -, os interesses perseguidos são imediatamente os dos sócios da pessoa jurídica, a personalidade deverá sofrer as derrogações necessárias para corrigir a sua utilização disfuncional. O mecanismo predisposto pelo direito positivo para a correção de desvios funcionais da personalidade jurídica é o da sua desconsideração, nos termos do art. 50 do Código Civil e de outros diplomas específicos, caso do art. 28 do Código de Defesa do Consumidor e do art. 4º da lei 9.605/1998 -, em se tratando de danos ambientais -, por exemplo. Talvez pelo fato de os desvios funcionais da personalidade jurídica muitas vezes se caracterizarem pela fraude lato sensu a credores, generalizou-se a chamada desconsideração para fins de responsabilidade, pela qual, por dívidas da sociedade, respondem os sócios. Não obstante essa seja a realidade jurídica em nosso País, há a chamada desconsideração atributiva ou para fins de imputação. A distinção entre desconsideração para fins de responsabilidade e para fins de atribuição deve-se, fundamentalmente, a Rolf Serick (Rechtsform und Realität juristischer Personen) e a Wolfram Müller-Freienfels (Zur Lehre vom sogenannten Durchgriff bei juristischen Personen im Privatrecht). Serick, tido como o primeiro doutrinador a tratar sistematicamente da desconsideração da personalidade jurídica, teve sua obra submetida a uma resenha crítica por Müller-Freienfels, que, por ocasião dessa recensão, apontou a parcial insuficiência do modelo anterior. Sobre o último autor e sua visão, ensina Calixto Salomão Filho: "Afirma que o esquema regra/exceção de Serick erra ao ver na personificação jurídica e, consequentemente, no seu contrário, a desconsideração, um fenômeno unitário. Para ele, respeitar ou não a separação patrimonial depende da análise da situação concreta e da verificação do objetivo do legislador ao impor uma determinada disciplina. Esse posicionamento permite uma visão menos rígida da desconsideração, que passa a incluir não apenas situações de fraude, mas também, quando necessário, situações em que, à luz da importância e do objetivo da norma aplicável, é conveniente não levar em conta a personalidade jurídica. A desconsideração não é, portanto, apenas uma reação a comportamentos fraudulentos, mas também uma técnica legislativa ou uma técnica de aplicação das normas (Regelungstechnik) que permite dar valor diferenciado aos diversos conjuntos normativos" (O novo direito societário. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2019, p. 364). A teoria da desconsideração para fins de imputação, atualmente dominante na Alemanha, permite que se analisem as características reais da pessoa jurídica em questão, funcionando como mecanismo eficiente de combate à fraude à lei, à simulação e a negócios jurídicos indiretos ilícitos, exatamente como desenvolvemos em nosso texto anterior. Embora já fosse aceita pela doutrina brasileira, a desconsideração para fins de imputação ganhou enorme relevo pelas alterações no Código Civil promovidas pela Lei n. 13.874/2019 (Lei da Liberdade Econômica). Dois dispositivos merecem destaque, quais sejam o parágrafo único do art. 49-A e o § 1o do art. 50, ambos do Código Civil. Quanto ao primeiro, lê-se o seguinte: "Art. 49-A. A pessoa jurídica não se confunde com os seus sócios, associados, instituidores ou administradores. Parágrafo único. A autonomia patrimonial das pessoas jurídicas é um instrumento lícito de alocação e segregação de riscos, estabelecido pela lei com a finalidade de estimular empreendimentos, para a geração de empregos, tributo, renda e inovação em benefício de todo". Observa-se, portanto, que o parágrafo único do art. 49-A, ao mesmo tempo que sublinha o caráter instrumental da personalidade jurídica, explicita as finalidades a serem perseguidas, licitamente, por meio do instrumento pessoa jurídica. É evidente que, a contrario sensu, a busca por finalidades ilícitas deturpa a razão de ser da personalidade jurídica, autorizando a sua desconsideração.   Ora, ao se cotejar o disposto no parágrafo único do art. 49-A com a realidade das "holdings familiares" voltadas ao esvaziamento patrimonial total, observa-se, em regra, que: a) essas pessoas jurídicas constituídas, sobretudo as sociedades, não exercem atividade empresária de nenhum tipo; b) essas pessoas jurídicas não estimulam nenhum tipo de empreendimento; c) elas não geram emprego, sendo certo que as pessoas físicas que eventualmente estão em sua folha de pagamento, quando muito, prestam serviços exclusivamente às sociedades operacionais cujas cotas elas detêm; d) não geram tributação e, muito ao contrário, são usadas também para elidir tributos ou mesmo para fraudes fiscais; e) não geram renda; f) as "holdings familiares" não têm sequer o potencial de gerar inovação; e g) essas pessoas jurídicas sequer celebram contratos, não tendo credores e nem devedores. Em complemento, nota-se que o Código Civil, no parágrafo único do art. 982, dispõe que as sociedades por ações, independentemente do objeto, são sociedades empresárias. Sociedade empresária, por expressa determinação legal, é aquela que exerce empresa, isto é, exerce atividade econômica organizada para a produção ou circulação de bens ou de serviços, conforme a literalidade do art. 966 do Código Civil. Na grande maioria das situações as "holdings familiares" não exercem empresa; não realizam nenhuma atividade econômica, muito menos atividade econômica voltada para o mercado e para o crescimento econômico do País. Tem-se em verdade, uma "pessoa jurídica casca de ovo", sem conteúdo, oca, sem função ou finalidade que lhe possa ser atribuída. Essas constatações são mais do que suficientes para demonstrar que a autonomia dessas pessoas jurídicas não encontra justificativas legítimas à luz do direito positivo brasileiro. Também a redação do § 1º do art. 50 claramente revela a admissão e a utilidade da desconsideração atributiva no direito pátrio. O dispositivo preceitua que, "para os fins do disposto neste artigo, desvio de finalidade é a utilização da pessoa jurídica com o propósito de lesar credores e para a prática de atos ilícitos de qualquer natureza". Tradicionalmente, o desvio de finalidade caracterizava-se pelo exercício de atividade estranha ao objeto social. Porém, com a redação dada pela Lei da Liberdade Econômica, a noção de desvio de finalidade passou a incluir expressamente a lesão a credores e a prática de atos ilícitos de qualquer natureza. Ao contemplar a possibilidade de a prática de atos ilícitos ensejar a caracterização de desvio de finalidade passou a ser juridicamente possível, consequentemente, a desconsideração da personalidade jurídica independentemente da lesão a credores. Nesse contexto, entendemos que a nova redação do art. 50 do Código Civil passou a autorizar a desconsideração atributiva, que tem como uma de suas principais vantagens afastar a fraude à lei sem que seja necessário recorrer a subjetivismos caracterizados pela ideia de intenção. Nas palavras de Lamartine Corrêa, "mostra Müller-Freienfels [criador da teoria da desconsideração atributiva] que a orientação subjetiva com que Serick encara o problema do abuso, exigindo que se trate de abuso desejado e consciente encontra paralelo na sua adoção de uma visão também subjetivista da fraude à lei, que exige, para que se possa falar de fraude à lei, a presença comprovada da intenção de elidir a incidência da norma de lei, ou seja, a prova do elemento subjetivo da intenção. Em face desse problema, pondera Müller-Freienfels, ganha cada vez mais terreno na Alemanha (mas também em outros países) a teoria objetiva da fraude à lei" (A dupla crise da pessoa jurídica. São Paulo: Saraiva, 1979, p. 363-364). O jurista tem total razão, em nosso entender. No Brasil, a doutrina mais abalizada nega peremptoriamente a necessidade de intencionalidade para a caracterização da fraude à lei. Pontes de Miranda, por exemplo, ensina que, "se se usa 'fraude à lei', tem-se de abstrair da intencionalidade. Não há por onde se procurar o intuitus; basta a infração mesma" (Tratado de direito privado. 3. ed. Rio de Janeiro: Borsoi, 1970. t. I. p. 43). Exatamente no mesmo sentido são as lições de Marcos Bernardes de Mello, a quem rendemos as melhores homenagens (Teoria do fato jurídico: plano da validade. 7. ed. São Paulo: Saraiva, 2006. p. 98). A análise do cenário fático das "holdings familiares" voltadas à prática das mais diversas fraudes é suficiente para demonstrar que elas não são sociedades empresárias de fato. São, na verdade, expedientes de desvio de finalidade utilizados pelos sócios pessoas físicas para o implemento de arranjos visando ao esvaziamento do patrimônio dos seus membros, fraudando leis imperativas, exatamente na linha do primeiro problema de invalidade que destacamos em nosso artigo anterior. Caracterizada a violação antecedente de normas cogentes, justifica-se, assim e mais uma vez, a nulidade absoluta de sua constituição, consoante o art. 166, VI, do Código Civil. É de se apontar que as razões que impõem ao legislador um sistema especial de invalidades em se tratando de pessoas jurídicas não se justificam quando se está diante dessas "holdings familiares" fraudulentas. Isso porque elas não se relacionam com terceiros, tampouco sua preservação atende à função social, na medida em que, como apontamos, nada produzem, não empregam e não geram tributos. Assim, deve ser aplicado o sistema geral de invalidades, previsto na Parte Geral do Código Civil. Como última nota, verifica-se que a tese que aqui desenvolvemos serve para completar o argumento da presença da simulação relativa objetiva, como foi desenvolvido em nosso texto anterior. Nos termos do caput do art. 167 do Código Civil, é nulo o negócio jurídico simulado, mas subsistirá o que se dissimulou, se válido for na substância e na forma. Dessa maneira, percebem-se na simulação relativa dois negócios: um aparente (simulado) e um escondido (dissimulado). Eventualmente, esse negócio camuflado pode ser tido como válido, justamente no caso de simulação relativa, se tiver os mínimos requisitos de validade. Todavia, no caso das "holdings familiares", essa validade do negócio dissimulado não é caminho jurídico possível. Segundo o Enunciado n. 153, aprovado na III Jornada de Direito Civil, em 2004, "na simulação relativa, o negócio simulado (aparente) é nulo, mas o dissimulado será válido se não ofender a lei nem causar prejuízo a terceiros". Completando, na IV Jornada de Direito Civil, de 2006, aprovou-se o Enunciado n. 293, pelo qual, "na simulação relativa, o aproveitamento do negócio jurídico dissimulado não decorre tão somente do afastamento do negócio jurídico simulado, mas do necessário preenchimento de todos os requisitos substanciais e formais de validade daquele". Como já ficou claro, não é possível aproveitar o negócio dissimulado no caso das simulações intentadas pelas "holdings familiares", pois há também ofensa à lei e, muitas vezes, prejuízo a terceiros, exatamente como desenvolvemos neste texto. Não raro, os negócios jurídicos são praticados sob as "holdings familiares" justamente para escaparem do regime jurídico do direito comum, por exemplo, da necessidade de obtenção de outorga conjugal para certos atos e da existência de hipóteses de nulidade que podem ser alegadas a qualquer tempo. No entanto, além disso, muitas vezes os negócios jurídicos praticados sob as "holdings familiares" são eles mesmos simulados, seja por atribuírem direitos a pessoas diversas das que realmente estão a transmitir, seja por declararem valores patrimoniais diferentes dos reais, seja por qualificarem doações como compras e vendas e compras e vendas como doações, entre outras condenáveis situações, que o Direito não pode admitir. Mais uma vez, nota-se que relevantes são as razões para se considerar nula a constituição de uma "holding familiar" de esvaziamento total patrimonial, sendo certo que, para nós, esses argumentos são, novamente, insuperáveis. Mas não é só; existem outros problemas de invalidade, que pretendemos abordar em nosso próximo artigo desta série.
Nos últimos anos, sobretudo em virtude da pandemia de Covid-19 e com uma busca mais intensa por mecanismos de planejamento sucessório, tem-se percebido uma utilização crescente do que se passou a denominar no Brasil de "holding familiar". Temos tratado do assunto não só nos nossos escritos, mas também em palestras, aulas e exposições. Como explica José Maria Leoni Lopes de Oliveira, "holding é a pessoa jurídica, que pode assumir diversas formas societárias, que tem por finalidade participar de outras sociedades, ser titular de bens móveis e imóveis, ou investimentos financeiros". Ainda segundo o jurista, "apesar de não haver no Direito pátrio um conceito de holding, a sua noção, segundo a doutrina pátria, pode ser retirada do § 3º do art. 2º da Lei das Sociedades Anônimas, ao estabelecer que 'a companhia pode ter por objeto participar de outras sociedades; ainda que não prevista no estatuto, a participação é facultada como meio de realizar o objeto social, ou para beneficiar-se de incentivos fiscais'. Embora o texto legal não se refira à holding, traz sua principal finalidade: a companhia pode ter por objeto participar de outras sociedades" (Direito civil: sucessões. Rio de Janeiro: Forense, 2018. p. 556).  Também no âmbito da doutrina, Rodrigo Toscano de Brito, tratando mais especificamente do que se convencionou chamar de "holding familiar", explica que o verbo "to hold" significa segurar, manter, controlar, guardar, sendo a "holding familiar" uma sociedade ou pessoa jurídica que detém participação societária em outra pessoa jurídica com a finalidade de controlar "o patrimônio da família para fins de organização patrimonial, diminuição de custo tributário e planejamento sucessório". Ainda segundo o autor, a constituição pode se dar por meio de uma sociedade simples ou empresária, o que é definido pelos próprios membros da família (Planejamento sucessório por meio de holdings: limites e suas principais funções. In: Família e sucessões: polêmicas, tendências e inovações. Belo Horizonte: IBDFAM, 2018. p. 672). Dentre as suas funções, vantagens e utilidades, tem-se apontado uma maior possibilidade de conter os conflitos entre os membros da família, sem afetar a sociedade controlada, que continua produzindo riquezas, mantendo os seus funcionários e, supostamente, pagando os tributos. E, de fato, muitos advogados têm oferecido, sobretudo na internet e pelas redes sociais, serviços para montagem dessas estruturas, bem como cursos de formação de outros profissionais para a prestação de serviços jurídicos relativos às "holdings familiares". Todavia, como temos advertido, existem sérios problemas de invalidade que acometem essas constituições negociais, sobretudo no caso do modelo que busca o total esvaziamento patrimonial dos bens dos membros da família e sua destinação para essas pessoas jurídicas. Destacamos que todas as razões de invalidade dizem respeito à violação de normas cogentes ou de ordem pública e que, por isso, são causas de nulidade absoluta, a mais grave das invalidades. Procuraremos analisar essas causas de nulidade, bem como suas consequências práticas, em três breves artigos, escritos em coautoria e publicados neste canal. Pois bem, o primeiro problema - e talvez o mais grave de todos - é que essas constituições negociais representam um negócio jurídico indireto, tema tratado com maestria pelo clássico Tullio Ascarelli. Segundo o jurista, tem-se negócio jurídico indireto "quando as partes recorrem, no caso concreto, a um negócio determinado para alcançar, consciente e consensualmente, por seu intermédio, finalidades diversas das que, em princípio, lhe são típicas" (Problemas das sociedades anônimas e direito comparado. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 1969. p. 94). Da própria definição de negócio jurídico indireto verifica-se que ele pode ou não ser ilícito, ficando tal qualificação a depender do fim visado. Em sendo esse fim ilícito, estar-se-á diante de negócio jurídico indireto em fraude à lei, que, por disposição expressa de lei, é nulo (art. 166, VI, do Código Civil). Exatamente nesse sentido, vejamos as considerações do segundo coautor deste texto: "Pode-se reconhecer que de modo geral a doutrina caracteriza a fraude à lei a partir da ilicitude do resultado alcançado, é dizer, por meios lícitos é alcançado ou são alcançados resultados ilícitos. Essa noção coloca em questão o axioma do direito privado segundo o qual o agente é livre para praticar todos os atos que não lhe sejam proibidos. É evidente que se poderá dizer que o agere in fraudem legis consiste justamente em se afrontar a proibição legal da prática de certo ato, o problema é que sua verificação não se dá, como em regra, ex ante, mas, necessariamente, ex post" (Invalidade do negócio jurídico. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2023. p. 157). Ora, nos casos das "holdings familiares" que visam ao total esvaziamento patrimonial da família há claro desrespeito às normas cogentes ou de ordem pública alusivas à sucessão legítima, tratadas pelo Código Civil a partir do seu art. 1.784. E nesse desrespeito, pelo resultado alcançado pelas partes, sob a justificativa de exercício da autonomia privada, é que está presente a fraude à lei imperativa. Como se sabe, a autonomia privada encontra limites nessas normas e preceitos, o que acabou sendo expressamente positivado pela Lei da Liberdade Econômica, nos termos do seu art. 3º, inc. VIII, segundo o qual, entre os direitos de liberdade econômica, há "a garantia de que os negócios jurídicos empresariais paritários serão objeto de livre estipulação das partes pactuantes, de forma a aplicar todas as regras de direito empresarial apenas de maneira subsidiária ao avençado, exceto normas de ordem pública". Como se vê, a locução final destacada impõe a observância das normas cogentes, afastando-se a viabilidade jurídica de todo e qualquer negócio jurídico que se qualifique como instrumento de fraude à lei, por ser ato ilícito que gera a nulidade absoluta do negócio jurídico, nos termos do citado art. 166, inc. VI, do Código Civil. O segundo problema jurídico que diz respeito à constituição das "holdings familiares" está associado à presença de simulação, vício social do negócio jurídico que, pelo vigente Código Civil, ocasiona igualmente a nulidade absoluta do negócio jurídico (art. 167). Geralmente, a constituição dessas pessoas jurídicas envolve a integralização de capital que não traduz a realidade - o que, aliás, é muito comum em nosso País -, caracterizando a simulação relativa objetiva prevista no § 1º, inc. II,  do artigo citado, uma vez que o negócio jurídico constitutivo contém declarações e cláusulas que não são verdadeiras. É interessante notar que, enquanto nas sociedades empresariais verdadeiramente operacionais não é raro que os sócios pratiquem fraude consistente em integralizar bens declarando que eles possuem valores mais elevados do que na realidade têm, nas chamadas "holdings familiares" muitas vezes ocorre o contrário, pois integralizam-se por valores módicos bens que na realidade são valiosíssimos. Essa manobra serve, por exemplo, para facilitar as doações de cotas ou de ações para certos membros da família, em detrimento de outros. A propósito dessa questão, há o debate relativo à possibilidade de uma parte alegar a presença da simulação frente a outra, o que constantemente se aplica às "holdings", uma vez que é comum o membro da família que participou da constituição da pessoa jurídica pretender o reconhecimento da sua invalidade, por vários motivos, sobretudo porque percebe posteriormente que foi prejudicado pelo esvaziamento patrimonial engendrado. A propiciar tal alegação, o Enunciado n. 294, aprovado na IV Jornada de Direito Civil - evento promovido pelo Conselho da Justiça Federal e pelo Superior Tribunal de Justiça em 2006 -, segundo o qual, "sendo a simulação uma causa de nulidade do negócio jurídico, pode ser alegada por uma das partes contra a outra". Ficou, assim, superada a regra que constava do art. 104 do CC/1916, pela qual, na simulação, os simuladores não poderiam alegar o vício um contra o outro, pois ninguém poderia se beneficiar da própria torpeza. A regra não mais tem incidência, pois a simulação, em qualquer modalidade, passou a gerar a nulidade absoluta do negócio jurídico - e não mais a nulidade relativa, como estava na codificação privada anterior -, sendo questão de ordem pública, a prevalecer inclusive sobre eventual alegação de um comportamento contraditório da parte que alega a simulação, mesmo tendo participado do ato. Assim, a simulação vence a incidência da máxima nemo venire contra factum proprium non potest, um dos conceitos parcelares da boa-fé objetiva. Acrescente-se que, em havendo nulidade absoluta, aplica-se o art. 168 do Código Civil de 2002, que possibilita o ajuizamento da ação declaratória de nulidade absoluta por qualquer interessado ou, eventualmente, pelo Ministério Público, sem prejuízo de que o juiz reconheça as invalidades de ofício. Como "qualquer interessado" inclua-se quem praticou o ato, justamente pela necessidade de prevalência e de respeito às normas de ordem pública, cuja violação, insistimos, é causa de nulidade absoluta do ato.   Tal conclusão atinge não só as pessoas naturais como também as pessoas jurídicas integrantes de contratos empresariais e paritários, como se retira do antes transcrito art. 3º, inc. VIII, da Lei da Liberdade Econômica (lei 13.874/2019), pelo termo final antes destacado. Ora, se as normas de ordem pública devem ser observadas mesmo em contratos simétricos entre grandes empresas, com mais razão no caso em que nulidades e ilícitos civis trazem claros prejuízos a uma pessoa natural em relações familiares e sucessórias que são muitas vezes assimétricas. Anote-se que a norma destacada teve uma mudança substancial frente ao texto da sua originária Medida Provisória n. 881, que preceituava, nesse mesmo comando, que a parte de um negócio jurídico empresarial não poderia alegar violação à norma de ordem pública caso participasse do ato. Era a previsão do art. 3º, inc. VIII, da MP: "São direitos de toda pessoa, natural ou jurídica, essenciais para o desenvolvimento e o crescimento econômicos do País, observado o disposto no parágrafo único do art. 170 da Constituição. (...). VIII - ter a garantia de que os negócios jurídicos empresariais serão objeto de livre estipulação das partes pactuantes, de forma a aplicar todas as regras de direito empresarial apenas de maneira subsidiária ao avençado, hipótese em que nenhuma norma de ordem pública dessa matéria será usada para beneficiar a parte que pactuou contra ela, exceto se para resguardar direitos tutelados pela administração pública ou de terceiros alheios ao contrato". No texto anterior, portanto, dava-se primazia à máxima que veda o comportamento contraditório (nemo venire contra factum proprium non potest), fundada na boa-fé objetiva, o que acabou sendo afastado no texto final da norma jurídica ora em vigor. Pela lei hoje vigente, não há essa "escolha prévia" do legislador, sendo necessário sempre observar os preceitos de ordem pública, de acordo com as circunstâncias do caso concreto. Exatamente no sentido de se admitir a alegação de invalidade por simulação pelo próprio negociante, recente julgado do Superior Tribunal de Justiça que cita a posição doutrinária do primeiro coautor deste texto, segundo o qual "com o advento do CC/02 ficou superada a regra que constava do art. 104 do CC/1916, pela qual, na simulação, os simuladores não poderiam alegar o vício um contra o outro, pois ninguém poderia se beneficiar da própria torpeza. O art. 167 do CC/02 alçou a simulação como causa de nulidade do negócio jurídico. Sendo a simulação uma causa de nulidade do negócio jurídico, pode ser alegada por uma das partes contra a outra (Enunciado nº 294/CJF da IV Jornada de Direito Civil). Precedentes e Doutrina. (...). O negócio jurídico simulado é nulo e consequentemente ineficaz, ressalvado o que nele se dissimulou (art. 167, 2ª parte, do CC/02)" (STJ, REsp 1.501.640/SP, Rel. Ministro Moura Ribeiro, Terceira Turma, julgado em 27/11/2018, REPDJe 07/12/2018, DJe 06/12/2018). Outros arestos da mesma Terceira Turma do STJ, e mesma relatoria, têm seguido esse entendimento. Na mesma esteira, são encontrados acórdãos estaduais. Concluindo desse modo, decidiu o Tribunal de Justiça do Paraná: "Não há óbice à alegação da existência de simulação pela própria parte contratante, por se tratar o negócio jurídico simulado nulo de pleno direito. Enunciado nº 294 das Jornadas de Direito Civil"  (TJPR, Embargos de Declaração Cível n. 1737359-0/01, São João do Triunfo, Décima Primeira Câmara Cível, Rel. Juiz Convocado Rodrigo Fernandes Lima Dalledone, julgado em 18/04/2018, DJPR 14/05/2018, p. 119). Do Tribunal Paulista: "Simulação que inquina os negócios jurídicos de nulidade, impassíveis de convalidação pelo decurso do tempo. Viabilidade de o próprio simulador suscitar a ocorrência do vício social. Inteligência do Enunciado nº 294 do CJF" (TJSP, Apelação n. 1048680-68.2015.8.26.0100, Acórdão n. 11470640,  São Paulo; Trigésima Primeira Câmara Extraordinária de Direito Privado, Relª Desembargadora Rosangela Telles, julgado em 21/05/2018, DJESP 24/05/2018, p. 1918). Do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, apenas para ilustrar e sem prejuízo de muitas outras ementas com mesma conclusão: "Sendo a simulação uma causa de nulidade do negócio jurídico, pode ser alegada por uma das partes contra a outra. Enunciado nº 294 da IV Jornada de Direito Civil. Regra que proibia que a parte que deu causa à simulação ingressasse em juízo pedindo a nulidade da avença, constante do art. 104 do CC de 1916, que não foi reproduzida no CC de 2002" (TJRS, Apelação n. 0072393-88.2015.8.21.7000, Cachoeirinha, Vigésima Câmara Cível, Rel. Desembargador Dilso Domingos Pereira, julgado em 25/03/2015, DJERS 01/04/2015). Destacamos, por sua enorme relevância para esta temática, que o próprio Superior Tribunal de Justiça tem importante precedente, do ano de 2014, a respeito de simulação presente na "holding familiar", em hipótese fática em que se discutiu a legitimidade do nu-proprietário de quotas sociais dessa  pessoa jurídica para "pleitear a anulação de ato societário praticado por empresa pertencente ao grupo econômico, sob a alegação de ter sido vítima de simulação tendente ao esvaziamento do seu patrimônio pessoal". Vejamos os seus exatos termos, que confirmam o que aqui se defende:   "As nulidades decorrentes de simulação podem ser suscitadas por qualquer interessado, assim entendido como aquele que mantenha frente ao responsável pelo ato nulo uma relação jurídica ou uma situação jurídica que venha a sofrer uma lesão ou ameaça de lesão em virtude do ato questionado. (...). Ainda que, como regra, a legitimidade para contestar operações internas da sociedade seja dos sócios, hão de ser excepcionadas situações nas quais terceiros estejam sendo diretamente afetados, exatamente como ocorre na espécie, em que a administração da sócia majoritária, uma holding familiar, é exercida por usufrutuário, fazendo com que os nu-proprietários das quotas tenham interesse jurídico e econômico em contestar a prática de atos que estejam modificando a substância da coisa dada em usufruto, no caso pela diluição da participação da própria holding familiar em empresa por ela controlada" (STJ, REsp 1.424.617/RJ, Terceira Turma, Relª Ministra Nancy Andrighi, DJE 16/06/2014). A leitura do acórdão revela situação típica de transferência patrimonial de bens de pessoa natural para jurídica, com integralização de quotas em favor dos  filhos e da esposa, privilegiando-os, o que é muito comum na prática. Consoante se retira do voto da Ministra Relatora, com grande repercussões, "havendo a prática de atos fora dos limites do contrato social, em desvio de finalidade ou para fins de confusão patrimonial, poderá surgir, inclusive, a desconsideração da personalidade jurídica do grupo, com risco de afetação do patrimônio dos sócios, dentre eles, a recorrente". Como se pode perceber, a fraude à lei diante do negócio jurídico indireto e a simulação já são motivos substanciais suficientes para se reconhecer a invalidade da constituição das "holdings familiares" que visam ao esvaziamento patrimonial total dos componentes da entidade familiar. Mas não é só. No próximo texto, traremos outros motivos relevantes de sua invalidação, especialmente a fraude à legítima - quota dos herdeiros necessários -, o desrespeito ao art. 426 do Código Civil e o citado desvio de finalidade, na leitura do atual art. 49-A, parágrafo único, da codificação privada.  
A união estável vem migrando de sua natureza inicial de informalidade para frequentar o espaço de formalidade do casamento, podendo o seu histórico jurídico-legislativo ser dividido em quatro fases, na realidade jurídica brasileira. A primeira fase era a da sua negação total, quando o convívio more uxorio desacompanhado do casamento era totalmente desprezado no âmbito do Direito de Família. Havia, assim, a primazia absoluta do casamento, sendo essa a única opção para a constituição de família entre nós, com a negação de qualquer efeito jurídico decorrente da união de fato. A segunda fase diz respeito ao progressivo reconhecimento de direitos relativos à sociedade de fato para a convivência, sem, porém, ostentar ela o status de entidade familiar. O marco inicial dessa fase foi a Súmula 380 do Supremo Tribunal Federal, que remonta ao ano de 1964, segundo a qual, "comprovada a existência de sociedade de fato entre os concubinos, é cabível a sua dissolução judicial, com a partilha do patrimônio adquirido pelo esforço comum". Esse núcleo more uxorio informal era então denominado como concubinato puro, em expressão cunhada por Álvaro Villaça Azevedo. A terceira fase foi a da elevação desse núcleo more uxorio para o ambiente do Direito de Família, sob o epíteto de união estável. O seu marco foi o selo de qualidade familiar dado pelo art. 226, § 3º, da Constituição Federal à união estável. Nessa etapa, passou ela a crescer dentro do território do Direito de Família, alcançando progressivos e paulatinos avanços rumo a uma equiparação com o casamento. O advento das duas leis sobre a união estável - a Lei n. 8.971/1994 e a Lei n. 9.278/1996 - são pegadas dessa demorada caminhada da união estável para produzir efeitos jurídicos iguais aos do casamento. Ainda nessa fase, no aspecto sucessório, por exemplo, partiu-se de uma hesitação em garantir apenas um usufruto vidual ao companheiro supérstite por meio do art. 2º da primeira lei da união estável - ao menos quando houvesse descendentes ou ascendentes como herdeiros e em paralelismo ao que vigorava para o cônjuge viúvo casado em regime diverso do da comunhão universal de bens sob a ótica do art. 1.611 do Código Civil de 1916 - até reconhecer-lhe uma atribuição patrimonial efetiva no então art. 1.790 do Código Civil de 2002, ainda que mais tímida em relação àquela que o art. 1.829 da vigente codificação privada atribuiu ao casamento. A quarta fase teórica é a que ainda agora nos envolve. Trata-se da etapa evolutiva de uma tentativa de equiparação máxima da união estável ao casamento, com dois marcos principais, que nos fizeram repensar posições doutrinárias anteriores, dentro da realidade social e jurídica brasileira. O primeiro marco é a declaração de inconstitucionalidade do art. 1.790 do Código Civil de 2002 pelo Supremo Tribunal Federal, no ano de 2017, com a inclusão do companheiro na ordem de vocação hereditária do cônjuge do art. 1.829 do mesmo Código, nos termos das decisões publicadas no Informativo n. 864 da Corte Suprema. O segundo marco diz respeito à admissibilidade facultativa da inserção da união estável nos registros públicos, por meio, em ordem sucessiva, do Provimento n. 37/2014 do Conselho Nacional de Justiça, da Lei n. 14.382/2022 (Lei do SERP) e do recente Provimento n. 141/2023 do mesmo CNJ. Nesse novo ambiente, por imperativo constitucional e clara opção da última norma citada, a união estável registrada há de ser equiparada ao casamento para todos os efeitos jurídicos, salvo naquilo em que a eventual informalidade da união estável possa prejudicar terceiros de boa-fé. É nesse sentido que se deve entender o Enunciado n. 641, aprovado na VIII Jornada de Direito Civil, em 2018, a saber: "a decisão do Supremo Tribunal Federal que declarou a inconstitucionalidade do art. 1.790 do Código Civil não importa equiparação absoluta entre o casamento e a união estável. Estendem-se à união estável apenas as regras aplicáveis ao casamento que tenham por fundamento a solidariedade familiar. Por outro lado, é constitucional a distinção entre os regimes, quando baseada na solenidade do ato jurídico que funda o casamento, ausente na união estável". Entendemos que essa é a interpretação doutrinária vitoriosa na nossa realidade jurídica, e que ora prevalece a respeito da comparação entre a união estável e o casamento, sendo defendida por Anderson Schreiber, Ana Luiza Nevares, Gustavo Tepedino, entre outros. Também nos parece ser essa a posição que prevalece em julgados superiores, tendo sido adotada pela Lei do SERP, nos dispositivos que admitem o citado registro facultativo - no Livro E do Cartório de Registro Civil das Pessoas Naturais - e a conversão extrajudicial da união estável em casamento (novos arts. 94-A e 70-A da Lei de Registros Públicos, incluídos pela Lei n. 14.382/2022). O fato é que, atualmente e no vigente quadro jurídico brasileiro, a união estável pode ser classificada nas seguintes espécies, tendo em vista a diversidade - ainda que suave - de regimes jurídicos: a) união estável não formalizada; b) união estável formalizada: b.1) por título simples; ou b.2) por título qualificado; e c) união estável registrada. Para a união estável não formalizada, vigora a informalidade tradicional, sendo certo que o casal se comporta como se casados fossem, mantendo o convívio more uxorio, e sem nada ter colocado "no papel" entre si. Trata-se da ideia tradicional de união estável, entendida como mera união de fato. No máximo, em termos de divulgação mais formal da união estável, o casal externa para alguns entes e pessoas essa sua condição, como na declaração de dependência do companheiro no plano de saúde, no clube, no imposto de renda, no banco, no colégio dos filhos, no trabalho, entre outros. Seguindo, no caso de uma união estável formalizada, o casal elabora um contrato de convivência, reconhecendo a união estável, indicando sua data de início, escolhendo o regime de bens e inserindo outras cláusulas próprias que, no casamento, geralmente estão nas escrituras públicas de pacto antenupcial, firmadas perante os Tabelionato de Notas. Essa formalização pode dar-se por título simples, assim entendido o instrumento particular, ou por título qualificado, que está afiançado pela fé pública de um agente e que, por isso, é admitido para o registro público facultativo. Os títulos qualificados, conforme a recente normatização sobre o tema, são a sentença de reconhecimento da união estável, a escritura pública ou o termo declaratório de união estável efetivado perante o Registro Civil das Pessoas Naturais, consoante se infere do art. 1º, § 3º, do Provimento n. 37 do CNJ, em modificação efetivada pelo Provimento n. 141, em 2023. Por fim, a união estável registrada é a decorrente do ingresso, a pedido do casal, do título qualificado de união estável no Livro E do Cartório de Registro Civil das Pessoas Naturais, o que foi positivado em norma jurídica pela Lei do SERP, apesar de já existirem posições que a admitiam, caso do Enunciado n. 35, aprovado na II Jornada de Solução Extrajudiciais das Controvérsias, sob a coordenação geral do Ministro Luis Felipe Salomão, em 2021. Em todas essas espécies de união estável - não formalizada, formalizada ou registrada - são reconhecidos, em regra, os principais efeitos jurídicos internos ou intramuros do casamento, como os alimentos, o regime de bens e a sucessão mortis causa. Chamamos de efeitos intramuros aqueles produzidos dentro do núcleo familiar, sem atingir terceiros. São esses muitas vezes os efeitos jurídicos relativos a normas de solidariedade, nos termos do antes citado Enunciado n. 641 da VIII Jornada de Direito Civil. Existem, porém, alguns efeitos intramuros que ainda envolvem certa controvérsia doutrinária, caso do reconhecimento do companheiro como herdeiro necessário, no art. 1.845 do Código Civil. Na hipótese da união estável não registrada, também existem divergências em relação à incidência da presunção de paternidade do art. 1.597 da vigente Lei Geral Privada. No que diz respeito à condição de herdeiro necessário, somos pelo seu alcance pela união estável, pois não há qualquer justificativa baseada na informalidade da união estável para excluir o companheiro do direito à reserva sucessória. Entendemos que resistências doutrinárias que são feitas para equipará-lo ao cônjuge para os efeitos de proteção da legítima são ancoradas em argumentos já repelidos pelo próprio Supremo Tribunal Federal, atrelados à vencida tese de que a união estável não poderia gerar direitos sucessórios como ocorre com o casamento. Como é notório, a decisão do STF determina a inclusão do companheiro ao lado do cônjuge, nos incisos I, II e II do art. 1.829, previsões essas que se referem justamente a herdeiros necessários. Assim, não é possível reconhecer que o convivente não tenha tal condição! Já no tocante à presunção de paternidade, a questão é muito sensível e divergente. O Superior Tribunal de Justiça acenou favoravelmente à sua aplicação no caso de união estável registrada. No leading case, o Tribunal da Cidadania analisou caso concreto que envolvia genitor que "vivia em regime de união estável com a mãe da menor desde o ano de 2004, devidamente registrada em Cartório de Registro Civil de Pessoas Naturais", nas exatas palavras do Ministro Relator (STJ, REsp 1.194.059/SP, relator Ministro Massami Uyeda, Terceira Turma, julgado em 6/11/2012, DJe de 14/11/2012). De fato, na hipótese de união estável registrada, a presunção de paternidade deve ser automaticamente aplicada pelo registrador, porque o registro público é a segurança mínima exigida operacionalmente pelo nosso ordenamento para respaldar a aplicação da presunção de paternidade, tanto no caso de casamento quanto no de união estável. A respeito dessa possibilidade, destacamos o Enunciado n. 7, aprovado na I Jornada de Direito Notarial e Registral, em 2022, com a seguinte redação: "a presunção de paternidade, prevista no art. 1.597 do Código Civil, aplica-se aos conviventes em união estável, desde que esta esteja previamente registrada no Livro E do Registro Civil das Pessoas Naturais da Sede, ou, onde houver, no 1º Subdistrito da Comarca, nos termos do Provimento CNJ n. 37/2014". Entretanto, em havendo uma união estável não registrada, entendemos que a aplicação da presunção de paternidade dependeria de algumas adaptações para fins probatórios. De fato, sem esse registro, não há como o registrador civil ter uma garantia da atualidade de eventual título de reconhecimento da união estável. Por essa razão, opinamos que a aplicação da presunção de paternidade para a união estável não registrada dependerá de uma questão de índole operacional, a depender do agente público demandado. Perante o registrador civil, a presunção de paternidade não poderá ser aplicada no momento da lavratura do assento de nascimento e de modo automático. Há, assim, a necessidade de reconhecimento voluntário da paternidade na forma do art. 1.609 do Código Civil. Já perante o juiz, a presunção de paternidade poderá sim ser aplicada como decorrência do reconhecimento da existência de união estável. Em outras palavras, em o juiz reconhecendo a existência de união estável, poderá aplicar a presunção de paternidade. Ainda nesse balanço da realidade jurídica atual relativa à união estável, lembramos que a proteção da meação do companheiro diante de penhoras por dívidas contraídas sem proveito da família não é propriamente um efeito extramuros, para além do vínculo convivencial. Trata-se, na verdade, de fruto de um efeito intramuros da união estável, qual seja a comunicação do patrimônio comum, o que, por regras relativas aos direitos reais, é oponível erga omnes. Passamos, então, para os fins deste breve artigo, a tratar da equiparação da união estável ao casamento em relação aos citados efeitos jurídicos extramuros, como a exigência de autorização ou outorga convivencial para os atos e negócios jurídicos de interesse da entidade familiar, nos termos dos arts. 1.647, 1.648, 1.649 e 1.656 do Código Civil, dispositivos que mencionam apenas a outorga conjugal e o casamento. Uma das grandes dúvidas práticas existentes desde a entrada em vigor da codificação de 2002 é justamente saber se esses preceitos se aplicam à união estável. A análise desses efeitos deve ser feita à luz da diretriz de não prejudicar terceiros de boa-fé que ignorem a união estável mantida à margem da publicidade dos registros públicos. Por isso, no caso de união estável registrada, entendemos ser plenamente aplicável a exigência da outorga convivencial, sob pena de anulabilidade ou nulidade relativa do negócio jurídico efetivado, e em prejuízo desse terceiro. Opinarmos que o registro da união estável no Livro E do Cartório de Registro Civil das Pessoas Naturais faz presumir a ciência do terceiro, à semelhança do que se dá com o registro do casamento. Porém, na hipótese de união estável não registrada, é preciso identificar, no caso concreto, se o terceiro sabia efetivamente da existência da união estável ou não. Se, por exemplo, a parte declarou viver em união estável, cabia ao terceiro observar o art. 1.647 do Código Civil. A propósito dessa afirmação, lembramos que o art. 319, II, do Código de Processo Civil exige que a parte declare essa informação na petição inicial, diante do forte prestígio angariado pela união estável do Estatuto Processual de 2015. Como temos afirmado, o vigente CPC efetivou uma equalização processual entre as duas entidades familiares objeto deste texto. Igualmente, a exigência de participação do cônjuge nas ações imobiliárias é estendida à união estável comprovada nos autos, conforme o art. 73, § 3º, da mesma Norma Instrumental. Igual raciocínio se dará se a informação da união estável estiver na matrícula do imóvel envolvido no negócio arrolado nos incisos do art. 1.647 do Código Civil, caso da venda e da doação, pois há ciência - ainda que potencial - pelo terceiro da existência da união estável. Todavia, se o terceiro não sabia ou não tinha conhecimento da união estável, não há como prejudicá-lo com a invalidação do negócio feito sem a autorização convivencial, não sendo o caso de incidir a previsão do art. 1.649 da Lei Geral Privada. A escolha dos companheiros pela informalidade plena tem seus ônus, sendo certo que o Direito não pode prejudicar terceiros de boa-fé em proveito de quem se manteve na informalidade. Uma das primazias ou preferências do Direito Civil sempre foi prestigiar o tráfego jurídico, afirmação que ainda tem grande pertinência na atualidade. Nota-se, por todos esses aspectos destacados, que a quarta fase relativa à união estável ainda está em curso, irradiando, cada vez com mais nitidez, os seus contornos. Por ora, o que se vê é que a união estável registrada já se equiparou, quase que integralmente, ao casamento. A única distinção está no fato de que, como a união estável nasce com a presença fática dos requisitos do art. 1.723 do Código Civil, o registro da união estável não necessariamente impedirá uma comprovação contrária, demonstrativa de eventual simulação das partes. Quanto ao casamento, por sua vez, seu nascimento vincula-se apenas ao ato formal do seu procedimento - ultimado com o registro -, e não à presença de requisitos fáticos. Todavia, mesmo essa distinção não ostenta tanta relevância prática, porque a falta de convívio efetivo entre os cônjuges caracteriza uma separação de fato, que interrompe a produção de alguns efeitos do casamento, como os relativos ao regime de bens. Por óbvio, a jurisprudência e a doutrina haverão de encerrar esta quarta fase, concluindo esse delineamento de equiparação da união estável ao casamento. Em um lampejo de futurologia, vislumbramos que talvez venha a surgir uma quinta fase, em que as burocracias para a constituição e a extinção do casamento desaparecerão de forma definitiva, reduzindo-se de um procedimento a um único ato. Para se casar, não haverá mais necessidade da inócua publicação de proclamas, além de a própria celebração do casamento tender a tornar-se facultativa. Para divorciar-se, bastará um ato unilateral de um dos cônjuges, com notificação ao outro. Esse fato, alinhado a uma eventual mudança na estrutura sociológica brasileira rumo ao abandono da cultura da informalidade, talvez deságue em um funeral da união estável, enterrada com todos os efeitos colaterais que produziu ao longo da história. Então, a doutrina que pregava diferenças entre as entidades familiares - cada vez mais enfraquecida pelas mudanças sociais e legislativas - restará totalmente vencida. Como palavras finais, pensamos que a união estável, embora seja um instituto ainda necessário para remediar injustiças que ocorrem em uma sociedade ainda marcada pela informalidade, é nociva do ponto de vista sistêmico, especialmente na sua versão não formalizada nem registrada. A Lei do SERP, como é notório, buscou facilitar a sua formalização perante o Cartório de Registro Civil das Pessoas Naturais, com menos burocracias e menos custos aos cidadãos e à sociedade. Nesse contexto, lembramos que as normas jurídicas devem ser dirigidas a esses últimos e não a determinados grupos, corporações de ofício ou entidades de classe. Por ora, atualmente, com a subsistência de burocracias em torno do casamento e com a manutenção da cultura de informalidade, a nossa sociedade ainda não está preparada para fazer a união estável sair da vida para entrar na história.
