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A delação premiada na defesa da concorrência brasileira - Considerações sobre o acordo de leniência

À luz dessas considerações gerais, infere-se a relevância do acordo de leniência para se alcançar uma política de defesa da concorrência eficiente.

quinta-feira, 26 de fevereiro de 2015

Atualizado às 08:28

O contexto brasileiro atual não poderia ser mais propício para refletir sobre o instituto da delação premiada, notadamente sob a ótica do direito de defesa da concorrência. Com efeito, basta realizar uma retrospectiva do ano de 2014 para se concluir o quão em evidência o instituto esteve. Para 2015, o cenário tende a trilhar o mesmo rumo: a expectativa é que o instituto seja cada vez mais visado, considerando episódios sensíveis no contexto brasileiro, que contribuíram para a maior conscientização da sociedade em torno do assunto.

Em síntese, a delação premiada é um instituto do Direito Penal usado como instrumento político-criminal de produção probatória, por meio do qual, mediante a confissão do acusado/indiciado e a sua respectiva colaboração nos procedimentos persecutórios, lhe é assegurado um benefício ("prêmio").

No ordenamento jurídico pátrio há uma multiplicidade de leis esparsas que dispõem sobre a delação premiada, seja na sua forma original, seja em suas variações, como a colaboração espontânea ou a colaboração premiada. Todavia, essa constatação não significa a existência de procedimentos claros e bem definidos acerca do tema. Ao revés, há lacunas na legislação que suscitam interpretações variadas1. Do ponto de vista do Direito da Concorrência, existe o acordo de leniência, inspirado no modelo norte-americano, e que foi introduzido no arcabouço legal no ano 2000 por meio da MP 2.055, posteriormente convertida na lei 10.149/2000.

Ainda que relativamente recente, o Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência (SBDC) assistiu a um incremento no que tange à celebração de acordos de leniência nos últimos anos2. Esse fato pode ser justificado, dentre outros, pela crescente difusão da cultura de defesa da concorrência no mercado brasileiro, despertando a conscientização da sociedade acerca dos malefícios advindos das práticas anticompetitivas (sensibilização concorrencial).

Nesse contexto de promoção de valores antitruste, emerge tanto o viés preventivo, que visa à observância e cumprimento das regras de defesa da concorrência (compliance concorrencial), como o viés repressivo, com o desiderato de estabelecer mecanismos aptos e efetivos no combate a condutas anticompetitivas. Em face dessa perspectiva, o acordo de leniência se revela um pilar essencial no intuito de fortalecer a Política Nacional de Combate a Cartéis, conduta de enorme gravidade que corrói a economia de um país, provoca a perda da competitividade e, em última ratio, prejudica o bem-estar social.

Acordo de leniência

Os efeitos adversos resultantes de um cartel são inúmeros e flagrantes. A Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) reporta os prejuízos aos consumidores advindos dessa infração, particularmente quando da elevação de preços e restrição da oferta, fragilizando a inovação tecnológica e impedindo o ingresso de novos produtos e processos no mercado.

Diante dessa realidade, internacionalmente, as autoridades antitruste enfatizaram seus esforços na repressão aos cartéis. Em sede nacional, o cenário não poderia ser diferente, tanto que o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE) vem acompanhando de perto o movimento global, destacando o combate aos cartéis como uma pauta prioritária em termos de política pública.

O panorama global retrata, dentre outras variáveis: (i) aumento do número de denúncias/investigações; (ii) novas tecnologias e técnicas investigativas; (iii) severidade das sanções em casos de condenação; (iv) conscientização da sociedade civil; e (v) novas legislações para reprimir com rigor condutas ilícitas e que se inter-relacionam com questões antitruste (e.g. anticorrupção). Inserido no bojo dessas medidas encontra-se o acordo de leniência3, com o potencial de funcionar como instrumento eficaz para detectar, investigar e coibir a prática de formação de cartéis.

A Lei de Defesa da Concorrência (12.529/2011) disciplina o acordo de leniência em seus artigos 86 e 87. Conforme se constata, o CADE poderá, por intermédio de sua Superintendência-Geral (SG), celebrar acordo de leniência com pessoas físicas e jurídicas que forem autoras de infração à ordem econômica, com a extinção da ação punitiva da Administração Pública ou a redução de um a dois terços da penalidade aplicável. Para que os benefícios possam ser concedidos, deve haver uma colaboração efetiva com as investigações e o processo administrativo, e da colaboração deverá resultar a identificação dos demais envolvidos na conduta infrativa, bem como a obtenção de informações e documentos comprobatórios da referida conduta. Ser o primeiro a se qualificar com relação à conduta noticiada/sob investigação, cessar completamente o envolvimento na conduta, confessar e cooperar plena e permanentemente com as investigações e processos administrativos são condições sine qua non para a celebração do referido acordo. Além disso, a SG não pode, no momento da propositura do acordo de leniência, dispor de provas suficientes para assegurar a condenação da empresa ou pessoa física (hipótese que afastaria o cabimento do acordo). Em suma, o acordo de leniência é um benefício que pode ser concedido pelo CADE ao agente que colaborar efetivamente com as investigações/processo administrativo, mediante imunidade, total ou parcial, em relação às penas administrativas e criminais aplicáveis, observados certos requisitos cumulativos.