Como é notório, o art. 1.848 do Código Civil trata das cláusulas restritivas de inalienabilidade, incomunicabilidade e impenhorabilidade, que podem constar do testamento, gravando bens da legítima. Como está no caput desse comando, "salvo se houver justa causa, declarada no testamento, não pode o testador estabelecer cláusula de inalienabilidade, impenhorabilidade, e de incomunicabilidade, sobre os bens da legítima". As restrições são comuns na prática, não só em atos de manifestação de última vontade como também em doações. As próprias cláusulas, em si mesmas, sempre foram objeto de ressalvas e censuras na doutrina, especialmente pelas duras restrições existentes ao direito de propriedade e à liberdade individual. Da obra de Carlos Alberto Dabus Maluf podem ser retiradas, com minúcias, objeções práticas, econômicas e constitucionais, especialmente à cláusula de incomunicabilidade, que impede a desejável plena circulação dos bens (Cláusulas de inalienabilidade, incomunicabilidade e impenhorabilidade. 4. ed. São Paulo: RT, 2006. p. 35-41). Adotando esse caminho, Maria Berenice Dias afirma que "é flagrante a afronta à garantia constitucional do direito à herança, a possibilidade de serem impostas cláusulas restritivas ao direito de propriedade do herdeiro necessário. Praticamente o transforma em mero usufrutuário dos bens que lhe pertencem" (Manual das sucessões. 2. ed. São Paulo: RT, 2011. p. 283). Com o devido respeito, não vejo inconstitucionalidades às claras nas estipulações restritivas que podem clausular a herança, pois entendo que igualmente decorrem da tutela da herança como direito fundamental e da liberdade individual do instituidor, como incremento da dignidade humana nas relações privadas. Em muitas situações concretas, é com o intuito de proteger o herdeiro ou a própria família - base da sociedade, com especial proteção do Estado, na dicção do art. 226, caput, da CF/1988 - que as cláusulas são impostas, conforme se depreende da doutrina de ontem e de hoje que analisa a matéria. Nesse contexto, pode-se dizer que o próprio legislador ponderou os direitos envolvidos e resolveu manter tais restrições no sistema civilístico nacional. Em reforço, a instituição da exigência da justa causa acabou por diminuir o impacto social das cláusulas restritivas testamentárias. Todavia, tenho refletido se já não é o momento de retirar as categorias da lei geral privada, até pelo arcaísmo que os institutos representam e pelas dificuldades que as restrições, sobretudo a inalienabilidade, podem gerar para os herdeiros e beneficiados. Valem aqui as palavras de Marcelo Truzzi, no sentido de que o legislador brasileiro de 2002 perdeu a excepcional oportunidade de "voltar a assegurar, em termos absolutos, a intangibilidade da legítima, como ocorre em Itália, Portugal, Argentina, Chile, Peru, Equador e Venezuela" (Justa causa testamentária. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2012. p. 60). Além disso, se a manutenção do clausulado oferecer sérios embaraços aos herdeiros, não há razão para a manutenção das restrições, como tem lecionado a mesma doutrina. Caso contrário, o testamento e a doação trarão em seu conteúdo um verdadeiro presente de grego, um Cavalo de Troia não desejado também pelo Direito Civil. Esse é o tema central deste breve artigo. Pois bem, pelo § 2º do art. 1.848 da codificação material, por meio de autorização judicial e havendo a citada justa causa para tanto, é possível a alienação dos bens clausulados, cancelando-se as cláusulas restritivas. Apesar de a lei mencionar expressamente apenas o cancelamento da inalienabilidade, entendo que as outras cláusulas, de incomunicabilidade e impenhorabilidade, também podem ser extintas nos termos do diploma em questão. Para amparar tal afirmação, lembro que, pelo art. 1.911, caput, do Código Civil de 2002 - que reproduz parcialmente a antiga Súmula n. 49 do Supremo Tribunal Federal -, a instituição das cláusulas de inalienabilidade acarreta automaticamente a incomunicabilidade e a impenhorabilidade do bem. A propósito, o parágrafo único do art. 1.911 complementa o § 2º do art. 1.848, elencando hipóteses de justa causa para o cancelamento das cláusulas restritivas e prevendo que caberá sua extinção quando houver desapropriação de bens clausulados ou quando necessária a alienação, por conveniência econômica do donatário ou do herdeiro. A conveniência econômica do herdeiro ou donatário pode estar associada à função social da propriedade, como ainda será desenvolvido. Lembro que o sistema do Código Civil de 1916 era bem mais rígido sobre tal cancelamento, estabelecendo o seu art. 1.676 que o cancelamento somente caberia em hipóteses de expropriação por necessidade ou utilidade pública e de execução por dívidas provenientes de impostos relativos aos respectivos imóveis. Entretanto, a jurisprudência anterior já interpretava a norma revogada de forma mais abrandada ou temperada, entendendo que outras hipóteses poderiam ser admitidas para a extinção dos gravames. Novamente como leciona Marcelo Truzzi Otero, "antes mesmo da vigência do Código Civil, os Tribunais flexibilizavam o rigor do artigo 1.676 do Código revogado que, à evidência, depunha contra os interesses do herdeiro e da sociedade na medida em que fazia prevalecer a vontade individual do testador em detrimento dos interesses coletivos na circulação da riqueza" (Justa causa testamentária. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2012. p. 176). A título de exemplo, essa flexibilização foi feita no seguinte aresto superior: "CIVIL E PROCESSO CIVIL - RECURSO ESPECIAL - CLÁUSULA DE INALIENABILIDADE E IMPENHORABILIDADE VITALÍCIA - CANCELAMENTO - VIOLAÇÃO AO ARTIGO 1.109 DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL - FALTA DE PREQUESTIONAMENTO - SÚMULA 356/STF - RECURSO NÃO CONHECIDO. (...). 2 - O Tribunal a quo, apenas ad argumentandum, ao analisar o caso, conferiu ao art. 1.676, do CC de 1916, a interpretação que considerou mais razoável, permitindo, inclusive - afora as hipóteses de desapropriação por necessidade ou utilidade pública e de execução por dívidas provenientes de impostos relativos aos imóveis gravados com cláusula de inalienabilidade -, a alienação do citado lote de ações clausuladas, tendo em vista a necessidade premente da requerente, desde que o preço obtido fosse, integral e simultaneamente, empregado na aquisição de um bem imóvel ou de títulos da dívida pública, de igual valor ou superior à cotação das mesmas, ou, ainda, levado a depósito em caderneta de poupança, nos quais ficariam sub-rogados os encargos. Logo, inexistiu qualquer ofensa ao art. 1.109, do CC. (...)" (STJ, REsp 373.282/MG, Rel. Min. Jorge Scartezzini, Quarta Turma, julgado em 10.08.2004, DJ 30.08.2004, p. 291). Em suma, as corretas interpretações dadas ao então art. 1.676 do Código Civil de 1916 já indicavam que, se presente uma justa causa no caso concreto, as cláusulas de inalienabilidade e impenhorabilidade deveriam ser reputadas como extintas ou canceladas. Como tenho sustentado, a exigência da justa causa dá uma abertura maior, de natureza objetiva, para o afastamento das restrições testamentárias. A verdade é que existem dois caminhos interpretativos sobre o cancelamento das cláusulas restritivas. O primeiro, mais rígido, apegado ao rigor formal e adotado em alguns Tribunais Estaduais, somente admite esse cancelamento em casos excepcionalíssimos, e nos exatos termos do texto legal. O segundo, mais funcionalizado e flexível, e menos formalista, tem abrandado esse rigor, sobretudo diante da aplicação da função social da propriedade. Essa última tem sido a interpretação prevalecente no Superior Tribunal de Justiça e a que deve ser adotada para os devidos fins práticos. Como primeiro aresto a ser citado, e com essa segunda solução, entendeu a Terceira Turma da Corte que, "se a alienação do imóvel gravado permite uma melhor adequação do patrimônio à sua função social e possibilita ao herdeiro sua sobrevivência e bem-estar, a comercialização do bem vai ao encontro do propósito do testador, que era, em princípio, o de amparar adequadamente o beneficiário das cláusulas de inalienabilidade, impenhorabilidade e incomunicabilidade" (STJ, REsp 1.158.679/MG, Rel. Min. Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em 07.04.2011, DJe 15.04.2011). O decisum demonstra que, em casos de penúria do beneficiado, as cláusulas restritivas devem ser mitigadas, sobretudo a de inalienabilidade, que veda a transmissão onerosa ou gratuita do bem a terceiros, como a sua venda. Também a ser destacado, entendeu a mesma composição da Corte, em aresto de 2014: "RECURSO ESPECIAL. DIREITO CIVIL. CLÁUSULA DE INCOMUNICABILIDADE. PEDIDO DE CANCELAMENTO. 1 - Pedido de cancelamento de cláusula de inalienabilidade incidente sobre imóvel recebido pelo recorrente na condição de herdeiro. 2 - Necessidade de interpretação da regra do art. 1.676 do CC/16 com ressalvas, devendo ser admitido o cancelamento da cláusula de inalienabilidade nas hipóteses em que a restrição, no lugar de cumprir sua função de garantia de patrimônio aos descendentes, representar lesão aos seus legítimos interesses. 3 - Doutrina e jurisprudência acerca do tema. 4 - Recurso especial provido por maioria, vencida a relatora" (STJ, REsp 1.422.946/MG, Rel. Min. Nancy Andrighi, Rel. p/ Acórdão Min. Paulo de Tarso Sanseverino, Terceira Turma, julgado em 25.11.2014, DJe 05.02.2015). Em seu voto prevalecente, pontuou o saudoso Ministro Paulo de Tarso Sanseverino que "a eminente Relatora, Ministra Nancy Andrighi, proferiu voto no sentido de negar provimento ao recurso especial, para manter o acórdão recorrido, por não ter o recorrente apresentado situação excepcional, que justifique o levantamento da restrição quanto ao restante do bem. Com a devida vênia, divirjo da eminente Relatora para dar provimento ao recurso especial, entendendo que o cancelamento da restrição deve alcançar a totalidade do imóvel. Este Superior Tribunal já se manifestou acerca da necessidade de se interpretar a regra do art. 1.676 do Código Civil de 1916 com ressalvas, devendo ser admitido o cancelamento da cláusula de inalienabilidade nas hipóteses em que a restrição, no lugar de cumprir sua função de garantia de patrimônio aos descendentes, representar lesão aos seus legítimos interesses. (...). A cláusula de inalienabilidade representa uma severa restrição ao direito de propriedade, pois impede que o proprietário exerça um dos poderes inerentes ao domínio: o de dispor livremente do bem. Em alguns casos, - deve-se reconhecer - ela vai ao encontro da intenção do autor da herança de assegurar aos descendentes um substrato financeiro que lhes garanta uma vida confortável, como na hipótese de prodigalidade. Tais casos, contudo, constituem exceção à regra de que a cláusula de inalienabilidade na sucessão hereditária representa afronta ao livre exercício do direito de propriedade dos herdeiros" (STJ, REsp 1.422.946/MG, Rel. Min. Nancy Andrighi, Rel. p/ Acórdão Min. Paulo de Tarso Sanseverino, Terceira Turma, julgado em 25.11.2014, DJe 05.02.2015). Na sequência, o Relator para o Acórdão demonstra as ressalvas doutrinárias a respeito das restrições em estudo, outrora mencionadas, feitas por Nelson Nery Jr., Rosa Maria de Andrade Nery e Orlando Gomes, concluindo que a cláusula de inalienabilidade vitalícia constante de testamento deveria ser cancelada, pois os pais do beneficiado tinham a intenção não de proteger o prédio clausulado - com grande valor histórico -, mas sim de proteger o patrimônio de sua prole, "sem que houvesse, ao menos em princípio, um motivo específico para tanto. Segundo o recorrente, a manutenção do imóvel, localizado no município de Conselheiro Lafaiete/MG, tem sido um pesado fardo, pois, por residir no Estado de São Paulo, não tem qualquer interesse em preservar o bem em seu patrimônio. O recorrente afirma, ademais, dispor de recursos financeiros suficientes para proporcionar, a ele e a sua família, uma vida confortável, do que não se pode duvidar, considerando tratar-se de pessoa plenamente capaz, exercendo a profissão de engenheiro, conforme declarado na petição inicial". Nesse contexto, concluiu o julgador, em seu voto, que o cancelamento da cláusula deveria recair sobre a totalidade do bem, por haver lesão ao exercício do direito de propriedade e à sua função social (REsp 1.422.946/MG). O Ministro Marco Buzzi acabou por seguir tal forma de interpretar o Direito Privado, citando expressamente a função social da propriedade para suas deduções de cancelamento da cláusula de inalienabilidade: "É possível afirmar-se que, em determinados casos, como o que ora está em discussão, mostra-se perfeitamente adequado mitigar a imposição dessa cláusula restritiva e liberar o bem clausulado para lhe proporcionar o melhor e mais amplo aproveitamento social e econômico. A solução proposta pela divergência traduz/atrai tranquilidade social, especialmente em relação ao recorrente que, embora proprietário desse imóvel, por força da cláusula restritiva, agregada ao tombamento do bem, teve drasticamente diminuída a sua utilização enquanto beneficiário da herança deixada por seus genitores. Assim, a cláusula imposta pelos genitores do recorrente - que, em vez de proteger o herdeiro, apresenta-se como fator de lesividade aos seus interesses - por impossibilitar qualquer aproveitamento do patrimônio imobiliário - descumpre o ditame máximo da função social da propriedade (artigo 5º, inciso XXIII, da CF), uma vez afastada a sua utilidade ante a inviabilidade de sua comercialização e consequente geração de riqueza, deixando de proporcionar para o ora insurgente e para toda a coletividade a sua necessária destinação social e econômica" (STJ, REsp 1.422.946/MG, Voto do Ministro Marco Buzzi). Essa mesma e correta posição foi adotada, posteriormente, pela Corte Superior, em outro julgado igualmente impactante, também relatado pelo saudoso Ministro Sanseverino, que concluiu pelo cancelamento da cláusula restritiva de inalienabilidade em caso de doação. A extinção do gravame foi deferida pelo fato de que haviam se passado mais de vinte anos do ato de liberalidade, não havendo mais justa causa na sua manutenção. Nos seus termos exatos, "a doação do genitor para os filhos e a instituição de cláusula de inalienabilidade, por representar adiantamento de legítima, deve ser interpretada na linha do que prescreve o art. 1.848 do CCB, exigindo-se justa causa notadamente para a instituição da restrição ao direito de propriedade. (...). Possibilidade de cancelamento da cláusula de inalienabilidade após a morte dos doadores, passadas quase duas décadas do ato de liberalidade, em face da ausência de justa causa para a sua manutenção. (...). Interpretação do art. 1.848 do Código Civil à luz do princípio da função social da propriedade" (STJ, REsp 1.631.278/PR, Rel. Min. Paulo de Tarso Sanseverino, Terceira Turma, julgado em 19.03.2019, DJe 29.03.2019). A posição doutrinária é exatamente a mesma dos acórdãos colacionados, tendo o meu total apoio. Como corretamente pontuam Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald a respeito do levantamento da sub-rogação do gravame, é "possível o levantamento ou sub-rogação da cláusula restritiva imposta pelo testador em situações excepcionais, como em casos de perigo de perecimento da coisa, para garantir a utilidade do bem ou mesmo para assegurar a dignidade do titular do patrimônio. Enfim, trata-se de imperativa leitura das cláusulas restritivas sob a ótica civil-constitucional, visando o respeito integral aos princípios constitucionais. Efetivamente, não teria sentido garantir a alguém patrimônio privando, contudo, de conferir ao titular a devida utilidade, mesmo quando necessário para a sua sobrevivência" (Curso de direito civil. São Paulo: Atlas, 2015. v. 7: Sucessões. p. 390). Pablo Stolze Gagliano e Rodolfo Pamplona Filho igualmente se posicionam, aduzindo: "parece-nos plenamente razoável defender-se, em situações excepcionais, a eventual possibilidade de revogação de tais cláusulas, com a finalidade de imprimir função social à propriedade e de preservar a dignidade da pessoa do proprietário, o que tem encontrado guarida na jurisprudência" (Novo curso de direito civil. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2018. v. 7: Direito das sucessões. p. 346). Por fim, sem prejuízo de muitos outros doutrinadores, Marcelo Truzzi Otero, em sua exímia obra, segue exatamente a mesma posição, elencando exemplos em que cabe a extinção dos gravames, entre os quais a comum situação de oferecimento de imóvel rural para obter crédito agrícola, concretizando a função social da propriedade: "Pelas mesmas razões, a autorização para alienar ou desonerar o imóvel gravado de impenhorabilidade atende a conveniência do herdeiro ou legatário que pretende utilizar os recursos para quitar as mensalidades da faculdade ou de curso de pós-graduação, assegurando-lhe, futuramente, o exercício de uma profissão e, mais do que isso, preservar-lhe a própria dignidade; o mesmo se dá para quitar crédito educativo; para oferecer o próprio imóvel em garantia do crédito para custeio agrícola, sem o que o imóvel doado ou herdado não cumprirá a função social, considerando a carência de recursos financeiros do herdeiro ou legatário para fazê-lo produtivo; ou, ainda, para permitir ao herdeiro necessário ou seu parente próximo submeter-se a tratamento estético para a correção de imperfeição física ultrajante" (Justa causa testamentária. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2012. p. 178). A função social da propriedade - além de constar como direito fundamental no art. 5º, inc. XXIII, da Constituição Federal de 1988 - foi inserida expressamente no art. 1.228, § 1º, do Código Civil de 2002, segundo o qual "o direito de propriedade deve ser exercido em consonância com as suas finalidades econômicas e sociais e de modo que sejam preservados, de conformidade com o estabelecido em lei especial, a flora, a fauna, as belezas naturais, o equilíbrio ecológico e o patrimônio histórico e artístico, bem como evitada a poluição do ar e das águas". A função social do domínio, na visão de Léon Duguit - e na linha do que foi adotado pelo nosso Texto Maior e pelo Código Civil brasileiro -, compõe o próprio direito de propriedade. Como palavras finais para este artigo, conforme explica Carlos Alberto Dabus Maluf, "a propriedade já não é o direito subjetivo do indivíduo, mas uma função social a ser exercida pelo detentor da riqueza". Ainda segundo o Professor Titular da Faculdade de Direito da USP, "ao antigo absolutismo do direito, consubstanciado no famoso jus utendi et abutendi, contrapõe-se, hoje, a socialização progressiva da propriedade - orientando-se pelo critério da utilidade social para maior e mais ampla proteção aos interesses e às necessidades comuns" (Limitações ao direito de propriedade. 3. ed. São Paulo: RT, 2011. p. 73-74). No contexto dessas afirmações é que se enquadram as decisões do Superior Tribunal de Justiça, irreparáveis e corretas tecnicamente, na minha opinião doutrinária.
Em dois artigos aqui publicados, estamos tratando dos procedimentos para a formalização da alteração do regime de bens na união estável perante o Cartório de Registro Civil das Pessoas Naturais (RCPN) em duas situações. A primeira diz respeito à união estável registrada; e a segunda é relativa à conversão da união estável em casamento. O tema está sendo estudado com base nos recentes arts. 9º-A, 9º-B e 9º-D do Provimento n. 37 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), acrescidos pelo Provimento n. 141 do mesmo CNJ. Como pontuado em nosso texto anterior, esses dispositivos decorrem da positivação do registro facultativo da união estável, bem como do procedimento extrajudicial de conversão da união estável em casamento, tudo conforme os arts. 70-A e 94-A da Lei n. 6.015/1973 (Lei de Registros Públicos), introduzido pela lei 14.382/2022, a Lei do SERP ou do Sistema Eletrônico de Registros Públicos. Caso, após o início da união estável, os companheiros desejem alterar o regime de bens, qual procedimento eles devem adotar? Como está apontado em nosso artigo anterior, existem três situações envolvendo a alteração de regime de bens na união estável, quais sejam: a) a que ocorre no curso de uma união estável não registrada no RCPN; b) a que se dá na hipótese de haver o registro da união estável no RCPN; e c) a que ocorre no momento da conversão extrajudicial da união estável em casamento, independentemente de a união estável estar ou não registrada previamente no RCPN. As duas primeiras hipóteses foram tratadas no nosso texto anterior, enquanto a terceira será aqui analisada. Como é notório, a conversão da união estável em casamento poderá ocorrer diretamente perante o Cartório de Registro das Pessoas Naturais (RCPN), nos termos dos antes citados arts. 70-A da Lei de Registros Públicos e 9º-C a 9º-G do Provimento n. 37 do Conselho Nacional de Justiça. Surgem então as relevantes dúvidas: como ficará a formalização do regime de bens para o casamento nessa hipótese? É possível que os interessados alterem o regime de bens no momento da conversão? É preciso, porém e de início, atentar para algumas particularidades. Quando se trata de casamento, a regra geral é a de que a adoção de qualquer regime de bens diverso do da comunhão parcial precisa ser formalizado por meio de escritura pública de pacto antenupcial, nos termos do art. 1.640, parágrafo único, do Código Civil.1 O referido pacto antenupcial deverá, inclusive, ser registrado no Livro 3 do Cartório de Registro de Imóveis do domicílio dos cônjuges a fim de facilitar consulta por terceiros, o que é retirado do art. 1.657 da codificação privada e do art. 178, inc. V, da Lei de Registros Públicos.2 Essa regra geral precisa ser conciliada com as particularidades da anterior união estável, em relação à qual a legislação autoriza o seu registro no RCPN com a escolha de regime de bens mediante um título qualificado: uma escritura pública, um termo declaratório ou uma decisão judicial. Diante desse cenário, o Provimento n. 37 do CNJ adotou uma solução conciliatória. Em havendo a conversão da união estável em casamento, a regra é a manutenção do mesmo regime de bens que vigorava ao tempo da união estável. Se o regime era o da comunhão parcial de bens, esse seguirá em vigor, sem a necessidade de qualquer formalidade adicional por se tratar do regime legal ou supletório. Se, porém, o regime de bens era outro quando da união estável, haverá a necessidade da presença de um título qualificado - uma escritura pública, um termo declaratório ou uma decisão judicial, como pontuado  -, ou, alternativamente, de uma escritura pública de pacto antenupcial para sustentar formalmente o regime de bens do casamento. Imagine-se o caso concreto em que um casal vivia em união estável sob o regime da separação convencional de bens, escolhido mediante um título qualificado. Ao converter essa união estável em casamento, eles não precisarão lavrar uma nova escritura pública de pacto antenupcial, pois já portam um título qualificado, o qual foi forjado ao abrigo da fé pública, à semelhança da escritura pública de pacto antenupcial. Bastará, assim, aos companheiros apresentarem esse título qualificado no momento do requerimento da conversão da união estável, sendo irrelevante se a união estável estava ou não registrada. O que importa é se a escolha do regime de bens da união estável estava formalizada pelo tão citado título qualificado. Essa é a inteligência do art. 9º-D, § § 1º e 5º, inc. I, do Provimento n. 37 do CNJ. Na hipótese descrita, o título qualificado equivalerá ao pacto antenupcial e, portanto, será o título a ser levado a registro no Livro 3 do Cartório de Imóveis do domicílio dos cônjuges, conforme preceitua o art. 9º-D, § 6º, do Provimento n. 37 do CNJ. Voltando ao exemplo exposto, suponha-se que o casal vivia sob o regime da separação convencional de bens, com base em um contrato escrito por instrumento particular. Nessa hipótese, ao requerer a conversão da união estável em casamento, será necessária a apresentação de uma escritura pública de pacto antenupcial, visto que inexiste justamente um título qualificado a sustentar a escolha de um regime de bens diverso do legal. Essa é a inteligência do art. 9º-D, §§ 1º e 5º, inc. I, do Provimento n. 37 do CNJ. Nada impede, porém, que o casal, momentos antes do requerimento da conversão da união estável, formalize a escolha do regime de bens da união estável por meio desse título qualificado. Nessa situação, ao requerer a conversão da união estável, não haverá necessidade de uma escritura pública de pacto antenupcial, à vista da suficiência desse título para arrimar a escolha de regime de bens diverso do legal para o casamento. Outra questão curiosa é saber se, no momento da conversão da união estável em casamento, é possível ou não que o casal altere o regime de bens, de modo que o casamento será sujeito a um regime diverso do que vigorava ao tempo da união estável. A resposta é positiva, e, nesse ponto, o Provimento n. 37 do CNJ foi propositalmente menos burocrático em relação aos companheiros, além de se preocupar com a exigência de expressa manifestação de vontade deles. Nessa esteira, se o casal pretender que, após a conversão da união estável em casamento, passe a vigorar um novo regime de bens, é obrigatória a manifestação expressa de suas vontades. Se o novo regime for o da comunhão parcial de bens, bastará a apresentação de uma declaração expressa e específica dos companheiros nesse sentido, que poderá constar do próprio requerimento de conversão da união estável em casamento. Se, porém, o novo regime for diverso, caberá aos companheiros apresentarem uma escritura pública de pacto antenupcial. Não é cabível a apresentação de termo declaratório lavrado perante o RCPN, pois esse último instrumento é exclusivo para a união estável, e não para o casamento. Essas conclusões são retiradas do art. 9º-D, §§ 2º, 3º e 5º, incs. I e II, do Provimento n. 37 do CNJ. Em qualquer hipótese, não haverá a necessidade de os consortes apresentarem certidões de interdição, de protestos e nem de feitos judiciais, pois essas exigências são exclusivas para as hipóteses de alteração do regime de bens no curso da união estável. O Provimento n. 37 do CNJ, mais uma vez propositalmente, deixou de exigir essas certidões no caso de mudança de regime de bens no momento da conversão da união estável em casamento por dois motivos. O primeiro deles é a necessidade de desburocratizar o ato. O segundo motivo está relacionado ao fato de que os interesses de terceiros estarão totalmente resguardados diante da alteração de regime de bens. Aliás, sobre esse último aspecto, quando houver alteração do regime de bens, o inciso IV do art. 9º-C do Provimento n. 37 do CNJ é expresso em exigir que, no assento de conversão da união estável em casamento, seja expressamente colocada a seguida advertência: "este ato não prejudicará terceiros de boa-fé, inclusive os credores dos companheiros cujos créditos já existiam antes da alteração do regime". Entendemos que, apesar do silêncio do Provimento n. 37 do CNJ, essa advertência deverá constar de todas as certidões extraídas desse assento de conversão da união estável em casamento, pois seu objetivo é informar terceiros acerca de seus direitos. Por fim, para encerrar este texto, são cabíveis dois alertas. O primeiro é o de que, no assento da conversão da união estável em casamento, somente será consignado o regime de bens que vigorava ao tempo da união estável se esse regime estava expressamente indicado em um título qualificado de união estável ou em um registro da união estável (art. 9º-C, inc. II, do Provimento n. 37 do CNJ). O motivo é que o registro público não pode disseminar informações com baixo grau de confiabilidade, como seria a proveniente de um instrumento particular lavrado pelas partes indicando um regime de bens para a união estável. O segundo alerta é o de que a análise da incidência ou não do regime da separação legal ou obrigatória de bens, imposto pelo art. 1.641 do Código Civil,  precisa atentar para as particularidades do ato envolvido.3 Estamos diante da conversão da união estável em casamento, o que representa, na prática, a continuidade de uma convivência more uxorio mediante a migração de uma situação jurídica mais informal - a união estável - para uma mais formal - o casamento. Por essa razão, não se aplicará o regime da separação legal se: a) os cônjuges tinham menos de setenta anos de idade ao tempo do início da união estável, e não ao tempo da sua conversão em casamento; ou b) as eventuais causas suspensivas do casamento, previstas no art. 1.523 do Código Civil e existentes ao tempo do início da união estável, tiverem sido superadas quando da sua conversão em casamento.4 É o que estabelecem os §§ 3º e 4º do art. 9º-D do Provimento n. 37 do CNJ, em consonância com a posição doutrinária e jurisprudencial antes dominante. Sobre o item a, o Enunciado n. 261, aprovado na III Jornada de Direito Civil, estabelece que "a obrigatoriedade do regime da separação de bens não se aplica a pessoa maior de sessenta anos, quando o casamento for precedido de união estável iniciada antes dessa idade". No mesmo sentido, da jurisprudência superior, por todos: "afasta-se a obrigatoriedade do regime de separação de bens quando o matrimônio é precedido de longo relacionamento em união estável, iniciado quando os cônjuges não tinham restrição legal à escolha do regime de bens, visto que não há que se falar na necessidade de proteção do idoso em relação a relacionamentos fugazes por interesse exclusivamente econômico. Interpretação da legislação ordinária que melhor a compatibiliza com o sentido do art. 226, § 3º, da CF, segundo o qual a lei deve facilitar a conversão da união estável em casamento" (STJ, REsp 1.318.281/PE, relatora Ministra Maria Isabel Gallotti, Quarta Turma, julgado em 1/12/2016, DJe de 7/12/2016). No que diz respeito ao item b ora descatado, na mesma III Jornada de Direito Civil, aprovou-se o Enunciado n. 262, in verbis: "a obrigatoriedade da separação de bens nas hipóteses previstas nos incs. I e III do art. 1.641 do Código Civil não impede a alteração do regime, desde que superada a causa que o impôs". Mais uma vez a jurisprudência superior dialoga de forma precisa com a doutrina, ementando que, "se o Tribunal Estadual analisou os requisitos autorizadores da alteração do regime de bens e concluiu pela sua viabilidade, tendo os cônjuges invocado como razões da mudança a cessação da incapacidade civil interligada à causa suspensiva da celebração do casamento a exigir a adoção do regime de separação obrigatória, além da necessária ressalva quanto a direitos de terceiros, a alteração para o regime de comunhão parcial é permitida" (STJ, REsp 821.807/PR, relatora Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em 19/10/2006, DJ de 13/11/2006, p. 261). Nota-se, assim, que, de forma correta e precisa, o Provimento n. 37 do CNJ - nas alterações efetivadas pelo Provimento n. 141/2023  aqui estudadas -, apenas seguiu a posição consolidada da doutrina e jurisprudência nacionais, dando certeza e segurança para a alteração do regime de bens na conversão da união estável em casamento, aplicando corretamente a lei. ___________ 1 CC/2002. "Art. 1.640. Não havendo convenção, ou sendo ela nula ou ineficaz, vigorará, quanto aos bens entre os cônjuges, o regime da comunhão parcial. Parágrafo único. Poderão os nubentes, no processo de habilitação, optar por qualquer dos regimes que este código regula. Quanto à forma, reduzir-se-á a termo a opção pela comunhão parcial, fazendo-se o pacto antenupcial por escritura pública, nas demais escolhas." 2 CC/2002. "Art. 1.657. As convenções antenupciais não terão efeito perante terceiros senão depois de registradas, em livro especial, pelo oficial do Registro de Imóveis do domicílio dos cônjuges" Lei de Registros Públicos. "Art. 178. Registrar-se-ão no Livro nº 3 - Registro Auxiliar: [...] V - as convenções antenupciais." 3 CC/2002. "Art. 1.641. É obrigatório o regime da separação de bens no casamento: I - das pessoas que o contraírem com inobservância das causas suspensivas da celebração do casamento; II - da pessoa maior de 70 (setenta) anos; III - de todos os que dependerem, para casar, de suprimento judicial". 4 CC/2002. "Art. 1.523. Não devem casar: I - o viúvo ou a viúva que tiver filho do cônjuge falecido, enquanto não fizer inventário dos bens do casal e der partilha aos herdeiros; II - a viúva, ou a mulher cujo casamento se desfez por ser nulo ou ter sido anulado, até dez meses depois do começo da viuvez, ou da dissolução da sociedade conjugal; III - o divorciado, enquanto não houver sido homologada ou decidida a partilha dos bens do casal; IV - o tutor ou o curador e os seus descendentes, ascendentes, irmãos, cunhados ou sobrinhos, com a pessoa tutelada ou curatelada, enquanto não cessar a tutela ou curatela, e não estiverem saldadas as respectivas contas. Parágrafo único. É permitido aos nubentes solicitar ao juiz que não lhes sejam aplicadas as causas suspensivas previstas nos incisos I, III e IV deste artigo, provando-se a inexistência de prejuízo, respectivamente, para o herdeiro, para o ex-cônjuge e para a pessoa tutelada ou curatelada; no caso do inciso II, a nubente deverá provar nascimento de filho, ou inexistência de gravidez, na fluência do prazo."
Em dois artigos aqui publicados, trataremos dos procedimentos para a formalização da alteração de regime de bens na união estável perante o Cartório de Registro Civil das Pessoas Naturais (RCPN) em duas situações. A primeira diz respeito à união estável registrada; e a segunda é relativa à conversão da união estável em casamento. O tema será abordado à luz dos recentes arts. 9º-A, 9º-B e 9º-D do Provimento n. 37 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), acrescidos pelo Provimento n. 141 do mesmo CNJ. Esses dispositivos decorrem da positivação do registro facultativo da união estável, bem como do procedimento extrajudicial de conversão da união estável em casamento, tudo conforme os arts. 70-A e 94-A da lei 6.015/1973 (Lei de Registros Públicos), introduzido pela lei 14.382/2022, conhecida como Lei do SERP (Sistema Eletrônico de Registros Públicos). Antes de seguir com este texto, recomendamos a leitura de anterior artigo de nossa autoria, em que diversas outras questões relativas ao registro facultativo da união estável estão tratadas, à luz das recentes alterações legislativas (https://www.migalhas.com.br/coluna/migalhas-notariais-e-registrais/373353/registro-facultativo-da-uniao-estavel-no-registro-civil). Como é notório, a união estável caracteriza-se pela presença dos requisitos previstos no art. 1.723 do Código Civil, bastando que duas pessoas passem a viver como se fossem casadas - em convivência more uxorio -, com os elementos da publicidade, da continuidade duradoura e do objetivo de constituição de família (animus familiae). Trata-se de uma situação de fato que gera efeitos jurídicos familiares, com a atribuição de direitos a uma situação de informalidade. Entretanto, a legislação chancela algumas vias de formalização da união estável, como a admissão de seu registro no Registro Civil das Pessoas Naturais ou a permissão para a elaboração de contratos de convivência. O motivo é facilitar o dia a dia do cidadão, a fim de que ele possa comprovar a união estável perante terceiros, como entes públicos e pessoas jurídicas de Direito Privado. Não se olvide que a formalização da união estável por essas vias tem natureza meramente declaratória e probatória, gozando de uma presunção relativa ou iuris tantum de veracidade. Se, de fato, inexistirem os requisitos do art. 1.723 do Código Civil, não haverá união estável, apesar de sua formalização. Em relação ao regime de bens, a união estável atrai o regime da comunhão parcial de bens, salvo se houver contrato de convivência, celebrado por escrito, elegendo outro regime. É o que dispõe o art. 1.725 do Código Civil, in verbis:  "na união estável, salvo contrato escrito entre os companheiros, aplica-se às relações patrimoniais, no que couber, o regime da comunhão parcial de bens". Pois bem, caso, após o início da união estável, os companheiros desejem alterar o regime de bens, qual procedimento eles devem adotar? Existem três situações envolvendo a alteração de regime de bens na união estável, quais sejam: a) a que ocorre no curso de uma união estável não registrada no RCPN; b) a que se dá na hipótese de haver o registro da união estável no RCPN; e c) a que ocorre no momento da conversão extrajudicial da união estável em casamento, independentemente de a união estável estar ou não registrada previamente no RCPN. Reitere-se que as duas primeiras hipóteses serão tratadas neste texto, enquanto a terceira, em artigo próximo. Iniciando-se pela alteração do regime de bens no curso de união estável não registrada no RCPN, como essa entidade familiar é marcada por um certo grau de informalidade, não há necessidade de intervenção judicial para a alteração do regime de bens. Basta os companheiros celebrarem um contrato de convivência indicando o novo regime, conforme se infere do art. 1.725 do Código Civil. É diferente do que se dá na hipótese de mudança de regime de bens do casamento, tendo em vista que o caráter solene deste condiciona a alteração do regime de bens à autorização judicial, conforme o art. 1.639, § 2º, da codificação privada, que tem a seguinte redação: "é admissível alteração do regime de bens, mediante autorização judicial em pedido motivado de ambos os cônjuges, apurada a procedência das razões invocadas e ressalvados os direitos de terceiros". A alteração de regime de bens terá eficácia ex nunc, ou seja, só valerá daí para a frente, e não eficácia retroativa. Se, por exemplo, os companheiros sujeitavam-se ao regime da comunhão universal de bens até mudarem para o regime da separação convencional, os bens que se comunicaram até a data da alteração precisarão ser objeto de partilha. Essa partilha pode ser feita no momento da alteração ou em ocasião futura, quando de eventual dissolução da união estável. Não se pode retroagir o novo regime, desconstituindo-se as comunicações de bens ocorridas em momento anterior à sua modificação, sob pena de violação ao direito adquirido. Igualmente, eventuais credores de qualquer um dos companheiros com direitos nascidos, ou surgidos antes da alteração de regime de bens, não poderão ser prejudicados. Poderão eles, assim, excutir a meação do cônjuge devedor nesses bens comuns ou, na hipótese de se tratar de uma dívida contraída em favor do casal, poderão expropriar a integralidade dos bens comuns, porque o novo regime de bens não lhes é oponível. O Superior Tribunal de Justiça é pacífico nesse sentido, cabendo transcrever, apenas a título de ilustração: "CIVIL. AGRAVO INTERNO NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. UNIÃO ESTÁVEL. REGIME DE BENS. CONTRATO COM EFEITOS EX NUNC. DECISÃO MANTIDA. 1. Conforme entendimento desta Corte, a eleição do regime de bens da união estável por contrato escrito é dotada de efetividade ex nunc, sendo inválidas cláusulas que estabeleçam a retroatividade dos efeitos patrimoniais do pacto. Precedentes. 2. Agravo interno a que se nega provimento" (STJ, Ag. Int. no AREsp n. 1.631.112/MT, Relator Ministro Antonio Carlos Ferreira, Quarta Turma, julgado em 26/10/2021, DJe de 14/2/2022). Em qualquer hipótese, o contrato de convivência de alteração de regime de bens terá eficácia, ao menos, entre os companheiros (eficácia inter partes) e - por força da boa-fé objetiva - contra terceiros que tenham efetiva ciência dessa alteração. Em se tratando de uma união estável não registrada no RCPN, esse é o cenário jurídico aplicável. Em resumo, os companheiros podem mudar o regime de bens por meio de mero contrato escrito, cuja oponibilidade será inter partes e contra terceiros que tenham efetiva ciência. Advirta-se que, para ter eficácia contra terceiros que não tenham efetiva ciência - de modo a alcançar uma eficácia erga omnes -, haveria necessidade de a união estável estar registrada. Quanto à alteração do regime de bens no curso de união estável registrada no RCPN, essa modificação precisa ser averbada no assento de união estável para produzir eficácia erga omnes. Sem essa averbação, a alteração só terá eficácia inter partes e contra terceiros com efetiva ciência. Nesse ponto, os arts. 9º-A e 9º-B do Provimento n. 37 do CNJ procuraram facilitar o procedimento de alteração de regime de bens, conciliando, de um lado, a necessidade de facilitar o ato para os companheiros e, de outro, a imperiosidade de proteger interesses de terceiros potencialmente prejudicados. Assim, para a averbação da alteração do regime de bens, as normas em questão não exigiram a elaboração de nenhum título específico, bastando a apresentação de requerimento pelos próprios companheiros perante o RCPN, tudo acompanhado de certidões destinadas à proteção de terceiros e à verificação da capacidade dos companheiros. É verdade que, para registrar a existência da união estável, é obrigatória a observância de determinadas formalidades destinadas a assegurar um alto grau de confiabilidade da informação. Por isso, o art. 94-A da LRP e o art. 1º, § 3º, do Provimento n. 37 do CNJ só admitem, como registráveis, o que denominamos como títulos qualificados. São eles a escritura pública, o termo declaratório perante o RCPN e a decisão judicial, visto que são os títulos que ostentam elevada confiabilidade, por conta de a sua confecção envolver a intervenção de um agente público com fé pública. Portanto, um contrato de convivência por instrumento particular não é apto a ingressar na tábua registral. Entretanto, para alterar o regime de bens no registro público, os arts. 9º-A e 9º-B do Provimento n. 37 do CNJ satisfizeram-se com um requerimento pessoal dos companheiros perante o RCPN, com as devidas certidões. Alerte-se que o requerimento tem de ser apresentado pessoalmente pelos companheiros ao RCPN, admitida a representação destes por procurador munido de procuração por instrumento público. O motivo desse formalismo é evitar alterações fraudulentas de bens, sendo essencial que a vontade de ambos os companheiros seja explícita perante o RCPN no sentido da modificação do regime de bens aplicável à sua convivência. Do ponto de vista prático, esse requerimento assemelha-se ao termo declaratório em um aspecto, uma vez que ambos envolvem o atesto do registrador acerca da manifestação de vontade dos companheiros, o que representa uma forte segurança jurídica ao usuário. Todavia, do ponto de vista formal, as figuras não se confundem, sendo certo que uma consequência prática diz respeito aos emolumentos. De um lado, o termo declaratório, por si só, atrai a cobrança de emolumentos (art. 1º-A, § 6º, inc. I, do Provimento n. 37 do CNJ).1 O posterior registro desse título constitui um ato diferente, a atrair emolumentos próprios. De outro lado, o requerimento de alteração de regime de bens, por si só, não atrai a cobrança de emolumentos.2 Na verdade, o usuário pagará emolumentos pelo procedimento extrajudicial de alteração de regime de bens como um todo, o que abrangerá todos os atos envolvidos, entre os quais está o requerimento de alteração de regime de bens. Como se percebe, a solução é mais módica financeiramente ao usuário, trazendo a desejada redução de custos. Nada impede, porém, que o usuário lavre uma escritura pública perante o Tabelião de Notas, ou um termo declaratório perante o RCPN para alterar o regime de bens. Esse título de alteração, todavia, não será apto para, por si só, averbação no registro de união estável no RCPN, tendo apenas eficácia inter partes. Isso porque o art. 9º-A do Provimento n. 37 do CNJ condiciona a averbação da alteração do regime de bens à declaração expressa dos companheiros perante o RCPN de modo presencial, ou por meio de mandatário com instrumento público, além da apresentação das certidões do art. 9º-B da mesma norma administrativa. O motivo é a cautela que se deve ter com o alto grau de riscos envolvidos na alteração do regime patrimonial, bem como a necessidade de se ter uma inequívoca vontade de ambos os companheiros em dar publicidade erga omnes a essa modificação. Se, porém, a escritura pública ou o termo declaratório expressamente contiver a autorização para que qualquer dos companheiros - ou até mesmo um terceiro - promova a averbação do novo regime de bens no RCPN, há uma situação diversa. Nesse caso, essa autorização representa, na verdade, um mandato por instrumento público, de modo que o mandatário haverá de formular o requerimento de alteração do regime de bens com as devidas certidões, tudo na forma dos arts. 9º-A e 9º-B do Provimento n. 37 do Conselho Nacional de Justiça. Curioso perceber que não basta o mero requerimento de alteração de regime de bens, pois os referidos dispositivos exigem também a apresentação de certidões destinadas a comprovar dois fatos: a) a plena capacidade civil dos companheiros; e b) a existência ou não de credores que poderão ser potencialmente prejudicados com a alteração do regime de bens. De um lado, a certidão de interdições  expedida pelo 1º Ofício do RCPN da residência dos companheiros nos últimos cinco anos serve para comprovar que ambos os companheiros possuem plena capacidade civil. Se qualquer deles tiver sido interditado ou estiver sob curatela, é vedado o procedimento extrajudicial de alteração de regime de bens, somente sendo viável juridicamente a via judicial. O motivo é a imprescindibilidade de haver prova inequívoca da vontade de ambos os companheiros em modificar o regime patrimonial, e em dar publicidade erga omnes a esse novo regime. Basta pensar em um caso concreto de dois companheiros que vivam sob o regime da separação convencional de bens. Suponha-se que um deles esteja com as faculdades mentais comprometidas por questão de saúde e, por esse motivo, venha a ser interditado ou submetido à curatela. Se não fosse a regra em destaque, o outro, com astúcia, poderia tentar pleitear a alteração do regime em favor do regime da comunhão universal de bens, tudo com o objetivo de assenhorear-se de metade do patrimônio do combalido companheiro, o que evidentemente é censurável. As certidões de protesto e de feitos judiciais destinam-se a demonstrar se há ou não credores que poderiam ser potencialmente atingidos com a mudança de regime de bens. Se qualquer das certidões for positiva, o procedimento extrajudicial de alteração de regime de bens só poderá prosseguir se os companheiros vierem a ser assistidos por advogado (art. 9º-A, § 3º, do Provimento n. 37 do CNJ). A razão de ser da norma é que o advogado é o profissional jurídico que haverá de alertar os companheiros acerca dos possíveis riscos da alteração do regime de bens perante esses credores. Assim, com a assinatura do advogado, o requerimento de alteração de regime de bens será exitoso e desaguará na sua averbação, apesar da existência das eventuais certidões positivas referentes à existência de dívidas. Terceiros credores - independentemente de terem sido indicados nas citados certidões - não sofrerão prejuízos, pois a alteração de regime de bens não retroage e nem pode prejudicá-los. Por motivo de cautela, o § 1º do art. 9º-A do Provimento n. 73 do CNJ exige que, na averbação de alteração de regime de bens, seja expressamente lançada essa advertência, independentemente de ter sido ou não identificada a existência de credores.3 Aliás, ainda que o provimento em estudo não tenha sido expresso, entendemos que essa advertência deve ser lançada em todas as vindouras certidões de união estável, a fim de que terceiros com créditos antigos estejam cientes de sua imunidade diante da alteração do regime de bens. Cabe, ainda, realçar que, além das certidões, o requerimento de alteração do regime de bens precisa estar acompanhado de um posicionamento expresso acerca de eventual partilha de bens (art. 9º-B, inc. V, do Provimento n. 37 do CNJ).4 Se, por exemplo, o casal quer mudar do regime da comunhão universal de bens para o da separação convencional, é forçoso que eles acenem para o modo e o momento em que serão partilhados os bens comuns. Advirta-se, contudo, que não há obrigatoriedade de partilha nesse momento, podendo ela ser deixada para a futura dissolução da união estável, fato que deverá ser noticiado no requerimento de alteração da união estável. Caso, porém, os companheiros decidam partilhar os bens, será obrigatória a participação de advogado.5 Surgem, então, as seguintes dúvidas: essa partilha de bens poderá ser formalizada no próprio requerimento de alteração do regime de bens ou em um instrumento particular anexo? Ou terá ela de ser formalizada por meio de escritura pública ou de termo declaratório por aplicação analógica do que se dá com a partilha de bens quando da dissolução da união estável à luz do art. 1º, § 6º, do Provimento n. 37 do CNJ?6 Por uma interpretação literal, a resposta seria positiva apenas para a primeira pergunta. Isso porque os textos expressos do art. 9º-A, § 3º, e do art. 9º-B, inc. V, do Provimento n. 37 do CNJ referem-se à proposta de partilha de bens como parte integrante ou como um documento anexado ao requerimento de união estável.7 Não endossamos, porém, essa interpretação literal, e preferimos uma interpretação sistemática e teleológica. Entendemos que a partilha de bens em razão da mudança de regime de bens é ato jurídico que depende das mesmas formalidades exigidas para a partilha decorrente da dissolução da união estável, porque ubi eadem ratio ibi eadem jus, ou seja, onde há a mesma razão, há a mesma regra. Além disso, o ato de partilha de bens envolve situações jurídicas complexas, como os cuidados em aferir se são ou não devidos impostos de transmissão no caso de partilha desigual, bem como os deveres de comunicação de eventuais transmissões imobiliárias por meio da emissão da DOI (Declaração de Operação Imobiliária). Ademais, há a necessidade de existir um título específico com a partilha de bens, a fim de viabilizar a formalização das transferências de propriedade no Cartório de Registros Imóveis, nos órgãos de trânsito ou em outras instâncias. Como se vê, a partilha de bens não pode ser resumida a um mero "anexo" de um requerimento de alteração de regime de bens de união estável, sob pena de comprometer a segurança jurídica exigida para um ato de tamanha complexidade. Por essa razão, entendemos que a partilha de bens por ocasião da alteração de regime de bens depende de sua formalização por título qualificado - escritura pública, termo declaratório ou decisão judicial -, e com assistência de advogado. Feitas todas essas observações importantes, no próximo texto trataremos do regime de bens no momento da conversão extrajudicial da união estável em casamento, também conforme a Lei do SERP e as modificações introduzidas no Provimento n. 37 do Conselho Nacional de Justiça por nova norma administrativa deste ano de 2023. __________ 1 "Art. 1º-A (...) § 6º Enquanto não for editada legislação específica no âmbito dos Estados e do Distrito Federal, o valor dos emolumentos para: (incluído pelo Provimento n. 141, de 16.3.2023). I - os termos declaratórios de reconhecimento ou de dissolução da união estável será de 50% (cinquenta por cento) do valor previsto para o procedimento de habilitação de casamento e, no caso de envolver partilha de bens, o termo declaratório de dissolução da união estável corresponderá ao valor dos emolumentos previstos para a escritura pública do mesmo ato jurídico; (incluído pelo Provimento n. 141, de 16.3.2023)". 2 "Art. 9º-A (...) § 7º Enquanto não for editada legislação específica no âmbito dos Estados e do Distrito Federal, o valor dos emolumentos para o processamento do requerimento de alteração de regime de bens no registro da união estável corresponderá ao valor previsto para o procedimento de habilitação de casamento. (incluído pelo Provimento CN n. 141, de 16.3.2023)". 3 "Art. 9º-A (...) § 1º O oficial averbará a alteração do regime de bens à vista do requerimento de que trata o caput deste artigo, consignando expressamente o seguinte: 'a alteração do regime de bens não prejudicará terceiros de boa-fé, inclusive os credores dos companheiros cujos créditos já existiam antes da alteração do regime'. (incluído pelo Provimento CN n. 141, de 16.3.2023)". 4 Art. 9º-B. Para instrução do procedimento de alteração de regime de bens previsto no art. 9º-A, o oficial exigirá a apresentação dos seguintes documentos: (incluído pelo Provimento CN n. 141, de 16.3.2023). (...). V - conforme o caso, proposta de partilha de bens, ou declaração de que por ora não desejam realizá-la, ou, ainda, declaração de que inexistem bens a partilhar. (incluído pelo Provimento CN n. 141, de 16.3.2023)". 5 "Art. 9º-A, § 3º: Quando no requerimento de alteração de regime de bens houver proposta de partilha de bens e/ou quando as certidões mencionadas nos incisos I a III do art. 9º-B deste Provimento forem positivas, os companheiros deverão estar assistidos por advogado ou defensor público, assinando com este o pedido. (incluído pelo Provimento CN n. 141, de 16.3.2023)". 6 "Art. 1º-A, § 6º: Enquanto não for editada legislação específica no âmbito dos Estados e do Distrito Federal, o valor dos emolumentos para: (incluído pelo Provimento n. 141, de 16.3.2023). I - os termos declaratórios de reconhecimento ou de dissolução da união estável será de 50% (cinquenta por cento) do valor previsto para o procedimento de habilitação de casamento e, no caso de envolver partilha de bens, o termo declaratório de dissolução da união estável corresponderá ao valor dos emolumentos previstos para a escritura pública do mesmo ato jurídico; (incluído pelo Provimento n. 141, de 16.3.2023)". 7 "Art. 9º-A, § 3º: § 3º Quando no requerimento de alteração de regime de bens houver proposta de partilha de bens e/ou quando as certidões mencionadas nos incisos I a III do art. 9º-B deste Provimento forem positivas, os companheiros deverão estar assistidos por advogado ou defensor público, assinando com este o pedido. (incluído pelo Provimento CN n. 141, de 16.3.2023)". "Art. 9º-B. Para instrução do procedimento de alteração de regime de bens previsto no art. 9º-A, o oficial exigira' a apresentação dos seguintes documentos: (incluído pelo Provimento CN n. 141, de 16.3.2023). (...) V - conforme o caso, proposta de partilha de bens, ou declaração de que por ora não desejam realizá-la, ou, ainda, declaração de que inexistem bens a partilhar.  (incluído pelo Provimento CN n. 141, de 16.3.2023)".
O Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro editou, em 19 de dezembro de 2022, um novo Código de Normas, relativo à atuação extrajudicial, com vigência a partir de 1º de janeiro deste ano de 2023 (Provimento CGJ n. 87/2022). A nova normatização, dirigida sobretudo aos Cartórios, traz vários dispositivos polêmicos. Entre eles, pretendo aqui analisar o seu art. 390, que trata da escritura pública de formalização da união estável. O tema foi abordado em Nota Técnica elaborada pelo Instituto Brasileiro de Direito Contratual (IBDCONT), de 31 de janeiro de 2023, assinada por mim e pelos Diretores Professores Doutores Marília Pedroso Xavier e Maurício Bunazar, após a consulta de seus fundadores, associados e diretorias estaduais, que se manifestaram, por maioria, contrários a essa normatização. O comando está tratado no capítulo intitulado "Da união estável", em que se regulamenta, nos termos do art. 386 do Código de Normas, "a formalização da união estável por meio de escritura pública", que deve pressupor "a convivência pública, contínua e duradoura dos estipulantes, estabelecida com o objetivo de constituição de família, fato que deve necessariamente ser declarado no ato", consoante enuncia o art. 1.723 do Código Civil. Conforme o art. 390, caput, do Código de Normas, poderão constar nas escrituras públicas de união estável, a serem lavradas pelos Cartórios do Estado do Rio de Janeiro, por meio de seus agentes delegados, cláusulas dispondo sobre regime de bens, sendo que seus parágrafos estabelecem o seguinte: "§ 1º Caso as partes optem pelo regime da separação absoluta de bens e estabeleçam retroagir os seus efeitos à data de início da relação, o tabelião deve adverti-las quanto à possível anulabilidade da cláusula, o que deverá constar expressamente do ato. § 2º Caso as partes não optem expressamente por regime de bens específico, deverá o tabelião adverti-las que prevalecerá o regime da comunhão parcial de bens, orientando-as quanto a seus efeitos jurídicos. § 3º A cláusula de renúncia ao direito concorrencial (art. 1.829, I, do CC) poderá constar do ato a pedido das partes, desde que advertidas quanto à sua controvertida eficácia". Quanto ao § 2º da norma, não há qualquer problema técnico, pois trata-se de mera aplicação do conteúdo do art. 1.725 do Código Civil, segundo o qual "na união estável, salvo contrato escrito entre os companheiros, aplica-se às relações patrimoniais, no que couber, o regime da comunhão parcial de bens". Em complemento, concretiza-se apenas o dever de informação do Tabelião, caso não exista a opção por outro regime de bens, em consonância com a boa-fé objetiva. Porém, naquela nota conjunta, pontuamos os sérios problemas técnicos nos §§ 1º e 3º desse art. 390 do Provimento CGJ n. 87/2022, o que aqui pretendo retomar, com argumentos complementares. Como primeiro problema, pensamos haver inconstitucionalidade nesses tratamentos, por algumas razões jurídicas que merecem ser destacadas. Primeiro, porque o art. 22, inciso I, da Constituição Federal atribui privativamente à União o poder de legislar sobre Direito Civil. E, no caso, como será devidamente aprofundado neste breve texto, parece-nos que a Corregedoria do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro acabou por extrapolar as suas atribuições. Segundo, pelo fato de o art. 236 do mesmo Texto Maior prever que lei federal regulará a atividade dos notários e a sua fiscalização pelo Poder Judiciário, o que acabou sendo feito por mero provimento estadual. Terceiro, pois a lei 8.935/1994, que regulamenta o último dispositivo constitucional e as atividades dos notários, não consagra qualquer hipótese em que o Poder Judiciário poderá inovar na ordem jurídica, mas tão somente que poderá ele fiscalizar os atos notariais. Como quarto argumento, observamos que a Constituição Estadual e a Lei de Organização Judiciária do Estado do Rio de Janeiro (lei 6.956/2015) não permitem, igualmente, que o Poder Judiciário faça essa inovação, o que acabou ocorrendo pelo conteúdo dos dois preceitos. Os §§ 1º e 3º do art. 390 do novo Código de Normas da Corregedoria Geral da Justiça do Estado do Rio de Janeiro inovam substancialmente a ordem jurídica vigente quando, respectivamente, versam sobre a eficácia típica de negócio jurídico, no caso da escritura de reconhecimento da união estável, e sobre a possibilidade de renúncia de direitos sucessórios, pretendendo revogar parcialmente o art. 426 do Código Civil em vigor. Tudo isso traz no conteúdo dos comandos, com o devido respeito, evidente violação à competência exclusiva da União para legislar sobre as matérias que neles constam, tornando-se claramente inconstitucionais. Entre os julgados que não admitem tal tratamento por lei estadual destacamos, na nota técnica do IBDCONT, o seguinte: STF, ADI 4.414, relator Ministro Luiz Fux, Tribunal Pleno, julgado em 31/05/2012. Sem prejuízo da sua inconstitucionalidade, sobre o mérito da primeira norma, de início, há que se reconhecer a impossibilidade de a escritura pública de união estável estabelecer retroativamente o regime da separação absoluta e convencional de bens. Apesar de certo debate verificado na doutrina civilista, o Superior Tribunal de Justiça já analisou a temática, concluindo pela nulidade da cláusula que assim o preveja. Como primeiro precedente que surgiu sobre a questão, destaque-se: "no curso do período de convivência, não é lícito aos conviventes atribuírem por contrato efeitos retroativos à união estável elegendo o regime de bens para a sociedade de fato, pois, assim, se estar-se-ia conferindo mais benefícios à união estável que ao casamento" (STJ, REsp 1.383.624/MG, relator Ministro Moura Ribeiro, Terceira Turma, julgado em 02/06/2015, DJe de 12/06/2015). Outros arestos repetem a conclusão, merecendo colação os seguintes: "CIVIL. AGRAVO INTERNO NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. UNIÃO ESTÁVEL. REGIME DE BENS. CONTRATO COM EFEITOS EX NUNC. DECISÃO MANTIDA. 1. Conforme entendimento desta Corte, a eleição do regime de bens da união estável por contrato escrito é dotada de efetividade ex nunc, sendo inválidas cláusulas que estabeleçam a retroatividade dos efeitos patrimoniais do pacto. Precedentes. 2. Agravo interno a que se nega provimento" (STJ, Ag. Int. no AREsp 1.631.112/MT, relator Ministro Antonio Carlos Ferreira, Quarta Turma, julgado em 26/10/2021, DJe de 14/02/2022). "Em razão da interpretação do art. 1.725 do CC/2002, decorre a conclusão de que na~o e´ possi´vel a celebrac¸a~o de escritura pu´blica modificativa do regime de bens da unia~o esta´vel com efica´cia retroativa, especialmente porque a ause^ncia de contrato escrito convivencial na~o pode ser equiparada a` ause^ncia de regime de bens na unia~o esta´vel na~o formalizada, inexistindo lacuna normativa suscetível de ulterior declarac¸a~o com efica´cia retroativa. (...) Em suma, a`s unio~es esta´veis na~o contratualizadas ou contratualizadas sem dispor sobre o regime de bens, aplica-se o regime legal da comunha~o parcial de bens do art. 1.725 do CC/2002, na~o se admitindo que uma escritura pu´blica de reconhecimento de unia~o esta´vel e declarac¸a~o de incomunicabilidade de patrimo^nio seja considerada mera declarac¸a~o de fato pre´-existente, a saber, que a incomunicabilidade era algo existente desde o princi´pio da unia~o esta´vel, porque se trata, em verdade, de inadmissi´vel alterac¸a~o de regime de bens com efica´cia ex tunc" (REsp 1.845.416/MS, relator Ministro Marco Aurélio Bellizze, relatora para acórdão Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em 17/08/2021, DJe de 24/08/2021). "PROCESSUAL CIVIL. AGRAVO INTERNO NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. AÇÃO ANULATÓRIA. EMBARGOS DE DECLARAÇÃO. OMISSÃO, CONTRADIÇÃO OU OBSCURIDADE. NÃO OCORRÊNCIA. VIOLAÇÃO DO ART. 489 DO CPC. INOCORRÊNCIA. REEXAME DE FATOS E PROVAS. INADMISSIBILIDADE. ESCRITURA PÚBLICA DE UNIÃO ESTÁVEL ELEGENDO O REGIME DE SEPARAÇÃO DE BENS. RETROATIVIDADE. IMPOSSIBILIDADE. SÚMULA 568/STJ. DISSÍDIO JURISPRUDENCIAL. COTEJO ANALÍTICO E SIMILITUDE FÁTICA. AUSÊNCIA. (...). Não é possível a atribuição de eficácia retroativa a regime de bens da união estável pactuado mediante escritura pública. Precedentes" (STJ, Ag. Int. no AREsp 1.292.908/RS, relatora Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em 25/03/2019, DJe de 27/03/2019). "RECURSO ESPECIAL. CIVIL E PROCESSUAL CIVIL. DIREITO DE FAMÍLIA. ESCRITURA PÚBLICA DE RECONHECIMENTO DE UNIÃO ESTÁVEL. REGIME DA SEPARAÇÃO DE BENS. ATRIBUIÇÃO DE EFICÁCIA RETROATIVA. NÃO CABIMENTO. PRECEDENTES DA TERCEIRA TURMA. 1. Ação de declaração e de dissolução de união estável, cumulada com partilha de bens, tendo o casal convivido por doze anos e gerado dois filhos. 2. No momento do rompimento da relação, em setembro de 2007, as partes celebraram, mediante escritura pública, um pacto de reconhecimento de união estável, elegendo retroativamente o regime da separação total de bens. 3. Controvérsia em torno da validade da cláusula referente à eficácia retroativa do regime de bens. 4. Consoante a disposição do art. 1.725 do Código Civil, 'na união estável, salvo contrato escrito entre os companheiros, aplica-se às relações patrimoniais, no que couber, o regime da comunhão parcial de bens'. 5. Invalidade da cláusula que atribui eficácia retroativa ao regime de bens pactuado em escritura pública de reconhecimento de união estável. 6. Prevalência do regime legal (comunhão parcial) no período anterior à lavratura da escritura. 7. Precedentes da Terceira Turma do STJ. 8. Voto divergente quanto à fundamentação. 9. RECURSO ESPECIAL DESPROVIDO" (STJ, REsp 1.597.675/SP, relator Ministro Paulo de Tarso Sanseverino, Terceira Turma, julgado em 25/10/2016, DJe de 16/11/2016). Destaco que a minha posição doutrinária é no sentido de que até poderia ser possível dar um caráter retroativo ao contrato de convivência, tendo ele eficácia restritiva, na linha do defendido por Rolf Madaleno; e desde que não prejudique o companheiro. Porém, o prejuízo é claro e evidente nos casos em que se convenciona, de forma retroativa, o regime da separação convencional e absoluta de bens, o que não se pode admitir, ao contrário do que a norma em estudo acabou por prever. Seja como for, a posição consolidada pelo Superior Tribunal de Justiça é pela nulidade absoluta dessa convenção com eficácia ex tunc, por infringência a norma de ordem pública, pois a união estável não pode trazer mais benefícios do que o casamento. Ora, como no casamento o regime de bens entre os cônjuges começa a vigorar desde a data do casamento - conforme o § 1º do art. 1.639 do Código Civil -, e a sua modificação somente é permitida mediante autorização judicial requerida por ambos os cônjuges, apurada a procedência das razões invocadas e ressalvado o direito de terceiros (§ 3º do art. 1.639 do CC/2002), não vejo como o contrato de convivência poderia reconhecer uma situação em que o legislador, para o casamento, prevê a intervenção do Poder Judiciário. Não se pode falar, assim, como está no § 1º do art. 390 do Provimento CGJ n. 87/2022, em mera nulidade relativa ou anulabilidade da escritura, mas em sua nulidade absoluta, frise-se. A propósito, como destacamos em nossa nota conjunta, assinada com os Professores Marília Pedroso Xavier e Maurício Bunazar, conforme preconiza a Constituição da República (art. 105), o Superior Tribunal de Justiça é a Corte responsável por uniformizar a interpretação da lei federal em todo o Brasil. E na última década esse Tribunal Superior, com base no antes transcrito art. 1.725 do Código Civil e nas linhas dos acórdãos destacados, tem entendido pela impossibilidade de se dar a citada eficácia retroativa aos pactos de união estável, sobretudo se a opção for pela separação convencional e absoluta de bens. Essa posição deve ser respeitada, não podendo ser afastada por norma estadual. Assim, reafirmo a nossa posição - e também do IBDCONT -, no sentido de que o § 1º do art. 390 do novo Código de Normas da Corregedoria Geral da Justiça do Estado do Rio de Janeiro contraria expressamente lei federal e, dessa forma, deve ser considerado ilegal. A afirmação vale igualmente para o § 3º do mesmo preceito, segundo o qual a cláusula de renúncia ao direito concorrencial, previsto no art. 1.829, inc. I, do Código Civil, poderá constar do ato a pedido das partes, desde que advertidas quanto à sua "controvertida eficácia". Não se pode negar que um dos temas mais controversos da atualidade diz respeito à possibilidade jurídica ou não de estipulação de pactos sucessórios (pacta corvina). Parcela da doutrina - caso de Rolf Madaleno e Mário Luiz Delgado - tem sustentado que não haveria afronta à regra do art. 426 do Código Civil em havendo renúncia prévia ou repúdio à herança, a incluir a concorrência sucessória, segundo eles. Como se sabe, esse comando estabelece que não pode ser objeto de contrato a herança de pessoa viva. Todavia, a consequência da sua violação é a nulidade absoluta virtual ou implícita, pois a lei proíbe a prática do ato, sem cominar sanção (art. 166, inc. VI, segunda parte, do Código Civil). Apesar desses esforços doutrinários, portanto, não se pode falar, assim, em "controvertida eficácia" da cláusula de renúncia ao direito de herança ou à concorrência sucessória, mas em sua nulidade absoluta, por afronta a normas cogentes ou de ordem pública, que não podem ser afastadas por convenção entre as partes, isto é, pelo exercício da autonomia privada. Embora louváveis, esses estudos doutrinários ainda são minoritários e não foram efetivamente acolhidos pela jurisprudência brasileira. Muito ao contrário, são encontrados julgados que afirmam a nulidade de cláusulas de renúncia à herança e à concorrência sucessória, seja no casamento ou na união estável. Nesse sentido, do Superior Tribunal de Justiça: "RECURSO ESPECIAL - SUCESSÃO - CÔNJUGE SUPÉRSTITE -CONCORRÊNCIA COM ASCENDENTE, INDEPENDENTE O REGIME DE BENS ADOTADO NO CASAMENTO - PACTO ANTENUPCIAL - EXCLUSÃO DO SOBREVIVENTE NA SUCESSÃO DO DE CUJUS - NULIDADE DA CLÁUSULA - RECURSO IMPROVIDO. 1 - O Código Civil de 2002 trouxe importante inovação, erigindo o cônjuge como concorrente dos descendentes e dos ascendentes na sucessão legítima. Com isso, passou-se a privilegiar as pessoas que, apesar de não terem qualquer grau de parentesco, são o eixo central da família. 2 - Em nenhum momento o legislador condicionou a concorrência entre ascendentes e cônjuge supérstite ao regime de bens adotado no casamento. 3 - Com a dissolução da sociedade conjugal operada pela morte de um dos cônjuges, o sobrevivente terá direito, além do seu quinhão na herança do de cujus, conforme o caso, à sua meação, agora sim regulado pelo regime de bens adotado no casamento. 4 - O artigo 1.655 do Código Civil impõe a nulidade da convenção ou cláusula do pacto antenupcial que contravenha disposição absoluta de lei. 5 - Recurso improvido" (STJ, REsp 954.567/PE, relator Ministro Massami Uyeda, Terceira Turma, julgado em 10/05/2011, DJe de 18/05/2011). A conclusão tem sido a mesma no próprio Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, merecendo colação: "AGRAVO DE INSTRUMENTO. AÇÃO DE INVENTÁRIO. DECISÃO QUE REJEITOU A ALEGAÇÃO DA FILHA DO DE CUJUS NO SENTIDO DE QUE À UNIÃO ESTÁVEL MANTIDA ENTRE SEU FINADO PAI E A INVENTARIANTE SE APLICARIA O REGIME DA SEPARAÇÃO TOTAL DE BENS. Pretensão da agravante de afastamento da qualidade de herdeira e meeira da ex-convivente. Escritura pública acostada aos autos que não disciplina o regime de bens incidente na união estável. Aplicação do regime legal da comunhão parcial de bens, consoante determina o art. 1.725 do Código Civil. Inviabilidade de se presumir a eleição de separação total com base nos trechos dos documentos indicados pela recorrente. Renúncia à herança no instrumento que formalizou a união estável. Descabimento. Precedente jurisprudencial do e. STJ sobre a impossibilidade de renúncia de direitos hereditários antes de efetivada a condição de herdeiro. Aplicação do tema 809 do STF, segundo o qual 'é inconstitucional a distinção de regimes sucessórios entre cônjuges e companheiros prevista no art. 1.790 do CC/2002, devendo ser aplicado, tanto nas hipóteses de casamento quanto nas de união estável, o regime do art. 1.829 do CC/2002'. Ressalte-se, neste tocante, que a norma que estabelece que cônjuge é herdeiro necessário também é cogente, não comportando, portanto, a mencionada renúncia. Manutenção da decisão agravada. Recurso desprovido" (TJRJ, Agravo de Instrumento n. 0008848-39.2021.8.19.0000, Rio de Janeiro, Vigésima Primeira Câmara Cível, relatora Desembargadora Mônica Feldman de Mattos, DORJ de 25/03/2022, p. 712). Não se pode negar que a contemporaneidade tem exigido maior espaço para o exercício da autonomia privada - inclusive para que as pessoas possam planejar a sua sucessão -, de modo que uma mitigação para a regra relativa às vedações dos pactos sucessórios poderia vir em boa hora. No entanto, para que haja a efetiva validade nessa mitigação, é necessária a alteração do art. 426 da codificação privada no âmbito do Congresso Nacional. Somente assim haverá efetiva segurança jurídica para aqueles que optem por tais instrumentos, evitando futuros reconhecimentos judiciais de invalidade, por nulidade absoluta. Nunca é demais lembrar que a renúncia à herança somente pode ser efetivada após o falecimento daquele a quem a herança se refira, devendo seguir os rígidos requisitos impostos pela lei, previstos a partir do art. 1.806 da codificação privada. Como é notório, não existe herança de pessoa viva. Assim, o § 3º do art. 390 do novo Código de Normas da Corregedoria Geral da Justiça do Estado do Rio de Janeiro contraria mais uma vez e expressamente lei federal, sendo, dessa forma, ilegal. Reforçamos a contrariedade a normas cogentes ou de ordem pública, que não se pode admitir, sob pena de afastamento da certeza e da segurança esperada dos atos notariais. Por todo o desenvolvido neste breve texto, e como está naquela Nota Técnica do IBDCONT, os §§ 1º e 3º do art. 390 do novo Código de Normas da Corregedoria Geral da Justiça do Estado do Rio de Janeiro - Parte Extrajudicial padecem de inconstitucionalidade e de graves ilegalidades, sendo recomendável a sua imediata revogação expressa. Tal medida é fundamental para evitar insegurança jurídica e a construção de um Direito Civil "de exceção" no Estado do Rio de Janeiro, que vá na contramão do que tem sido aplicado no restante do território nacional.
quarta-feira, 25 de janeiro de 2023

Contrato de seguro, família e sucessões

Uma das palestras mais impactantes a que assisti no ano de 2022 foi ministrada pela Professora Angélica Carlini no X Congresso de Direito de Família do IBDFAMSP, realizado na cidade de São Paulo na sede da Associação dos Advogados de São Paulo em setembro. Na ocasião, a jurista tratou do tema Planejamento Sucessório e Seguros, abordando questões  que muito interessam à prática familiarista, sucessionista e contratualista. Em sua exposição, a Professora Carlini demonstrou que o contrato de seguro representa um instrumento de imediata obtenção de recursos econômicos, para custear as despesas de familiares e de dependentes do falecido. É também um mecanismo para a imediata obtenção de recursos econômicos que poderão ser utilizados na transferência do patrimônio. Traz, ainda, a possibilidade de prevenção de conflitos na sucessão empresarial e a efetiva alocação de recursos com rapidez, para a conclusão de projetos que o falecido deixou inacabados. Por isso, não se pode negar, trata-se de importante instrumento de planejamento familiar e sucessório. Foram apresentados por ela dois modelos básicos de seguro, o individual, em que há um regime financeiro de capitalização com reserva individualizada e prêmio nivelado; e o coletivo, com regime financeiro de repartição simples sem formação de reserva individualizada, o que é efetivado por meio de um estipulante. Na sequência, a jurista mergulhou nas principais polêmicas relativas ao contrato de seguro, na seara do Direito de Família e das Sucessões, entre as quais: a) as pessoas que podem ser indicadas como beneficiárias do seguro, sobretudo do seguro de vida; b) o fato de o capital segurado não constituir herança; c) a nova regulamentação da SUSEP sobre doenças preexistentes; d) a cobertura do seguro de vida em caso de suicídio do segurado; e) o seguro para sucessão empresarial e f) o seguro de pessoas no planejamento familiar. Ao final, após uma bela exposição, foi aplaudida de pé por todo o público presente. Pois bem, prestando uma homenagem à excelência do trabalho da Professora Angélica Carlini - não só como palestrante, mas também como doutrinadora e como uma das grandes líderes do Direito Contratual Brasileiro -, gostaria aqui de trazer alguns temas de debate, que envolvem o seguro de pessoas, o Direito de Família e das Sucessões. Como está previsto no art. 789 do Código Civil, nessa modalidade securitária, o capital segurado é livremente estipulado pelo proponente, que pode contratar mais de um seguro sobre o mesmo interesse, com o mesmo ou diversos seguradores. Pelo teor desse comando, portanto, é possível a celebração de vários seguros de vida, seu principal exemplo, sem qualquer limite quanto ao valor da indenização ou capital segurado, até porque não há como mensurar o preço da vida de uma pessoa natural. Há, na essência, uma estipulação em favor de terceiro, que no caso é o beneficiário e que, mesmo não sendo parte do negócio, pode exigir o seu cumprimento (arts. 436 a 438 do Código Civil). Os efeitos existentes são de dentro do contrato para fora, isto é, efeitos exógenos, o que constitui exceção ao princípio da relatividade dos efeitos contratuais, consubstanciado na máxima res inter alios. Bem aplicando o teor desse art. 789 da codificação privada, julgou o Superior Tribunal de Justiça, explicando a estrutura e a natureza do negócio em questão: "No contrato de seguro de vida há uma espécie de estipulação em favor de terceiro, visto que a nomeação do beneficiário é, a princípio, livre, podendo o segurado promover a substituição a qualquer tempo, mesmo em ato de última vontade, até a ocorrência do sinistro, a menos que tenha renunciado a tal faculdade ou a indicação esteja atrelada à garantia de alguma obrigação (art. 791 do CC/02). O beneficiário a título gratuito de seguro de vida detém mera expectativa de direito de receber o capital segurado. Somente com a ocorrência do evento morte do segurado é que passará a obter o direito adquirido à indenização securitária. Até a efetivação desse resultado, o tomador do seguro poderá modificar o rol de agraciados" (STJ, REsp 1.510.302/CE, 3.ª Turma, Rel. Min. Ricardo Villas Boas Cueva, DJe 18/12/17). Com impacto direto para o Direito de Família e das Sucessões, estabelece o art. 792 do Código Civil que na falta de indicação da pessoa ou beneficiário, ou se por qualquer motivo não prevalecer a que for feita, o capital segurado será pago por metade ao cônjuge não separado judicialmente, e o restante aos herdeiros do segurado, obedecida a ordem da vocação hereditária. Em complemento, o seu parágrafo único preceitua que, na falta das pessoas indicadas neste artigo, serão beneficiários os que provarem que a morte do segurado os privou dos meios necessários à subsistência. Assim, como regra geral, no seguro de pessoas, prevalece a indicação feita pelo segurado quanto ao terceiro beneficiário pelo seguro, presente a tão citada estipulação em favor de terceiro, que amplia os efeitos do contrato, para além das partes contratantes. Como exceção, na falta de indicação da pessoa ou beneficiário, ou se por qualquer motivo não prevalecer a indicação que for feita - como se dá nos casos de nulidade absoluta ou de ineficácia da previsão contratual de estipulação -, o capital segurado será pago pela metade ao cônjuge não separado judicialmente, e o restante aos herdeiros do segurado, obedecida a ordem da vocação hereditária. Somente se não preenchidos esses requisitos é que o parágrafo único do preceito estudado terá aplicação. Sendo a norma especial para o contrato de seguro, deve ser respeitada para os devidos fins contratuais, não se aplicando a ordem de sucessão legítima, retirada do art. 1.829 do Código Civil. Como bem pontuado pela Professora Angélica Carlini em sua palestra, o capital segurado não constitui herança (art. 794 do CC) e, sendo assim, não entra no inventário. As questões a ele referentes devem ser resolvidas administrativamente perante a segurada e, se for o caso, em ação judicial que corre na Vara Cível, e não na Vara de Família ou das Sucessões. No que diz respeito à menção ao separado judicialmente no art. 792 da codificação privada, entendo que deve ser lida com ressalvas, pois estou filiado à corrente segundo a qual a Emenda do Divórcio (EC 66/10) retirou do sistema a sua possibilidade, o que reafirmo mesmo diante do fato de o CPC/15 ter tratado do instituto e da existência de julgados que admitem a categoria. Como outro aspecto importante a ser exposto e refletido, mesmo não constando menção à companheira no art. 792 do CC/02, deve ela ser considerada como legitimada a receber a indenização, equiparada ao cônjuge, o que vem sendo seguido por vários julgados (por todos: TJCE, Apelação 0921620-13.2014.8.06.0001, 1.ª Câmara de Direito Privado, Rel. Des. Heráclito Vieira de Sousa Neto, j. 28.02.2018, DJCE 06.03.2018, p. 39; TJRJ, Apelação 0023573-30.2017.8.19.0014, 26.ª Câmara Cível, Campos dos Goytacazes, Rel. Des. Natacha Nascimento Gomes Tostes Gonçalves de Oliveira, DORJ 06.07.2018, p. 639; TJRS, Apelação Cível 0231182-20.2017.8.21.7000, 5.ª Câmara Cível, Erechim, Rel. Des. Jorge André Pereira Gailhard, j. 30.08.2017, DJERS 11.09.2017; TJPR, Apelação Cível 1048734-6, 9.ª Câmara Cível, Curitiba, Rel. Des. Dartagnan Serpa Sá, DJPR 20.09.2013, p. 200; TJRS, Recurso Cível 34713-25.2011.8.21.9000, 2.ª Turma Recursal Cível, Santana do Livramento, Rel. Des. Vivian Cristina Angonese Spengler, j. 27.02.2013, DJERS 05.03.2013; TJSP, Apelação 0004904-09.2011.8.26.0348, Acórdão 6689971, 27.ª Câmara de Direito Privado, Mauá, Rel. Des. Berenice Marcondes César, j. 16.04.2013, DJESP 07.05.2013; TJMS, Apelação Cível 0009457-42.2011.8.12.0008, 1.ª Câmara Cível, Rel. Des. Divoncir Schreiner Maran, DJMS 14.09.2012; e TJMG, Apelação Cível 0868948-58.2008.8.13.0481, 2.ª Câmara Cível, Patrocínio, Rel. Des. Roney Oliveira, j. 25.10.2011, DJEMG 11.11.2011). Em 2015, o Superior Tribunal de Justiça aplicou essa ideia em sentido parcial, determinando a divisão do valor segurado entre a esposa separada de fato e a companheira. Com o devido respeito, discordo dessa solução, pois no caso relatado, estando o segurado separado de fato, o valor deveria ser atribuído à sua companheira, com quem mantinha o efetivo relacionamento familiar. Vejamos trecho da ementa do aresto: "Cinge-se a controvérsia a saber quem deve receber, além dos herdeiros, a indenização securitária advinda de contrato de seguro de vida quando o segurado estiver separado de fato na data do óbito e faltar, na apólice, a indicação de beneficiário: a companheira e/ou o cônjuge supérstite (não separado judicialmente). O art. 792 do CC dispõe de forma lacunosa sobre o assunto, sendo a interpretação da norma mais consentânea com o ordenamento jurídico a sistemática e a teleológica (art. 5º da LINDB), de modo que, no seguro de vida, na falta de indicação da pessoa ou beneficiário, o capital segurado deverá ser pago metade aos herdeiros do segurado, segundo a vocação hereditária, e a outra metade ao cônjuge não separado judicialmente e ao companheiro, desde que comprovada, nessa última hipótese, a união estável. Exegese que privilegia a finalidade e a unidade do sistema, harmonizando os institutos do direito de família com o direito obrigacional, coadunando-se ao que já ocorre na previdência social e na do servidor público e militar para os casos de pensão por morte: rateio igualitário do benefício entre o ex-cônjuge e o companheiro, haja vista a presunção de dependência econômica e a ausência de ordem de preferência entre eles. O segurado, ao contratar o seguro de vida, geralmente possui a intenção de amparar a própria família, os parentes ou as pessoas que lhe são mais afeitas, a fim de não os deixar desprotegidos economicamente quando de seu óbito. Revela-se incoerente com o sistema jurídico nacional o favorecimento do cônjuge separado de fato em detrimento do companheiro do segurado para fins de recebimento da indenização securitária na falta de indicação de beneficiário na apólice de seguro de vida, sobretudo considerando que a união estável é reconhecida constitucionalmente como entidade familiar. Ademais, o reconhecimento da qualidade de companheiro pressupõe a inexistência de cônjuge ou o término da sociedade conjugal (arts. 1.723 a 1.727 do CC). Realmente, a separação de fato se dá na hipótese de rompimento do laço de afetividade do casal, ou seja, ocorre quando esgotado o conteúdo material do casamento. 6. O intérprete não deve se apegar simplesmente à letra da lei, mas perseguir o espírito da norma a partir de outras, inserindo-a no sistema como um todo, extraindo, assim, o seu sentido mais harmônico e coerente com o ordenamento jurídico. Além disso, nunca se pode perder de vista a finalidade da lei, ou seja, a razão pela qual foi elaborada e o bem jurídico que visa proteger" (STJ, REsp 1.401.538/RJ, 3.ª Turma, Rel. Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, j. 4/8/15, DJe 12/8/15). Outro assunto abordado pela Professora Angélica Carlini disse respeito ao caso concreto em que o segurado indica como beneficiária sua amante ou concubina, não estando ao menos separado de fato. Ocorrendo o sinistro, o valor deve ser destinado para aquela que consta do contrato ou seguir a ordem estabelecida no art. 792 do Código Civil? A questão é tormentosa. A priori, parece-me que deve prevalecer o que consta do contrato. Todavia, pode-se argumentar que a cláusula não pode prevalecer, por violar a lei e os bons costumes, sendo nula por ilicitude do objeto, combinando-se os arts. 187 e 166, inc. II, do Código Civil. Adotando o último caminho, em um primeiro aresto do Superior Tribunal de Justiça julgou-se o seguinte: "É vedada a designação de concubino como beneficiário de seguro de vida, com a finalidade assentada na necessária proteção do casamento, instituição a ser preservada e que deve ser alçada à condição de prevalência, quando em contraposição com institutos que se desviem da finalidade constitucional. A união estável também é reconhecida constitucionalmente como entidade familiar; o concubinato, paralelo ao casamento e à união estável, enfrenta obstáculos à geração de efeitos dele decorrentes, especialmente porque concebido sobre o leito do impedimento dos concubinos para o casamento. Se o Tribunal de origem confere à parte a qualidade de companheira do falecido, essa questão é fática e posta no acórdão é definitiva para o julgamento do Recurso Especial. Se o capital segurado for revertido para beneficiário licitamente designado no contrato de seguro de vida, sem desrespeito à vedação imposta no art. 1.474 do CC/16, porque instituído em favor da companheira do falecido, o instrumento contratual não merece ter sua validade contestada. Na tentativa de vestir na companheira a roupagem de concubina, fugiram as recorrentes da interpretação que confere o STJ à questão, máxime quando adstrito aos elementos fáticos assim como descritos pelo Tribunal de origem" (STJ, REsp 1.047.538/RS, 3.ª Turma, Rel. Min. Fátima Nancy Andrighi, j. 4/11/08, DJe 10/12/08). Em 2022, o Superior Tribunal de Justiça reafirmou essa posição, deduzindo expressamente que "o seguro de vida não pode ser instituído por pessoa casada em benefício de parceiro em relação concubinária". Vejamos parte da ementa do decisum, que aplica decisão do Supremo Tribunal Federal a respeito da impossibilidade de se reconhecer relacionamentos familiares paralelos:   "Diante da orientação do STF, no mesmo precedente, no sentido de que 'subsistem em nosso ordenamento jurídico constitucional os ideais monogâmicos, para o reconhecimento do casamento e da união estável, sendo, inclusive, previsto como deveres aos cônjuges, com substrato no regime monogâmico, a exigência de fidelidade recíproca durante o pacto nupcial (art. 1.566, I, do Código Civil)', é inválida, à luz do disposto no art. 793 do Código Civil de 2002, a indicação de concubino como beneficiário de seguro de vida instituído por segurado casado e não separado de fato ou judicialmente na época do óbito. Não podendo prevalecer a indicação da primeira beneficiária, deve o capital segurado ser pago ao segundo beneficiário, indicado pelo segurado para a hipótese de impossibilidade de pagamento ao primeiro, em relação ao qual, a despeito de filho da concubina, não incide a restrição do art. 793 do Código Civil" (STJ, REsp 1.391.954/RJ, 4.ª Turma, Rel. Min. Maria Isabel Gallotti, j. 22.03.2022, DJe 27.04.2022). Assim, como há decisão tanto da Terceira quanto da Quarta Turma do Tribunal da Cidadania, parece-me que a questão está consolidada na Corte, podendo até surgir, muito em breve, uma ementa de súmula afastando a possibilidade de se instituir a concubina como beneficiária do seguro de vida. Como última regra a ser comentada neste breve artigo, o art. 793 do Código Civil é claro ao prever que é plenamente válida a instituição do companheiro como beneficiário, se ao tempo do contrato o segurado era separado judicialmente, ou já se encontrava separado de fato. Nesse contexto e na linha dos arestos antes citados, também é válida e eficaz a instituição do companheiro como beneficiário, se ao tempo do contrato o segurado era separado judicialmente, ou já se encontrava separado de fato. O dispositivo, inovação do atual Código Civil frente ao seu antecessor e que tem origem na jurisprudência, está em sintonia com a proteção constitucional da união estável, reconhecida como entidade familiar pela atual codificação (art. 1.723 do Código Civil e art. 226, § 3º, da Constituição Federal). Quanto ao separado de fato, vale lembrar que pode ele constituir união estável, conforme está no art. 1.723, § 1º, da atual codificação privada. Como não poderia ser diferente, a norma se aplica ao companheiro homoafetivo, afirmação que também vale para o dispositivo anterior, diante do reconhecimento da união homoafetiva como entidade familiar pelo STF, de forma equiparada à união estável heteroafetiva (publicado no Informativo n. 625 da Corte). A propósito, fazendo incidir o preceito para segurado casado, mas separado de fato, por todos: "Provas documental e testemunhal que corroboram a alegação da corré, companheira do de cujus, no sentido de que ele com ela vivia maritalmente até sua morte. Inexistência de vícios passíveis de eivar a vontade do falecido. Prevalência da vontade do segurado. Segurado casado à época, mas separado de fato. Aplicação do disposto no artigo 793 do novo Código Civil" (TJSP, Apelação 0087054-92.2009.8.26.0000, Acórdão 7002807, 32.ª Câmara de Direito Privado, São Paulo, Rel. Des. Francisco Occhiuto Junior, j. 05.09.2013, DJESP 12.09.2013). Como se pode perceber, as interações entre o contrato de seguro, o Direito de Família e das Sucessões são intensas e interessantes. Sem prejuízo desses assuntos, existem outras questões que poderiam ser aqui abordadas, e que serão retomadas em outro texto em complemento a este, sempre com citação ao belo trabalho desenvolvido pela Professora Angélica Carlini, uma das grandes autoridades em temas securitários em nosso País.