Nesse racional, vê-se o retrato do denunciante que é o primeiro a "assoprar o apito" (whistleblower) e "denunciar" a conduta - uma autodenúncia em troca de benefícios. Tendo em conta o pressuposto de que apenas o primeiro a delatar a prática fará jus aos benefícios do acordo de leniência, há inconteste fator de insegurança entre os membros do cartel - daí o incentivo para que aquele que se sinta ameaçado se antecipe e denuncie a conduta. Essa lógica faz sentido ao refletirmos sobre a natureza sigilosa e fraudulenta do cartel, que dificulta a identificação/investigação da conduta quando ausente a colaboração dos envolvidos. Nesse contexto, o acordo subsidia a Administração Pública na consecução desse propósito, pois ao assegurar a imunidade a um dos participantes da conduta, a Administração não apenas está gerando um fator de desestabilização nos cartéis existentes, como também favorece a detecção da conduta e, por conseguinte, pune infratores que, de outra maneira, não teria condições de fazer4. Não se pode esquecer também que a celebração de um acordo de leniência confere agilidade às investigações, com economia de recursos do Erário - sejam recursos humanos, ou financeiros, sempre consumidos em grande escala nesse tipo de investigação.

Pari passu, não se pode olvidar da chamada leniência "plus" (artigo 86, parágrafo 8º). Em suma, esta se aplica para aquele infrator que não se qualifica para um acordo de leniência com relação a determinado cartel, mas fornece informações acerca de outro cartel sobre o qual o CADE não dispunha de conhecimento prévio. Nessa hipótese, o infrator obterá todos os benefícios da leniência em relação à segunda infração, além da redução de um terço da pena que lhe seria aplicável com relação à primeira infração. Pois bem, trata-se de um dispositivo que endereça interessante atrativo mediante "pacote de benefícios".

Adicionalmente, um ponto sensível e de interesse geral diz respeito à confidencialidade. A proposta do acordo de leniência é sigilosa, salvo no interesse das investigações/processo administrativo. De igual sorte, a proposta não importa confissão quanto à matéria de fato, nem reconhecimento de ilicitude da conduta analisada - caso seja rejeitada, não se fará qualquer divulgação da mesma, tampouco poderá a autoridade usar essas informações e confissões para instauração de processo administrativo. Um grande trunfo para a realização do acordo de leniência consiste no fato de que, para fins dos crimes contra a ordem econômica e demais crimes diretamente relacionados à prática de cartel (i.e. fraude em licitação pública), o mesmo suspende o curso do prazo prescricional e impede o oferecimento da denúncia contra o beneficiário do acordo. Outrossim, cumprido o acordo de leniência, extingue-se automaticamente a punibilidade de tais crimes. Ressalva-se, no entanto, que a responsabilidade do leniente no âmbito cível não é extinta mediante a celebração do acordo, de modo que o leniente pode ser processado e condenado no que tange à reparação de danos, prática esta, aliás, corrente na jurisdição norte-americana, ao passo que, no Brasil, é medida incipiente, cujo incremento é esperado até como desdobramento natural dos esforços de combate a cartéis.

Oportuno mencionar, ainda, que o acordo de leniência também foi contemplado em sede da Lei da Empresa Limpa (12.846/2013). A novel legislação, que disciplina a responsabilidade civil e administrativa de pessoas jurídicas por "atos de corrupção", dispõe sobre o acordo de leniência em seu artigo 16, com uma estrutura semelhante à inteligência antitruste (qualificações), facilitando, em tese, a detecção do delito. Entretanto, há diferenças relevantes entre a dinâmica antitruste e o modus operandi estabelecido pela Lei da Empresa Limpa em matéria de leniência. Nesta, a empresa beneficiada da leniência terá as multas reduzidas em até dois terços e certas sanções judiciais e administrativas excluídas. Entretanto, pontue-se a reticência acerca do sigilo (vide competência descentralizada para a celebração do acordo de leniência) e a ausência de imunidade na esfera criminal para o beneficiário do acordo, o que poderia minar ab initio a utilidade do instituto. Isso porque, a rigor, ao admitir a prática de atos de corrupção, a delatora estará municiando as autoridades públicas com uma série de informações e documentos que atestem o seu envolvimento no ilícito, de modo a subsidiar um dossiê completo que, futuramente, poderá ser utilizado, judicialmente, na esfera penal (e também civil) em seu desfavor. Consequentemente, dada a ausência de proteção criminal no âmbito do acordo de leniência (notadamente ao considerar o dirigente/administrador da eventual delatora), deduz-se um ponderável fator de desestímulo à denúncia. Portanto, a depender da práxis, o acordo de leniência da Lei da Empresa Limpa pode não ser tão efetivo quanto aquele estabelecido na Lei de Defesa da Concorrência5.