quarta-feira, 14 de dezembro de 2022

Um resumo de 2022 em Família e Sucessões

Como já se tornou costume em colunas jurídicas de fim de ano, neste meu último texto de 2022 procurarei fazer um resumo do que foi mais importante no período que se encerra, para o Direito de Família e das Sucessões Brasileiro, com o objetivo de fazer balanços e para o planejamento do próximo ano que se inicia. Não se pode negar que 2022 foi um "ano de retomada" de vários projetos jurídicos que foram interrompidos com a pandemia. Destaco, nesse contexto, que voltamos às Jornadas de Direito Civil, tendo sido realizada em maio do último ano a sua nona edição, em Brasília. Na ocasião, foram aprovados seis enunciados doutrinários, analisados na minha coluna de junho último. A comissão de Direito de Família e das Sucessões foi presidida pelo Ministro Mauro Campbell Marques, com o auxílio na coordenação dos juristas Professores Otavio Luiz Rodrigues Jr., Rodrigo Xavier Leonardo e Maria Berenice Dias. A relatoria da comissão coube ao Professor e Magistrado Pablo Stolze Gagliano. Sem dúvidas, essa foi a Jornada de Direito Civil em que prevaleceram teses relativas aos direitos das mulheres, sobretudo em temas de Direito de Família. Além da IX Jornada de Direito Civil, o Conselho da Justiça Federal e o Superior Tribunal de Justiça promoveram a I Jornada de Direito Notarial e Registral, na cidade de Recife, em agosto de 2022. Da mesma forma, foram aprovadas ementas com destaque para o Direito de Família e das Sucessões, sendo pertinente mencionar cinco delas, apenas para ilustrar o seu alcance: "o procedimento de reconhecimento de filiação socioafetiva não deve ser encaminhado para a análise do Judiciário, quando a ausência de consentimento do genitor ocorrer em razão de seu falecimento prévio" (Enunciado n. 6); "o divórcio extrajudicial, por escritura pública, é cabível mesmo quando houver filhos menores, vedadas previsões relativas a guarda e a alimentos aos filhos" (Enunciado n. 74); "podem os cônjuges ou companheiros escolher outro regime de bens além do rol previsto no Código Civil, combinando regras dos regimes existentes - regime misto" (Enunciado n. 80); "podem os cônjuges, por meio de pacto antenupcial, optar pela não incidência da Súmula 377 do STF" (Enunciado n. 81); e "em regra, é válida a doação entre cônjuges que vivem sob o regime de separação obrigatória de bens" (Enunciado n. 82). Como se retira dos enunciados aprovados, a extrajudicialização parece ser um caminho sem volta do Direito de Família e das Sucessões em nosso país. Essas duas Jornadas foram os principais eventos de Direito Privado do ano de 2022, com a aprovação de enunciados doutrinários de grande relevância teórica e prática, inclusive para o Direito de Família e das Sucessões, com a orientação de teses que devem ser muito aplicadas nos próximos anos. Além da volta desses eventos de forma presencial, houve a retomada de congressos de Direito de Família e das Sucessões por todo o País, sobretudo os capitaneados pelo IBDFAM, que sempre congregam grande público. No nosso caso, tivemos a oportunidade de realizar e organizar novamente o X Congresso Paulista de Direito de Família do IBDFAMSP, entre os dias 22 e 26 de setembro de 2022, na sede da Associação dos Advogados de São Paulo. Com o auditório lotado e um total de quinhentos inscritos, voltamos aos intensos debates técnicos presenciais que sempre marcaram esse evento e prestamos uma justa homenagem ao nosso ex-presidente, o grande advogado familiarista Sérgio Marques da Cruz Filho. Tivemos também a aprovação de leis importantes, como foi o caso da lei 14.382/2022, que instituiu o Serviço Eletrônico de Registros Públicos, SERP. Além de instituir o sistema de registro eletrônico, que ainda será regulamentado pelo Conselho Nacional de Justiça, a nova norma trouxe alterações relevantes importantes na Lei de Registros Públicos (lei 6.015/1973), facilitando e desjudicializando a alteração do nome, a conversão da união estável em casamento e o registro da união estável. Também foram efetivadas modificações nos procedimentos do casamento, facilitando-os. Os temas foram analisados em nossas colunas Famílias e Sucessões de julho e agosto. E também na coluna Migalhas Notariais e Registrais, em dois textos do mês de setembro, em coautoria com Carlos Eduardo Elias de Oliveira. Além da Lei do SERP, foram efetivadas modificações na Lei da Alienação Parental (lei 12.318/2012), por meio da lei 14.340/2022, sobretudo nos procedimentos relacionados a ela (arts. 4º e 5º). Além disso, foi retirada a dura sanção da suspensão da autoridade parental, que estava no art. 6º, inc. VII, da Lei da Alienação Parental. Nesse último preceito também foram incluídos dois novos parágrafos. De acordo com o primeiro deles, caracterizada a mudança abusiva de endereço, a inviabilização ou a obstrução à convivência familiar, o juiz que analisa a alienação parental também poderá inverter a obrigação de levar para ou retirar a criança ou adolescente da residência do genitor, por ocasião das alternâncias dos períodos de convivência familiar. Ademais, conforme o segundo parágrafo acrescido, o acompanhamento psicológico ou o biopsicossocial deve ser submetido a avaliações periódicas, com a emissão, pelo menos, de um laudo inicial, que contenha a avaliação do caso e o indicativo da metodologia a ser empregada, e de um laudo final, ao término do acompanhamento. No plano das decisões judiciais, sobretudo nos Tribunais Superiores, destaco o reconhecimento da repercussão geral a respeito da inconstitucionalidade do art. 1.641, inc. II, do Código Civil, no âmbito do Supremo Tribunal Federal, em outubro de 2022. Como é notório, a norma estabelece a imposição do regime da separação obrigatória de bens para a pessoa maior de setenta anos, havendo tese de alegação de sua inconstitucionalidade há muito tempo, no âmbito da doutrina. Isso se deu nos autos do Agravo no Recurso Extraordinário 1.309.642/SP, com a Relatoria do Ministro Luís Roberto Barroso (Tema 1.236). Assim, em breve a Corte deve trazer um veredicto acerca da temática, resolvendo esse antigo debate. Ainda no que diz respeito ao Supremo Tribunal Federal, houve nova pacificação a respeito da possibilidade de penhora do bem de família do fiador da locação imobiliária, prevista no art. 3º, inc. VII, da lei 8.009/1990. Como é notório, surgiram decisões nos últimos anos reconhecendo a inconstitucionalidade da previsão no caso de locação não residencial ou não comercial. Nesse contexto, vejamos ementa da Primeira Turma do Tribunal, tendo sido prolatada por maioria e assim publicada no Informativo n. 906 da Corte Suprema: "Impenhorabilidade do bem de família e contratos de locação comercial. Não é penhorável o bem de família do fiador, no caso de contratos de locação comercial. Com base neste entendimento, a Primeira Turma, por maioria e em conclusão de julgamento, deu provimento a recurso extraordinário em que se discutia a possibilidade de penhora de bem de família do fiador em contexto de locação comercial. Vencidos os Ministros Dias Toffoli (relator) e Roberto Barroso que negaram provimento ao recurso. Ressaltaram que o Supremo Tribunal Federal pacificou o entendimento sobre a constitucionalidade da penhora do bem de família do fiador por débitos decorrentes do contrato de locação. A lógica do precedente é válida também para os contratos de locação comercial, na medida em que - embora não envolva o direito à moradia dos locatários - compreende o seu direito à livre-iniciativa. A possibilidade de penhora do bem de família do fiador - que voluntariamente oferece seu patrimônio como garantia do débito - impulsiona o empreendedorismo, ao viabilizar a celebração de contratos de locação empresarial em termos mais favoráveis. Por outro lado, não há desproporcionalidade na exceção à impenhorabilidade do bem de família (lei 8.009/1990, art. 3.º, VII). O dispositivo legal é razoável ao abrir a exceção à fiança prestada voluntariamente para viabilizar a livre-iniciativa" (STF, RE 605.709/SP, Rel. Min. Dias Toffoli, Red. p/ Ac. Min. Rosa Weber, j. 12.06.2018, Informativo n. 906 do STF). Diante dessa decisão, e de outras, o Pleno do Supremo Tribunal Federal reconheceu a repercussão geral a respeito do assunto, em março de 2021. Isso se deu nos autos do Recurso Extraordinário 1.307.334 (Tema 1.127). Em março de 2022 o STF julgou a questão, reafirmando sua posição anterior - em prol da livre-iniciativa e da proteção do mercado -, no sentido de ser constitucional essa previsão legal a respeito da penhora do bem de família do fiador. Votaram nesse sentido os Ministros Roberto Barroso, Nunes Marques, Dias Toffoli, Gilmar Mendes, André Mendonça e Luiz Fux, seguindo-se ainda o argumento de que a Lei de Locação não faz distinção entre fiadores de locações residenciais e comerciais em relação à possibilidade da penhora do seu bem de família. Em sentido contrário votaram os Ministros Edson Fachin, Ricardo Lewandowski, Rosa Weber e Cármen Lúcia, pois o direito constitucional à moradia deveria prevalecer sobre os princípios da livre-iniciativa e da autonomia contratual, que podem ser resguardados de outras formas. Ao final foi ementada a seguinte tese em repercussão geral, que deve ser adotada para os devidos fins práticos: "é constitucional a penhora de bem de família pertencente a fiador de contrato de locação, seja residencial, seja comercial". Acrescente-se que, na sequência, o Superior Tribunal de Justiça cristalizou a mesma posição em julgamento de recursos repetitivos, ementando que a "tese definida no Tema 1127 foi a de que 'é constitucional a penhora de bem de família pertencente a fiador de contrato de locação, seja residencial, seja comercial'. Nessa perspectiva, a Segunda Seção do STJ, assim como o fez o STF, deve aprimorar os enunciados definidos no REsp Repetitivo 1.363.368/MS e na Súmula 549 para reconhecer a validade da penhora de bem de família pertencente a fiador de contrato de locação comercial. Isso porque a lei não distinguiu entre os contratos de locação para fins de afastamento do bem de família (art. 3º, inciso VII, da lei 8.009/1990)" (STJ, REsp 1.822.040/PR, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, Segunda Seção, por unanimidade, j. 08.06.2022 - Tema 1.091). Essa é, enfim, a posição a ser seguida para os devidos fins práticos. No âmbito do Superior Tribunal de Justiça, em outubro de 2022, como primeira decisão de destaque, a sua Quarta Turma reconheceu a possibilidade jurídica de haver vínculo socioafetivo entre irmãos, utilizando o termo "fraternidade socioafetiva". Nos termos da publicação constante do Informativo n. 453 da Corte, que teve como Relator o Ministro Marco Buzzi, "inexiste qualquer vedação legal ao reconhecimento da fraternidade/irmandade socioafetiva, ainda que post mortem, pois a declaração da existência de relação de parentesco de segundo grau na linha colateral é admissível no ordenamento jurídico pátrio, merecendo a apreciação do Poder Judiciário". O número do processo não foi divulgado por questão de segredo de justiça, e o tema foi analisado na minha coluna de outubro. Também no Superior Tribunal de Justiça, foi editada a sua Súmula n. 655 , prevendo que "aplica-se à união estável contraída por septuagenário o regime da separação obrigatória de bens, comunicando-se os adquiridos na constância, quando comprovado o esforço comum". Na verdade, a questão já estava consolidada na Corte desde 2015, havendo afirmação da tese na premissa 6 da Edição 50 da ferramenta Jurisprudência em Teses do Tribunal da Cidadania. A súmula somente reforça essa posição, que deve ser considerada como consolidada para os devidos fins práticos. Também merece destaque um inédito e raro julgado da Corte sobre o casamento nuncupativo, in articulo mortis ou in extremis, previsto no art. 1.540 do Código Civil, segundo o qual, "quando algum dos contraentes estiver em iminente risco de vida, não obtendo a presença da autoridade à qual incumba presidir o ato, nem a de seu substituto, poderá o casamento ser celebrado na presença de seis testemunhas, que com os nubentes não tenham parentesco em linha reta, ou, na colateral, até segundo grau". O dispositivo seguinte estabelece que, realizado o casamento, devem as testemunhas comparecer perante a autoridade judicial mais próxima, dentro em dez dias, pedindo que lhes tome por termo a declaração de: a) que foram convocadas por parte do enfermo; b) que este parecia em perigo de vida, mas em seu juízo. O aresto se refere justamente a esse prazo decadencial de dez dias, previsto no art. 1.541 da codificação privada, concluindo ser possível flexibilizar a sua exigência, uma vez que a "observância do prazo de 10 dias para que as testemunhas compareçam à autoridade judicial, conquanto diga respeito à formalidade do ato, não trata de sua essência e de sua substância e, consequentemente, não está associado à sua existência, validade ou eficácia, razão pela qual se trata, em tese, de formalidade suscetível de flexibilização, especialmente quando constatada a ausência de má-fé. Hipótese em que as instâncias ordinárias recusaram o registro do casamento somente ao fundamento de inobservância do prazo legal, sem examinar, contudo, os demais elementos estruturais do ato jurídico, bem como deixaram de considerar, especificamente quanto ao prazo, a ausência de má-fé do contraente supérstite, o curto período entre o casamento e o falecimento da nubente, o período de luto do contraente sobrevivente, a dificuldade de cumprimento do prazo pelas testemunhas e o natural desconhecimento da tramitação e formalização dessa rara hipótese de celebração do matrimônio". Por tudo isso, foi provido o recurso especial interposto pela parte, "a fim de, afastado o óbice da inobservância do prazo de 10 dias, determinar seja dado regular prosseguimento ao pedido, perquirindo-se sobre o cumprimento das demais formalidades legais" (STJ, REsp 1.978.121/RJ, Terceira Turma, Rel. Min. Nancy Andrighi, j. 22.03.2022, DJe 25.03.2022). Sem prejuízo de muitas outras decisões importantes para o Direito de Família, para o Direito das Sucessões, destaco a pacificação que se deu no âmbito da Segunda Seção do STJ, a respeito do início do prazo para a ação de petição de herança, no caso de sua cumulação com pedido de investigação de paternidade. Trata-se de interpretação da Súmula n. 149 do STF, segundo a qual é imprescritível a ação de investigação de paternidade, mas não o é a de petição de herança, incidindo no último caso o prazo geral de prescrição (vinte anos no Código Civil de 1916 e dez anos no Código Civil de 2002). Em 24 de novembro de 2022 a Corte confirmou a tese clássica, no sentido de que o prazo de prescrição tem a início a partir da abertura da sucessão: "o prazo prescricional para propor ação de petição de herança conta-se da abertura da sucessão, aplicada a corrente objetiva acerca do princípio da actio nata (arts. 177 do CC/1916 e 189 do CC/2002). (...). A ausência de prévia propositura de ação de investigação de paternidade, imprescritível, e de seu julgamento definitivo não constitui óbice para o ajuizamento de ação de petição de herança e para o início da contagem do prazo prescricional" (STJ, EAREsp 1.260.418/MG, Rel. Min. Antonio Carlos Ferreira, Segunda Seção, j. 26.10.2022, DJe 24.11.2022). Tratei desse julgado na minha coluna de novembro e reafirmo - o que vale para os outros julgamentos aqui comentados - a necessidade de manutenção e de respeito às decisões dos Tribunais Superiores que consolidam a sua posição em matéria de Direito Privado, para que o Direito Civil mantenha a sua funcionalidade, em prol da certeza e da segurança esperada para as relações jurídicas. Espero que essas palavras sirvam para os próximos anos, sobretudo para o respeito à lei, às categorias jurídicas e às instituições jurídicas. E que tenhamos anos melhores do que foram alguns dos últimos. Ao Migalhas, os meus agradecimentos pela confiança. Feliz Natal! E um Feliz 2023 para todos nós! Até o próximo ano.
Conforme texto publicado neste canal, em janeiro de 2020, havia grande polêmica, no âmbito da atual composição do Superior Tribunal de Justiça, a respeito do início do prazo de prescrição para a ação de petição de herança, quando cumulada com a investigação de paternidade, ou seja, quanto ao seu termo a quo (TARTUCE, Flávio. O início do prazo para a ação de petição de herança - polêmica. Migalhas, 29 jan. 2020. Disponível aqui). Como é notório, essa demanda foi tratada pelo Código Civil de 2002, entre os seus arts. 1.824 e 1.828, sendo a ação que visa a incluir alguém na herança, mesmo após a divisão dos bens que a compõem. Nas lições de José Fernando Simão, trata-se da "ação judicial que tem por objetivo garantir ao herdeiro que não recebeu seu quinhão hereditário que o receba" (Código Civil comentado: doutrina e jurisprudência. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2021. p. 1569). No que concerne ao prazo, assunto principal deste texto, a antiga Súmula 149 do Supremo Tribunal Federal, do remoto ano de 1963, estabelece que "é imprescritível a ação de investigação de paternidade, mas não o é a de petição de herança". O fundamento da prescrição para esses casos está relacionado ao fato de a herança envolver direitos subjetivos e pretensões de cunho patrimonial, que são submetidos a prazos prescricionais. Ademais, tem amparo na certeza das relações jurídicas e na segurança jurídica, sempre associadas ao instituto. Apesar das minhas resistências, o entendimento sumulado é considerado majoritário e praticamente consolidado na prática. Nesse contexto, na vigência do Código Civil de 1916, a ação de petição de herança estaria sujeita ao prazo geral de prescrição, que era de vinte anos, conforme o seu art. 177. Na vigência do Código Civil de 2002, incide o prazo geral de dez anos, do seu art. 205 (veja-se, por todos: STJ, REsp 1.368.677/MG, Relator Ministro Paulo de Tarso Sanseverino, Terceira Turma, julgado em 05/12/2017, DJe 15/02/2018; e Ag. Rg. no Ag. 1.247.622/SP, Relator Ministro Sidnei Beneti, Terceira Turma, julgado em 05/08/2010, DJe de 16/08/2010). A grande divergência no âmbito da jurisprudência dizia respeito justamente ao início desse prazo de prescrição, o seu termo a quo, existindo duas vertentes de interpretação, uma clássica e uma contemporânea, em especial para as hipóteses de cumulação da petição de herança com a ação de investigação de paternidade. Pela visão clássica, vinha-se julgando havia tempos que o prazo de prescrição tem início da abertura da sucessão, como regra, que se dá pela morte daquele de quem se busca a herança. No Supremo Tribunal Federal essa conclusão consta de julgados desde a década de setenta, caso dos seguintes: Recurso Extraordinário n. 71.088, Relator Ministro Thompson Flores, Segunda Turma, julgado em 06/08/1972, publicação em 17/09/1971; Recurso Extraordinário n. 74.100, Relator Ministro Antonio Neder, Segunda Turma, julgado em 21/08/1972, publicação em 22/09/1972; e Recurso Extraordinário n. 74.100/SE, Relator Ministro Eloy da Rocha, Tribunal Pleno,  julgado em outubro de 1973. Essa orientação era igualmente aplicada pelo Superior Tribunal de Justiça, em composições anteriores, até mesmo de forma consolidada, sendo pertinente destacar o seguinte acórdão, entre os mais antigos: "CIVIL - AÇÃO DE INVESTIGAÇÃO DE PATERNIDADE, CUMULADA COM PEDIDO DE HERANÇA - PRESCRIÇÃO - SÚMULA N. 149, DO STF - ARTIGOS 5., I; 169, I; 177; E 1.572, DO CC. I - O PRAZO PRESCRICIONAL DA AÇÃO DE PETIÇÃO DE HERANÇA FLUI A PARTIR DA ABERTURA DA SUCESSÃO DO PRETENDIDO PAI, EIS QUE É ELA O FATO GERADOR; O MOMENTO EM QUE O AUTOR COMPLETA DEZESSEIS ANOS DE IDADE É O LIMITE DA INTERRUPÇÃO DA PRESCRIÇÃO PREVISTA NO ART. 169, I, DO CÓDIGO CIVIL, POR FORÇA DO DISPOSTO NO ART. 5.,  I, DO MESMO DIPLOMA LEGAL. II - CONSOANTE ENTENDIMENTO AFIRMADO PELA DOUTRINA, 'SE O TITULAR DO DIREITO DEIXA DE EXERCER A AÇÃO, REVELANDO DESSE MODO SEU DESINTERESSE, NÃO MERECE PROTEÇÃO DO ORDENAMENTO JURÍDICO'. III - RECURSO CONHECIDO E PROVIDO" (STJ, REsp 17.556/MG, Relator Ministro Waldemar Zveiter, Terceira Turma, julgado em 17/11/1992, DJ de 17/12/1992, p. 24242). Entretanto, houve uma mudança a respeito do início do prazo na Corte Superior, em sua atual composição, repise-se, para as situações em que a citada demanda está cumulada com a ação de investigação de paternidade. Assim, a partir de 2016 começaram a surgir arestos concluindo que o prazo teria início do trânsito em julgado da sentença da decisão que reconhece o vínculo parental, sendo essa a vertente que pode ser denominada como contemporânea. Como primeiro desses julgados, colaciono o decisum que foi publicado no Informativo n. 583 do STJ, de Relatoria do Ministro João Otávio de Noronha, segundo o qual, "na hipótese em que ação de investigação de paternidade post mortem tenha sido ajuizada após o trânsito em julgado da decisão de partilha de bens deixados pelo de cujus, o termo inicial do prazo prescricional para o ajuizamento de ação de petição de herança é a data do trânsito em julgado da decisão que reconheceu a paternidade, e não o trânsito em julgado da sentença que julgou a ação de inventário. A petição de herança, objeto dos arts. 1.824 a 1.828 do CC, é ação a ser proposta por herdeiro para o reconhecimento de direito sucessório ou a restituição da universalidade de bens ou de quota ideal da herança da qual não participou. Trata-se de ação fundamental para que um herdeiro preterido possa reivindicar a totalidade ou parte do acervo hereditário, sendo movida em desfavor do detentor da herança, de modo que seja promovida nova partilha dos bens. A teor do que dispõe o art. 189 do CC, a fluência do prazo prescricional, mais propriamente no tocante ao direito de ação, somente surge quando há violação do direito subjetivo alegado. Assim, conforme entendimento doutrinário, não há falar em petição de herança enquanto não se der a confirmação da paternidade. Dessa forma, conclui-se que o termo inicial para o ajuizamento da ação de petição de herança é a data do trânsito em julgado da ação de investigação de paternidade, quando, em síntese, confirma-se a condição de herdeiro" (STJ, REsp 1.475.759/DF, Relator Ministro João Otávio de Noronha, Terceira Turma, j. 17/05/2016, DJe 20/05/2016). Em 2018, essa posição foi confirmada por outra ementa, que está fundamentada na teoria da actio nata subjetiva ou de viés subjetivo, segundo a qual o prazo prescricional deve ter início do conhecimento da lesão ao direito subjetivo. Como consta do seu trecho final, "nas hipóteses de reconhecimento 'post mortem' da paternidade, o prazo para o herdeiro preterido buscar a nulidade da partilha e reivindicar a sua parte na herança só se inicia a partir do trânsito em julgado da ação de investigação de paternidade, quando resta confirmada a sua condição de herdeiro. Precedentes específicos desta Terceira do STJ. Superação do entendimento do Supremo Tribunal Federal, firmado quando ainda detinha competência para o julgamento de matérias infraconstitucionais, no sentido de que o prazo prescricional da ação de petição de herança corria da abertura da sucessão do pretendido pai, seguindo a exegese do art. 1.572 do Código Civil de 1916. Aplicação da teoria da 'actio nata'" (STJ, REsp 1.368.677/MG, Relator Ministro Paulo de Tarso Sanseverino, Terceira Turma, j. 05/12/2017, DJe 15/02/2018). Na sequência surgiram outras decisões no mesmo sentido na Terceira Turma, cabendo transcrever as seguintes, apenas para ilustrar: "PROCESSUAL CIVIL. AGRAVO INTERNO NO RECURSO ESPECIAL. RECURSO MANEJADO SOB A ÉGIDE DO NCPC. AÇÃO DE INVESTIGAÇÃO DE PATERNIDADE POST MORTEM C/C PETIÇÃO DE HERANÇA. PRESCRIÇÃO. TERMO INICIAL. TRÂNSITO EM JULGADO DA AÇÃO DE INVESTIGAÇÃO DE PATERNIDADE. CONSONÂNCIA COM O ENTENDIMENTO CONSOLIDADO NESTA CORTE SUPERIOR. INCIDÊNCIA DA SÚMULA Nº 568 DO STJ. DECISÃO MANTIDA. AGRAVO INTERNO NÃO PROVIDO. (...). 2. Tratando-se de filho ainda não reconhecido, o início da contagem do prazo prescricional só terá início a partir do momento em que for declarada a paternidade, momento em que surge para ele a pretensão de reivindicar seus direitos sucessórios. 3. Não sendo a linha argumentativa apresentada capaz de evidenciar a inadequação dos fundamentos invocados pela decisão agravada, o presente agravo não se revela apto a alterar o conteúdo do julgado impugnado, devendo ele ser integralmente mantido em seus próprios termos. 4. Agravo interno não provido" (STJ, Ag. Int. no REsp 1.986.589/MG, Relator Ministro Moura Ribeiro, Terceira Turma, julgado em 30/05/2022, DJe de 01/06/2022). "RECURSO ESPECIAL. SUCESSÃO. INVENTÁRIO. INVESTIGAÇÃO DE PATERNIDADE. RECONHECIMENTO POST MORTEM. PETIÇÃO DE HERANÇA. PRESCRIÇÃO. ART. 205 DO CÓDIGO CIVIL DE 2002. TERMO INICIAL. TRÂNSITO EM JULGADO. TEORIA DA ACTIO NATA. 1. Recurso especial interposto contra acórdão publicado na vigência do Código de Processo Civil de 2015 (Enunciados Administrativos nºs 2 e 3/STJ). 2. A pretensão dos efeitos sucessórios por herdeiro desconhecido é prescritível (art. 205 do CC/2002). 3. O termo inicial para o ajuizamento da ação de petição de herança é a data do trânsito em julgado da ação de investigação de paternidade, à luz da teoria da actio nata. 4. Recurso especial provido" (STJ, REsp 1.762.852/SP, Relator Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, Terceira Turma, julgado em 18/05/2021, DJe de 25/05/2021). "AGRAVO INTERNO NO RECURSO ESPECIAL. PETIÇÃO DE HERANÇA. 1. JULGAMENTO MONOCRÁTICO. SÚMULA 568/STJ. 2. NEGATIVA DE PRESTAÇÃO JURISDICIONAL. NÃO OCORRÊNCIA. 3. PRESCRIÇÃO. TERMO INICIAL. RECONHECIMENTO DA PATERNIDADE. ENTENDIMENTO ADOTADO PELO ACÓRDÃO RECORRIDO EM HARMONIA COM A JURISPRUDÊNCIA DESTA CORTE. SÚMULA 83/STJ. 4. PRESCRIÇÃO AQUISITIVA. AUSÊNCIA DE IMPUGNAÇÃO DOS FUNDAMENTOS DO ACÓRDÃO A QUO. SÚMULA 283/STF. 5. AGRAVO DESPROVIDO. (...). 3. Tratando-se de filho ainda não reconhecido, o início da contagem do prazo prescricional só terá início a partir do momento em que for declarada a paternidade, momento em que surge para ele a pretensão de reivindicar seus direitos sucessórios. Acórdão a quo em harmonia com a jurisprudência desta Corte Superior. Incidência da Súmula 83/STJ. (...)" (STJ, Ag. Int. no REsp 1.695.920/MG, Relator Ministro Marco Aurélio Bellizze, Terceira Turma, julgado em 22/05/2018, DJe de 01/06/2018). Apesar de esse entendimento contemporâneo prevalecer no âmbito da Terceira Turma do Tribunal da Cidadania, na sua Quarta Turma vinha prevalecendo, igualmente em julgados recentes, a aplicação da teoria clássica. Assim, em 2019, instaurou-se a divergência entre as duas Turmas, o que teve início nos autos do Agravo no Recurso Especial n. 479.648/MS, de dezembro daquele ano. Como constou do decisum, "o termo inicial do prazo prescricional da pretensão de petição de herança conta-se da abertura da sucessão, ou, em se tratando de herdeiro absolutamente incapaz, da data em que completa 16 (dezesseis) anos, momento em que, em ambas as hipóteses, nasce para o herdeiro, ainda que não legalmente reconhecido, o direito de reivindicar os direitos sucessórios (actio nata). (...). Nos termos da Súmula 149 do Supremo Tribunal Federal: 'É imprescritível a ação de investigação de paternidade, mas não o é a de petição de herança'. (...). Diante da incidência das regras dispostas no art. 177 do CC/1916, c/c os arts. 205 e 2.028 do CC/2002, aberta a sucessão em 28.jul.1995, o termo final para o ajuizamento da ação de petição de herança ocorreria em 11.jan.2013, dez anos após a entrada em vigor do Código Civil de 2002, de modo que foi ajuizada oportunamente a demanda, em 04.nov.2011" (STJ, Ag. Int. no AREsp 479.648/MS, Relator Ministro Raul Araújo, Quarta Turma, julgado em 10/12/2019, DJe de 06/03/2020). Nota-se que a premissa geral da abertura da sucessão é afastada nos casos envolvendo filhos absolutamente incapazes, menores de dezesseis anos, por incidência do art. 198, inc. I, do Código Civil, segundo o qual não corre a prescrição em relação a eles. Entre uma e outra corrente, reitero que fico com a contemporânea, pelo argumento da necessidade de se efetivar o direito fundamental à herança, previsto no art. 5º, inc. XXX, da Constituição da República. Em alguns Países, a propósito, o legislador foi expresso ao estabelecer que essa demanda não está sujeita a prazo, sendo imprescritível a pretensão, como o art. 553 do Código Civil Italiano e o art. 664 do Código Civil Peruano. No Brasil não se fez essa opção, mas também não se estabeleceu regra com qualquer prazo para que a demanda seja proposta, sendo imperioso concluir que não se há que reconhecer a aplicação do prazo geral de prescrição. Repise-se que, na doutrina nacional, a não sujeição a prazo é defendida por Giselda Maria Fernandes Novaes Hironaka, a maior sucessionista brasileira, para quem "a petição de herança não prescreve. A ação é imprescritível, podendo, por isso, ser intentada a qualquer tempo. Isso assim se passa porque a qualidade de herdeiro não se perde (semel heres semper heres), assim como o não exercício do direito de propriedade não lhe causa a extinção. A herança é transferida ao sucessor no momento mesmo da morte de seu autor, e, como se viu, isso assim se dá pela transmissão da propriedade do todo hereditário. Toda essa construção, coordenada, implica o reconhecimento da imprescritibilidade da ação, que pode ser intentada a todo tempo, como já se afirmou" (Comentários ao Código Civil. São Paulo: Saraiva, 2007. v. 20. p. 202). No mesmo sentido, Luiz Paulo Vieira de Carvalho opina: "em nosso sentir, as ações de petição de herança são imprescritíveis, podendo o réu alegar em sede de defesa apenas a exceção de usucapião (Súmula 237 do STF), que atualmente tem como prazo máximo 15 anos (na usucapião extraordinária sem posse social, art. 1.238, caput, do CC)" (Direito das sucessões. São Paulo: Atlas, 2014. p. 282-283). A par das últimas palavras, apesar dessa não incidência de prazo, sigo a possibilidade, como nos outros sistemas jurídicos citados, de se alegar a usucapião a respeito de bens singularizados notadamente como matéria de defesa, como está na Súmula 237 do nosso Supremo Tribunal Federal. Isso faz com que a situação de cada bem seja analisada especificamente, atribuindo a determinado herdeiro, se for o caso, a propriedade da coisa caso estejam preenchidos os requisitos da usucapião, em qualquer uma das suas modalidades previstas em nossa legislação. Ciente de que essa vertente pela não aplicação de qualquer prazo é minoritária no Brasil, não tendo praticamente qualquer aplicação jurisprudencial, sobretudo no âmbito do STJ, no debate ora exposto fico com a visão contemporânea, deduzindo pelo início do prazo de prescrição a partir do trânsito em julgado da sentença da ação de investigação de paternidade, justamente por entender que ela melhor efetiva os argumentos ora desenvolvidos, sobretudo o direito fundamental à herança, previsto no Texto Maior. Feitas essas notas doutrinárias, como apontava no meu anterior texto, a questão relativa ao início do prazo de prescrição pendia de pacificação no âmbito da Segunda Seção do Superior Tribunal de Justiça, o que acabou ocorrendo em julgamento do dia 24 de novembro de 2022, a seguir transcrito: "PROCESSUAL CIVIL. EMBARGOS DE DIVERGÊNCIA EM AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. 'AÇÃO DE RECONHECIMENTO DE PATERNIDADE POST MORTEM C/C PEDIDO DE HERANÇA'. PROVAS INDICIÁRIAS DO RELACIONAMENTO. EXAME DE DNA. RECUSA PELOS RÉUS. SÚMULA 301 DO STJ. DISSÍDIO JURISPRUDENCIAL. AUSÊNCIA. PETIÇÃO DE HERANÇA. PRESCRIÇÃO. SÚMULA N. 149 DO STF. TERMO INICIAL. ABERTURA DA SUCESSÃO OU TRÂNSITO EM JULGADO DA AÇÃO INVESTIGATÓRIA DE PATERNIDADE. DIVERGÊNCIA CARACTERIZADA. 1. Embargos de divergência que não merecem ser conhecidos na parte em que os embargantes buscam afastar a aplicação da Súmula n. 301 do STJ, tendo em vista a efetiva ausência de teses conflitantes nos acórdãos confrontados. No acórdão indicado como paradigma, da QUARTA TURMA (REsp n. 1.068.836/RJ), foi decidido que a aplicação da Súmula n. 301 do STJ dependeria da existência de provas indiciárias quanto à paternidade, citando, inclusive precedente da TERCEIRA TURMA. No acórdão embargado, igualmente, a TERCEIRA TURMA aplicou a Súmula n. 301 do STJ, deixando claro, ainda, que haveria outros elementos que confirmariam, ao menos indiciariamente, a filiação. 2. O prazo prescricional para propor ação de petição de herança conta-se da abertura da sucessão, aplicada a corrente objetiva acerca do princípio da actio nata (arts. 177 do CC/1916 e 189 do CC/2002). 3. A ausência de prévia propositura de ação de investigação de paternidade, imprescritível, e de seu julgamento definitivo não constitui óbice para o ajuizamento de ação de petição de herança e para o início da contagem do prazo prescricional. A definição da paternidade e da afronta ao direito hereditário, na verdade, apenas interfere na procedência da ação de petição de herança. 4. Embargos de divergência parcialmente conhecidos e, nessa parte, providos, declarada a prescrição vintenária quanto à petição de herança" (STJ, EAREsp 1.260.418/MG, Relator Ministro Antonio Carlos Ferreira, Segunda Seção, julgado em 26/10/2022, DJe de 24/11/2022). Votaram com o Relator os Ministros Marco Buzzi, Luis Felipe Salomão, Raul Araújo, Maria Isabel Gallotti, Moura Ribeiro e Nancy Andrighi, os dois últimos alterando a sua posição anterior, pela visão contemporânea para a clássica. Foram vencidos os Ministros Marco Aurélio Bellizze e Paulo de Tarso Sanseverino, que mantiveram seus entendimentos, quando dos julgamentos da Terceira Turma. O Ministro Villas Bôas Cueva, Presidente, não prolatou voto. Além das afirmações já conhecidas a respeito da certeza e da segurança jurídica, acabou prevalecendo a incidência da teoria da actio nata objetiva, ou de viés objetivo, para tais situações, correndo o prazo de prescrição a partir da suposta lesão ao direito subjetivo, que se daria com a abertura da sucessão, ou seja, com a morte daquele a quem a petição de herança se refere. Aplicou-se, assim, o teor do Enunciado n. 14, aprovado na I Jornada de Direito Civil, que sintetiza a actio nata objetiva: "1) O início do prazo prescricional ocorre com o surgimento da pretensão, que decorre da exigibilidade do direito subjetivo; 2) o art. 189 diz respeito a casos em que a pretensão nasce imediatamente após a violação do direito absoluto ou da obrigação de não fazer". Entendo, assim, que a questão foi consolidada no âmbito da Segunda Seção da Corte, devendo ser considerada pelos julgadores de primeira e de segunda instância, por constituir "jurisprudência", nos termos do que está previsto nos arts. 926 e 927, § 4º, do vigente Código de Processo Civil. Entre vitórias e derrotas doutrinárias, tenho defendido ferrenhamente nos últimos anos a necessidade de manutenção e de respeito às decisões do Superior Tribunal de Justiça que consolidam a sua posição em matéria de Direito Privado, para que o Direito Civil mantenha a sua funcionalidade, em prol da certeza e da segurança esperada para as relações jurídicas. Que assim seja, mesmo não sendo a solução a adotada e seguida por mim.
quarta-feira, 26 de outubro de 2022

Vínculo socioafetivo entre irmãos

Tema que ainda está em aberto no Direito de Família Brasileiro diz respeito ao reconhecimento do vínculo socioafetivo para além dos pais e filhos, surgindo debate sobre a sua viabilidade jurídica nas relações entre irmãos, que são parentes colaterais de segundo grau. A temática ganhou maior repercussão com a decisão do Supremo Tribunal Federal que tratou das questões jurídicas relativas à parentalidade socioafetiva. Conforme a tese firmada nesse decisum superior, "a paternidade socioafetiva declarada ou não em registro, não impede o reconhecimento do vínculo de filiação concomitante, baseada na origem biológica, com os efeitos jurídicos próprios" (STF, Recurso Extraordinário 898.060/SC, com repercussão geral, Rel. Min. Luiz Fux, julgado em 21/9/16, publicado no Informativo 840 do STF). Além de reconhecer a possibilidade de vínculos múltiplos parentais, uma das grandes contribuições do julgado foi a de consolidar a posição de que a socioafetividade é forma de parentesco civil, nos termos do art. 1.593 do Código Civil, na parte em que o diploma legal menciona a "outra origem". Exatamente nesse sentido, destaque-se o seguinte trecho do voto do Ministro Relator: "A compreensão jurídica cosmopolita das famílias exige a ampliação da tutela normativa a todas as formas pelas quais a parentalidade pode se manifestar, a saber: (i) pela presunção decorrente do casamento ou outras hipóteses legais, (ii) pela descendência biológica ou (iii) pela afetividade. A evolução científica responsável pela popularização do exame de DNA conduziu ao reforço de importância do critério biológico, tanto para fins de filiação quanto para concretizar o direito fundamental à busca da identidade genética, como natural emanação do direito de personalidade de um ser. A afetividade enquanto critério, por sua vez, gozava de aplicação por doutrina e jurisprudência desde o Código Civil de 1916 para evitar situações de extrema injustiça, reconhecendo-se a posse do estado de filho, e consequentemente o vínculo parental, em favor daquele que utilizasse o nome da família (nominatio), fosse tratado como filho pelo pai (tractatio) e gozasse do reconhecimento da sua condição de descendente pela comunidade (reputatio)" (STF, Recurso Extraordinário 898.060/SC, com repercussão geral, Rel. Min. Luiz Fux, julgado em 21/9/16, publicado no Informativo 840 do STF). A temática que se analisa neste artigo diz respeito à possibilidade de reconhecimento do vínculo socioafetivo além dos ascendentes e descendentes, ou seja, para outros parentes que formam o núcleo familiar, além dos pais e dos filhos. A título de exemplo, imagine-se o caso de irmãos que são criados como tal em uma família, com os requisitos do tratamento, da reputação e do nome, desde a tenra idade. Ilustre-se com o caso de um homem que tem filho de um relacionamento anterior, e que se casa com uma mulher que tem uma filha, igualmente de outra relação, concretizando-se entre todos os vínculos socioafetivos, desde as infâncias de seus filhos e qualificados pelos elementos mencionados no acórdão do Supremo Tribunal Federal. Seria possível sustentar a existência de uma sucessão legítima entre esses filhos, tratados e criados como irmãos, colaterais de segundo grau, nos termos dos arts. 1.839, 1.840 e 1.841 do Código Civil? Sempre sustentei que sim, ou seja, ser plenamente possível defender a premissa sucessória entre os irmãos socioafetivos. Com a decisão do Supremo Tribunal Federal, não restam dúvidas quanto a essa possibilidade jurídica, no meu entendimento doutrinário. Exatamente nessa linha decidiu a Quarta Turma do Superior Tribunal de Justiça em outubro de 2022, utilizando a feliz expressão "fraternidade ou irmandade socioafetiva". Nos termos da tese do aresto, em publicação constante do Informativo 753 da Corte e que teve como Relator o Ministro Marco Buzzi, "inexiste qualquer vedação legal ao reconhecimento da fraternidade/irmandade socioafetiva, ainda que post mortem, pois a declaração da existência de relação de parentesco de segundo grau na linha colateral é admissível no ordenamento jurídico pátrio, merecendo a apreciação do Poder Judiciário". Ainda nos termos da publicação e do voto, não se pode falar em condição essencial à caracterização do parentesco colateral por afetividade, "consistente em prévia declaração judicial de filiação (linha reta) socioafetiva, em demanda movida por de cujus em relação aos genitores dos requerentes. Desse modo, não se visualiza óbice, em tese, à pretensão autônoma deduzida, calcada na configuração da posse do estado de irmãos". Diante dessa realidade fática e jurídica, foi julgada como prematura a conclusão das instâncias inferiores de indeferimento da petição inicial, sem que se desse a oportunidade às partes para demonstrar a existência do vínculo socioafetivo entre os irmãos, mesmo que post mortem. Exatamente como julgou o Supremo Tribunal Federal, concluiu-se ainda na Quarta Turma do Superior Tribunal de Justiça que, "no âmbito das relações de parentesco, a ideia de posse de estado traduz-se em comportamentos reiterados, hábeis a constituírem situações jurídicas passíveis de tutela. Assim, além da própria aparência e reconhecimento social, o vínculo constituído qualifica a real dimensão da relação familiar/parentesco, erigida sobre a socioafetividade, a qual não pode ser ignorada pelo sistema jurídico. A partir desse pressuposto, infere-se que a citada relação/vínculo, identificada por meio da posse de estado, é passível de ser declarada judicialmente. Trata-se, com efeito, de objeto de declaração a existência de uma situação jurídica consolidada, da qual defluem efeitos jurídicos - pessoais e patrimoniais -, a exemplo do eventual direito sucessório alegado na exordial". Afastou-se, assim, a impossibilidade jurídica do pedido na causa, e a pretensão foi tida como abstratamente compatível com o ordenamento jurídico brasileiro, com a devolução à primeira instância para análise fática e posterior julgamento. O número do processo não foi divulgado por questão de segredo de justiça. Entendo que a conclusão é perfeita e abre a possibilidade de que, além dos efeitos sucessórios, outras decorrências jurídicas relacionadas ao Direito Civil sejam reconhecidas entre os irmãos socioafetivos. Destaco duas delas, neste breve texto. A primeira consequência jurídica diz respeito à possibilidade de irmãos socioafetivos pleitearem alimentos um dos outros, desde que preenchidos os requisitos da necessidade do credor e da possibilidade do devedor, previstos no art. 1.694 do Código Civil. Consoante o art. 1.697 da própria codificação privada, "na falta dos ascendentes cabe a obrigação aos descendentes, guardada a ordem de sucessão e, faltando estes, aos irmãos, assim germanos como unilaterais". Nos termos do Enunciado 341, aprovado na IV Jornada de Direito Civil, em 2006, "para os fins do art. 1.696, a relação socioafetiva pode ser elemento gerador de obrigação alimentar". O comando legal citado na ementa doutrinária é relacionado aos alimentos entre pais e filhos, mas penso que a premissa pode sim ser aplicada e estendida aos dispositivos seguintes. A segunda consequência jurídica da possibilidade de vínculo socioafetivo entre irmãos diz respeito aos impedimentos matrimoniais. Como é notório, o art. 1.521 do Código Civil traz um rol taxativo de pessoas que não podem se casar, em situações que envolvem normas cogentes e de ordem pública, por razões diversas e sob pena de sua nulidade absoluta do casamento celebrado (art. 1.548 do CC). Conforme o seu inciso IV, não podem casar os colaterais até o terceiro grau, inclusive (impedimento decorrente de parentesco consanguíneo, fundado na vedação de relações incestuosas). Não podem se casar, portanto, os irmãos que são colaterais de segundo grau, sejam bilaterais ou germanos - mesmo pai e mesma mãe - ou unilaterais - mesmo pai ou mesma mãe. Também merece destaque o inciso II desse art. 1.521 do Código Civil, segundo o qual não podem casar os afins em linha reta (impedimento decorrente de parentesco por afinidade). Sabe-se que, nos termos do art. 1.595 da codificação privada, há parentesco por afinidade entre um cônjuge ou companheiro e os parentes do outro consorte ou convivente. Esse impedimento existe apenas na afinidade em linha reta até o infinito, englobando sogra e genro, sogro e nora, padrasto e enteada, madrasta e enteado, e assim sucessivamente. Ademais, vale lembrar que o vínculo por afinidade na linha reta é perpétuo, sendo mantido mesmo nos casos de dissolução do casamento ou da união estável (art. 1.595, § 2.º, do Código Civil). De toda sorte, merece destaque a consolidada valorização jurídica da afetividade, na relação constituída entre padrastos, madrastas e enteados. Diante desse reconhecimento, tenho defendido há tempos que se deve sustentar a impossibilidade de casamento entre irmãos socioafetivos, que foram criados juntos como tal desde a infância ou tenra idade. Entendo, contudo, que devem eles ser tratados como os irmãos biológicos, incidindo o impedimento matrimonial previsto no citado art. 1.521, inc. IV, da codificação privada e não a regra do inciso II da mesma norma. A recente decisão do Superior Tribunal de Justiça sobre a "fraternidade ou irmandade socioafetiva" parece dar ainda mais força a essa minha última posição doutrinária. Aguardemos, portanto, os eventuais desdobramentos dessa forma de julgar e como os Tribunais analisarão as consequências aqui pontuadas, a respeito dos alimentos e dos impedimentos matrimoniais.
Nos últimos dias 22 e 23 de setembro de 2022, ocorreu, na sede da Associação dos Advogados de São Paulo (AASP), o X Congresso Paulista de Direito de Família, com o tema central "Direito de Família e das Sucessões na prática: homenagem ao Dr. Sérgio Marques da Cruz Filho". O encontro foi promovido pela Diretoria do Instituto Brasileiro de Direito de Família em São Paulo (IBDFAMSP), por mim presidido e na minha última gestão.   Na ocasião prestou-se uma justa homenagem ao ex-presidente do instituto no nosso Estado, que fez uma gestão exemplar entre os anos de 2012 e 2016, unindo escolas diferentes do Direito de Família e das Sucessões de São Paulo, e realizando grandes encontros. Como o seu pai, Sérgio Marques da Cruz Filho foi um dos pioneiros na atuação especializada familiarista no Brasil, influenciando o surgimento de muitos escritórios, sucessivamente. Em dois dias de evento, tivemos importantes debates sobre questões práticas, em um congresso jurídico que trouxe como marca a preocupação do homenageado com a resolução dos problemas cotidianos que surgem não só no Direito de Família como também no Direito das Sucessões. Logo em sua abertura, além da homenagem feita por sua filha, Verônica Marques da Cruz, os juristas Rodrigo da Cunha Pereira e Maria Berenice Dias, presidente e vice-presidente do IBDFAM Nacional, trataram, em interessante e inédito diálogo, dos vinte anos do Código Civil e dos vinte cinco anos do instituto, demonstrando como o IBDFAM influenciou nas principais transformações sentidas nos últimos anos, sobretudo na jurisprudência nacional, mas também na legislação, a exemplo do que ocorreu com a Emenda do Divórcio, do ano de 2010. Na sequência, foi justamente a jurisprudência o tema central do segundo painel. A Professora Giselda Maria Fernandes Novaes Hironaka tratou das convergências e divergências entre doutrina e jurisprudência em matéria de Direito das Sucessões, com destaque para o reconhecimento da inconstitucionalidade do art. 1.790 do Código Civil, que tratava da sucessão do companheiro. Coube, então, ao Ministro Paulo Dias Moura Ribeiro, do Superior Tribunal de Justiça, analisar recentes julgados dessa Corte Superior em matéria de Direito de Família, sobretudo alguns que foram por ele relatados. Os debates foram conduzidos pelos Professores José Fernando Simão e Maurício Bunazar. A prática do Direito Internacional Privado teve um painel específico neste X Congresso do IBDFAMSP, pela primeira vez em seus eventos, com a medição da Professora Cláudia Stein Vieira. A Professora Nádia de Araujo, da UERJ, analisou, de forma crítica, a nova Resolução do Superior Tribunal de Justiça sobre o sequestro internacional de crianças. Na sequência, o Professor Gustavo Ferraz do Campos Monaco, da USP, trouxe uma análise prática do art. 7º da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro em face dos múltiplos modelos familiares hoje reconhecidos, afirmando ser o Direito Internacional Privado um locus da tolerância. O terceiro painel tratou de um dos temas mais discutidos no momento, qual seja o da contratualização do Direito de Família e das Sucessões, com a coordenação geral do Professor e Diretor do IBDFAMSP Marcelo Truzzi Otero. A Professora Marília Pedroso Xavier analisou os contratos de Direito de Família, sobretudo o contrato de namoro, objeto de seu recente livro. O Professor Luciano Figueiredo, por sua vez, examinou os contratos de Direito das Sucessões, tema do seu doutorado na PUCSP, já adiantando questões relativas ao planejamento sucessório, que foi aprofundado no segundo dia. No último debate do primeiro dia, com inédito enfoque prático, tivemos um painel sobre as provas no Direito de Família. A psicóloga do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro e Professora Glícia Brazil compartilhou suas experiências sobre a prova psicológica no Direito de Família, demonstrando vários dramas sentidos na prática. E a Professora Patrícia Sanches, do IBDFAM-TEC, tratou das provas eletrônicas e digitais nessas demandas, com análise de várias aplicações digitais interessantes. A presidência da mesa foi da nossa Diretora Ana Paula Copriva.  Encerrando o primeiro dia, tivemos as posses dos novos Núcleos do IBDFAMSP, instalados nas cidades de São Carlos, São João da Boa Vista e Cotia, com as Presidências de Cláudia Pozzi, Carolina Carvalho e Jovane Nikolic, bem como das respectivas diretorias.   Iniciando o segundo dia do congresso, o quinto painel tratou da sucessão legítima na prática contemporânea. O tema da herança digital foi exposto pela Professora Ana Luiza Maia Nevares, com todas as suas divergências e debates instigantes. Na sequência, o ex-presidente do IBDFAMSP e Desembargador do Tribunal Paulista Euclides de Oliveira, de forma musical, analisou a sucessão legítima nos vinte anos do Código Civil, com as polêmicas doutrinárias e jurisprudenciais, com a coordenação dos trabalhos de Maria Beatriz Ciarlariello No sexto painel, foram discutidas as polêmicas atuais a respeito do divórcio e da dissolução da união estável, com a condução de Maritza Andrade. A ex-presidente da AASP e primeira mulher a dirigir a instituição, Viviane Girardi, expôs as controvérsias relativas à partilha no regime da comunhão parcial de bens, abordando as verbas trabalhistas, a previdência privada e a sua comunicação nesse regime. Além de prestar grande homenagem ao Dr. Sérgio Marques da Cruz Filho, um dos decanos da advocacia familiarista especializada em nosso País, o Dr. Paulo Lins e Silva tratou da guarda de filhos na pandemia e no pós-pandemia, demonstrando vários problemas que foram enfrentados pelos advogados nos dois últimos anos. A extrajudicialização do Direito de Família e das Sucessões na prática foi analisada pelos Professores Célia Regina Zapparolli e Francisco José Cahali, com a presidência de Giselle Câmara Groeninga. A primeira analisou os desafios práticos da mediação online no âmbito do Direito de Família e das Sucessões, o que foi intensificado com a pandemia. O segundo palestrante trouxe sua importante visão sobre a utilização da arbitragem e de outros métodos de solução de conflitos no âmbito do Direito de Família e das Sucessões, com uma interessante análise do mini trial e da intervenção do terceiro imparcial.  O oitavo painel, um dos mais esperados, trouxe o tema dos instrumentos de planejamento sucessório e familiar. O Professor e Conselheiro Federal da OAB Rodrigo Toscano de Brito abordou com maestria as "holdings familiares", tão mal utilizadas nos últimos anos, expondo sobre as suas limitações e possibilidades, com a necessidade de afastar as tão comuns nulidades absolutas. A Professora Angélica Carlini, vice-presidente do IBDCONT (Instituto Brasileiro de Direito Contratual), debateu a utilização dos contratos de seguro como instrumentos de planejamento sucessório, tema pela primeira vez analisado em um congresso estadual do IBDFAMSP. Com uma palestra memorável, levantou o público e foi aplaudida de pé pelo auditório lotado. A mediação e a presidência couberam à nossa Diretora, Professora Fabiana Domingues Cardoso, que tem obra de relevo sobre o assunto.   Encerrando o congresso, os alimentos na prática foram tratados no último painel, com a presidência de Mário Luiz Delgado e a participação dos Professores Rolf Madaleno e Daniela Mucilo. Houve uma instigante discussão sobre a revisão dos alimentos em tempos de grave crise financeira, a execução dos alimentos e a utilização das medidas atípicas visando ao cumprimento da obrigação alimentar. Como se pode notar, intensos foram os debates nesses dois dias, que contaram com o auditório principal da AASP lotado e com cerca de duzentos inscritos na internet, totalizando mais de quinhentos participantes neste X Congresso Paulista do IBDFAM. Esse foi o último congresso estadual da instituição que organizei. Foram seis no total: dois sob a presidência do homenageado Sérgio Marques da Cruz - em 2012, no Teatro Frei Caneca; e em 2014, na UNIP. Dois sob a presidência de João Ricardo Brandão Aguirre - em 2016 e em 2018, também na AASP, a quem agradeço. E os dois sob a minha presidência - em 2020, totalmente online, na primeira onda da pandemia, quando homenageamos a Professora Giselda Maria Fernandes Novaes Hironaka; e este último, na volta aos eventos presenciais. De todo modo, temos a previsão de um grande simpósio de Direito de Família e das Sucessões em maio de 2023, em Campos do Jordão, fechando a atuação desta diretoria à frente do importante IBDFAM de São Paulo. Esperamos vocês. Até lá!
A lei 14.382, originária da MP 1.085, de dezembro de 2021, foi promulgada em 28 de junho de 2022, tratando, entre outros temas, do Sistema Eletrônico dos Registros Públicos (SERP). Houve também a facilitação de procedimentos, sobretudo no âmbito extrajudicial, como no caso da conversão da união estável em casamento, tendo sido incluído um novo art. 70-A na lei 6.015/1973 (Lei de Registros Públicos) a respeito do tema. No que concerne à conversão da união estável em casamento, o art. 226, § 3º, da Constituição Federal de 1988, além de proteger a união estável como entidade familiar, estabelece que deverá "a lei facilitar sua conversão em casamento". O Código Civil de 2002, em seu art. 1.726, tratou dessa conversão, prevendo que "a união estável poderá converter-se em casamento, mediante pedido dos companheiros ao juiz e assento no Registro Civil". Como sempre destaquei, o dispositivo apresentava graves inconvenientes. Isso porque a lei não possibilitava expressamente a conversão administrativa ou extrajudicial, pois haveria a necessidade de autorização judicial, o que a tornava dificultosa, contrariando a ordem constitucional, que, como visto, fala em sua facilitação. Justamente por isso, o antigo Projeto Ricardo Fiuza (PL 699/2011) há tempos pretendia alterar o dispositivo, no sentido de prever que a conversão deveria ocorrer "perante o oficial do Registro Civil do domicílio dos cônjuges, mediante processo de habilitação com manifestação favorável do Ministério Público e respectivo assento". No mesmo sentido, em complemento, era o projeto de Estatuto das Famílias do IBDFAM, pela previsão do art. 65. Nessa realidade, os Estados da Federação regulamentaram a conversão extrajudicial, mediante provimentos das corregedorias dos Tribunais de Justiça. Era o caso do Rio Grande do Sul, pelo antigo Provimento n. 27/2003; do Mato Grosso do Sul, via o antigo Provimento n. 7/2003; e de São Paulo, por meio do antigo Provimento 25/2005. Quanto ao último, é a sua redação, constante das Normas de Serviço da Corregedoria-Geral de Justiça do Estado de São Paulo: "Da Conversão da União Estável em Casamento 87. A conversão da união estável em casamento deverá ser requerida pelos companheiros perante o Oficial de Registro Civil das Pessoas Naturais de seu domicílio. 87.1. Recebido o requerimento, será iniciado o processo de habilitação sob o mesmo rito previsto para o casamento, devendo constar dos editais que se trata de conversão de união estável em casamento. 87.1.1. Em caso de requerimento de conversão de união estável por mandato, a procuração deverá ser pública e obedecer aos requisitos do item 83, do Capítulo XVII destas Normas. 87.2. Estando em termos o pedido, será lavrado o assento da conversão da união estável em casamento, independentemente de autorização do Juiz Corregedor Permanente, prescindindo o ato da celebração do matrimônio. 87.3. O assento da conversão da união estável em casamento será lavrado no Livro 'B', exarando-se o determinado no item 80 deste Capítulo, sem a indicação da data da celebração, do nome do presidente do ato e das assinaturas dos companheiros e das testemunhas, cujos espaços próprios deverão ser inutilizados, anotando-se no respectivo termo que se trata de conversão de união estável em casamento. 87.4. A conversão da união estável dependerá da superação dos impedimentos legais para o casamento, sujeitando-se à adoção do regime matrimonial de bens, na forma e segundo os preceitos da lei civil. 8.7.5. Não constará do assento de casamento convertido a partir da união estável a data do início ou período de duração desta, salvo nas hipóteses em que houver reconhecimento judicial dessa data ou período. 87.6. Estando em termos o pedido, o falecimento da parte no curso do processo de habilitação não impede a lavratura do assento de conversão de união estável em casamento. 87.7. Antes da lavratura do assento, qualquer um dos companheiros poderá desistir da conversão de união estável em casamento, manifestando o arrependimento por escrito ao Oficial responsável". Nota-se que o provimento paulista já dispensava a ação judicial, desobedecendo ao que consta do Código Civil de 2002. Porém, o citado provimento sempre esteve de acordo com o Texto Maior, pois facilitava a conversão ao mencionar a via administrativa ou extrajudicial. Em suma, chegava-se a afirmar que o provimento seria ilegal em relação à codificação privada, mas legal e constitucional se fosse levada em conta a Constituição Federal. Essas conclusões revelavam certo caos legislativo a respeito da temática da conversão da união estável em casamento, que agora foi resolvido. No âmbito da doutrina, igualmente existiam manifestações no sentido de se dispensar a ação judicial. Quando do XII Congresso Brasileiro de Direito das Famílias e das Sucessões do Instituto de Direito de Família e das Sucessões, realizado em Belo Horizonte em outubro de 2019, aprovou-se o Enunciado n. 31 do IBDFAM, estabelecendo que "a conversão da união estável em casamento é um procedimento consensual, administrativo ou judicial, cujos efeitos serão ex tunc, salvo nas hipóteses em que o casal optar pela alteração do regime de bens, o que será feito por meio de pacto antenupcial, ressalvados os direitos de terceiros". Seguindo o que estava nas normas administrativas dos Estados e o clamor doutrinário, a lei 14.382/2022 tratou de forma correta e precisa da questão, sofrendo grande influência da norma paulista e praticamente reproduzindo os procedimentos aqui antes transcritos em destaque. Conforme o novo art. 70-A da Lei de Registros Públicos, a conversão da união estável em casamento deverá ser requerida pelos companheiros perante o oficial de registro civil de pessoas naturais de sua residência. Dispensa-se, portanto, a ação judicial, para tanto seguindo-se, finalmente e por meio de norma jurídica, a ordem constitucional de sua facilitação. Consoante o seu § 1º, recebido o requerimento de conversão, será iniciado o processo de habilitação sob o mesmo rito previsto para o casamento, e deverá constar dos proclamas que se trata de conversão de união estável em casamento. Além disso, em caso de requerimento de conversão de união estável por mandato, a procuração deverá ser por escritura pública e com prazo máximo de trinta dias (art. 70-A, § 2º, da Lei de Registros Públicos). Se estiver em termos o pedido, ou seja, sem qualquer problema de forma ou de essência, será lavrado o assento da conversão da união estável em casamento, independentemente de autorização judicial, prescindindo-se ou dispensando-se o ato da celebração do matrimônio (art. 70-A, § 3º, da Lei de Registros Públicos). O assento da conversão da união estável em casamento será lavrado no Livro B, sem a indicação da data e das testemunhas da celebração, do nome do presidente do ato e das assinaturas dos companheiros e das testemunhas, anotando-se no respectivo termo que se trata de conversão de união estável em casamento (art. 70-A, § 4º, da Lei de Registros Públicos). Além disso, a conversão da união estável dependerá da superação dos impedimentos legais para o casamento, previstos no art. 1.521 do Código Civil, sujeitando-se à adoção do regime patrimonial de bens, na forma dos preceitos da lei civil (art. 70-A, § 4º, da Lei de Registros Públicos). Assim, em regra, na citada conversão será adotado o regime da comunhão parcial de bens, que é o regime legal ou supletório do casamento (art. 1.640 do Código Civil). Questão interessante diz respeito à imposição do regime da separação legal ou obrigatória de bens, tratado no art. 1.641 do Código Civil, em havendo a citada conversão, como na hipótese de serem um dos cônjuge ou ambos maiores de setenta anos. Sobre a dúvida, o Enunciado n. 261, da III Jornada de Direito Civil, prevê que "a obrigatoriedade do regime da separação de bens não se aplica a pessoa maior de sessenta anos, quando o casamento for precedido de união estável iniciada antes dessa idade". Da jurisprudência superior, aplicando a premissa constante da ementa doutrinária, do Superior Tribunal de Justiça, posição que dever ser mantida com o surgimento da lei 14.382/2022: "O reconhecimento da existência de união estável anterior ao casamento é suficiente para afastar a norma, contida no CC/16, que ordenava a adoção do regime da separação obrigatória de bens nos casamentos em que o noivo contasse com mais de sessenta, ou a noiva com mais de cinquenta anos de idade, à época da celebração. As idades, nessa situação, são consideradas reportando-se ao início da união estável, não ao casamento" (STJ, REsp 918.643/RS, 3.ª Turma, Rel. Min. Massami Uyeda, j. 26.04.2011, DJE 13.05.2011). Pontue-se que o acórdão menciona idades diversas do homem e da mulher, porque diz respeito a fatos que ocorreram na vigência do Código Civil de 1916, incidindo a última norma. Mais recentemente, do mesmo Tribunal Superior, entendeu-se que "afasta-se a obrigatoriedade do regime de separação de bens quando o matrimônio é precedido de longo relacionamento em união estável, iniciado quando os cônjuges não tinham restrição legal à escolha do regime de bens, visto que não há que se falar na necessidade de proteção do idoso em relação a relacionamentos fugazes por interesse exclusivamente econômico. Interpretação da legislação ordinária que melhor a compatibiliza com o sentido do art. 226, § 3.º, da CF, segundo o qual a lei deve facilitar a conversão da união estável em casamento" (STJ, REsp 1.318.281/PE, 4.ª Turma, Rel. Min. Maria Isabel Gallotti, j. 1.º.12.2016, DJe 07.12.2016). Reafirmo que essa conclusão tende a ser mantida com o novo tratamento legislativo. Voltando-se ao art. 70-A da Lei de Registros Públicos, o seu § 6º enuncia que "não constará do assento de casamento convertido a partir da união estável a data do início ou o período de duração desta, salvo no caso de prévio procedimento de certificação eletrônica de união estável realizado perante oficial de registro civil". Nessa previsão, como bem aponta Márcia Fidelis Lima, parece haver um erro material, ou "a sua redação não deixou clara a intenção do legislador" (LIMA, Márcia Fidélis. lei 14.382/2002 - primeiras reflexões interdisciplinares do registro civil das pessoas naturais e o Direito das Famílias. Revista IBDFAM - Famílias e Sucessões, Belo Horizonte, n. 51, maio/jun. 2022. p. 35). Interroga a autora: "o que seria o 'procedimento de certificação eletrônica'? Seria algo que apontasse o prévio procedimento de registro no Livro E? Seria algo parecido com um processo judicial de justificação? Não ficou clara essa redação, a menos que a linguagem seja específica e tecnicamente utilizada em sede de tecnologia da informação". Entendo que caberá às Corregedorias de Justiça dos Estados ou mesmo ao Conselho Nacional de Justiça regulamentar esse novo procedimento. Como última norma a respeito da conversão, o § 7º do novo art. 70-A da lei 6.015/1973 enuncia que, se estiver em termos o pedido, o falecimento da parte no curso do processo de habilitação não impedirá a lavratura do assento de conversão de união estável em casamento. Trata-se de norma que mais uma vez segue solução dada no Estado de São Paulo, por meio de decisão de sua corregedoria-geral de Justiça, no ano de 2005: "Registro Civil de Pessoas Naturais. Conversão de união estável em casamento. Requerimento conjunto dos conviventes. Falecimento do varão no curso do processo de habilitação que, apesar disso, foi concluído. Inexistência de impedimento para o casamento. Desnecessidade de celebração e de assinatura dos cônjuges no assento. Possibilidade de sua lavratura. Ato do Oficial. Necessidade, apenas, de ser o requerimento submetido ao Juiz Corregedor Permanente. Antecedente desta E. Corregedoria-Geral da Justiça. Recurso provido para permitir a conversão pretendida" (Portaria de Decisão da Corregedoria-Geral da Justiça - Atos do Registro Civil - Conversão de união estável em casamento - Falecimento no curso de processo de habilitação, Proc. 834/2004, (328/2004-E), Recurso Administrativo, recorrente: Excelentíssimo Senhor Corregedor-Geral da Justiça: São Paulo, 30 de dezembro de 2004, José Marcelo Tossi Silva - Juiz Auxiliar da Corregedoria. Aprovo o parecer do MM. Juiz Auxiliar da Corregedoria e por seus fundamentos, que adoto, dou provimento ao recurso interposto. Publique-se. São Paulo, 04.01.2005. José Mário Antonio Cardinale - Corregedor-Geral da Justiça). Expostas as novas previsões legais, observo que o art. 1.726 do Código Civil não foi revogado expressamente pela lei 14.382/2022. Ademais, não me parece ter havido revogação tácita - nos termos do art. 2º da LINDB -, pois a Lei de Registros Públicos trata apenas da conversão extrajudicial da união estável em casamento. Sendo assim, penso que ainda restará aos companheiros a opção de efetivarem a conversão judicial, apesar de ser importante reconhecer que essa solução restará esvaziada, na prática, pela via extrajudicial. A esse propósito, entendeu o Superior Tribunal de Justiça, em 2017, que os companheiros poderiam fazer uso de qualquer uma das duas vias, não havendo obrigatoriedade na conversão extrajudicial. Nos termos do aresto, "os arts. 1.726 do CC e 8.º da lei 9.278/96 não impõem a obrigatoriedade de que se formule pedido de conversão de união estável em casamento exclusivamente pela via administrativa. A interpretação sistemática dos dispositivos à luz do art. 226, § 3.º, da Constituição Federal confere a possibilidade de que as partes elejam a via mais conveniente para o pedido de conversão de união estável em casamento" (STJ, REsp 1.685.937/RJ, 3.ª Turma, Rel. Min. Nancy Andrighi, j. 17.08.2017, DJe 22.08.2017). Como se percebe, o acórdão superior reconheceu, no sistema anterior, a possibilidade da via administrativa para a conversão da união estável em casamento, mas concluiu não ser ela exclusiva. Acredito que esse entendimento será mantido pela Corte, mesmo com o novo texto do art. 70-A, caput, da lei 6.015/1973.
Originária da MP/21, surgiu a lei 14.382/22, promulgada em 28 de junho deste ano, tratando principalmente do SERP - Sistema Eletrônico dos Registros Públicos. Além disso, a norma emergente altera e traz acréscimos a várias leis importantes do país, como a lei 4.591/64 - no tocante à incorporação imobiliária -, a lei 6.015/1973 (lei de registros públicos) e o CC/02. As modificações já estão em vigor desde a publicação, com exceção do seu art. 11, a respeito do art. 130 da lei de registros públicos e do registro público eletrônico, sendo certo que essa nova regulamentação somente entrará em vigor em 1º de janeiro de 2024, a fim de que os cartórios, as corregedorias dos tribunais e o CNJ façam as necessárias adequações e adaptações. Neste primeiro texto sobre a nova norma, tratarei das modificações a respeito do nome e de algumas repercussões para o Direito de Família Brasileiro. E começo essa análise pela redação dada ao art. 55 da Lei de Registros Públicos, que trata da formação do nome da pessoa no registro de nascimento. O seu caput passou a seguir a regra do art. 16 do CC/02, consagrando o nome como direito da personalidade e prevendo que "toda pessoa tem direito ao nome, nele compreendidos o prenome e o sobrenome". Sobre o tratamento constante da codificação privada, explica Anderson Schreiber que, "contemporaneamente, tem-se reconhecido que à pessoa humana deve-se resguardar o direito de ter associado a seu nome aquilo que lhe diz respeito e, do mesmo modo, de não ter vinculados a si fatos ou coisas que nada digam consigo. Trata-se de enxergar o direito ao nome em uma nova perspectiva, mais ampla e mais substancial, que pode ser denominada de direito à identidade pessoal, abrangendo não só o nome como também os diferentes traços pelos quais a pessoa humana vem representada no meio social" (Código Civil comentado: doutrina e jurisprudência. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2021. p. 21-22). Adianto que me parece ter a nova lei seguido, pelo menos em parte, essas diretrizes. Seguindo o que era concretizado pelo costume registral, o mesmo art. 55, caput, da Lei de Registros Públicos, na sua segunda parte, passou a enunciar a necessidade de se observar que "ao prenome serão acrescidos os sobrenomes dos genitores ou de seus ascendentes, em qualquer ordem e, na hipótese de acréscimo de sobrenome de ascendente que não conste das certidões apresentadas, deverão ser apresentadas as certidões necessárias para comprovar a linha ascendente". A título de exemplo, geralmente se incluem os sobrenomes do pai e da mãe, não importando a ordem de sua inserção. Apesar de ser comum a inclusão primeiro do nome materno e depois do paterno, não há qualquer imposição nesse sentido. Os §§ 1º e 2º do novo art. 55 repetem em parte a antiga redação do parágrafo único e do caput do próprio comando, preceituando que o oficial de registro civil não registrará prenomes suscetíveis de expor ao ridículo os seus portadores ou titulares, observado que, quando os genitores não se conformarem com a recusa do oficial, este submeterá por escrito o caso à decisão do juiz competente, independentemente da cobrança de quaisquer emolumentos. Quando o declarante não indicar o nome completo, o oficial de registro civil lançará adiante do prenome escolhido ao menos um sobrenome de cada um dos genitores, na ordem que julgar mais conveniente para evitar homonímias, ou seja, nomes iguais que possam trazer prejuízos ao titular. Em continuidade, o oficial de registro civil orientará os pais acerca da conveniência de acrescer sobrenomes, a fim de se evitarem prejuízos à pessoa em razão dessas homonímias (art. 55, § 3º, da Lei de Registros Públicos, incluído pela Lei n. 14.382/2022). Também é novidade o procedimento de oposição ao registro, prevendo o § 4º da mesma norma que, em até quinze dias após o registro, qualquer dos genitores poderá apresentar, perante o registro civil onde foi lavrado o assento de nascimento, oposição fundamentada ao prenome e sobrenomes indicados pelo declarante. Se houver manifestação consensual dos genitores, será realizado o procedimento de retificação administrativa do registro. Porém, se não houver consenso, a oposição será encaminhada ao juiz competente para que profira decisão. Esse procedimento visa a evitar que o conflito seja levado ao Poder Judiciário de imediato, sendo a extrajudicialização uma das marcas da norma emergente. A propósito de ilustrar uma situação de conflito, em 2021, noticiou-se no site do Superior Tribunal de Justiça o caso de uma autorização judicial de mudança de prenome registrado pelo pai da criança, que não respeitou acordo prévio com a mãe. A 3º turma do Tribunal, em acórdão relatado pela ministra Nancy Andrighi, entendeu que o desrespeito a esse acerto prévio seria razão suficiente para a alteração (notícia disponível aqui).O número do processo não foi divulgado por segredo de justiça. O art. 56 da lei 6.015/1973, também modificado pela Lei n. 14.382/2022, trata da alteração extrajudicial do nome por vontade imotivada da pessoa após a sua maioridade. Além de modificações no caput, o comando recebeu novos parágrafos. De início, está previsto que a pessoa registrada poderá, após ter atingido a maioridade civil, requerer pessoalmente e imotivadamente a alteração de seu prenome, independentemente de decisão judicial, sendo a alteração averbada e publicada em meio eletrônico. Não há mais menção ao prazo decadencial de um ano, a contar da maioridade. Isso porque o prazo vinha sendo afastado em hipóteses concretas da presença de justificativas para a alteração posterior. Como um primeiro aresto, destaco: "admite-se a alteração do nome civil após o decurso do prazo de um ano, contado da maioridade civil, somente por exceção e motivadamente, nos termos do art. 57, caput, da lei 6.015/73" (STJ, REsp 538.187/RJ, relatora Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em 2/12/04, DJ de 21/2/05, p. 170). Ou, mais recentemente, em hipótese fática envolvendo a modificação do nome de pessoa trans e confirmando as palavras de Schreiber antes transcritas: "o nome de uma pessoa faz parte da construção de sua própria identidade. Além de denotar um interesse privado, de autorreconhecimento, visto que o nome é um direito de personalidade (art. 16 do CC/02), também compreende um interesse público, pois é o modo pelo qual se dá a identificação do indivíduo perante a sociedade. (...). A Lei de Registros Públicos (lei 6.015/73) consagra, como regra, a imutabilidade do prenome, mas permite a sua alteração pelo próprio interessado, desde que solicitada no período de 1 (um) ano após atingir a maioridade, ou mesmo depois desse período, se houver outros motivos para a mudança" (REsp 1.860.649/SP, relator Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, 3º turma, julgado em 12/5/20, DJe de 18/5/20). De todo modo, a grande novidade da norma passa a ser a extrajudicialização da alteração do nome, perante o Cartório de Registro Civil, o que vem em boa hora e sem a necessidade de motivação. A título de exemplo, a pessoa pode pedir a alteração para um prenome pelo qual é conhecida no meio social, uma vez que sempre rejeitou o seu nome registral, escolhido pelos pais, o que é até comum na prática. Há, contudo, uma limitação, pois a alteração imotivada de prenome poderá ser feita na via extrajudicial apenas uma vez, e a sua desconstituição dependerá de sentença judicial (art. 56, § 1º, da Lei n. 6.015/1973, incluído pela Lei n. 14.382/2022). Também sobre a alteração extrajudicial imotivada, a averbação de alteração de prenome conterá, obrigatoriamente, o prenome anterior, os números de documento de identidade, de inscrição no Cadastro de Pessoas Físicas, de passaporte e de título de eleitor do registrado; dados esses que deverão constar expressamente de todas as certidões solicitadas (art. 56, § 2º, da lei 6.015/73, incluído pela Lei n. 14.382/22).Finalizado o procedimento extrajudicial de alteração no assento, o ofício de registro civil de pessoas naturais no qual se processou a alteração, a expensas do requerente, comunicará o ato oficialmente aos órgãos expedidores do documento de identidade, do CPF e do passaporte, bem como ao Tribunal Superior Eleitoral, preferencialmente por meio eletrônico (art. 56, § 3º, da lei 6.015/73, incluído pela lei 14.382/22). Entretanto, se suspeitar de fraude, falsidade, má-fé, vício de vontade - como erro, dolo ou coação - ou simulação quanto à real intenção da pessoa requerente, o oficial de registro civil, de forma fundamentada, recusará a retificação do nome (art. 56, § 4º, da Lei n. 6.015/1973, incluído pela lei 14.382/22). Como último tema deste breve texto, a norma emergente alterou o art. 57 da Lei de Registros Públicos no tocante à alteração extrajudicial do nome por justo motivo, elencando hipóteses - consolidadas pela doutrina e pela jurisprudência superior - em que essa é viável juridicamente. Mais uma vez, nota-se a concretização do caminho da extrajudicialização. Nesse contexto, a alteração posterior de sobrenomes poderá ser requerida pessoalmente perante o oficial de registro civil, com a apresentação de certidões e de documentos necessários, e será averbada nos assentos de nascimento e casamento, independentemente de autorização judicial. As situações previstas nos incisos do caput do art. 57 da Lei de Registros Públicos são as seguintes: a)inclusão de sobrenomes familiares, como nomes remotos que não constam do registro; b)inclusão ou exclusão de sobrenome do cônjuge, na constância do casamento; c) exclusão de sobrenome do ex-cônjuge, após a dissolução da sociedade conjugal, por qualquer de suas causas, seja consensual ou litigiosa, o que confirma tratar-se de um direito da personalidade do cônjuge que o incorporou; d) inclusão e exclusão de sobrenomes em razão de alteração das relações de filiação, inclusive para os descendentes, cônjuge ou companheiro da pessoa que teve seu estado alterado. Também se manteve a permissão de averbação no registro do nome abreviado da pessoa, usado como firma comercial registrada ou em qualquer atividade profissional (art. 57, § 1º, da lei 6.015/73, renumerado pela lei 14.382/22). Essa hipótese constava do antigo parágrafo único do art. 57 da lei de registros públicos, o qual foi renumerado para § 1º pela lei 14.382/22. Exemplificando, poderia eu averbar a abreviação FT de "Flavio Tartuce", pois a utilizo na minha atuação profissional. Igualmente a merecer elogios, passou a ser possível a inclusão extrajudicial de sobrenomes em virtude da união estável. Nos termos do novo § 2º do art. 57 da Lei de Registros Públicos, "os conviventes em união estável devidamente registrada no registro civil de pessoas naturais poderão requerer a inclusão de sobrenome de seu companheiro, a qualquer tempo, bem como alterar seus sobrenomes nas mesmas hipóteses previstas para as pessoas casadas". Como se pode perceber, a inclusão do sobrenome diz respeito às uniões estáveis registradas e não se aplica às meras uniões de fato. Foi totalmente revogada a regulamentação do tema que existia anteriormente, e que não vinha sendo aplicada na prática. O antigo § 2º do art. 57 da lei de registros públicos previa que "a mulher solteira, desquitada ou viúva, que viva com homem solteiro, desquitado ou viúvo, excepcionalmente e havendo motivo ponderável, poderá requerer ao juiz competente que, no registro de nascimento, seja averbado o patronímico de seu companheiro, sem prejuízo dos apelidos próprios, de família, desde que haja impedimento legal para o casamento, decorrente do estado civil de qualquer das partes ou de ambas". Esse preceito era duramente criticado, por somente tratar da possibilidade de a companheira incluir o sobrenome do companheiro, e não o oposto, violando a isonomia constitucional, prevista no art. 5º, § 1º, do Texto Maior. Também havia problema na exigência de um motivo ponderável, pois a união estável é entidade familiar protegida pelo art. 226 da CF/88, já havendo nesse tratamento uma motivação. Além disso, o § 3º do mesmo preceito enunciava que "o juiz competente somente processará o pedido, se tiver expressa concordância do companheiro, e se da vida em comum houverem decorrido, no mínimo, 5 (cinco) anos ou existirem filhos da união". Houve revogação expressa dessa norma pela lei 14.382/22, sendo certo que aqui o dispositivo exigia requisitos hoje tidos como superados para a caracterização da união estável, não constantes do art. 1.723 do Código Civil. Nesse contexto, a jurisprudência do STJ vinha entendendo que, diante da não incidência dos últimos dois preceitos, seria aplicada por analogia a mesma regra de uso de nome prevista para os cônjuges, nos termos do art. 1.565, § 1º, do Código Civil: "qualquer dos nubentes, querendo, poderá acrescer ao seu o sobrenome do outro". Vejamos trecho da ementa do precedente superior que parece ter inspirado a alteração da lei: "A redação do art. 57, § 2º, da Lei 6.015/73 outorgava, nas situações de concubinato, tão somente à mulher, a possibilidade de averbação do patronímico do companheiro, sem prejuízo dos apelidos próprios, desde que houvesse impedimento legal para o casamento, situação explicada pela indissolubilidade do casamento, então vigente. A imprestabilidade desse dispositivo legal para balizar os pedidos de adoção de sobrenome dentro de uma união estável, situação completamente distinta daquela para qual foi destinada a referida norma, reclama a aplicação analógica das disposições específicas do Código Civil relativas à adoção de sobrenome dentro do casamento, porquanto se mostra claro o elemento de identidade entre os institutos e a parelha ratio legis relativa à união estável, com aquela que orientou o legislador na fixação, dentro do casamento, da possibilidade de acréscimo do sobrenome de um dos cônjuges, pelo outro. Assim, possível o pleito de adoção do sobrenome dentro de uma união estável, em aplicação analógica do art. 1.565, § 1º, do CC-02, devendo-se, contudo, em atenção às peculiaridades dessa relação familiar, ser feita sua prova documental, por instrumento público, com anuência do companheiro cujo nome será adotado" (STJ, REsp 1.206.656/GO, relatora Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em 16/10/2012, DJe de 11/12/2012). Foram revogados, diante desse novo tratamento inserido no art. 57 da lei de registros públicos, os antigos § 4º ("o pedido de averbação só terá curso, quando desquitado o companheiro, se a ex-esposa houver sido condenada ou tiver renunciado ao uso dos apelidos do marido, ainda que dele receba pensão alimentícia"), § 5º ("o aditamento regulado nesta Lei será cancelado a requerimento de uma das partes, ouvida a outra") e § 6º ("tanto o aditamento quanto o cancelamento da averbação previstos neste artigo serão processados em segredo de justiça"). Por outro lado, inseriu-se um novo § 3º-A no comando, que segue a linha de ser o nome adotado pelo companheiro um direito da personalidade daquele que o incorporou, podendo ser mantido ou renunciado, assim como se tem reconhecido nos casos de casamento: "o retorno ao nome de solteiro ou de solteira do companheiro ou da companheira será realizado por meio da averbação da extinção de união estável em seu registro". Foi mantida a possibilidade de alteração do nome em virtude de fundada coação ou ameaça decorrente de colaboração com a apuração de crime (art. 57, § 7º, da lei de registros públicos, incluído pela lei 9.807/99). A última alteração quanto à norma pela lei 14.382/22 diz respeito à inclusão do sobrenome, por enteado ou enteada, de padrasto ou madrasta, o que havia sido incluído pela Lei Clodovil (lei 11.924/09). No texto atual não há mais menção aos parágrafos anteriores, possibilitando-se também a averbação na certidão de casamento e que a alteração seja feita pela via extrajudicial, perante o oficial de registro civil, na linha de todo o tratamento consagrado pela norma emergente. Nos termos atuais do § 8º do art. 57 da lei 6.015/73: "o enteado ou a enteada, se houver motivo justificável, poderá requerer ao oficial de registro civil que, nos registros de nascimento e de casamento, seja averbado o nome de família de seu padrasto ou de sua madrasta, desde que haja expressa concordância destes, sem prejuízo de seus sobrenomes de família". Como se percebe, o rol previsto em lei diz respeito à alteração do sobrenome pela via extrajudicial, sendo meramente exemplificativo ou numerus apertus, na minha opinião. Não afasta, portanto, a possibilidade de alteração pela via judicial em outras situações, como no caso, por exemplo, do abandono afetivo, admitido pela jurisprudência. Nesse sentido: "o nome civil, conforme as regras dos artigos 56 e 57 da Lei de Registros Públicos, pode ser alterado no primeiro ano após atingida a maioridade, desde que não prejudique os apelidos de família, ou, ultrapassado esse prazo, por justo motivo, mediante apreciação judicial e após ouvido o Ministério Público. Caso concreto no qual se identifica justo motivo no pleito do recorrente de supressão do patronímico paterno do seu nome, pois, abandonado pelo pai desde tenra idade, foi criado exclusivamente pela mãe e pela avó materna. Precedentes específicos do STJ, inclusive da Corte Especial" (STJ, REsp 1.304.718/SP, relator Ministro Paulo de Tarso Sanseverino, Terceira Turma, julgado em 18/12/2014, DJe de 5/2/2015). Acrescento que a jurisprudência superior admitiu até a mudança do prenome em virtude do citado abandono: "No caso dos autos, há justificado motivo para alteração do prenome, seja pelo fato de a recorrente ser conhecida em seu meio social e profissional por nome diverso do constante no registro de nascimento, seja em razão da escolha do prenome pelo genitor remetê-la a história de abandono paternal, causa de grande sofrimento" (STJ, REsp 1.514.382/DF, relator ministro Antonio Carlos Ferreira, 4ª turma, julgado em 1/9/20, DJe de 27/10/20). Penso que a fundamentação para outras situações de alteração do nome pela via judicial terá esteio, principalmente, na existência de um direito da personalidade, como antes se expôs, na linha do que têm reconhecido a doutrina e a própria jurisprudência aqui colacionada. Essas são as principais modificações inseridas pela lei 14.382/22, a respeito do uso do nome, e algumas repercussões familiares. No próximo texto, analisarei alterações feitas quanto à celebração do casamento e a respeito da união estável.