À luz dessas considerações gerais, infere-se a relevância do acordo de leniência para se alcançar uma política de defesa da concorrência eficiente. Tal acordo posiciona-se como um mecanismo crucial para alavancar o enforcement da defesa da concorrência, robustecendo a dinâmica do combate aos cartéis. Com efeito, o instituto colaborou (e vem colaborando) eficazmente para que diversos cartéis - nacionais e internacionais - fossem descortinados e condenados. Possivelmente, ante a ausência desse mecanismo, muitos desses cartéis estariam impunes até os dias atuais, com desvirtuamento da concorrência e sérias lesões à sociedade.

A qualidade da colaboração dos signatários, o incremento das assinaturas, a diversidade de mercados alcançados e os impactos positivos na instrução processual, por exemplo, são resultados que fortalecem a projeção do acordo de leniência na cultura concorrencial brasileira. No horizonte futuro, e acompanhando a dinamicidade dos agentes econômicos, os desafios tendem a se acentuar - a capilaridade dos cartéis para as raias da licitação e a sua inter-relação com crimes de corrupção, lavagem de dinheiro, etc., são indicativos sólidos nesse sentido. Como tal, a parceria com órgãos criminais deve ser uma realidade cada vez mais constante. Dito isto, em prol da necessária transparência e previsibilidade, os administrados aguardam diretrizes referenciando/complementando questões materiais/procedimentais subjacentes ao acordo de leniência6, prestigiando, pois, a segurança jurídica e o êxito ainda mais vigoroso do acordo.

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NOTA DO AUTOR

Agradeço à sócia do escritório Souza, Cescon, Barrieu & Flesch Advogados, Fabíola C. L. Cammarota de Abreu, pela revisão e comentários atenciosos.

NOTAS

1 Por exemplo, leis que dispõem sobre: crimes contra o Sistema Financeiro Nacional (nº 7.492/1986, artigo 25, parágrafo 2º); crimes hediondos (nº 8.072/1990, artigo 8º, parágrafo único); crimes contra a ordem tributária, econômica e relações de consumo (nº 8.137/1990, artigo 16, parágrafo único); lavagem de dinheiro (nº 9.613/1998, artigo 1º, parágrafo 5º); proteção a vítimas e testemunhas (nº 9.807/1999, artigo 13); políticas públicas sobre drogas (nº 11.343/2006, artigo 41); organizações criminosas (nº 12.850/2013, artigo 4º). Em virtude dessa profusão legislativa, questionamentos não são raros, seja no âmbito das hipóteses e consequências da delação premiada, seja no âmbito da forma de negociação, sigilo, vinculação do magistrado, etc., inclusive suscitando debates no campo da ética e da moral.

2 Em particular nos anos de 2010, 2012 e 2014, em que houve, respectivamente, 10, 11 e 8 acordos de leniência assinados (considerando os aditivos), com base em informações públicas até outubro de 2014 - sob tal database, o recorde teria sido o ano de 2012. A título de referência, o primeiro acordo de leniência foi celebrado em 8 de outubro de 2003, de modo que, em 2008, a data foi instituída como o Dia Nacional de Combate a Cartéis.

3 Leniency agreement - amnesty (EUA); Conditional immunity (Comunidade Europeia); Programa de clemência (Portugal); Programma di clemenza (Itália).

4 Implicações econômicas do dilema do prisioneiro embutem a lógica do acordo de leniência, pois a leniência facilita as condições para uma completa imunidade, ao mesmo tempo em que diminui as circunstâncias para que a redução da multa seja concedida - isso desperta uma "corrida contra o tempo" que enseja "instabilidade recíproca" entre os agentes envolvidos.

5 Ao tempo deste artigo, a regulamentação federal ainda estava sob o escrutínio do Poder Executivo Federal. De toda forma, era dada como certa a retroatividade do acordo de leniência da Lei da Empresa Limpa em prol do réu, conforme posicionamento da Controladoria-Geral da União - principio da retroatividade da lei mais benéfica.

6 A título de exemplo, guia de negociação, "FAQ" de leniência, disponibilização de modelos para consulta, medidas de segurança (e.g. armazenamento de documentos, benchmarking global), etc., contribuindo para a viabilização do acordo de leniência.

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*Guilherme Missali é advogado associado ao escritório Souza, Cescon, Barrieu & Flesch Advogados, com atuação nas áreas de Direito Concorrencial e Direito Anticorrupção.

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