Nos últimos dias 19 e 20 de maio de 2022, ocorreu em Brasília a IX Jornada de Direito Civil, promovida pelo Centro de Estudos Judiciários do Conselho da Justiça Federal, vinculado ao Superior Tribunal de Justiça. Como tenho destacado em vários escritos, trata-se do evento mais importante do Direito Civil Brasileiro, com a aprovação de enunciados doutrinários que têm sido muito utilizados por julgadores de todo o País. As Jornadas de Direito Civil representam hoje a principal ponte de diálogo entre a doutrina e a jurisprudência, muitas vezes antecipando tendências que se concretizam anos depois, na prática do Direito Privado Nacional. A iniciativa de sua criação foi do saudoso Ministro Ruy Rosado de Aguiar Jr., que sempre deve ser homenageado, como professor, autor de obras de relevo e grande magistrado. Essa foi a maior de todas as Jornadas do Conselho da Justiça Federal, tendo sido enviadas mais de novecentas propostas e aprovados quarenta e nove enunciados. Dela participaram ministros do Superior Tribunal de Justiça, desembargadores, juízes, promotores de Justiça, procuradores, advogados, professores de todo o País e estudantes, em sete comissões: Parte Geral e LINDB, Obrigações, Contratos, Responsabilidade Civil, Direito das Coisas e Propriedade Intelectual, Família e Sucessões, Direito Digital e Novos Direitos. Foram comemorados os vinte anos do Código Civil e da criação da própria Jornada. Foi também um momento muito especial, pois a IX Jornada foi o primeiro grande evento jurídico depois de dois anos de dura pandemia. Muitos dos seus participantes não se encontravam pessoalmente desde 2019 ou desde o início de 2020. A coordenação geral foi do Ministro Jorge Mussi, Vice-Presidente do Superior Tribunal de Justiça e Diretor do Centro de Estudos Judiciários do Conselho da Justiça Federal. A coordenação científica coube aos Ministros Luis Felipe Salomão, Paulo de Tarso Sanseverino e Marco Aurélio Bellizze, das Turmas de Direito Privado do Tribunal. A comissão de Direito de Família e das Sucessões foi presidida pelo Ministro Mauro Campbell Marques, com o auxílio na coordenação dos juristas Professores Otavio Luiz Rodrigues Jr., Rodrigo Xavier Leonardo e Maria Berenice Dias. A relatoria da comissão coube ao Professor e Magistrado Pablo Stolze Gagliano. Após as votações na própria comissão e na plenária final - muito intensas -, foram aprovados seis enunciados doutrinários, que passo a analisar brevemente, com foco nas suas próprias justificativas, e sem prejuízo de novas reflexões futuras. O primeiro deles, o Enunciado n. 671, analisa o art. 1.583, § 2º, do Código Civil, prevendo que "a tenra idade da criança não impede a fixação de convivência equilibrada com ambos os pais". Como está em suas justificativas, "a lei não faz menção ou restrição à idade da criança como limitador ao direito de convivência. Todavia, em fixação de convivência de bebês ou crianças de tenra idade, o que se vê é o estabelecimento de regimes restritíssimos, com a fixação de poucas horas mensais para o convívio. A situação é especificamente grave quanto à convivência fixada em favor dos pais homens, tendo em vista a questão sociológica enraizada que, equivocadamente, atribui apenas à mulher a capacidade para o cuidado. O bebê, que está começando a descobrir o mundo, tem condições psicoemocionais de criar laços de afinidade com seus familiares e demais pessoas que o cercam. É, portanto, na tenra idade que o petiz construirá os vínculos mais fortes e duradouros de sua vida. O tempo tem outra dimensão para as crianças pequenas. Cada dia perdido por um dos genitores é um momento de exploração, aprendizado e vinculação. O infante precisa de sua mãe e de seu pai para que seu desenvolvimento seja saudável". A questão colocada pelo enunciado tem sido debatida em nossos Tribunais, o que foi intensificado nos últimos dois anos, sobretudo em virtude dos desafios decorrentes da pandemia para a convivência de pais e filhos. Em um primeiro aresto ilustrativo, o Tribunal Paulista ampliou a convivência do pai com filho de tenra idade no seguinte contexto fático: "Mudança de contexto social e do quadro de saúde pública. Perícia psicológica e social determinada, mas ainda não realizada. Mais de 1 (um) ano sem contato físico entre pai e filho de tenra idade. Prejuízo ao vínculo afetivo e desenvolvimento psicológico da criança. Observância do melhor interesse do menor. Majoração das visitas presenciais para 1 vez por semana, aos sábados, por 6 horas" (TJSP, Agravo de Instrumento n. 2207243-45.2021.8.26.0000, Acórdão n. 15768665,  São José dos Campos, Nona Câmara de Direito Privado, Rel. Des. Piva Rodrigues, julgado em 17/06/2022, DJESP 22/06/2022, p. 2265). Também se tem entendido que a alteração no regime de guarda ou convivência em se tratando de criança de tenra idade somente se justifica em casos excepcionais, como se retira dos seguintes acórdãos: "AGRAVO DE INSTRUMENTO. AÇÃO DE REGULAMENTAÇÃO DE GUARDA E DIREITO DE VISITAS. Tutela provisória parcialmente deferida para fixar a guarda compartilhada com lar de referência materno e regulamentar o direito provisório de convivência do genitor - insurgência do genitor - pedido de fixação de guarda unilateral ou de inversão do lar de referência. Ausência de prova de situação de risco ou abuso ao infante na companhia materna - art. 1.585, CC - situação de fato - criança de tenra idade (dois anos) sob os cuidados da genitora desde o nascimento - modificação de situação fática somente em situações excepcionais de risco - hipótese não configurada no caso - inexistência de fatos que desabonem a conduta da genitora. Necessidade de prévia instrução probatória - regime de convivência assegurado e ampliado por decisão ulterior - recurso conhecido e desprovido" (TJPR, Recurso n. 0070590-49.2021.8.16.0000, Curitiba, Décima Segunda Câmara Cível,  Relª Desª Rosana Amara Girardi Fachin, julgado em 13/06/2022, DJPR 14/06/2022). "AGRAVO DE INSTRUMENTO. FAMÍLIA. AÇÃO DE GUARDA, REGULAMENTAÇÃO DE VISITAS E HOMOLOGAÇÃO DE PENSÃO ALIMENTÍCIA. REGULAMENTAÇÃO DE VISITAS PATERNAS. CRIANÇA DE TENRA IDADE, EM FASE DE ALEITAMENTO MATERNO. VISITAS SEM PERNOITE. CABIMENTO. MANUTENÇÃO DA DECISÃO. A fim de preservar a necessária convivência entre pai e filha, deve ser regularizada a visitação paterna, devendo ser mantida, nos termos em que fixada pelo juízo singular. Hipótese em que a convivência paterna foi estabelecida às terças e quintas-feiras, das 18h30min às 20h30, na residência da genitora, bem como aos sábados, das 16h às 18h, também na residência da genitora, não havendo motivos que ensejem a reanálise da questão, razão pela qual mantém-se a decisão, em seu inteiro teor. Ausentes elementos que evidenciem a ocorrência de risco ou maus-tratos à menor, devida a visitação do pai à filha, nos termos do pedido inicial, salientando-se que eventuais alterações, desde que devidamente comprovadas, em demonstrado prejuízo ao melhor interesse da criança, poderão ensejar a reanálise da questão. Inteligência do art. 1.589 do Código Civil. Precedentes do TJRS. Agravo de instrumento desprovido" (TJRS, Agravo de Instrumento 5112820-95.2022.8.21.7000, Uruguaiana, Sétima Câmara Cível, Rel. Des. Carlos Eduardo Zietlow Duro, julgado em 08/06/2022, DJERS 08/06/2022). Como se observa, os arestos destacam a necessidade de se observar o princípio do melhor interesse da criança nas hipóteses descritas, podendo o enunciado trazer essa menção, como foi sugerido na plenária da IX Jornada, mas não foi atendido. De todo modo, tal regramento deve sempre ser observado, orientando a interpretação da ementa doutrinária e de outros temas relacionados à guarda de filhos. O segundo enunciado aprovado foi o de número 672, preceituando que "o direito de convivência familiar pode ser estendido aos avós e pessoas com as quais a criança ou adolescente mantenha vínculo afetivo, atendendo ao seu melhor interesse". Cancelou-se, assim, o Enunciado n. 333, da IV Jornada de Direito Civil, que, em vez de mencionar a convivência, utilizava o termo "visita". Na verdade essa é a expressão utilizada também pelo art. 1.589, parágrafo único, do Código Civil, incluído pela lei 12.398/2011: "o direito de visita estende-se a qualquer dos avós, a critério do juiz, observados os interesses da criança ou do adolescente". O enunciado, assim, pode motivar a mudança legislativa, estando justificado pelo fato de que, "embora seja da tradição do Direito de Família nomear o direito do pai ou mãe, mesmo dos avós ou outros, que não detêm a guarda, como direito de visita, a expressão legal não corresponde ao direito de convivência familiar assegurado à criança, ao adolescente e ao jovem no art. 227, caput, da Constituição da República. O direito-dever de convivência familiar estende-se a todos aqueles que mantêm vínculo afetivo com a criança e adolescente". Ainda a respeito de questões atinentes ao poder familiar ou autoridade parental, o novo Enunciado 673 prevê que "na ação de destituição do poder familiar de criança ou adolescente que se encontre institucionalizado, promovida pelo Ministério Público, é recomendável que o juiz, a título de tutela antecipada, conceda a guarda provisória a quem esteja habilitado para adotá-lo, segundo o perfil eleito pelo candidato à adoção". A norma diz respeito aos arts. 1.635 e 1.638 do Código Civil, que tratam da extinção do poder familiar, procurando efetivar a adoção por meio da concessão de tutela de urgência, o que vem em boa hora.  Sobre o tema do regime de bens, aprovou-se o Enunciado 674: "comprovada a prática de violência doméstica e familiar contra a mulher, o ressarcimento a ser pago à vítima deverá sair exclusivamente da meação do cônjuge ou companheiro agressor". As justificativas destacam as indenizações por dano moral fixadas contra o agressor, o que decorre do art. 9º, §§ 4º e 5º, da Lei Maria da Penha. Em complemento, o § 6º da mesma norma específica enuncia que essa indenização fixada  "não poderá importar ônus de qualquer natureza ao patrimônio da mulher e dos seus dependentes", estando no último preceito o fundamento principal da ementa doutrinária. Penso que essa última tese é muito importante, sem dúvidas, mas faltaram outros enunciados quanto ao sempre divergente tema do regime de bens. Infelizmente, duas propostas a respeito da comunicação de verbas, como FGTS e previdência privada, foram rejeitadas na plenária da IX Jornada, no meu entender sem razão, pois traziam o entendimento majoritário da doutrina e da jurisprudência. Conforme o Enunciado n. 675, "as despesas com doula e consultora de amamentação podem ser objeto de alimentos gravídicos, observado o trinômio da necessidade, possibilidade e proporcionalidade para sua fixação". A doula é uma profissional que acompanha a gestante durante todo o período de gravidez, o parto e o pós-parto, oferecendo suporte emocional nesses momentos. Na mesma linha, há a atuação da consultora de amamentação. As justificativas da proposta estão baseadas em recomendações da Organização Mundial da Saúde e do Ministério da Saúde, para a efetivação do que se denomina parto humanizado, havendo nesse ponto razões para que as despesas com sua contratação recaiam sobre os alimentos gravídicos, tratados pela lei 11.804/2009. Apesar da denominação da última norma, o Superior Tribunal de Justiça já entendeu que esses alimentos visam ao essencial não só para a gestante como também ao nascituro: "os alimentos gravídicos, previstos na lei 11.804/2008, visam a auxiliar a mulher gestante nas despesas decorrentes da gravidez, da concepção ao parto, sendo, pois, a gestante a beneficiária direta dos alimentos gravídicos, ficando, por via de consequência, resguardados os direitos do próprio nascituro" (STJ, REsp n. 1.629.423/SP, relator Ministro Marco Aurélio Bellizze, Terceira Turma, julgado em 06/06/2017, DJe de 22/06/2017). Como última ementa aprovada, a única sobre Direito das Sucessões, o Enunciado n. 676 interpreta o conteúdo do art. 1.836,  § 2º, do Código Civil. Nos termos do seu caput, "na falta de descendentes, são chamados à sucessão os ascendentes, em concorrência com o cônjuge sobrevivente". E, consoante o seu § 2º, "havendo igualdade em grau e diversidade em linha, os ascendentes da linha paterna herdam a metade, cabendo a outra aos da linha materna". A atual redação do comando é insuficiente para resolver as situações sucessórias relativas a casamentos ou uniões estáveis homoafetivas e à multiparentalidade, reconhecidas em julgamentos do Supremo Tribunal Federal e consolidadas na realidade do Direito de Família Brasileiro (Informativos 625 e 840 da Corte, respectivamente). Isso porque pode haver mais de uma linha paterna e mais de uma linha materna em hipóteses de sucessão. Para resolver o problema, o novo Enunciado n. 676 estabelece que "a expressão 'diversidade em linha', constante no § 2º do art. 1.836 do Código Civil, não deve mais ser restrita à linha paterna e à linha materna, devendo ser compreendidas como 'linhas ascendentes'". Essa é, na minha opinião, uma das propostas mais importantes do ponto de vista prático, de todas as que foram aprovadas na IX Jornada de Direito Civil e em todas as comissões temáticas.   Como bem observou Anderson Schreiber, essa foi a Jornada em que prevaleceram teses relativas aos direitos das mulheres, sobretudo em temas de Direito de Família. Conforme escreveu: "entre os muitos aspectos desta Jornada, um deles parece digno de especial atenção: a aprovação de numerosos enunciados voltados à tutela dos direitos fundamentais das mulheres" (SCHREIBER, Anderson. A Jornada dos Direitos da Mulher. Disponível aqui. Acesso em: 25 jun. 2022). Participando desde a III Jornada de Direito Civil, em 2004 - e de um total de quatorze eventos como esse, incluindo as Jornadas de Direito Processual Civil, de Direito Comercial e de Solução Extrajudicial das Controvérsias -, tenho constatado que as Jornadas trazem sempre para debate temas de relevo em cada momento de sua realização, o que confirma as palavras de Schreiber. Algumas das teses ganham força e são efetivamente aplicadas pela jurisprudência nacional. Outras não, pois o tempo e a práxis acabam fazendo essa separação e seleção, pela experiência e concretude do Direito Civil. Com isso atende-se aos objetivos da Jornada, desde quando foi concebida pelo Ministro Ruy Rosado de Aguiar Jr. e muito bem sinalizados pelo Ministro Luis Felipe Salomão em texto que acompanha a publicação dos enunciados: "a principal função jurisdicional do STJ é ser o último intérprete da legislação infraconstitucional, adequando as normas extraídas dos textos legais ao contexto social, econômico, ambiental, tecnológico e político da realidade contemporânea brasileira. Cabe ao Tribunal da Cidadania garantir a efetividade e a aplicabilidade das leis, conferindo sentido ao direito de forma atual e permitindo um ambiente salutar de resolução de litígios, do qual a segurança jurídica deve ser pilar inabalável. As Jornadas possibilitam - por meio de profunda e democrática atividade dialógica - expor a compreensão moderna do arcabouço normativo, temperado pelo que há de mais inovador na comunidade científica" (Caderno da IX Jornada de Direito Civil. Disponível aqui. Acesso em: 25 jun. 2022). Espero que as Jornadas continuem a cumprir essa sua função, de motivar o debate científico e prático do Direito Civil, colaborando para a resolução dos problemas das pessoas, vocação natural dos civilistas. 
Nos termos do art. 544 do Código Civil, as doações de ascendentes a descendentes, ou de um cônjuge a outro, importam em adiantamento do que lhes cabe por herança. Houve relevantes alterações do dispositivo, pois o art. 1.171 do Código Civil de 1916 previa que "a doação de pais aos filhos importa em adiantamento da legítima". Além da inclusão expressa dos demais ascendentes e descendentes, foi também acrescentado ao comando o cônjuge, que é herdeiro necessário pelo Código Civil de 2002 (art. 1.845 do CC/2002), podendo concorrer com os descendentes na herança (art. 1.829, I, do CC/2002). Penso que, por interpretação da decisão do Supremo Tribunal Federal que entendeu pela inconstitucionalidade do art. 1.790 da codificação privada, o companheiro também passou a ser herdeiro necessário (decisum publicado no Informativo n. 864 da Corte, RE 646.721/RS), o que não é o foco principal deste artigo. Em complemento, o dispositivo em estudo não utiliza mais o termo "legítima", mas "herança". Apesar dessa modificação, parece-me que o objetivo da norma continua sendo a tutela da reserva hereditária, que é a quota que cabe aos herdeiros necessários. Assim, relativamente à doação de ascendente a descendente, os bens deverão ser colacionados no processo de inventário por aquele que os recebeu, sob pena de sonegados, ou seja, sob pena de o herdeiro perder o direito que tem sobre a coisa (arts. 1.992 a 1.996 do Código Civil). Todavia, é possível que o doador dispense essa colação, como está no art. 2.006 da Lei Geral Privada, com a seguinte redação: "a dispensa da colação pode ser outorgada pelo doador em testamento, ou no próprio título de liberalidade". Há discussão sobre o dever de colacionar do cônjuge e do companheiro, o que me parece óbvio. Sem grandes polêmicas, a doutrina pontua que poderá haver doação de um cônjuge a outro sendo o regime de separação convencional de bens, de comunhão parcial - presente patrimônio ou bem particular, de apenas um dos consortes - ou de participação final nos aquestos - novamente quanto aos bens particulares. Porém, o Superior Tribunal de Justiça entende ser nula a doação entre cônjuges no regime da comunhão universal, pois todos os bens já integram o patrimônio do casal. Entre os julgados mais antigos, concluiu-se do seguinte modo: "Doação entre cônjuges. Incompatibilidade com o regime da comunhão universal de bens. A doação entre cônjuges, no regime da comunhão universal de bens, é nula, por impossibilidade jurídica do seu objeto" (STJ, AR 310/PI, Segunda Seção, Rel. Min. Dias Trindade, j. 26.05.1993, DJ 18.10.1993, p. 21828). Ou, do ano de 2020, o seguinte acórdão: "é nula a doação entre cônjuges casados sob o regime da comunhão universal de bens, na medida em que a hipotética doação resultaria no retorno do bem doado ao patrimônio comum amealhado pelo casal diante da comunicabilidade de bens no regime e do exercício comum da copropriedade e da composse" (STJ, REsp 1.7870.27/RS, Terceira Turma, Rel. Min. Nancy Andrighi, j. 04.02.2020, DJe 24.04.2020). Com o devido respeito, penso ser possível a doação entre os cônjuges - ou mesmo entre companheiros -, no tocante aos bens excluídos da comunhão universal (art. 1.668 do CC), caso de um bem de uso pessoal. De todo modo, esse também não é o foco principal deste texto, e pretendo retomar o assunto em outro artigo. O debate que ora trago diz respeito à doação entre cônjuges no regime da separação legal ou obrigatória de bens, tratada pelo art. 1.641 do Código Civil, nas seguintes situações: a) das pessoas que contraírem casamento com inobservância das causas suspensivas para sua celebração (art. 1.523 do Código Civil, caso do divorciado que não partilhou os bens do relacionamento anterior); b) da pessoa maior de setenta anos, tendo sido a idade aumentada dos sessenta anos, por força da Lei n. 12.344/2010; e c) de todos os que dependerem de suprimento judicial para casar, como os menores. Argumentava-se, sobretudo na vigência do Código Civil de 1916, que a doação entre cônjuges nesse regime implicaria fraude à lei, a gerar a sua nulidade absoluta. Na vigência da atual codificação a nulidade estaria fundamentada no seu art. 166, inc. VI. Entretanto, sempre entendi de forma contrária, por sua validade, em regra, não se podendo presumir a fraude, sobretudo pelo sistema adotado pelo Código Civil de 2002. Primeiro, porque o Código Civil de 2002 passou a possibilitar a ação de modificação de regime de bens, proposta consensualmente por ambos os cônjuges, conforme o seu art. 1.639, § 2º: "é admissível alteração do regime de bens, mediante autorização judicial em pedido motivado de ambos os cônjuges, apurada a procedência das razões invocadas e ressalvados os direitos de terceiros". E, consoante o Enunciado n. 262, aprovado na III Jornada de Direito Civil, "a obrigatoriedade da separação de bens nas hipóteses previstas nos incs. I e III do art. 1.641 do Código Civil não impede a alteração do regime, desde que superada a causa que o impôs". A principal situação em que se tem deferido tal modificação do regime é a superação de causa suspensiva do casamento, que se enquadra como justa causa para o pedido motivado exigido pela lei. Nesse sentido, decidiu o Superior Tribunal de Justiça em precedente do ano de 2006: "assim, se o Tribunal Estadual analisou os requisitos autorizadores da alteração do regime de bens e concluiu pela sua viabilidade, tendo os cônjuges invocado como razões da mudança a cessação da incapacidade civil interligada à causa suspensiva da celebração do casamento a exigir a adoção do regime de separação obrigatória, além da necessária ressalva quanto a direitos de terceiros, a alteração para o regime de comunhão parcial é permitida" (STJ, REsp 821.807/PR, Terceira Turma, Rel. Min. Nancy Andrighi, DJ 13.11.2006, p. 261). Esse entendimento, doutrinário e jurisprudencial, demonstra não haver rigidez no regime de separação legal, que não é tão absoluta assim; possibilitando, mesmo que indiretamente, a doação entre cônjuges em tal regime. Além disso, como reforço à possibilidade de doação entre cônjuges no regime da separação legal, conclui-se, de modo majoritário, pela manutenção da Súmula n. 377 do Supremo Tribunal Federal, pela qual nesse regime comunicam-se os bens havidos durante o casamento, pelo esforço comum dos cônjuges (STJ, EREsp 1.623.858/MG, Segunda Seção, Rel. Min. Lázaro Guimarães (Desembargador convocado do TRF 5ª Região), j. 23.05.2018, DJe 30.05.2018). Ora, se há comunicação patrimonial, mais uma vez se constata que a separação não é tão obrigatória, não havendo óbice para a doação de alguns bens. Em suma, não se pode presumir a fraude à lei nos casos em questão, como antes se sustentava. Na mesma linha, concluindo pela viabilidade jurídica da doação entre cônjuges no regime da separação obrigatória de bens, colaciona-se julgado do Tribunal Paulista, relatado pelo Desembargador Caetano Lagrasta, em que se demonstrou a ausência de vício da vontade ou do consentimento no caso concreto: "Anulação de doação. Ex-cônjuges. Alegação de que o regime de separação obrigatória de bens impedia o ato. Doação de imóvel que não se estende ao alegado impedimento. Ato de mera liberalidade. Valor que não dilapidou o patrimônio do doador. Inexistência de coação. Sentença de improcedência mantida. Provimento negado. Litigância de má-fé. Não configuração. Inexistência de intuito protelatório. Provimento negado" (TJSP, Apelação com Revisão 546.548.4/7, Acórdão 2548431, Oitava Câmara de Direito Privado, São Paulo, Rel. Des. Caetano Lagrasta, j. 02.04.2008, DJESP 16.04.2008). Exatamente no mesmo sentido concluiu o Superior Tribunal de Justiça em 2011, em acórdão que analisou doação realizada na vigência da codificação anterior. Nos seus termos, "são válidas as doações promovidas, na constância do casamento, por cônjuges que contraíram matrimônio pelo regime da separação legal de bens, por três motivos: (I) o CC/16 não as veda, fazendo-o apenas com relação às doações antenupciais; (II) o fundamento que justifica a restrição aos atos praticados por homens maiores de sessenta anos ou mulheres maiores que cinquenta, presente à época em que promulgado o CC/16, não mais se justificam nos dias de hoje, de modo que a manutenção de tais restrições representam ofensa ao princípio da dignidade da pessoa humana; (III) nenhuma restrição seria imposta pela Lei às referidas doações caso o doador não tivesse se casado com a donatária, de modo que o Código Civil, sob o pretexto de proteger o patrimônio dos cônjuges, acaba fomentando a união estável em detrimento do casamento, em ofensa ao art. 226, § 3º, da Constituição Federal" (STJ, AgRg-REsp 194.325/MG, Terceira Turma, Rel. Des. Conv. Vasco Della Giustina, j. 08.02.2011, DJe 01.04.2011). Entendo que os dois primeiros fundamentos ainda subsistem atualmente, somando-se aos dois argumentos anteriores, destacados por mim. Pois bem, na linha desse entendimento, na IX Jornada de Direito Civil, promovida nos últimos dias 19 e 20 de maio deste ano de 2022, a comissão de Contratos aprovou enunciado doutrinário segundo o qual, "em regra, é válida a doação celebrada entre cônjuges que vivem sob o regime da separação obrigatória de bens". A ementa traduz o entendimento majoritário da doutrina e também a posição jurisprudencial aqui antes exposta, a demonstrar um diálogo perfeito entre ambos. Além dos argumentos aduzidos, representa legítimo exercício da autonomia privada e importante instrumento de planejamento familiar e sucessório. Pontue-se que, nos debates que circundaram a proposta na comissão da IX Jornada - que teve a coordenação geral do Ministro Marco Buzzi -, cogitou-se incluir a doação entre companheiros, pela existência de posição na jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça no sentido de se aplicar o regime da separação obrigatória à união estável (STJ, EREsp. 1.171.820/PR, Segunda Seção, Rel. Min. Raul Araújo, DJe 21.09.2015). Porém, esse entendimento ainda gera controvérsias doutrinárias, razão pela qual se manteve apenas a doação entre cônjuges. Por fim, cabe destacar que a expressão "em regra" busca afastar o argumento da presunção de fraude, antes aduzido. Advirta-se, contudo, que a liberalidade não pode apresentar qualquer vício ou defeito, seja da vontade ou social. Nesse contexto, a doação não pode implicar fraude contra credores - situação em que se pode alegar a nulidade relativa ou anulabilidade -, simulação ou fraude à lei imperativa devidamente demonstrada - sob pena de nulidade absoluta. Além disso, sob pena de ineficácia, não poderá estar presente a fraude à execução.
Com grande repercussão para a prática, a lei 8.009/90 consagra regras específicas quanto à proteção do bem de família legal, prevendo o seu art. 1º que "o imóvel residencial próprio do casal, ou da entidade familiar, é impenhorável e não responderá por qualquer tipo de dívida civil, comercial, fiscal, previdenciária ou de outra natureza, contraída pelos cônjuges ou pelos pais ou filhos que sejam seus proprietários e nele residam, salvo nas hipóteses previstas na lei". Trata-se de importante norma de ordem pública que protege pela impenhorabilidade tanto a família quanto a pessoa humana, notadamente o seu direito fundamental à moradia, previsto no art. 6º da CF/88. Sendo norma cogente ou de ordem pública, as exceções à impenhorabilidade do bem de família legal seriam apenas as previstas no rol taxativo ou numerus clausus do seu art. 3º, envolvendo as seguintes hipóteses: a) pelo titular do crédito decorrente de financiamento destinado à construção ou aquisição do imóvel, no limite dos créditos e acréscimos decorrentes do contrato, o que está justificado pelo fato de a dívida ter origem na própria existência da coisa; b) pelo credor de pensão alimentícia, seja ela decorrente de alimentos convencionais, legais - de Direito de Família - ou indenizatórios - nos termos do art. 948, inc. II, do CC -, o que se fundamenta na subsistência dos respectivos credores; c) para a cobrança de impostos, predial ou territorial, taxas e contribuições devidos em relação ao imóvel familiar, presentes nesta exceção obrigações propter rem ou ambulatórias, o que inclui as dívidas de condomínio, como já decidiu o Supremo Tribunal Federal (RE n. 439.003/SP, relator ministro Eros Grau, julgado em 6/2/07); d) para a execução de hipoteca sobre o imóvel, oferecido como garantia real pelo casal ou pela entidade familiar, sempre no interesse de ambos ou de sua família, tão somente (STJ, EAREsp. 848.498/PR, 2ª seção, relator ministro Luis Felipe Salomão, j. 25/4/18, DJe 7/6/18); e) no caso de o imóvel ter sido adquirido como produto de crime ou para a execução de sentença penal condenatória de ressarcimento, indenização ou perdimento de bens; e f) por obrigação decorrente de fiança concedida em contrato de locação de imóvel urbano, exceção que foi introduzida pelo art. 82 da lei 8.245/91 e que não estava originalmente na lei 8.009/90. A última previsão de quebra da impenhorabilidade tem sido debatida de forma intensa por doutrina e jurisprudência desde o surgimento do texto legal, sendo forte o argumento de sua inconstitucionalidade, o que ainda me convence. Na primeira vez que a discussão chegou ao STF, no ano de 2005, o ministro Carlos Velloso proferiu decisão monocrática, reconhecendo que "o direito à moradia, estabelecido no art. 6º, C.F., é um direito fundamental de 2ª geração - direito social que veio a ser reconhecido pela EC 26/00". Assim, "o bem de família - a moradia do homem e sua família - justifica a existência de sua impenhorabilidade: lei 8.009/90, art. 1º. Essa impenhorabilidade decorre de constituir a moradia um direito fundamental. Posto isso, veja-se a contradição: a lei 8.245/91, excepcionando o bem de família do fiador, sujeitou o seu imóvel residencial, imóvel residencial próprio do casal, ou da entidade familiar, à penhora. Não há dúvida que ressalva trazida pela lei 8.245/91, inciso VII do art. 3º, feriu de morte o princípio isonômico, tratando desigualmente situações iguais, esquecendo-se do velho brocardo latino: ubi eadem ratio, ibi eadem legis dispositio, ou em vernáculo: onde existe a mesma razão fundamental, prevalece a mesma regra de Direito. Isto quer dizer que, tendo em vista o princípio isonômico, o citado dispositivo do inciso VII do art. 3º, acrescentado pela lei 8.245/91, não foi recebido pela EC 26/00" (STF, RE 352.940/SP, relator ministro Carlos Velloso, julgado em 25/4/05). No meu entender, o principal argumento pela inconstitucionalidade da regra em estudo está associado à lesão ao princípio da igualdade material ou isonomia, retirado do art. 5º, caput, da CF/88, seja qual for a modalidade de locação, residencial ou não. Isso porque, reconhecida a sua penhorabilidade, o fiador perde o bem de família, enquanto o locatário, que é o devedor principal da relação jurídica, não. Entretanto, o plenário do STF analisou o tema em 8/2/06 e, por maioria de votos, entendeu ser constitucional a previsão do art. 3º, inc. VII, da lei 8.009/90. Segundo o relator da decisão, ministro Cezar Peluso, a norma é clara ao prever a possibilidade de penhora do imóvel de residência de fiador de locação de imóvel urbano, sendo essa regra inafastável. Entendeu, ainda, que a pessoa tem a plena liberdade de querer ou não assumir a condição de fiadora, devendo subsumir a norma infraconstitucional se assim o fizer, não havendo qualquer lesão à isonomia constitucional, ao contrário do entendimento do ministro Carlos Velloso. Por fim, sustentou que o dispositivo protege o mercado imobiliário, devendo ter aplicação plena, nos termos do art. 170 da CF/88. Votaram com ele os ministros Joaquim Barbosa, Gilmar Mendes, Ellen Gracie, Marco Aurélio, Sepúlveda Pertence e Nelson Jobim. A votação não foi unânime, pois entenderam pela inconstitucionalidade do comando legal os ministros Eros Grau, Ayres Britto e Celso de Mello (STF, RE 407.688/SP, Tribunal Pleno, relator ministro Cezar Peluso, julgado em 8/2/06). Apesar dessa decisão superior, surgiram vários acórdãos estaduais de desobediência, concluindo na linha do entendimento minoritário. Como reação a esse movimento, o STJ editou, em outubro de 2015, a sua súmula 549, estabelecendo que "é válida a penhora de bem de família pertencente a fiador de contrato de locação". A ementa parecia ter encerrado o debate, diante da força vinculativa das súmulas dos Tribunais Superiores, reconhecida em vários dispositivos do CPC. Ledo engano. A demonstrar a instabilidade a respeito do tema, em 2018 surgiu nova decisão da 1ª turma do STF concluindo pela inconstitucionalidade da previsão a respeito da penhora do bem de família do fiador em casos envolvendo locação comercial, retomando-se as afirmações do ministro Carlos Velloso (RE 605.709/SP). Acrescentou a ministra relatora, Rosa Weber, que na locação comercial não haveria justificativa para que "o devedor principal, afiançado, goze de situação mais benéfica do que a conferida ao fiador (garante), sobretudo porque tal disparidade de tratamento, ao contrário do que se verifica na locação de imóvel residencial, não se presta à promoção do próprio direito fundamental à moradia". E mais, complementou que, "no caso de locação comercial, a imposição de restrições ao direito fundamental à moradia do fiador, por meio da penhora do único imóvel destinado à sua residência, tampouco se justifica sob o ângulo da proporcionalidade. A uma, porque a medida não é necessária, ante a existência de instrumentos outros suscetíveis de viabilizar a garantia da satisfação do crédito do locador de imóvel comercial, notadamente caução, seguro de fiança locatícia e cessão fiduciária de quotas de fundos de investimento (art. 37 da lei 8.245/91). A duas, porque conjecturas meramente teóricas, sobre a dificuldade ou a onerosidade na prestação de outras modalidades de garantia ou, ainda, sobre empecilho na obtenção de fiadores com mais de um imóvel, não legitimam, segundo compreendo, o sacrifício do direito fundamental à moradia em nome de projetada promoção da livre iniciativa". Vejamos a sua publicação no informativo 906 da Corte Suprema, em que constam os argumentos dos votos vencidos: "Impenhorabilidade do bem de família e contratos de locação comercial. Não é penhorável o bem de família do fiador, no caso de contratos de locação comercial. Com base neste entendimento, a 1ª turma, por maioria e em conclusão de julgamento, deu provimento a recurso extraordinário em que se discutia a possibilidade de penhora de bem de família do fiador em contexto de locação comercial. Vencidos os Ministros Dias Toffoli (relator) e Roberto Barroso que negaram provimento ao recurso. Ressaltaram que o Supremo Tribunal Federal pacificou o entendimento sobre a constitucionalidade da penhora do bem de família do fiador por débitos decorrentes do contrato de locação. A lógica do precedente é válida também para os contratos de locação comercial, na medida em que - embora não envolva o direito à moradia dos locatários - compreende o seu direito à livre-iniciativa. A possibilidade de penhora do bem de família do fiador - que voluntariamente oferece seu patrimônio como garantia do débito - impulsiona o empreendedorismo, ao viabilizar a celebração de contratos de locação empresarial em termos mais favoráveis. Por outro lado, não há desproporcionalidade na exceção à impenhorabilidade do bem de família (lei 8.009/90, art. 3º, VII ). O dispositivo legal é razoável ao abrir a exceção à fiança prestada voluntariamente para viabilizar a livre-iniciativa" (STF, RE 605.709/SP, relator ministro Dias Toffoli, Red. p/ Ac. ministra Rosa Weber, j. 12/6/18). Outros arestos surgiram na mesma linha no STF e, diante disso, reconheceu-se a necessidade de pacificação da matéria, em sede de repercussão geral (tema 1.127). Em 8/3/22, encerrou-se o seu julgamento virtual e, por 7 votos a 4, o STF confirmou a sua posição anterior, de constitucionalidade do art. 3º, inc. VII, da lei 8.009/90, mesmo em se tratando de locação comercial garantida por fiança, sendo penhorável o bem de família do fiador em casos tais (RE 1.307.334). Prevaleceu o entendimento do relator, ministro Alexandre de Moraes, que retomou argumentos antes aduzidos pelo ministro Cezar Peluso. Assim, pontuou não haver lesão ao direito de moradia do fiador, que voluntariamente exerce atributo do direito de propriedade ao oferecer seus bens em garantia, por força da fiança. Pensar o contrário, segundo ele, também violaria os princípios da boa-fé objetiva e da livre-iniciativa. Ademais, o art. 3º, inc. VII, da lei 8.009/90 não faz qualquer distinção entre a locação residencial e a comercial. Também foram utilizados argumentos econômicos, no sentido de que a impenhorabilidade do bem do fiador no contrato de locação comercial acabaria sendo um desestímulo aos pequenos empreendedores. Tal posição foi acompanhada pelos ministros Luís Roberto Barros, Dias Toffoli, Nunes Marques, Gilmar Mendes, André Mendonça e Luiz Fux. Em sentido contrário votaram os ministros Luiz Edson Fachin, Rosa Weber, Cármen Lúcia e Ricardo Lewandowski. De toda sorte, como temática principal deste breve texto, nota-se que a constitucionalidade da previsão foi novamente reconhecida pelo STF tão somente para os casos de fiança ou caução fidejussória, hipótese em que o fiador assume a condição de responsável frente ao credor, com todos os seus bens, sem que a dívida seja sua. Melhor explicando, o fiador tem responsabilidade sem débito (Haftung ohne Schuld). Tal conclusão é retirada do art. 818 do CC/02, segundo o qual, "pelo contrato de fiança, uma pessoa garante satisfazer ao credor uma obrigação assumida pelo devedor, caso este não a cumpra". Há, assim, uma garantia pessoal, em que todo o patrimônio do fiador, como premissa geral, está vinculado à dívida, o que inclui o seu bem de família, em caso de fiança locatícia regida pela lei 8.245/91. Nesse contexto, observe-se que o fiador não "dá bem em garantia", como ocorre na hipoteca ou na caução. Repise-se que todo o seu patrimônio está vinculado à dívida. Isso fica claro pelo teor do art. 37 da lei 8.245/91, que, ao tratar das garantias locatícias, traz previsões diferentes a respeito da fiança e da caução. Conforme o dispositivo legal, "no contrato de locação, pode o locador exigir do locatário as seguintes modalidades de garantia: I - caução; II - fiança; III - seguro de fiança locatícia; IV - cessão fiduciária de quotas de fundo de investimento". E, consoante o seu parágrafo único, a confirmar essa separação de garantias, é vedada, sob pena de nulidade, mais de uma das modalidades de garantia num mesmo contrato de locação. Igualmente a demonstrar que a caução não se confunde com a fiança, o art. 38 da lei 8.245/91 estabelece que a primeira "poderá ser em bens móveis ou imóveis". Em se tratando de caução de bens móveis, "deverá ser registrada em cartório de títulos e documentos; a em bens imóveis deverá ser averbada à margem da respectiva matrícula" (§ 1º). A caução em dinheiro, também muito comum na prática, e "que não poderá exceder o equivalente a três meses de aluguel, será depositada em caderneta de poupança, autorizada, pelo Poder Público e por ele regulamentada, revertendo em benefício do locatário todas as vantagens dela decorrentes por ocasião do levantamento da soma respectiva" (§ 2º). Por fim, "a caução em títulos e ações deverá ser substituída, no prazo de trinta dias, em caso de concordata - leia-se, na atualidade, de recuperação judicial -, falência ou liquidação das sociedades emissoras" (§ 3º do art. 38 da lei 8.245/91). Exatamente no sentido de diferenciar a caução - sobretudo de bem imóvel - da fiança locatícia, a jurisprudência do STJ, nas suas 3ª e 4ª turmas, acabou por pacificar o entendimento de que a exceção prevista no art. 3º, inc. VII, da lei 8.245/91 não se aplica aos casos em que um bem imóvel é dado em garantia, seja pelo locatário seja por terceiro. Acrescente-se que também não há que se falar em hipoteca, prevista no inciso V do mesmo comando, pois a caução também não se confunde com essa garantia real. Nesse sentido, conforme decidiu a 3ª turma da Corte, "em se tratando de caução, em contratos de locação, não há que se falar na possibilidade de penhora do imóvel residencial familiar" (STJ, REsp 1.887.492/SP, relator ministra Nancy Andrighi, 3ª turma, julgado em 13/4/21, DJe 15/4/21). Conforme o preciso voto da ministra relatora, que tem o meu total apoio doutrinário, "o fato de a recorrente ter dado o imóvel em caução não é suficiente para afastar a proteção da impenhorabilidade. Isso porque, cumpre repisar, essa hipótese não está contemplada nas exceções previstas na norma de regência e já mencionadas, sendo certo que a oferta do imóvel em caução de contrato de locação não se confunde com a garantia hipotecária de que trata o art. 3º, V, da lei 8.009/90". Influenciado por esse decisum surgiram outros arestos, da mesma turma. Deste ano de 2022, destaco julgado da 4ª turma do STJ no mesmo sentido, aduzindo que "o escopo da lei 8.009/90 não é proteger o devedor contra suas dívidas, mas sim a entidade familiar no seu conceito mais amplo, razão pela qual as hipóteses permissivas da penhora do bem de família, em virtude do seu caráter excepcional, devem receber interpretação restritiva. Precedentes. (...). O benefício conferido pela mencionada lei é norma cogente, que contém princípio de ordem pública, motivo pelo qual o oferecimento do bem em garantia, como regra, não implica renúncia à proteção legal, não sendo circunstância suficiente para afastar o direito fundamental à moradia, corolário do princípio da dignidade da pessoa humana. Precedentes". E mais, aduziu-se que "a caução levada a registro, embora constitua garantia real, não encontra previsão em qualquer das exceções contidas no art. 3º da lei 8.009/90, devendo, em regra, prevalecer a impenhorabilidade do imóvel, quando se tratar de bem de família". Ao final, determinou-se a volta dos autos à Corte de origem para que, "à luz da proteção conferida ao bem de família pela lei 8.009/90 e afastada a exceção invocada no acórdão recorrido, proceda ao reexame do agravo de instrumento, analisando-se se o imóvel penhorado no caso concreto preenche os requisitos para se caracterizar como tal" (STJ, REsp. 1.789.505/SP, relator ministro Marco Buzzi, 4ª turma, julgado em 22/3/22, DJe 7/4/22). Penso que a posição já está consolidada na Corte Superior, sendo cabível até mesmo a edição de uma ementa de súmula para que a questão se consolide na prática, diante da sua força vinculativa para decisões de 1ª e 2ª instância, pelo que se retira do CPC em vigor. Assim, é interessante que sejam obervadas as devidas regras técnicas quando da elaboração dos contratos de locação com as respectivas garantias. Nesse contexto, deve-se evitar ao máximo a elaboração de cláusulas contratuais em que o garantidor dá ou oferece um imóvel em garantia, situação que não se confunde com a fiança ou com a hipoteca, como se retira dos julgados aqui apontados.
Em coluna anterior, publicada neste canal em janeiro de 2016, destaquei que uma das normas do então Novo Código de Processo Civil que poderia ter grande aplicação para as ações de família seria o seu art. 356, que trata do julgamento parcial de mérito. A sua incidência, como defendido, dar-se-ia sobretudo em ações de divórcio e de dissolução de união estável, podendo o julgador decretar o fim do vínculo familiar havido entre as partes e seguir na demanda com o debate e a análise de outros temas, como alimentos, guarda de filhos, uso do nome, partilha de bens e pedido de reparação de danos, inclusive morais. Conforme está previsto nesse comando instrumental, o juiz decidirá parcialmente o mérito quando um ou mais dos pedidos formulados ou parcela deles: a) mostrar-se incontroverso; e b) estiver em condições de imediato julgamento, por não haver a necessidade de produção de provas ou por ter ocorrido à revelia. Ademais, o seu § 1º prevê que a decisão que julgar parcialmente o mérito poderá reconhecer a existência de obrigação líquida - certa quanto à existência e determinada quanto ao valor -, ou mesmo ilíquida - que não preenche tais requisitos; o que pode ser aplicado a dívidas alimentares, por exemplo. Além disso, prescreve o comando que, eventualmente, a parte poderá liquidar ou executar, desde logo, a obrigação reconhecida na decisão que julgar parcialmente o mérito, independentemente de caução, ainda que haja recurso contra essa interposto; o que igualmente pode incidir a respeito dos alimentos (art. 356, § 2.º, do CPC/15). Na hipótese dessa execução, se houver trânsito em julgado da decisão, a execução será definitiva (art. 356, § 3.º, do CPC/15). Em complemento, a liquidação e o cumprimento da decisão que julgar parcialmente o mérito poderão ser processados em autos suplementares, a requerimento da parte ou a critério do juiz (art. 356, § 4.º, do CPC/15). Por fim, está estabelecido na norma processual que a decisão proferida com base neste artigo é impugnável por agravo de instrumento (art. 356, § 5.º, do CPC/15); posição que há tempos era defendida por parte da doutrina, inclusive para as ações de família (TARTUCE, Fernanda. Processo civil aplicado ao direito de família. São Paulo: GEN/Método, 2012. p. 253). Como também sustentei naquele meu texto anterior, ainda no âmbito doutrinário, a solução retirada do art. 356 do CPC/2015 para as ações de família, pelo menos parcialmente, era retirada do Enunciado n. 602, aprovado na VII Jornada de Direito Civil, no ano de 2015, e com a seguinte redação: "transitada em julgado a decisão concessiva do divórcio, a expedição de mandado de averbação independe do julgamento da ação originária em que persista a discussão dos aspectos decorrentes da dissolução do casamento" (enunciado 602). No mesmo sentido, o enunciado 18 do IBDFAM, aprovado no seu X Congresso Brasileiro de Direito de Família e das Sucessões, em outubro do mesmo ano, prescreve que, "nas ações de divórcio e de dissolução da união estável, a regra deve ser o julgamento parcial do mérito (art. 356 do novo CPC), para que seja decretado o fim da conjugalidade, seguindo a demanda com a discussão de outros temas". Conforme também pontuava, a norma processual em estudo dialoga perfeitamente com a EC 66/10, que suprimiu os prazos para o divórcio e a separação de direito - pelo menos na visão que sigo -, alterando o art. 226, § 6.º, do Texto Maior e facilitando a dissolução do vínculo conjugal. Esse diálogo é perfeitamente percebido pelo fato de o Estatuto Processual afastar qualquer burocracia ou entrave maior para o fim do casamento ou da união estável, deixando as questões pendentes para a solução posterior das partes. Sobre o divórcio, concretiza-se o teor do art. 1.581 do Código Civil, segundo o qual o divórcio pode ser concedido sem que haja prévia partilha de bens. Pois bem, passados seis anos de vigência do Código de Processo Civil, é preciso verificar se, de fato, a minha previsão de incidência da norma se efetivou, ou não, no campo prático das ações de família. Realizando pesquisa específica relativa ao art. 356 do CPC e a palavra "divórcio" em base de dados da Editora Lex, encontrei 77 acórdãos que aplicam ou trazem o debate de incidência do comando para as ações dessa natureza, dos Tribunais de São Paulo, Minas Gerais, Rio Grande do Sul, Mato Grosso do Sul, Distrito Federal, Ceará, Pernambuco, Paraná, Sergipe, Santa Catarina, Goiás e Mato Grosso. A grande maioria dos arestos que encontrei é da primeira Corte citada, merecendo destaque o seguinte, que segue exatamente exemplos por mim destacados a respeito de temas que podem ser debatidos, após a decretação do fim do casamento: "DIVÓRCIO. DECISÃO QUE INDEFERIU A HOMOLOGAÇÃO DO DIVÓRCIO CONSENSUAL, ANTE O PROSSEGUIMENTO DA AÇÃO APENAS QUANTO AOS ALIMENTOS DEVIDOS AOS FILHOS. Insurgência. Acolhimento. Partes que acordaram no que diz respeito ao divórcio, partilha de bens, guarda e regime de visitas dos filhos. Caso de sentença parcial de mérito, para a decretação e homologação do divórcio consensual. Exegese do art. 356 do CPC. Precedentes desta Corte. Agravo Provido" (TJ/SP, agravo de instrumento 2230989-39.2021.8.26.0000, acórdão 15.328.528, Araraquara, 5ª câmara de Direito Privado, Rel. Des. A. C. Mathias Coltro, julgado em 19/1/22, DJE/SP 24/1/22, p. 7114). Realizando a busca pelo art. 356 do CPC/15 e o termo "separação judicial" no mesmo repertório, apenas três arestos surgiram, dos Tribunais estaduais de Goiás, Ceará e Rio Grande do Sul. Isso demonstra que - a despeito do debate sobre a manutenção ou não no nosso sistema jurídico desde a EC 66, o que pende de julgamento no STF - as ações de separação são hoje raras na prática. Dos três acórdãos que encontrei, colaciono o seguinte, com interessante análise processual sobre a sua conversão em divórcio: "de acordo com o art. 327 e §§ 1º e 2º do CPC/15, é admitida a cumulação, em um único processo contra o mesmo réu, de vários pedidos, desde que compatíveis entre si, seja competente para apreciá-los o mesmo juízo e seja empregado o mesmo tipo de procedimento. Situação em que o autor ingressou com ação de conversão de separação judicial em divórcio, requerendo, cumulativamente, a revisão de alimentos e regulamentação de visita, optando pelo procedimento comum. [...]. O provimento deste recurso limita-se à desconstituição da sentença no que diz com a extinção do feito relativamente às pretensões cumuladas (item 'a' do dispositivo sentencial). Resta, porém, subsistente o Decreto de divórcio (item 'b' do dispositivo sentencial). Tal solução é agora autorizada pelo art. 356, I, do CPC, na medida em que não há controvérsia quanto ao pedido de divórcio" (TJ/RS, apelação cível 0005725-67.2017.8.21.7000, Canoas, 8ª câmara Cível, rel. des. Luiz Felipe Brasil Santos, julgado em 23/3/17, DJERS 30/3/17). Com a pesquisa pelo art. 356 do CPC e a expressão "união estável", foram encontrados 35 acórdãos, dos Tribunais Estaduais de Mato Grosso do Sul, São Paulo, Paraná, Minas Gerais, Rio Grande do Sul, Santa Catarina e Ceará. Da última Corte Estadual, destaco decisum com conclusão prática interessante, no sentido de que a norma processual em estudo pode ser aplicada não só para a dissolução da união estável, mas para o seu reconhecimento, quando for inconteste entre as partes: "é cediço, que nos processos de família a conciliação é de fundamental importância, tanto para as partes, como para o judiciário, interessados, familiares e a própria sociedade, uma vez que oportuniza aos envolvidos na relação processual a construção de uma decisão resolutiva dos seus próprios conflitos, além de imprimir celeridade aos feitos no âmbito de família. Também observa-se, que no caso concreto, havia a possibilidade de julgamento antecipado parcial do mérito (art. 356, do CPC), com a solução prévia da matéria incontroversa, como por exemplo, o reconhecimento da união estável, prosseguindo o processo em relação às demais, o que também constitui instrumento hábil para oferecer efetividade à prestação jurisdicional, minimizando os pontos de atrito entre as partes" (TJ/CE, apelação 0838528-40.2014.8.06.0001, 2ª câmara de Direito Privado, rel. des. Maria de Fátima de Melo Loureiro, DJCE 24/6/20, p. 228). Justamente pela não aplicação da última norma, entre outros temas, a sentença de primeiro grau acabou sendo anulada pelo Tribunal. Sendo assim, pela pesquisa realizada, parece-me que o que previ, no ano de 2016, a respeito da efetivação prática do art. 356 do CPC/2015 para as ações de família acabou se concretizando. Por fim, pela sua relevância, há que se mencionar importante julgado da 4ª turma do STJ, de 15/322, relatado pelo ministro Marco Buzzi e publicado no seu informativo de jurisprudência 729. O número do recurso especial não foi divulgado, por questão de segredo de justiça. Conforme a tese publicada, "sob a égide do CPC/73, inexiste incompatibilidade lógica entre o acordo efetuado quanto à pretensão principal de separação conjugal e o prosseguimento do feito quanto às pretensões conexas". Penso que, em certa medida, a conclusão do aresto antecipa, sob a vigência do estatuto processual anterior, conclusões que podem ser retiradas do art. 356 do CPC/15. Mais do que isso, traz orientações importantes a respeito da última norma instrumental. No caso concreto, debateu-se se houve a renúncia tácita a direito de ação ou a perda superveniente do interesse de agir, a obstar o prosseguimento do feito quanto a pedido de indenização por danos morais em ação de separação judicial, notadamente diante da composição das partes quando de audiência, a respeito da sua separação. A resposta dada pelos julgadores foi negativa, uma vez que a renúncia e a transação merecem interpretação restritiva, pelo que se retira dos arts. 114 e 843 do CC/02. Ainda como está na publicação do acórdão naquele informativo do STJ, "no particular, assinala-se que a demanda subjacente ao recurso especial, assim como a autocomposição celebrada, deu-se em momento anterior à EC 66/10, a qual introduziu o divórcio direto e, de forma elogiável, mitigou a necessidade de interferência estatal na esfera familiar, possibilitando a concretização, pelos cônjuges, de sua autonomia privada". E, mais, "conforme dispunha o vigente art. 1.123 do CPC/73, é lícito às partes, a qualquer tempo, no curso da separação judicial, requererem a conversão em separação consensual [...], sem que isso implique renúncia ou perda de interesse de agir em relação a pretensões conexas, decorrentes do descumprimento de obrigações inerentes à sociedade conjugal, mormente nas hipóteses em que igualmente consubstanciam grave lesão a direito de personalidade. No caso, nada obstante tenha a parte autora, ao entabular acordo, transmudado a natureza da demanda, no que se refere à separação - de litigiosa para consensual -, com o acertamento dos demais pedidos decorrentes (guarda, visitas), em nenhum momento declarou expressamente desistência ou renúncia ao direito em que fundamentado o pedido condenatório". Entendo que deduções do julgado dialogam perfeitamente com a possibilidade de aplicação do julgamento parcial de mérito nas ações de família. Sendo assim, eventuais transações realizadas entre as partes não podem afastar a possibilidade de ingresso de demandas ou a formulação de pedidos posteriores na própria ação que visa à dissolução do vínculo do casamento e da união estável. Essa última conclusão está totalmente adequada à instrumentalidade e à eficiência do processo, incentivando, ainda, a composição entre as partes sobre questões pacíficas da demanda, conceitos que ganharam muita força desde a elaboração do meu último texto e nos seis anos de vigência do Código de Processual Civil. 
quarta-feira, 23 de fevereiro de 2022

Arbitragem e Direito de Família

Um dos temas que vem sendo debatido muito intensamente no âmbito da doutrina brasileira diz respeito à possibilidade da arbitrabilidade em matérias de Direito de Família. O assunto foi objeto da tese de doutorado de Ricardo Lucas Calderon, defendida na Faculdade de Direito da Universidade Federal do Paraná no último dia 7 de fevereiro de 2022, com o título "Ressignificação da indisponibilidade dos direitos: transigibilidade e arbitrabilidade nos conflitos familiares". Participaram da banca os Professores Carlos Eduardo Pianovski - orientador e presidente -, Ana Carla Matos, Anderson Schreiber, Mario Luiz Delgado e Francisco José Cahali. O trabalho foi aprovado com distinção e deve ser publicado como livro em breve. A propósito, o último doutrinador citado há tempos é um dos defensores da possibilidade de a arbitragem envolver os conflitos de direitos disponíveis no âmbito familiar, mesmo não havendo norma expressa o autorizando. Segundo ele, "vedada a arbitragem para solução de questão de estado (filiação, poder familiar, estado civil etc.) e para direitos não patrimoniais e indisponíveis, para se colocar os protagonistas de um conflito envolvendo o direito de família no palco arbitral, então, indispensável que a matéria pontual respectiva, dentro da amplitude do instituto, seja exclusivamente de natureza patrimonial disponível" (CAHALI, Francisco José. Curso de arbitragem. 6. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2017. p. 435). O jurista - alterando posição anterior - é favorável a que a arbitragem resolva até mesmo as questões relativas aos valores dos alimentos: "acabamos por nos curvar à admissibilidade, em princípio, da fixação, da pensão alimentícia no juízo arbitral, sempre no pressuposto de se verificar a capacidade das partes e a convergente disposição no sentido de existir a respectiva obrigação". De toda sorte, ressalva, com razão, que "temos dificuldade em vislumbrar proveito expressivo às partes nesta situação. E, na prática, preferimos deixar esta matéria ainda aos cuidados do Poder Judiciário" (CAHALI, Francisco José. Curso de arbitragem. 6. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2017. p. 437).  Ainda no campo doutrinário, superando-se o debate que foi inaugurado na I Jornada, aprovou-se o Enunciado 96 na II Jornada de Prevenção e Solução Extrajudicial de Litígios, promovida pelo Conselho da Justiça Federal em agosto de 2021. Consoante o seu teor, é "válida a inserção da cláusula compromissória em pacto antenupcial e em contrato de união estável". Como se percebe, a ementa doutrinária prevê a validade, nos termos do art. 104 do Código Civil, da cláusula compromissória incluída em acordo de vontades prévio entre cônjuges e companheiros, como exercício legítimo da autonomia privada. Quando da plenária final daquele evento, cheguei a propor à comissão de arbitragem - presidida pelo Professor Carlos Alberto Carmona - um novo texto para a proposta, com a seguinte redação: "é possível a arbitragem que envolva questões estritamente patrimoniais de Direito de Família". A sugestão, porém, não foi acatada, e, após intensos debates, aprovou-se com pequena margem o enunciado na dicção antes apontada. Pois bem, este breve artigo visa a trazer algumas questões de debate a respeito do tema, e que ainda servem como argumento para as minhas resistências ou ressalvas quanto à arbitragem no Direito de Família. A primeira delas diz respeito ao fato de ser difícil a separação absoluta de interesses puramente patrimoniais nas disputas de família. Como está previsto no art. 852 do Código Civil, é vedado o compromisso arbitral - seja judicial ou extrajudicial - para solução de questões de estado, de direito pessoal de família e de outras que não tenham caráter estritamente patrimonial. Além disso, o art. 1º da Lei de Arbitragem (lei 9.307/96) prevê que as pessoas capazes de contratar poderão valer-se da arbitragem para dirimir litígios relativos a direitos patrimoniais disponíveis. Não se pode negar que as questões relativas à partilha de bens entre cônjuges envolvem direitos de cunho patrimonial que podem ser objeto de disposição ou alienação. Mas o que dizer de disputas que envolvem bens sobre os quais existe certo apego afetivo, caso de quadros, livros, obras de arte, veículos, peças de roupas e mesmo imóveis? E as hipóteses envolvendo os animais, que caminham para um tratamento legal em separado dos bens e das coisas? Nessas disputas, aspectos subjetivos e extrapatrimoniais, por vezes, entram em cena, a retirar a patrimonialidade pura ou a neutralidade patrimonial e objetiva das disputas. A segunda ressalva está relacionada ao modo como foi pactuada a cláusula compromissória, sabendo-se que, em muitas situações concretas, haverá sua imposição por um dos cônjuges ou companheiros, notadamente em casos de discrepância econômica entre eles. Nesse contexto, o próprio contrato ou negócio jurídico firmado poderá ter o conteúdo imposto por uma das partes, caracterizando-se como um contrato de adesão. Lembro, a propósito de uma necessária diferenciação categórica, que o contrato de adesão não necessariamente é um contrato de consumo, como se retira do Enunciado n. 171, aprovado na III Jornada de Direito Civil. A primeira categoria pode ser definida como o contrato em que alguém, o estipulante, impõe o conteúdo do negócio, restando à outra parte, o aderente, duas opções: aceitar ou não. Ora, é perfeitamente possível que tal situação se revele em pacto antenupcial ou contrato de convivência, podendo atingir todo o seu conteúdo ou determinadas cláusulas. Revelando-se tal situação, é necessário observar, quanto à cláusula compromissória, o que está previsto no art. 4º da Lei de Arbitragem. Nos termos do seu caput, a cláusula compromissória é a convenção por meio da qual as partes em um contrato comprometem-se a submeter à arbitragem os litígios que possam vir a surgir relativamente a tal contrato. Como é notório, trata-se de uma previsão prévia que obriga as partes, que renunciam à jurisdição estatal e passam a se vincular, necessariamente, à jurisdição estatal, nas hipóteses de litígios futuros. Controlando o seu conteúdo, o § 2º desse preceito estabelece que nos contratos de adesão a cláusula compromissória só terá eficácia se o aderente tomar a iniciativa de instituir a arbitragem ou concordar, expressamente, com a sua instituição, desde que por escrito em documento anexo ou em negrito, com a assinatura ou visto especialmente para essa cláusula. Aplicando a norma, aresto do Superior Tribunal de Justiça considerou que a cláusula que não preenche tais requisitos deve ser tida como patológica, o que acarreta a sua nulidade absoluta e não a mera ineficácia. O acórdão disse respeito a contrato de franquia, tendo sido assim ementado: "Recurso especial. Direito civil e processual civil. Contrato de franquia. Contrato de adesão. Arbitragem. Requisito de validade do art. 4º, § 2º, da lei 9.307/96. Descumprimento. Reconhecimento prima facie de cláusula compromissória 'patológica'. Atuação do Poder Judiciário. Possibilidade. Nulidade reconhecida. Recurso provido. 1. Recurso especial interposto em 07/04/2015 e redistribuído a este gabinete em 25/08/2016. 2. O contrato de franquia, por sua natureza, não está sujeito às regras protetivas previstas no CDC, pois não há relação de consumo, mas de fomento econômico. 3. Todos os contratos de adesão, mesmo aqueles que não consubstanciam relações de consumo, como os contratos de franquia, devem observar o disposto no art. 4º, § 2º, da lei 9.307/96. 4. O Poder Judiciário pode, nos casos em que prima facie é identificado um compromisso arbitral 'patológico', i.e., claramente ilegal, declarar a nulidade dessa cláusula, independentemente do estado em que se encontre o procedimento arbitral. 5. Recurso especial conhecido e provido" (STJ, REsp 1.602.076/SP, 3ª Turma, Rel. Min. Nancy Andrighi, j. 15.09.2016, DJe 30.09.2016). Além da precisa análise técnica, o aresto traz a correta diferenciação entre os contratos de consumo e os de adesão, não havendo necessariamente uma coincidência de conceitos, como antes pontuei. Além disso, sobre a eventual diferenciação entre os termos contrato de adesão e por adesão, no sentido de que os primeiros exigiriam a presença do monopólio da atividade, como muitas vezes se sustenta - de forma equivocada -, a Ministra Relatora pontuou que, "quanto à diferenciação apresentada pela recorrida segundo a qual contratos 'por adesão' são distintos de contratos 'de adesão', entendo que essa sutileza sintática é incapaz de representar alguma diferença semântica relevante, pois o Direito não trata de forma distinta essas duas supostas categorias". Isso reforça a possibilidade de se aplicar a ideia nas relações entre cônjuges e companheiros. Em continuidade de análise do acórdão, entendo que o enquadramento pela nulidade absoluta da cláusula compromissória patológica pode se dar pelo que consta do art. 424 do Código Civil, pelo qual nos contratos de adesão é nula a cláusula de renúncia a direito resultante da natureza do negócio, no caso à jurisdição estatal. Ainda quanto a essa minha segunda objeção, vale lembrar o teor do art. 1.655 do Código Civil, segundo o qual é nula - por nulidade absoluta - a convenção antenupcial ou cláusula dela que contravenha disposição absoluta de lei, entendida a última expressão como norma de ordem pública. A norma cogente violada, no caso de imposição de uma cláusula compromissória em contrato celebrado entre consortes, é justamente o art. 424 do Código Civil. Todas essas questões, sem dúvida, merecem ser melhor analisadas quando se tem a sua inserção prévia por cônjuges ou companheiros em posições econômicas discrepantes. Por fim, como terceira ressalva, nota-se que há um problema prático na aceitação da atuação por árbitros em contendas que envolvam o Direito de Família. Como é notório, toda a atuação dos árbitros nos procedimentos é efetivada para o fim de se evitar ao máximo qualquer nulidade da sentença arbitral a ser proferida no futuro. E, nos termos do art. 32, inc. I, da lei 9.307/96, é nula a sentença arbitral se for nula a convenção de arbitragem, categoria que engloba tanto o compromisso quanto a cláusula compromissória. Volta-se ao problema da neutralidade patrimonial das questões de Direito de Família, sendo difícil, no meu entender, fazer uma separação absoluta de questões que são patrimoniais puras, como anotei no desenvolvimento da primeira ressalva. De toda sorte, não se pode negar que o tema é polêmico e que existem vozes e argumentos fortes para se efetivar a arbitrabilidade familiar. O mesmo debate - até com maiores dificuldades, diante da intangibilidade da legítima - atinge o Direito das Sucessões. Pretendo desenvolver melhor essas minhas objeções em artigo científico a ser escrito no futuro.
Inaplicabilidade da tese do Tema 622, julgado pelo STF. Com enorme impacto para a teoria e prática, o STF julgou, no ano de 2016, a repercussão geral relativa à parentalidade socioafetiva. Conforme a tese firmada, "a paternidade socioafetiva, declarada ou não em registro, não impede o reconhecimento do vínculo de filiação concomitante, baseada na origem biológica, com os efeitos jurídicos próprios" (Recurso Extraordinário 898.060/SC, com repercussão geral, Rel. Min. Luiz Fux, j. 21.09.2016, publicado no seu Informativo 840, Tema 622). Como já destaquei em textos anteriores, não se pode negar que uma das grandes contribuições do aresto foi consolidar a posição jurídica de que a socioafetividade é forma de parentesco civil, em posição igualitária frente ao parentesco consanguíneo. Nesse sentido, destaque-se o seguinte trecho do voto do Ministro Relator Luiz Fux: "A compreensão jurídica cosmopolita das famílias exige a ampliação da tutela normativa a todas as formas pelas quais a parentalidade pode se manifestar, a saber: (i) pela presunção decorrente do casamento ou outras hipóteses legais; (ii) pela descendência biológica; ou (iii) pela afetividade. A evolução científica responsável pela popularização do exame de DNA conduziu ao reforço de importância do critério biológico, tanto para fins de filiação quanto para concretizar o direito fundamental à busca da identidade genética, como natural emanação do direito de personalidade de um ser. A afetividade enquanto critério, por sua vez, gozava de aplicação por doutrina e jurisprudência desde o Código Civil de 1916 para evitar situações de extrema injustiça, reconhecendo-se a posse do estado de filho, e consequentemente o vínculo parental, em favor daquele que utilizasse o nome da família (nominatio), fosse tratado como filho pelo pai (tractatio) e gozasse do reconhecimento da sua condição de descendente pela comunidade (reputatio)" (STF, Recurso Extraordinário 898.060/SC, Tema n. 622). Como se pode notar, o julgado aponta que a parentalidade socioafetiva é fundada na posse de estado de filho, tendo como parâmetros os seus critérios já consolidados em doutrina: nome, tratamento e reputação, a tríade nominatio, tractatio e reputatio. Além do reconhecimento da parentalidade socioafetiva como forma de parentesco, tenho destacado outros três aspectos de seu conteúdo. O primeiro deles é o reconhecimento expresso, o que foi feito por vários Ministros, de ser a afetividade um valor jurídico e um princípio inerente à ordem civil-constitucional brasileira.  O segundo aspecto, frise-se, diz respeito ao fato de estar a parentalidade socioafetiva - cujo fundamento legal é o art. 1.593 do CC/2002, pela menção à "outra origem" -, em situação de igualdade com a paternidade biológica. Em outras palavras, não há hierarquia entre uma ou outra modalidade de filiação, o que representa um razoável e desejável equilíbrio. O terceiro é último aspecto do decisum superior é a vitória da multiparentalidade ou pluriparentalidade, que passou a ser admitida pelo Direito brasileiro, mesmo que contra a vontade do pai biológico. Ficou claro, pelo julgamento, que o reconhecimento do vínculo concomitante é para todos os fins, inclusive alimentares e sucessórios. De toda sorte, como se retira da tese final do julgamento, é possível o reconhecimento do vínculo biológico concomitante desde que exista um vínculo de parentalidade socioafetiva prévio, fundado na posse de estado de filhos. Esse foi o caso levado a julgamento ao STF.  Conforme tenho sustentado, emergem grandes desafios dessa tese, mas é tarefa da doutrina, da jurisprudência e dos aplicadores do Direito resolverem os problemas que surgem, de acordo com os casos concretos colocados a julgamento pelo Poder Judiciário. Uma das hipóteses de enorme debate sobre a incidência ou não da tese do Tema n. 622 diz respeito à existência de adoção prévia. Em uma análise superficial do panorama jurídico que emergiu com a decisão do STF poder-se-ia afirmar que deve ser reconhecido o duplo vínculo de paternidade nessas situações, tanto em relação ao pai adotivo como também em relação ao suposto pai biológico. Entretanto, como alerta Ricardo Calderon, em comentários à decisão do STF, "aspecto central nesta temática é que o caso concreto em si deverá indicar qual a decisão mais acertada para aquela situação fático-jurídica, o que não recomenda que se adotem soluções apriorísticas. Apenas a análise da situação em pauta poderá permitir concluir se naquele caso específico deve prevalecer uma dada modalidade de filiação, ou ainda, se devem coexistir ambas as modalidades em multiparentalidade. A manutenção de vínculos concomitantes passa a ser mais uma opção que se oferta para o acertamento de casos concretos que envolvam a questão" (CALDERÓN, Ricardo. O princípio da afetividade no Direito de Família. Rio de Janeiro: Forense, 2ª Edição, 2017, p. 217).   Nesse contexto, penso que a tese exarada pelo STF quando do julgamento do Tema 622 não incide para os casos de adoção, que é totalmente irrevogável no sistema jurídico brasileiro. Pensar o contrário feriria a legislação prevista a respeito desse instituto e o colocaria em total descrédito.   Vale lembrar que, sob a égide do Código Civil de 1916 e da lei 6.697/79, já se admitia a modalidade da adoção plena. Consoante o art. 29 do último diploma legal, "a adoção plena atribui a situação de filho ao adotado, desligando-o de qualquer vínculo com pais e parentes, salvo os impedimentos matrimoniais". Ademais, como estava no seu art. 37, "a adoção plena é irrevogável, ainda que aos adotantes venham a nascer filhos, as quais estão equiparados os adotados, com os mesmos direitos e deveres". Tais previsões foram confirmadas pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (lei 8.069/90), que ora rege o instituto da adoção. Prevê o seu art. 41, caput, que "a adoção atribui a condição de filho ao adotado, com os mesmos direitos e deveres, inclusive sucessórios, desligando-o de qualquer vínculo com pais e parentes, salvo os impedimentos matrimoniais". E mais, nos termos do seu art. 39, "a adoção de criança e de adolescente reger-se-á segundo o disposto nesta lei. § 1º. A adoção é medida excepcional e irrevogável, à qual se deve recorrer apenas quando esgotados os recursos de manutenção da criança ou adolescente na família natural ou extensa, na forma do parágrafo único do art. 25 desta Lei" (Incluído pela lei 12.010, de 2009). O entendimento pela não aplicação da tese do Tema 622 do Supremo Tribunal Federal aos casos de adoção é compartilhada por João Ricardo Brandão Aguirre. Segundo as suas palavras, "a partir dessa fundamental premissa, é possível se responder às questões relacionadas à adoção e às técnicas de reprodução assistida, posto que pleitos pautados apenas pela intenção de se obter vantagens patrimoniais ou econômicas não devem prosperar. Deste modo, o adotado que pretende desconstituir o vínculo de parentesco estabelecido com a nova família em virtude da adoção, apenas para pleitear a herança de um parente natural ou para dele requerer alimentos, não deve ter seu pedido conhecido, pois que a ausência da socioafetividade afasta a possibilidade de reconhecimento da multiparentalidade, ressalvando-se o direito de o adotado conhecer a sua origem biológica, consoante disposto pelo art. 48 do ECA. Isso significa dizer que o vínculo meramente biológico não é capaz de produzir os efeitos decorrentes das relações de parentesco, em razão da ausência da afetividade, mas será capaz de garantir o exercício do direito à identidade. O mesmo se diga daqueles que pretendem o reconhecimento da multiparentalidade com os doadores de sêmen ou de qualquer outro material genético para clínicas de reprodução assistida, eis que a eles está garantido o direito de conhecerem a origem genética, mas não os efeitos decorrentes da multiparentalidade, posto não existir a relação socioafetiva" (AGUIRRE, João Ricardo Brandão. Reflexões sobre a multiparentalidade e a repercussão geral nº 622 do STF. Direito das relações familiares contemporâneas: estudos em homenagem a Paulo Luiz Netto Lôbo. Coordenação: Marcos Ehrhardt, Fabíola Albuquerque Lobo e Gustavo Andrade. Belo Horizonte: Fórum, 2019, p. 207-208).  E mais, citando José Fernando Simão, em entendimento que conta com o meu total apoio:  "Assim sendo, é possível se afirmar, forte no escólio de José Fernando Simão, que 'o doador de esperma, na hipótese de técnica de reprodução assistida heterólogo, não é pai, mas apenas ascendente genético'. Também no caso de adoção 'há rompimento dos vínculos de filiação com a família genética, ou seja, o filho terá apenas o pai adotivo, sendo que aquele que um dia foi seu pai assume o status apenas de ascendente genético'. E, por fim, aquele que desconhece o fato de possuir um filho biológico, pois sua namorada não contou da gravidez, por exemplo, 'e um dia descobre que esse filho foi criado por outro homem, a quem chama de pai, não é pai, mas apenas ascendente genético'. Isso porque não há, em nenhum desses casos, relação socioafetiva capaz de dar fundamento à multiparentalidade".  Na mesma linha, afirmam Pablo Stolze Gagliano e Rodolfo Pamplona Filho, que "em nosso sentir, apenas ilustrando, pensamos não ser possível a aplicação da tese em caso de adoção - por expressa disposição de lei - nem aos filhos havidos por inseminação artificial heteróloga" (Novo Curso de Direito Civil. Volume 6. Direito de Família. São Paulo: Saraiva, 11ª Edição, 2021, p. 637).  Também Paulo Lôbo, um dos grandes especialistas sobre o tema da parentalidade socioafetiva em nosso País, leciona que "permanece o direito ao reconhecimento da origem genética, como direito da personalidade, sem efeito de parentesco, na hipótese de adoção, conforme previsto no art. 48 do ECA, com redação dada pela Lei 12.010/2009: (...). Em caso de recusa ao acesso, pode ser ajuizada ação para tal finalidade, que não se confunde com a ação de investigação de paternidade ou maternidade. A decisão do STF não implica inconstitucionalidade de norma legal que estabelece a ruptura dos vínculos familiares de origem do adotado, exceto quanto aos impedimentos matrimoniais" (Parentalidade socioafetiva e multiparentalidade. Questões Atuais. In Direito Civil: Diálogos entre a Doutrina e a Jurisprudência. Coordenadores: Luis Felipe Salomão e Flavio Tartuce, São Paulo: Atlas, 2018, p. 607).  Para Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald, "não será possível aplicar a multiparentalidade nos casos em que a filiação socioafetiva decorrer de uma adoção. Isso porque, por expressa disposição do art. 49 do Estatuto da Criança e do Adolescente, a adoção rompe todos os vínculos biológicos que não serão restabelecidos, sequer, pela morte dos adotantes. De fato, permitir o estabelecimento de uma parentalidade plúrima entre pais adotivos e biológicos poderia ser a depreciação da adoção, reduzindo a sua relevância e segurança jurídica. Quem adota, naturalmente, pressupõe a ruptura definitiva dos liames biológicos do adotado, não havendo espaço para a tese" (Curso de Direito Civil. Volume 6. Famílias. Salvador: Juspodivm, 13ª Edição, 2021, p. 656). Igualmente, Maria Berenice Dias, ao analisar especificamente a multiparentalidade pontua que "o art. 48 do ECA garante ao adotado o direito de conhecer sua origem biológica. Deste modo, não há como negar-lhe acesso à Justiça. No entanto, como a adoção é irrevogável (ECA 39 §1º), o reconhecimento da filiação biológica não enseja alterações no assento de nascimento e nem gera efeitos pessoais ou patrimoniais" (DIAS, Maria Berenice. Manual de Direito das Famílias. Salvador: Juspodivm, 13ª Edição, 2020, p. 291-292). Observe-se, na linha do que ensinam os últimos autores, que eventual reconhecimento não se dá em ação investigatória de parentalidade, mas em ação de busca de ascendência genética. E, ao final desta ação, apenas se declara o vínculo biológico, sem se estabelecer o parentesco, com todas as suas consequências jurídicas. Como última nota, é preciso fazer a distinção ("distinguishing") da hipótese de adoção prévia em relação ao que foi julgado pelo Supremo Tribunal Federal quando do Tema n. 622. Nas palavras, de Silvano José Gomes Flumignan, trata-se de "uma técnica que busca comparar os pressupostos de fato e de direito preponderantes para a tese do precedente em relação a um determinado caso concreto. Se os pressupostos forem os mesmos ou, pelo menos, existir grande similitude fática e jurídica, o precedente é adequado àquele caso. Se, por outro lado, os casos não forem similares, haverá inadequação do precedente" (Debates iniciais sobre distinção para precedentes em formação. Disponível em https://www.conjur.com.br/2021-jul-19/direito-civil-atual-debates-distincao-precedentes-formacao-distinguishing. Publicado em 19 de julho de 2021. Acesso em 17 de janeiro de 2021).   O caso analisado pelo STF, como antes pontuado, disse respeito à hipótese concreta em que alguém - já reconhecido por pai socioafetivo, por meio de adoção informal ou "adoção à brasileira" -, pretendia o reconhecimento do vínculo biológico. Como está das fls. 9 do inteiro teor do acórdão, em trecho de parte do voto do Ministro Fux, ", rapidamente, a verdade é que nós nos defrontamos com uma arguição no recurso extraordinário, e é o que foi afetado na repercussão geral, sobre o fato de que o recorrente se opunha ao reconhecimento da paternidade biológica, e já havia a paternidade socioafetiva. Então, havia um confronto. O que o Tribunal decidiu? Que uma coisa não inibe a outra. Qual é a minha tese? A paternidade socioafetiva, declarada ou não em registro público - no caso, essa era declarada; porque também nós reconhecemos a afetividade como um fato gerador de filiação -, não impede o reconhecimento do vínculo de filiação concomitante baseado na origem biológica, com todas as suas consequências jurídicas" (STF, Recurso Extraordinário 898.060/SC, Tema n. 622). Sendo assim e fazendo-se a referida distinção, há, sem dúvidas, inadequação do precedente à adoção. Por fim, além dessa distinção a respeito do julgado superior em si, a verdade é que os precedentes anteriores sobre a multiparentalidade também dizem respeito a vínculo de parentalidade socioafetiva cumulado com o vínculo biológico, e não quanto à adoção, o que confirma a afirmação de sua inaplicabilidade na última situação.   
quarta-feira, 29 de dezembro de 2021

Família e sucessões no segundo ano da pandemia

Esta é a última coluna Família e Sucessões do Migalhas de 2021, o segundo ano da pandemia de Covid-19. Em meio a muitas perdas e dificuldades, poucas alterações legislativas e algumas decisões judiciais de destaque, seguimos lutando contra o grande desafio imposto à nossa geração. Houve um certo contraste entre os dois semestres, o primeiro muito duro e o segundo movido pela esperança da vacina e pela diminuição de casos e de mortes em virtude da doença. Entretanto, como sempre tenho advertido, as dúvidas quanto ao fim da pandemia ainda persistem, infelizmente. Do ponto de vista legislativo, poucas foram as normas que surgiram, destacando-se duas. A primeira é a lei 14.118, de 12 de janeiro de 2021, que instituiu o programa Casa Verde Amarela - em substituição ao programa Minha Casa, Minha Vida, da lei 11.977/2009 -, para aquisição de imóveis por famílias de baixa renda. A exemplo do diploma anterior, a nova lei trouxe regras que impactam o Direito de Família, cometendo os mesmos erros da anterior. Fiz uma análise pontual desses equívocos na minha coluna de janeiro. A segunda norma que emergiu foi a lei 14.138/2021, que, após uma longa tramitação no Congresso Nacional, acrescentou um § 2º ao art. 2º-A da lei 8.560/1992 para permitir, em sede de ação de investigação de paternidade, a realização do exame de pareamento do código genético (DNA) em parentes do suposto pai. Como é notório, o último diploma específico regula a investigação de paternidade dos filhos havidos fora do casamento, concretizando o princípio constitucional da igualdade entre os filhos, previsto no art. 227, § 6º, do Texto Maior. A nova lei consolidou a posição de alguns doutrinadores e a constante de alguns julgados, que já admitiam o citado exame, e foi objeto da minha coluna de abril de 2021. Quanto às decisões judiciais, seguimos na análise concreta de temas pandêmicos, destacando-se a mudança de orientação quanto à prisão civil do devedor de alimentos em regime fechado. No início da pandemia, como é notório, o Superior Tribunal de Justiça afastou a prisão civil do devedor de alimentos em regime fechado, possibilitando apenas a prisão domiciliar e seguindo a recomendação n. 62/2020 do Conselho Nacional de Justiça (por todos: STJ, HC 580.261/MG, Rel. Min. Paulo de Tarso Sanseverino, Terceira Turma, julgado em 02/06/2020, DJe 08/06/2020). Sucessivamente, veio a lei 14.010/2020, que instituiu um regime transitório em matéria de Direito Privado em tempos de pandemia (RJET). Conforme o seu art. 15, até 30 de outubro de 2020 - data considerada como de fim de abrangência da nova norma -, "a prisão civil por dívida alimentícia, prevista no art. 528, § 3º e seguintes da Lei n. 13.105, de 16 de março de 2015 (Código de Processo Civil), deverá ser cumprida exclusivamente sob a modalidade domiciliar, sem prejuízo da exigibilidade das respectivas obrigações". Após a primeira onda da pandemia e a cessação dos efeitos da lei, surgiu debate sobre a possibilidade ou não de prisão civil do devedor de alimentos em regime fechado, havendo variações de entendimentos nas Cortes Estaduais. Neste ano de 2021, infelizmente, tivemos a segunda onda da pandemia, muito pior do que a primeira, e o Superior Tribunal de Justiça voltou a se pronunciar, no sentido de afastar a prisão civil do devedor de alimentos em regime fechado mesmo após o fim da vigência do RJET, desde que presentes os efeitos sociais decorrentes da pandemia. Conforme preciso acórdão da sua Terceira Turma, que aponta a necessidade de se verificar os momentos diferentes da crise e admite a viabilidade de utilização de outras medidas para a efetivação do recebimento do crédito alimentar, "a experiência acumulada no primeiro ano de pandemia revela a necessidade de afastar uma solução judicial apriorística e rígida para a questão, conferindo o protagonismo, quanto ao ponto, ao credor dos alimentos, que, em regra, reúne melhores condições de indicar, diante das inúmeras especificidades envolvidas e das características peculiares do devedor, se será potencialmente mais eficaz o cumprimento da prisão em regime domiciliar ou o diferimento para posterior cumprimento da prisão em regime fechado, ressalvada, em quaisquer hipóteses, a possibilidade de serem adotadas, inclusive cumulativa e combinadamente, as medidas indutivas, coercitivas, mandamentais ou sub-rogatórias, nos termos do art. 139, IV, do CPC, de ofício ou a requerimento do credor. Ordem parcialmente concedida, apenas para impedir, por ora, a prisão civil do devedor de alimentos sob o regime fechado, mas facultando ao credor indicar, no juízo da execução de alimentos, se pretende que a prisão civil seja cumprida no regime domiciliar ou se pretende diferir o seu cumprimento, sem prejuízo da adoção de outras medidas indutivas, coercitivas, mandamentais ou sub-rogatórias" (STJ, HC 645.640/SC, Rel. Min. Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em 23/03/2021, DJe 26/03/2021). A necessidade de se verificar o momento pandêmico para as conclusões jurídicas é um ponto de destaque do aresto, servindo não só para a análise dos alimentos, mas também para outras questões de Direito Privado que ora vivenciamos. Ainda em 2021, o próprio Superior Tribunal de Justiça publicou a Edição 178 da ferramenta Jurisprudência em Teses, com orientações jurisprudenciais sobre a Covid-19. De acordo com a tese n. 1, "durante a pandemia da covid-19, faculta ao credor indicar, no juízo da execução de alimentos, se pretende que a prisão civil seja cumprida no regime domiciliar ou se prefere diferir o seu cumprimento". E, consoante a tese n. 2, "é possível a penhora de bens do devedor de alimentos, sem que haja a conversão do rito da prisão para o da constrição patrimonial, enquanto durar a suspensão de todas as ordens de prisão civil, em decorrência da pandemia da covid-19". Todavia, em novembro, o Conselho Nacional de Justiça voltou a recomendar a prisão civil do devedor de alimentos em regime fechado, diante da melhora do quadro pandêmico, fazendo com que a Terceira Turma do STJ se pronunciasse novamente pela viabilidade da prisão. Vejamos esse novo acórdão, com citação em destaque: "CIVIL. PROCESSUAL CIVIL. HABEAS CORPUS. EXECUÇÃO DE ALIMENTOS. CABIMENTO CONTRA DECISÃO DENEGATÓRIA DE LIMINAR NA ORIGEM. SÚMULA 691/STF. POSSIBILIDADE DE CONCESSÃO DA ORDEM DE OFÍCIO. EXCEPCIONALIDADE. MODIFICAÇÃO DE CAPACIDADE ECONÔMICA DO DEVEDOR. PAGAMENTO PARCIAL DOS ALIMENTOS. IRRELEVÂNCIA. AUSÊNCIA DE IMPEDIMENTO ABSOLUTO QUE JUSTIFIQUE A INADIMPLÊNCIA. IMPOSSIBILIDADE DE CUMPRIMENTO DA PRISÃO CIVIL DO DEVEDOR DE ALIMENTOS EM REGIME FECHADO DURANTE A PANDEMIA CAUSADA PELO CORONAVÍRUS. EVOLUÇÃO JURISPRUDENCIAL DESTA CORTE. CUMPRIMENTO EM REGIME DOMICILIAR, DIFERIMENTO DO CUMPRIMENTO E ESCOLHA PELO CREDOR DA MEDIDA CONCRETAMENTE MAIS ADEQUADA. REVISITAÇÃO DO TEMA A PARTIR DO ATUAL CENÁRIO DA PANDEMIA NO BRASIL. NECESSIDADE. RETOMADA DE ATIVIDADES ECONÔMICAS, COMERCIAIS, SOCIAIS, CULTURAIS E DE LAZER. AVANÇO SUBSTANCIAL DA VACINAÇÃO EM TODO O PAÍS. SUPERAÇÃO DAS CIRCUNSTÂNCIAS QUE JUSTIFICARAM A IMPOSSIBILIDADE DE PRISÃO CIVIL DO DEVEDOR DE ALIMENTOS EM REGIME FECHADO. RETOMADA DA ADOÇÃO DESSA MEDIDA COERCITIVA. POSSIBILIDADE. 1- O propósito do habeas corpus é definir se, no atual momento da pandemia causada pelo coronavírus, é admissível a retomada da prisão civil do devedor de alimentos em regime fechado. 2- É incabível, por força da Súmula 691/STF, a impetração de habeas corpus contra decisão denegatória de liminar proferida pelo Relator no Tribunal de origem, sem que a questão tenha sido apreciada pelo órgão colegiado, ressalvada a excepcional superação desse entendimento diante da possibilidade de concessão da ordem de ofício. 3- A jurisprudência desta Corte se consolidou no sentido de que é inviável a apreciação de fatos e provas relacionadas à capacidade econômica ou financeira do devedor dos alimentos e de que o pagamento apenas parcial das parcelas vencidas ou vincendas no curso da execução é insuficiente, por si só, para impedir a prisão civil do alimentante. Precedentes. 4- Desde o início da pandemia causada pelo coronavírus, observa-se que a jurisprudência desta Corte oscilou entre a determinação de cumprimento da prisão civil do devedor de alimentos em regime domiciliar, a suspensão momentânea do cumprimento da prisão em regime fechado e a possibilidade de escolha, pelo credor, da medida mais adequada à hipótese, se diferir o cumprimento ou cumprir em regime domiciliar. Precedentes. 5- Passados oito meses desde a última modificação de posicionamento desta Corte a respeito do tema, é indispensável que se reexamine a questão à luz do quadro atual da pandemia no Brasil, especialmente em virtude da retomada das atividades econômicas, comerciais, sociais, culturais e de lazer e do avanço da vacinação em todo o território nacional. 6- Diante do cenário em que se estão em funcionamento, em níveis próximos ao período pré-pandemia, os bares, restaurantes, eventos, shows, boates e estádios, e no qual quase três quartos da população brasileira já tomou a primeira dose e quase um terço se encontra totalmente imunizada, não mais subsistem as razões de natureza humanitária e de saúde pública que justificaram a suspensão do cumprimento das prisões civis de devedores de alimentos em regime fechado. 7- Na hipótese, a devedora de alimentos é empresária, jovem e não informa possuir nenhuma espécie de problema de saúde ou comorbidade que impeça o cumprimento da prisão civil em regime fechado, devendo ser considerado, ademais, que nas localidades em que informa possuir domicílio, o percentual da população totalmente imunizada supera 80%. 8- Habeas corpus não conhecido. Ordem denegada de ofício" (STJ, HC 706.825/SP, Rel. Min. Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em 23/11/2021, DJe 25/11/2021). Portanto, na linha também do último acórdão, é preciso verificar o momento ou a fase pandêmica para se concluir se é viável a prisão civil do devedor de alimentos em regime fechado ou não. Por certo que pode haver uma variação de realidade, sobretudo se surgirem novas ondas pandêmicas diante de novas variantes, o que é bem provável, a justificar novamente a prisão em regime fechado. Como outra concreção prática importante, em 2021 emergiu paradigmático precedente a respeito da reprodução assistida, prolatado igualmente no âmbito do Superior Tribunal de Justiça, especialmente sobre a autorização para o destino de embriões excedentários após a morte. Em votação apertada, a Corte decidiu que "a declaração posta em contrato padrão de prestação de serviços de reprodução humana é instrumento absolutamente inadequado para legitimar a implantação post mortem de embriões excedentários, cuja autorização, expressa e específica, deve ser efetivada por testamento ou por documento análogo". Como justificativas principais do aresto, concluiu-se que "a decisão de autorizar a utilização de embriões consiste em disposição post mortem, que, para além dos efeitos patrimoniais, sucessórios, relaciona-se intrinsecamente à personalidade e dignidade dos seres humanos envolvidos, genitor e os que seriam concebidos, atraindo, portanto, a imperativa obediência à forma expressa e incontestável, alcançada por meio do testamento ou instrumento que o valha em formalidade e garantia" (STJ, REsp 1.918.421/SP, Rel. Min. Marco Buzzi, Rel. p/ Acórdão Min. Luis Felipe Salomão, Quarta Turma, julgado em 08/06/2021, DJe 26/08/2021). O decisum cita várias posições doutrinárias, sendo robusto na sua fundamentação. De todo modo e com o devido respeito à maioria, parece-me que houve um excesso de rigor formal no julgamento final. Por isso, estou filiado ao voto vencido, do Ministro Marco Buzzi, até porque entendo que no caso concreto os embriões teriam o direito de ser implantados. Analisadas as principais decisões jurisprudenciais no último ano, sem prejuízo de muitas outras, quanto aos eventos jurídicos, dois merecem destaque. Em agosto, ocorreu a II Jornada de Solução Extrajudicial de Prevenção e Solução Extrajudicial dos Litígios, pelo Conselho da Justiça Federal, sob a coordenação geral dos ministros Luis Felipe Salomão e Paulo de Tarso Sanseverino. Com quatro comissões temáticas - sobre arbitragem, mediação, desjudicialização e novas tecnologias -, surgiram enunciados doutrinários sobre temas de extrajudicialização, alguns deles relacionados a temas de Direito de Família e das Sucessões, como analisei na minha coluna de setembro. O segundo evento a ser mencionado ocorreu nos últimos dias 27 a 29 de outubro, promovido pelo Instituto Brasileiro de Direito de Família, o XIII Congresso Brasileiro de Direito das Famílias e Sucessões. De forma totalmente remota, participaram mais de dois mil inscritos, confirmando tratar-se de um dos maiores eventos de Direito Privado do País e do mundo. Como já vem ocorrendo desde a edição de 2015, foram apresentados os novos enunciados doutrinários do IBDFAM, como analisei na coluna de outubro de 2021, tratando de temas de grandes repercussões práticas na atualidade, como as consequências jurídicas da pandemia, a violência doméstica, a herança digital, o uso de imagem dos filhos no âmbito virtual, o namoro qualificado, a filiação socioafetiva, a convivência familiar e o divórcio como direito potestativo. Porém, um dos fatos mais marcantes do ano que termina foi o falecimento do grande Mestre Zeno Veloso, no dia 18 de março de 2021, vítima da Covid-19. O jurista sempre esteve presente em citações e diálogos em meus textos publicados nesta coluna, e, em 2021, três artigos foram dedicados a ele, nos meses de março, maio e junho. O próprio Congresso do IBDFAM foi feito em sua homenagem, sem prejuízo de muitas outras publicações e eventos. A nós, seus discípulos, caberá seguir com a transmissão do seu legado doutrinário nos próximos anos. Esse é um breve resumo do que de mais relevante ocorreu no último ano a respeito do Direito de Família e das Sucessões, um período muito difícil, com perdas e sofrimentos ainda intensos. Espero, sinceramente, que o ano de 2022 seja melhor do que os dois últimos. Aos nossos leitores, o meu agradecimento por acompanharem esta coluna. Ao Migalhas, mais uma vez o meu Muito Obrigado, por seguirmos com esta parceria de difusão do conhecimento técnico de temas importantes do Direito Civil Brasileiro. Até o próximo ano!
quarta-feira, 24 de novembro de 2021

Os novos enunciados doutrinários do IBDFAM

Nos últimos dias 27 a 29 de outubro de 2021, o Instituto Brasileiro de Direito de Família realizou o seu XIII Congresso Brasileiro de Direito das Famílias e Sucessões, um dos maiores eventos de Direito Privado do País e do mundo. De forma totalmente remota, participaram mais de dois mil inscritos. Dentro de sua programação, como já vem ocorrendo desde a edição de 2015, foram apresentados os novos enunciados do IBDFAM, que vêm sendo utilizados no campo prático de forma crescente, notadamente pela jurisprudência nacional. Como é notório, os enunciados traduzem a posição doutrinária de um grupo de juristas ou de uma instituição, trazendo nortes interpretativos sobre determinados assuntos. Nesta oportunidade, as propostas aprovadas trataram de temas como as consequências jurídicas da pandemia, violência doméstica, herança digital, uso de imagem dos filhos, namoro qualificado, filiação socioafetiva, convivência familiar e divórcio. A comissão de enunciados do IBDFAM recebeu cento e doze propostas de seus associados até o dia 14 de outubro último, dos seguinte Estados: Alagoas, Goiás, Maranhão, Mato Grosso do Sul, Minas Gerais, Pará, Paraíba, Paraná, Pernambuco, Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul, Santa Catarina, São Paulo e Sergipe. De início, foram selecionadas quinze delas, em análise cega, pelo grupo formado pelos Professores Giselda Hironaka, Marcos Ehrhardt Jr., Ana Carolina Brochado Teixeira, Gustavo Andrade, Luciana Brasileiro, Ricardo Calderón, Rodrigo Toscano, Simone Tassinari; além deste autor. A comissão ajustou a redação de algumas das proposições e elas foram submetidas à votação dos associados, em meio eletrônico. Ao final, sugiram os novos enunciados, decorrentes das dez propostas mais votadas pelos associados, após 6.799 votos no total. A seguir vejamos uma breve análise das novas ementas doutrinárias, sendo certo que estão na ordem de início pelas que receberam mais votos. Pois bem, conforme o novo Enunciado 37 do IBDFAM, nos casos que envolverem violência doméstica, a instrução processual em ações de família deve assegurar a integridade física, psicológica e patrimonial da vítima. Trata-se de proposta que procura efetivar a Lei Maria da Penha de forma correta e precisa, protegendo a vítima. Como é notório, infelizmente, houve um crescimento considerável dos casos de violência doméstica em meio à pandemia, o que evidencia a grande concretude da súmula doutrinária. Igualmente tratando de consequências da grave crise que ainda nos atinge, o Enunciado 38 estabelece que a interação pela via digital, ainda que por videoconferência, sempre que possível, deve ser utilizada de forma complementar à convivência familiar, e não substitutiva. Como se sabe, essa interação por meios eletrônicos foi intensificada nos últimos dois anos, não podendo substituir a convivência física e pessoal. A ementa é completada por outra, que será analisada a seguir, sobre guarda de filhos. No que concerne a importantes limites para o exercício do poder familiar ou da autoridade parental, outra proposição aprovada preceitua que "a liberdade de expressão dos pais em relação à possibilidade de divulgação de dados e imagens dos filhos na internet deve ser funcionalizada ao melhor interesse da criança e do adolescente e ao respeito aos seus direitos fundamentais, observados os riscos associados à superexposição" (Enunciado 39). Consubstancia-se ideia consolidada entre os civilistas de que a liberdade de expressão encontra limites em outros direitos fundamentais e da personalidade, não podendo ser tida como absoluta. Sobre a herança digital, exatamente na linha do que sustentei em outro texto aqui publicado, o Enunciado 40 prevê que ela pode integrar a sucessão do seu titular, ressalvadas as hipóteses envolvendo direitos personalíssimos, direitos de terceiros e disposições de última vontade em sentido contrário. Segue-se a vertente doutrinária que procura separar os direitos inerentes à personalidade do titular dos direitos patrimoniais puros, havendo a transmissão aos herdeiros do falecido somente quanto aos últimos; desde que o autor da herança não tenha se manifestado em sentido contrário perante o próprio provedor ou em documento idôneo, como em um testamento. Complementando a ementa anterior, novamente quanto à pandemia, o Enunciado 41 orienta que o regime de convivência que já tenha sido fixado em decisão judicial ou acordo deve ser mantido, salvo se, comprovadamente, qualquer dos pais for submetido a isolamento ou houver situação excepcional que não atenda ao melhor interesse da criança ou adolescente. Segue-se proposta de alteração legislativa que fizemos ao então Projeto 1.179, e que gerou a Lei 14.010/2020 (RJET), mas que acabou não sendo adotada pelo Senado Federal. Naquela ocasião a proposta foi elaborada em conjunto com os Professores José Fernando Simão e Maurício Bunazar ao Senador Rodrigo Pacheco, mas acabou não sendo incorporada ao texto legislativo. Trata-se de uma das questões mais judicializadas em tempos de pandemia, e a proposta doutrinária acaba trazendo um norte seguro para os aplicadores do Direito. Apesar do bom momento que vivemos quando da elaboração deste artigo - em novembro de 2021 -, novamente existem incertezas, como no último ano, quanto à possibilidade de novos surtos ou de ondas pandêmicas. Sobre o namoro qualificado - em homenagem ao Mestre Zeno Veloso, que foi um dos responsáveis por difundir a expressão -, aprovou-se o Enunciado 42, segundo o qual, diferentemente da união estável, ele não engloba todos os requisitos cumulativos presentes no art. 1.723 do Código Civil, a saber, a convivência pública, contínua e duradoura, estabelecida com o objetivo de constituição de família. O enunciado dialoga com a jurisprudência superior, sobretudo com o seguinte aresto: "o propósito de constituir família, alçado pela lei de regência como requisito essencial à constituição da união estável - a distinguir, inclusive, esta entidade familiar do denominado 'namoro qualificado' -, não consubstancia mera proclamação, para o futuro, da intenção de constituir uma família. É mais abrangente. Esta deve se afigurar presente durante toda a convivência, a partir do efetivo compartilhamento de vidas, com irrestrito apoio moral e material entre os companheiros. É dizer: a família deve, de fato, restar constituída" (STJ, REsp 1.454.643/RJ, Rel. Ministro Marco Aurélio Bellizze, Terceira Turma, julgado em 03/03/2015, DJe 10/03/2015). Sobre os procedimentos de reconhecimento extrajudicial de filiação socioafetiva, nos termos dos Provimentos n. 83 e 63 do Conselho Nacional de Justiça e na linha do que já foi defendido por mim neste canal, o Enunciado 43 dispensa a manifestação do Ministério Público nas hipóteses envolvendo as pessoas maiores de dezoito anos. Igualmente sobre o tema, e em prol da extrajudicialização, o Enunciado 44 estabelece que, existindo consenso sobre a filiação socioafetiva, esta poderá ser reconhecida no inventário judicial ou mesmo na via extrajudicial. Por fim, foram aprovadas duas propostas sobre o divórcio. A primeira delas, de número 45, prescreve que ação de divórcio já ajuizada não deverá ser extinta sem resolução de mérito, em caso do falecimento de uma das partes. Trata-se de enunciado doutrinário que procura encerrar polêmica jurisprudencial hoje existente. Concluindo pela necessidade de extinção da demanda em casos tais, por se tratar de uma ação personalíssima: "Conversão de separação em divórcio. Extinção sem julgamento de mérito por falecimento do requerido. Manutenção. Óbito ocorrido no curso do processo, colocando fim ao vínculo conjugal. Art. 1.571, § 1º, do Código Civil. Ausência de interesse processual no prosseguimento do feito, para obter a extinção do casamento por divórcio. Art. 485, VI, do CPC. Sentença mantida. Recurso improvido" (TJ/SP, Apelação cível n. 1034529-22.2018.8.26.0576, Acórdão n. 14697452, São José do Rio Preto, Primeira Câmara de Direito Privado, Rel. Des. Francisco Loureiro, julgado em 07/06/2021, DJESP 16/06/2021, p. 2195). Porém em sentido contrário, colaciona-se, da mesma Corte Estadual: "DIVÓRCIO LITIGIOSO. FALECIMENTO DO CÔNJUGE NO CURSO DA AÇÃO. SENTENÇA DE EXTINÇÃO SEM JULGAMENTO DO MÉRITO. Inconformismo. Acolhimento. A morte de um dos cônjuges no decorrer da demanda não acarreta a perda de seu objeto, vez que já manifesta a vontade de um dos cônjuges de se divorciar. Divórcio no direito positivo-constitucional que verte, após a Emenda Constitucional n. 66/2010, em direito potestativo e incondicional de cada qual dos cônjuges. Inteligência da nova redação dada ao artigo 226, § 6º, da Constituição Federal, com supressão do requisito temporal e causal. Princípio da ruptura do afeto. Direito cujo exercício somente depende da manifestação de vontade de qualquer interessado. Hipótese constitucional de uma rara verdade jurídico-absoluta, a qual materializa o direito civil-constitucional, que, em última reflexão, firma o divórcio liminar. Particularidade que suprime a possibilidade de oposição de qualquer tese de defesa, salvo a inexistência do casamento, fato incogitável. Detalhe que excepciona, inclusive, a necessidade de contraditório formal. Possibilidade de Decreto do divórcio post mortem, com efeitos retroativos à data do ajuizamento da ação, de forma excepcional. Precedentes. Ação procedente. Recurso provido" (TJSP, Apelação cível n. 1032535-74.2020.8.26.0224, Acórdão n. 14857942, Guarulhos, Sétima Câmara de Direito Privado, Rel. Des. Rômolo Russo, julgado em 28/07/2021, DJESP 30/07/2021, p. 2815). Como última proposição aprovada, o Enunciado 46 do IBDFAM confirma o que está na ementa transcrita, no sentido de ser o divórcio um direito potestativo, expressando que "excepcionalmente, e desde que justificada, é possível a decretação do divórcio em sede de tutela provisória, mesmo antes da oitiva da outra parte". Confirma-se também a concepção do divórcio unilateral ou mesmo do divórcio liminar, como admitido por alguns julgadores, mas não de forma pacífica. De toda sorte, a demonstrar a divergência e apontando a necessidade de se observar ao menos o contraditório, entre muitas ementas do mesmo Tribunal Estadual: "o divórcio liminar constitui um direito potestativo (EC 66/2010), todavia, se faz necessário o estabelecimento do contraditório antes de seu deferimento, principalmente ao se considerar a ausência de risco de dano grave. (...). Ainda que existam decisões em sentido diverso, de ser dispensável a oitiva da parte contrária antes da decretação do divórcio, dada a natureza e o regramento do casamento o acolhimento do pedido initio litis não é adequado" (TJPR, Rec 0067504-07.2020.8.16.0000, Ponta Grossa, Décima Primeira Câmara Cível, Rel. Des. Fábio Haick Dalla Vecchia, julgado em 30/03/2021, DJPR 30/03/2021). Como palavras derradeiras para este breve artigo, ressalto que atuo na comissão de enunciados do IBDFAM desde 2015 e, desta vez, tivemos a aprovação de propostas de grande repercussão social e que, sem dúvida alguma, serão muito debatidas não só no campo teórico, mas também na prática do Direito de Família e das Sucessões nos próximos anos, antecipando tendências inquestionáveis desses ramos do Direito Privado.
quarta-feira, 27 de outubro de 2021

Família, sucessões e extrajudicialização

O Conselho da Justiça Federal promoveu, entre os dias 26 e 27 de agosto de 2021, a II Jornada de Prevenção e Solução Extrajudicial de Litígios. Sete anos após a realização da sua primeira edição, participaram dessa II Jornada ministros, desembargadores, juízes, membros do Ministério Público, profissionais da advocacia pública e privada, professores, mediadores, árbitros, registradores, tabeliães e outros profissionais que se dedicam aos temas tratados. A coordenação científica do evento foi dos Ministros Luis Felipe Salomão e Paulo de Tarso Sanseverino, do Superior Tribunal de Justiça. Foram montadas cinco comissões científicas para debates prévios das propostas e posterior encaminhamento à plenária final: arbitragem; mediação; desjudicialização; novas formas de solução de conflitos e novas tecnologias. A comissão científica foi formada pelos Professores Carlos Alberto Carmona, Selma Lemes, Cesar Cury, Rodrigo Fux, Ministro Marco Buzzi, Kazuo Watanabe, Humberto Dalla e Juliana Loss. Humberto Theodoro Júnior, Helena Lanna Figueiredo, Heitor Sica, Trícia Navarro Xavier Cabral, Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, Luis Alberto Reichelt, Caroline Tauk; além deste autor. No presente texto, analisarei alguns dos 143 enunciados aprovados que, como sabido, funcionam como orientações doutrinárias para os aplicadores do Direito e contribuem diretamente para a extrajudicialização do Direito de Família e das Sucessões, assim como ocorreu no evento anterior. Iniciando pela comissão de arbitragem, e superando o debate que foi inaugurado na I Jornada, aprovou-se uma única proposta sobre o Direito de Família, o Enunciado n. 96, segundo o qual é "válida a inserção da cláusula compromissória em pacto antenupcial e em contrato de união estável". Apesar das minhas resistências doutrinárias - pelo fato de ser difícil a separação absoluta de interesses puramente patrimoniais nas disputas de família -, não se pode negar que o enunciado representa um passo adiante na concreção prática da arbitragem, para esses âmbitos. De toda sorte, surgirão debates sobre a forma como a cláusula compromissória foi inserida em tais contratos, notadamente se houve ou não imposição de um dos consortes ao outro, sobretudo nas hipóteses fáticas em que há disparidade econômica entre eles. Passando à comissão de desjudicialização, cujo objeto principal disse respeito à atuação dos Cartórios, algumas propostas de destaque para o Direito de Família sugiram. Conforme o Enunciado n. 120, "são admissíveis a retomada do nome de solteiro e a inclusão do sobrenome do cônjuge de quem não o fez quando casou, a qualquer tempo, na constância da sociedade conjugal, por requerimento ao Registro Civil das Pessoas Naturais, independentemente de autorização judicial". Segue-se a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, em sua comum valorização do nome como direito da personalidade do consorte que o incorporou. Nas suas justificativas está citado o seguinte acórdão superior: "a inclusão do sobrenome do outro cônjuge pode decorrer da dinâmica familiar e do vínculo conjugal construído posteriormente à fase de habilitação dos nubentes. Incumbe ao Poder Judiciário apreciar, no caso concreto, a conveniência da alteração do patronímico à luz do princípio da segurança jurídica" (STJ, REsp 1.648.858/SP, Rel. Ministro RICARDO VILLAS BÔAS CUEVA, TERCEIRA TURMA, julgado em 20/08/2019, DJe 28/08/2019). Pela proposta aprovada, reconhece-se a possibilidade de efetivação dessa alteração diretamente no Cartório de Registro Civil. A propósito, na mesma linha de se reconhecer o nome como direito da personalidade, sendo viável a sua alteração na via extrajudicial, o Enunciado n. 122 prevê que "o direito à inclusão de sobrenome em virtude do reconhecimento de filiação se estende aos descendentes e cônjuge da pessoa reconhecida, faculdade a ser exercida por mero requerimento perante o Oficial de Registro Civil das Pessoas Naturais, independentemente de decisão judicial". Também a tutelar o nome da pessoa natural, porém da pessoa que nasce morta, o Enunciado n. 124 preceitua que "é direito dos genitores o registro do natimorto com inclusão de nome e demais elementos de registro, independentemente de ordem judicial, sempre que optarem por seu sepultamento, nas hipóteses em que tal providência não for obrigatória". Trata-se de proposta que dialoga com o Enunciado n. 1, aprovado na I Jornada de Direito Civil, ao reconhecer que a proteção que o Código Civil defere ao nascituro no seu art. 2º alcança o natimorto, "no que concerne aos direitos da personalidade, tais como: nome, imagem e sepultura". Mais uma vez, de forma correta, dispensa-se a ação judicial para tanto. Por fim, a respeito do nome, destaque-se o Enunciado n. 127, ao prever que "é admissível o requerimento, pelo(a) interessado(a), ao Registro Civil de Pessoas Naturais para retorno ao nome de solteiro(a), após decretado o divórcio". Tem-se aqui aplicação do Provimento n. 82/2019 do Conselho Nacional de Justiça e conforme já reconheceu o Superior Tribunal de Justiça: "O direito ao nome é um dos elementos estruturantes dos direitos da personalidade e da dignidade da pessoa humana, pois diz respeito à própria identidade pessoal do indivíduo, não apenas em relação a si, como também em ambiente familiar e perante a sociedade. Conquanto a modificação do nome civil seja qualificada como excepcional e as hipóteses em que se admite a alteração sejam restritivas, esta Corte tem reiteradamente flexibilizado essas regras, interpretando-as de modo histórico-evolutivo para que se amoldem à atual realidade social em que o tema se encontra mais no âmbito da autonomia privada, permitindo-se a modificação se não houver risco à segurança jurídica e a terceiros. Precedentes. Na hipótese, a parte, que havia substituído um de seus patronímicos pelo de seu cônjuge por ocasião do matrimônio, fundamentou a sua pretensão de retomada do nome de solteira, ainda na constância do vínculo conjugal, em virtude do sobrenome adotado ter se tornado o protagonista de seu nome civil em detrimento do sobrenome familiar, o que lhe causa dificuldades de adaptação, bem como no fato de a modificação ter lhe causado problemas psicológicos e emocionais, pois sempre foi socialmente conhecida pelo sobrenome do pai e porque os únicos familiares que ainda carregam o patronímico familiar se encontram em grave situação de saúde" (STJ, REsp 1.873.918/SP, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, julgado em 02/03/2021, DJe 04/03/2021). Seguindo nas ementas aprovadas pela comissão de desjudicialização, consoante o Enunciado n. 121, "a manifestação do Ministério Público, nos autos do Procedimento Extrajudicial de Reconhecimento da Parentalidade Socioafetiva, é obrigatória quando a pessoa reconhecida contar com menos de 18 anos de idade na data do reconhecimento, ficando dispensada quando se tratar de pessoa reconhecida maior e capaz". A proposição interpreta corretamente o Provimento n. 83 do Conselho Nacional de Justiça, e a dispensa da atuação do MP no segundo caso está plenamente justificada pela diminuição de burocracias, tendo sido defendida por mim em textos anteriores. Sobre a união estável, aprovou-se o Enunciado n. 128, estabelecendo ser possível a sua formalização por meio do registro, "no livro E do Registro Civil de Pessoas Naturais, de instrumento particular que preencha os requisitos do art. 1.723 do CC/2002". A proposta visa a dar uma inequívoca publicidade a essa entidade familiar e fomenta a discussão sobre a possibilidade de se criar um estado civil em decorrência desse registro. Traz, assim, um conteúdo importante, não só para a teoria como para a prática. Como último enunciado a ser destacado da comissão de desjudicialização, aprovou-se que na hipótese prevista no art. 1.523, inciso II, do Código Civil não será imposto o regime de separação obrigatória de bens ao novo casamento da mulher grávida quando os contraentes firmarem declaração de que são pais do nascituro, independentemente de autorização judicial (Enunciado n. 139). Como se sabe, o último dispositivo citado estabelece a presença de causa suspensiva do casamento no caso da viúva, ou da mulher cujo casamento se desfez por ser nulo ou ter sido anulado, até dez meses depois do começo da viuvez, ou da dissolução da sociedade conjugal; o que visa a afastar confusões quanto à origem da prole, que pode repercutir patrimonialmente. A consequência da presença dessa causa suspensiva é a imposição do regime da separação legal ou obrigatória de bens (art. 1.641, inc. I, do CC). Entretanto, o parágrafo único do art. 1.523 enuncia que causa suspensiva pode ser afastada se os nubentes assim o solicitarem ao juiz, provando-se a inexistência de prejuízo, em especial a inexistência da gravidez. O enunciado aprovado amplia essa regra para os casos em que os cônjuges declaram ao Cartório de Registro Civil que o filho havido, o nascituro, é de ambos, mais uma vez reduzindo burocracias. Partindo para a comissão de novas formas e novas tecnologias, os enunciados aprovados trouxeram uma grande preocupação quanto à efetividade das plataformas digitais, que foram incrementadas nos últimos anos, sobretudo por conta da pandemia de Covid-19. Entre as propostas, destaco a que garante a participação de pessoas com deficiência no procedimento de mediação e em outras formas de resolução de conflitos, "com a observância da acessibilidade aos instrumentos, mecanismos ou tecnologias eventualmente necessárias para ela se expressar e ser compreendida" (Enunciado n. 150). O enunciado concretiza as previsões do Estatuto da Pessoa com Deficiência, com vistas à igualdade e à inclusão. Todavia, ressalvou-se que, se for "constatada a vulnerabilidade tecnológica do indivíduo para a participação em determinado ato processual, o magistrado pode facultar a realização do ato na sua forma híbrida ou presencial" (Enunciado n. 155). Por fim, quanto à comissão de mediação - a que mais aprovou propostas, e com espectro multidisciplinar -, destaco a que estabeleceu, entre os mecanismos de planejamento sucessório, a utilização da mediação, como forma de incentivar o diálogo entre as partes envolvidas e evitar ou solucionar o conflito. Segundo o Enunciado n. 167, "a mediação é instrumento extrajudicial adequado de planejamento sucessório, com aplicação preventiva aos conflitos entre herdeiros, sobre conteúdos patrimoniais e extrapatrimoniais". Trata-se de ementa que tem origem em proposta por mim formulada. De acordo com as justificativas que apresentei no evento, citando doutrina, "a mediação já é reconhecida como um dos mais eficientes mecanismos de planejamento sucessório, com o fim de colaborar preventivamente para que os herdeiros resolvam os seus conflitos de conteúdos patrimoniais e extrapatrimoniais. Como bem lecionam Fernanda Tartuce e Débora Brandão, 'o planejamento sucessório dialogado e participativo deve ser incentivado pelos advogados. A comunicação fluida deve prevalecer para que todos os envolvidos possam entender as razões do contratante do planejamento. Assim ele poderá identificar futuros rompimentos, dissabores ou estremecimentos, com algumas de suas escolhas, de modo que poderá valer-se da mediação, preventivamente. A utilização da mediação entre os futuros herdeiros necessários e o contratante do planejamento para esclarecimento de dúvidas, eliminação de ruídos e inferências que poderão culminar com ações no Poder Judiciário é medida que deve ser considerada pelos profissionais do Direito' (TARTUCE, Fernanda; BRANDÃO, Débora. Mediação em conflitos sucessórios: possibilidades antes, durante e depois da abertura da sucessão. In Arquitetura do planejamento sucessório. Coordenadora Daniele Chaves Teixeira. Belo Horizonte: Fórum, 2021, v. II, p. 221-222). As autoras citam como exemplos de conteúdo extrapatrimonial as questões relativas às diretrizes antecipadas de vontade e disposições de última vontade concernentes à cerimônia fúnebre, ao seu enterro e a bens de pouco valor do falecido". Em complemento, visando a dar efetividade prática à mediação no âmbito do inventário, destaco que no mesmo evento foi aprovado o Enunciado n. 183, segundo o qual, "nas ações de inventário envolvendo partilha de bens que compõem o espólio, instruído o processo; identificados o patrimônio; os herdeiros e os pontos controversos; o juiz, respeitada a autonomia das partes, poderá encaminhá-las para a mediação". Por fim, sobre a mediação e o Direito de Família, cito o Enunciado n. 223, segundo o qual "em conflitos familiares a mediação, combinada com outros meios, deve ser incentivada, para que as partes diminuam eventual animosidade, contemplando também a objetividade para a solução dos conflitos". A título de exemplo de sua aplicação, em ação que visa à prestação de contas de alimentos, o mediador deve estar mais atento a questões que dizem respeito aos valores devidos em si do que a questões relativas a divergências pessoais entre as partes. De fato, como se retira dos enunciados aqui analisados, sem prejuízo de outros, como bem escreveu o Ministro Luis Felipe Salomão em seu prefácio ao caderno de publicação dos enunciados aprovados, "essa Jornada foi um marco, um passo além com vistas a ampliar a utilização das soluções extrajudiciais como ferramenta útil à resolução de litígios. A implementação de mecanismos extrajudiciais de pacificação eficientes e que não desvirtuem os ideais de justiça permite a desobstrução do Judiciário, mantendo as garantias sociais e os direitos fundamentais" (disponível aqui. Acesso em: 22 out. 2021). Espera-se, assim, que os enunciados aprovados nessa II Jornada de Prevenção e Solução Extrajudicial de Litígios tenham a efetiva aplicação prática, contribuindo para o incremento do acesso à Justiça e para se evitar e também solucionar os conflitos que surgirem.
A lei 12.424, de 16 de junho de 2011, incluiu no sistema a usucapião especial urbana individual por abandono do lar, também conhecida como usucapião familiar. Conforme o art. 1.240-A do Código Civil, "aquele que exercer, por 2 (dois) anos ininterruptamente e sem oposição, posse direta, com exclusividade, sobre imóvel urbano de até 250m² (duzentos e cinquenta metros quadrados) cuja propriedade divida com ex-cônjuge ou ex-companheiro que abandonou o lar, utilizando-o para sua moradia ou de sua família, adquirir-lhe-á o domínio integral, desde que não seja proprietário de outro imóvel urbano ou rural". Em complemento, o seu § 1º estabelece que "o direito previsto no caput não será reconhecido ao mesmo possuidor mais de uma vez". Como se pode perceber, o instituto traz algumas semelhanças em relação à usucapião constitucional ou especial urbana individual que já estava prevista no sistema, que pode ser denominada como regular, prevista no art. 1.240 do Código Civil e no art. 183 da Constituição Federal. De início, cito a dimensão de 250 m², que é exatamente a mesma, procurando o legislador manter a uniformidade legislativa. Isso, apesar de que em alguns locais a área pode ser tida como excessiva, conduzindo a usucapião de imóveis de valores milionários. Ademais, o novo instituto somente pode ser reconhecido uma vez, desde que o possuidor não tenha um outro imóvel urbano ou rural. A principal novidade da norma transcrita foi a redução do prazo para exíguos dois anos, o que faz com que a nova categoria seja aquela com o menor prazo previsto entre todas as modalidades de usucapião, inclusive em relação aos bens móveis - hipótese em que o prazo menor era de três anos (art. 1.260 do CC). A tendência contemporânea é justamente a de redução dos prazos legais, eis que a realidade possibilita a tomada de decisões com maior rapidez. O abandono do lar é tido como fator determinante para a incidência da norma, somado ao estabelecimento da moradia com posse direta. O comando pode atingir cônjuges ou companheiros, inclusive homoafetivos, diante do amplo reconhecimento jurídico da união e do casamento homoafetivo. Fica claro que o instituto tem incidência restrita entre os componentes da entidade familiar, sendo esse o seu âmbito de aplicação. Nesse sentido, enunciado doutrinário aprovado na V Jornada de Direito Civil, com a seguinte redação: "a modalidade de usucapião prevista no art. 1.240-A do Código Civil pressupõe a propriedade comum do casal e compreende todas as formas de família ou entidades familiares, inclusive homoafetivas" (Enunciado n. 500). Como outra questão prática de relevo, em havendo disputa, judicial ou extrajudicial, relativa ao imóvel, não ficará caracterizada a posse ad usucapionem, não sendo o caso de subsunção do preceito. Eventualmente, o cônjuge ou companheiro que abandonou o lar pode notificar o ex-consorte, para demonstrar o impasse relativo ao bem, afastando o cômputo do prazo, especialmente pelas ausências da posse pacífica e do animus domini. Trazendo essa ideia, do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro: "Acolhimento do pedido de reconhecimento de domínio pela usucapião que se mostra inviável. Instituto da usucapião familiar/conjugal, previsto no artigo 1.240-A que pressupõe que o imóvel que se pretende usucapir seja, por força do regime de bens, do casal, em comunhão, decorrente do regime de bens do casamento ou da união estável, ou em condomínio. Imóvel que, no caso em tela, pertence unicamente ao primeiro réu, o qual o recebeu em doação quando ainda era menor. Demais modalidades que imprescindem do animus domini, não demonstrado na hipótese em exame. Permanência da autora no imóvel, juntamente com os filhos do ex-casal, que indica somente a tolerância com a situação fática acarretada pelo rompimento do vínculo conjugal. Incidência do art. 1.208 do Código Civil. Notificação extrajudicial realizada que cumpriu a finalidade de denunciar o contrato e demonstrou o interesse da usufrutuária e do nu-proprietário em reaver o imóvel, perfectibilizando-se o esbulho. Incidência do artigo 582 do Código Civil" (TJRJ, Apelação n. 0390522-36.2016.8.19.0001, Rio de Janeiro, Quinta Câmara Cível, Rel. Des. Heleno Ribeiro Pereira Nunes, DORJ 10/06/2021, p. 298). Ou, ainda, do Tribunal Paulista: "Embora o réu tenha constituído nova família, não restou configurado abandono. Réu que vem pagando pensão alimentícia e exercendo o direito de visitas à filha comum do casal. Mera ocupação autorizada do imóvel comum que restou continuada diante de permissão do coproprietário. Ausente requisito do animus domini para o seu reconhecimento" (TJ/SP, Apelação cível n. 1002348-40.2016.8.26.0704, Acórdão n. 14935725, São Paulo, Décima Câmara de Direito Privado, Rel. Des. Elcio Trujillo, julgado em 19/08/2021, DJESP 24/08/2021, p. 1668). Tem-se entendido, com razão, que o requisito do abandono do lar merece uma interpretação objetiva e cautelosa. Nessa linha, o Enunciado n. 499 aprovado na V Jornada de Direito Civil, em 2011, que analisava muito bem a temática: "a aquisição da propriedade na modalidade de usucapião prevista no art. 1.240-A do Código Civil só pode ocorrer em virtude de implemento de seus pressupostos anteriormente ao divórcio. O requisito 'abandono do lar' deve ser interpretado de maneira cautelosa, mediante a verificação de que o afastamento do lar conjugal representa descumprimento simultâneo de outros deveres conjugais, tais como assistência material e dever de sustento do lar, onerando desigualmente aquele que se manteve na residência familiar e que se responsabiliza unilateralmente pelas despesas oriundas da manutenção da família e do próprio imóvel, o que justifica a perda da propriedade e a alteração do regime de bens quanto ao imóvel objeto de usucapião" (Enunciado n. 499). Como incidência concreta desse enunciado doutrinário anterior, não se pode admitir a aplicação da nova usucapião nos casos de atos de violência praticados por um cônjuge ou companheiro para retirar o outro do lar conjugal. Em suma, a expulsão do cônjuge ou companheiro não pode ser comparada ao abandono. Outra aplicação da última ementa doutrinária diz respeito ao afastamento de qualquer debate a respeito da culpa, com o fim de influenciar a usucapião a favor de um ou outro consorte. Na verdade, existindo qualquer controvérsia a respeito do imóvel, não há que se falar em posse ad usucapionem com a finalidade de gerar a aquisição do domínio. De toda sorte, na VII Jornada de Direito Civil, realizada em 2015, o Enunciado n. 499 foi cancelado, substituído por outro com linguagem mais clara, que parece englobar as hipóteses aqui mencionadas. Nos termos da nova ementa doutrinária, "o requisito do 'abandono do lar' deve ser interpretado na ótica do instituto da usucapião familiar como abandono voluntário da posse do imóvel somado à ausência da tutela da família, não importando em averiguação da culpa pelo fim do casamento ou união estável. Revogado o Enunciado 499" (Enunciado n. 595). Penso que o novo enunciado não inova substancialmente, trazendo como conteúdo exatamente o que estava tratado no anterior, ora cancelado, apenas com o uso de termos mais claros e objetivos. Merece destaque outro enunciado doutrinário aprovado na V Jornada, que conclui que não é requisito indispensável para a nova usucapião o divórcio ou a dissolução da união estável, bastando a mera separação de fato: "as expressões 'ex-cônjuge' e 'ex-companheiro', contidas no artigo 1.240-A do Código Civil, correspondem à situação fática da separação, independentemente de divórcio" (Enunciado n. 501). Julgando dessa forma, somente para ilustrar: "o evento a quo para o início da contagem do prazo prescricional é a separação de fato do casal, com o abandono do lar por um dos cônjuges" (TJ/SP, Apelação n. 0023846-23.2012.8.26.0100, Acórdão n. 7215564, São Paulo, Segunda Câmara de Direito Privado, Rel. Des. José Carlos Ferreira Alves, julgado em 03/12/2013, DJESP 21/01/2014). Na mesma V Jornada de Direito Civil concluiu-se que "o conceito de posse direta do art. 1.240-A do Código Civil não coincide com a acepção empregada no art. 1.197 do mesmo Código" (Enunciado n. 502 da V Jornada de Direito Civil). Isso porque o imóvel pode ser ocupado por uma pessoa da família do ex-cônjuge ou ex-companheiro que pleiteia a usucapião, caso de seu filho, conforme consta do próprio dispositivo. Em casos tais, pelo teor do enunciado e na minha opinião doutrinária, a usucapião é viável juridicamente. Como última questão divergente a ser exposta neste breve texto, há intenso debate a respeito da competência para apreciar tal modalidade de usucapião, se da Vara de Registros Públicos, da Vara Cível ou da Vara da Família. Em discussões recentes, em grupos digitais, percebi que a primeira corrente prevalece entre os civilistas, enquanto a segunda entre os familiaristas. Entendo que, por se tratar de questão eminentemente civil, em que a primeira análise para a configuração do instituto diz respeito à configuração ou não da posse ad usucapionem, a competência deve ser das duas primeiras. Exatamente nesse sentido decidiu recentemente o Tribunal de Justiça de São Paulo, confirmando a posição do seu Órgão Especial, que "a questão afeta à competência para apreciação da usucapião familiar já foi solucionada pelo Órgão Especial desse Egrégio Tribunal de Justiça, cabendo às varas cíveis ou de registros públicos (onde não houver varas cíveis) apreciar a matéria" (TJSP, Apelação cível n. 1020898-41.2019.8.26.0005, Acórdão n. 14851731, São Paulo, Oitava Câmara de Direito Privado, Rel. Des. Silvério da Silva, julgado em 26/07/2021, DJESP 30/07/2021, p. 2831). Na mesma linha, julgou o Tribunal de Justiça do Distrito Federal que "a relação jurídica em discussão, de ordem eminentemente patrimonial, no que se compreende a pretensão inicial de usucapião familiar, com fundamento no art. 1.240-A do Código Civil, atrai inexoravelmente a competência do Juízo Cível. Súmula n. 24 do TJDFT e precedente julgado na 2ª Câmara Cível" (TJDF, Apelação cível n. 00380.18-62.2016.8.07.0001, Acórdão n. 134.4789, Sétima Turma Cível, Rel. Des. Fábio Eduardo Marques, julgado em 09/06/2021). Por fim, do Tribunal Fluminense, em prejuízo de muitos outros julgados, sendo essa a posição majoritária das Cortes Estaduais brasileiras: "o objeto da demanda é a aquisição originária da propriedade do imóvel em que reside a autora, de modo que a matéria a ser apreciada e julgada nos autos é de natureza eminente patrimonial, não havendo qualquer questão relativa à relação familiar. Matéria que não se encontra no rol da competência das varas de família, expressamente delimitada no art. 43 da LODJ" (TJRJ, Apelação n. 0012457-50.2019.8.19.0210, Décima Quinta Câmara Cível, Rel. Des. Ricardo Rodrigues Cardozo, DORJ 29/07/2020, p. 371). Esse último entendimento ganha força diante da comum situação de os autores das ações de usucapião alegarem a presença não só de uma de suas modalidades. Assim, é usual que a parte alegue não só a usucapião familiar, mas também a usucapião ordinária e a extraordinária, pela presença de requisitos cumulativos, de uma ou outra categoria. A configuração ou não de seus elementos é melhor apreciada pelo Juízo Cível do que pelo Juízo da Família, na minha opinião. Não se pode negar, contudo, que a questão não é pacífica, existindo acórdãos em sentido contrário, como nas hipóteses em que a usucapião é alegada como matéria de defesa em ações de divórcio ou de dissolução de união estável. Ou, ainda, as hipóteses concretas em que há divergência a respeito da presença ou não de uma união estável, motivadora da usucapião. Trazendo essa solução, pela competência da Vara da Família, colaciono o seguinte julgado, do Tribunal de Santa Catarina: "APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DIVÓRCIO C/C PARTILHA DE BENS. CASAMENTO SOB O REGIME DE COMUNHÃO UNIVERSAL DE BENS. SENTENÇA DE DETERMINOU A DIVISÃO DO IMÓVEL ADQUIRIDO PELOS LITIGANTES. RECURSO DA RÉ. DECISÃO EXTRA PETITA. INOCORRÊNCIA. JUIZ QUE DECIDIU CONFORME INTERPRETAÇÃO DOS FATOS NARRADOS PELAS PARTES. APELANTE QUE ALEGA QUE O EX-MARIDO ABANDONOU O LAR CONJUGAL, E PORTANTO O IMÓVEL DEVE SER EXCLUÍDO DA PARTILHA, POIS CONFIGUROU-SE A USUCAPIÃO FAMILIAR. APELADO QUE SEMPRE MANTEVE CONTATO COM A FILHA DO CASAL. ABANDONO DO LAR NÃO COMPROVADO. REQUISITOS DA USUCAPIÃO FAMILIAR (ART. 1.240-A, DO CÓDIGO CIVIL) NÃO PREENCHIDOS. COMPETÊNCIA DA VARA DA FAMÍLIA DA AÇÃO QUE VERSA SOBRE USUCAPIÃO FAMILIAR. AÇÃO CONEXA POR IDENTIDADE DE OBJETOS À AÇÃO DE DIVÓRCIO DADO QUE ENVOLVE RELAÇÃO FAMILIAR. SENTENÇA MANTIDA. RECURSO CONHECIDO E DESPROVIDO. Para que se configure a usucapião familiar, é necessário que o ex-cônjuge ou ex-companheiro tenha abandonado o lar conjugal de forma dolosa, deixando o núcleo familiar à própria sorte, ignorando o que a família um dia representou. Assim, a simples saída de casa, não configura o abandono do lar, que deve ser interpretado de maneira cautelosa, com provas robustas amealhadas ao longo da instrução processual" (TJSC, Apelação cível n. 0303473-85.2016.8.24.0075, Tubarão, Terceira Câmara de Direito Civil, Rel. Des. Saul Steil, DJSC 12/03/2018, p. 142). Como palavras finais para este breve texto, não se pode negar que existem argumentos consideráveis para os dois caminhos a respeito da competência. De todo modo, reafirmo o meu entendimento no sentido de se tratar de tema relacionado a matéria predominantemente civil, sendo certo que a grande maioria das demandas de usucapião, como aqui se demonstrou, traz o debate sobre a caracterização ou não da posse ad usucapionem.